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segunda-feira, 25 de setembro de 2023

“PALIMPSESTO: UM ROMANCE PERNAMBUCANO” E COSMOPOLITA. Moisés Monteiro de Melo Neto lança romance

 


Prof. Dr. José Nogueira (Universidade do Vale do São Francisco)

 

Apresentando-se como um romance com características memorialistas, “Palimpsesto” comprova as considerações Freudianas, no texto “Lembranças encobridoras” (1899), acerca da memória, uma vez que ele a encara alterando a concepção da mesma, realizando pontes entre o influxo das fantasias, as rememorações e distorções da mesma, além da amnésia jogando os anos iniciais do indivíduo para o inconsciente. Assim é o texto de Moisés Monteiro de Melo Neto, sua convivência em Recife, sua vida entre o teatro e a academia, além da produção escrita marcada pelo pluralismo de gêneros, temáticas e técnicas somados à fuga de padrões a ponto do ato de surpreender chegar a ser uma monotonia nada monótona. Por isso, tomarei a liberdade de me ancorar em autores de campos epistemológicos distintos, algo inconcebível em um texto científico, mas necessário para descortinar um mosaico tão intenso de imagens como é essa obra.



Em sua etimologia, a palavra “palimpsesto” vem do Grego “palin”, que significa “para trás” e “psen”, que se entende como “esfregar suavemente”, ou seja, através dele algo era escrito e depois poderia ser apagado para outra mensagem ser escrita, mas a escrita anterior deixou suas marcas que se cruzam com a escrita atual. O romance traz essas marcas ao possuir três narradores em primeira pessoa, o primeiro é Lucas, o qual fala de Michelle, sua amada, mas que é apaixonada por um canalha que deu o golpe do baú em uma senhora rica.

O pai dela engravidou uma índígena de uma comunidade no interior de Pernambuco, mãe de Michelle. Um acidente de carro, na Serra das Russas, acabou com os dois, Michelle, ainda uma   garotinha com poucos anos de vida, foi a única sobrevivente.

O enredo envolve Emerson, garoto de rua, esperto, maquiavélico a ponto de subir na vida, fora adotado por uma empregada da mansão do pai de Michelle o que gera ciúmes de Magno, filho legítimo do pai dela, que o mata. Detalhe, esses três homens estão ligados a Michelle, apesar de apenas Lucas e Magno serem apaixonados, eis um triângulo amoroso dramático do começo ao fim.

Assim como a escrita de um palimpsesto, a segunda parte do livro traz outro narrador: um amigo de Lucas de nome não revelado. Nessa parte do livro, Michelle pouco é citada, a personagem Saluá vem à cena, mulher egípcia e extremamente atraente e intensamente atraída por Lucas, com quem vive um amor ardente enquanto o corpo dele se encontra em estado terminal. Nesse ínterim, o romance anteriormente passado e Recife ganha ares de romance de viagem ao ocorrer no Egito e arredores, com ricas descrições e mobilidades que podem ou não acompanhar o estado de espírito dos personagens. Mikhail Bakhtin em “Estética da criação verbal” nos conta que “O tipo romance de viagens tem como característica uma concepção puramente espacial e estática da diversidade do mundo. O mundo é uma contiguidade espacial de diferenças e contrastes; já a vida é uma alternância de diferentes situações contrastantes: sucesso – insucesso, felicidade – infelicidade, vitórias – derrotas, etc” (p. 206). Apesar do romance, assim como qualquer filosofia ou teoria da literatura, produz suas análises com base do que está produzido, enquanto produções rompedoras de padrões necessitam de análises também pioneiras, não é de se esperar que esse romance de viagens, ao menos em partes, siga os padrões de romances antes produzidos. Mesmo assim, coloca-se como mais uma narrativa do palimpsesto que é “apagado” para escrever a terceira parte da obra.

A última parte da obra nos traz Michelle como narradora, agora mulher madura e sem a presença de homens que, de uma forma ou outra, foram marcantes em sua vida. Daí, sente-se perdida e busca outros amores, mas não esperem finais previsíveis, esse romance não é tão fiel às previsibilidades quanto Emerson era a Michelle, não estamos falando de um conto de fadas, mas de casos amorosos com tudo aquilo que a vida fatual nos traz: infidelidades, decepções, eternidades enquanto duram, paixões platônicas, felicidades edificadas, enfim, um caleidoscópio de vida emoldurado por uma escrita leve, mas com peso em suas imagens, peso a leveza, como diria Ítalo Calvino.

Por ser um romance com traços memorialistas, por parte dos personagens, não descarto a possibilidade do autor, seja autor pessoa ou autor personagem, como classifica Bakhtin, investir estrategicamente suas memórias nas narrativas, não de forma clichê e previsível, mas imprimindo seus valores nas camadas grafadas e raspadas desse caleidoscópio, a exemplo de Lucas quando nos diz que não deseja um vida medíocre. Antoine Compagnon em “O demônio da teoria: literatura e senso comum” nos fala da postura do literato perante a teoria: “É certo que o autor está morto, a literatura não tem nada a ver com o mundo, a sinonímia não existe, todas as intepretações são válidas, o canône é ilegítimo, mas continua-se a ler biografias de escritores, a identificar-se com os heróis dos romances: seguem-se com curiosidade as pegadas de Raskolnikov pelas ruas de São Peterburgo, prefere-se ‘Madame Bovary’ a ‘Fanny’, e Barthes mergulhava deliciosamente em ‘O Conte de Monte Cristo’ antes de dormir (p. .252)”.

No conjunto da obra, temos um belo exemplo de um trabalho maduro, dotado de uma escrita densa, mas “palatável” a um público tão diverso quanto a representatividade da obra. Em suma, é subjetivo e complexo dizer o que a obra é, posto ser ser mais lógico afirmar o que ela não é. Não se trata de uma escrita inexperiente, polarizada entre bem e mal, com presumíveis finais felizes para bajular as expectativas do leitor. Dessa forma, trata-se de um romance feito para quebrar padrões na literatura e nas bases teóricas de análise da mesma, uma leitura reflexiva, relaxante, dramática com toques de sensualidade e sexualidade, um palimpsesto de narrativas que, ao nos tirar de nossas realidades, nos convida para novas percepções da mesma realidade.

domingo, 17 de setembro de 2023

Moisés Monteiro de Melo Neto fala sobre o show do Recife de Amy Winehouse

 

Lembro do dia que assisti ao show de Amy no Recife, 13 de janeiro de 2011. Uau! Eram mais de 12 mil pessoas (a quarta apresentação de La Winehouse, no Brasil. Primeiro não acreditei quando soube que ela viria, depois, mesmo estando ali na primeira fila, ainda estava incrédulo, com todos os boatos sobre a fragilidade dela, que queria morrer e estava tomando todas. Amy e aquela banda incrível. Thalita Gadelha Taveira ganhou o prêmio pela melhor caracterização de Amy e estava lá também explodindo de emoção com tudo aquilo que estava rolando à nossa frente. A nossa cantora inglesa tão querida tentando fazer um quatro com as pernas (para provar que apesar de ter tomado uns drinks ainda estava bem) levou um tombo, mas tudo bem. O show, na verdade, começou e durou cerca de uma hora e meia; foi o mais longo em Pindorama; Recife ficou babando. Quando os músicos fizeram a introdução da música Shimmy Shimmy Ko Ko Bop para ela entrar e ela apareceu com aquele vestido amarelo (nossa! E que vestido! Bem decotado, colado no corpo sensual, meio detonado pela estrada felliniana da vida louca daquela diva...) eu fiquei sem fôlego. Ela parecia, sei lá, não estar ali. Foi uma encruzilhada muito doida, e eu fiquei meio zonzo, com o astral dela. Elétrica, como o jazz, blues, vida rock´n´roll, nem sei mais...

 

Moisés Monteiro de Melo Neto apreciando imagem de cera de Amy


Na hora de Black to Black... me deu uma vontade de chorar. Sou assim, sentimental e amo meus ídolos com uma força imensa que deus me dá. E lá vem aquela garota, na casa dos 27, a me matar com suas melodias fascinantes, parecia ler minha alma com aquelas palavras. Como não lembrar de Janis Joplin?  Just Friends me levou às lágrimas, embora eu tentasse manter certo distanciamento crítico. Ela dava sinais de bebedeira...

 

O público urrava, batia palmas, o Centro de Convenções recebia aquela pequena enorme dama da música e eu perdia os sentidos e os reencontrava mil vezes, ali, com ela a uns dois metros de distância, prevendo que em julho ela morreria. Sua quase inevitável caneca, com seu coquetel favorito (da pesada!) ela pegava e tomava um gole entre uma música e outra (little girl blue...), às vezes até gargarejava se deliciando com aquele líquido tão... ambrosia em suas propriedades. Ah! Como eu queria abraçá-la! Lá estava o backing vocal Zanon, que cantou as quinta e sexta músicas em cerca de sete minutos no domínio do show. Amy saíra e volta cheia de gás. Sim, e aí começou a interagir ainda mais com a gente, aqui, em Recife.  Meninos, eu vi e ouvi. Foi incrível. Até hoje me arrepio com a força daquela mulher! E foi nessa reentrada que ela danou Rehab e nós cantamos com toda força, o hino da decadência elegante e atroz dela. Daí ela começou uns lances meio estranhos do tipo dar pausas maiores e  falar mais com os músicos, se escorar em seu querido Zanon, a interromper as músicas, como se estivesse confusa ou com má vontade. A gente entendia e não queria uma máquina. Ela era feita de carne e estava dando um show de talento. Então começou também a não cantar as músicas até o fim. Ulalá! E abraçava Zanon, beijando-o carinhosamente, como irmão, que ele era... naquele palco, no recife, ali pertinho de onde morreu Chico Science, Centro de Convenções, entre Recife e Olinda. Ai, meu Deus. Será que ela iria conseguir ir até o fim do show? Fiquei na torcida; ela parecia estar brincando com a vida. Agradecia aos fãs, ao público e se voltava para os outros músicos da banda dando hiatos à apresentação.

 

Por volta da décima música, Sam and Amy, a cantora mais uma vez saiu do palco e ficou confusa quanto ao local exato da saída na coxia; foi meio patético, meio trágico, meio... nem sei... lances de amor e morte, entendem? Eu estava me despedindo dela, eu sabia, ela era como uma grande amiga, daquelas que a gente vê pouco. Zanon assumiu a cena geral e mandou brasa e a gente ficou pensando se ela ia voltar ou não. Ele ficou fazendo hora e aproveitou para apresentar o grupo. Depois de quase dez minutos, ela voltou ligadíssima e beijou Zanon, como brother, dá um giro e... (parecia uma menina bailarina!) cai, mas levanta-se bem rápido e volta a dançar (deu para ver hematomas, de outras quedas e acidentes assim, nas suas pernas). Foi até o fim e eu saí extasiado com ela. Viva Amy Winehouse! Que descanse em paz e viva para sempre, possibilidade que a arte oferece aos seus sacerdotes!”

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Novos cordéis de Moisés Monteiro de Melo Neto

 


Mychel Arthur Martins França

 (Universidade Estadual de Alagoas)

 

 

 No CORDEL DA COMPADECIDA 2, Moisés “continua” o enredo da peça de Ariano Suassuna, que já tomara emprestado o(s) “mote” (s) a 3 cordéis nordestinos. Desta vez João Grilo quer ajudar o amigo chico a se casar, mas o Diabo anda de olho neles e vai colocar os dois em encrenca.





1 Agora vou lhe contar

Você já ouviu uma vez

Coisas da Compadecida

Mãe nossa, todos vocês

São coisas de chorar muito

De sorrir, também. Não crês?

 

2 Nós aqui temos certeza

De cordel, ouviu falar?

Livro bom, de toda gente

Dele não vou me afastar

Pois me deram a missão

Do livreto propagar

 

3 Inspiração é uma coisa

Que está em todo lugar

Difícil é corrigir

Tanto foieto apurar

Esse me veio de açoite

Num dia de festejar

 

4 Coisas da Compadecida

Disso eu vou escrever

Sobre um tal de Malasartes

Nordeste de num se crer

Começo logo dizendo

Um João Grilo pode ser

 

5 Mas né não assombração

O homi tornou a viver

Está aqui o número dois

Dessa história para ler

Depois que a Compadecida

Que a TV fez reviver

 

6 Eram três cordéis, então

Ariano assim juntou

Num tecido fabuloso

Que o paraibano criou

Vem aí uma homenagem

Três, primeiro, e o que findou

 

7 Digo logo, minha gente

Leia o que vem depois

É a tal Compadecida

Agora volume dois

Pensou que tinha acabado?

Se enganou, e apois?

 

8 Viche, vote, arrebite

Vou contar, o que veio após

De Malasarte à vida voltar

Grilo cê conhece, sem nós

O bicho mentia tanto

Era mais duro que nós

 

Moisés imaginou esse cordel, segundo nos declarou, ao fazer compras no mercado. Chegando em casa gravou tudo em áudio e no dia seguinte transcreveu e formatou o cordel. Levou a 2 repentistas que o escutaram com atenção e musicaram parte dele; tal encontro se deu na Praça do Marco Zero do Recife.



  No cordel SHERLOCK E O CÃO DOS BASKERVILLES, o nosso cordelista enfatiza, mais uma vez o principal viés da sua vasta obra cordelística: temas um tanto quanto inusitados na área. Desta vez a literatura de língua inglesa, como fez com O Gato Preto, de Edgar Allan Poe. Neste caso faz tributo a Doyle, analisando em cordel o romance mais famoso do cultuado autor. Como sempre Moisés trabalha com sextilhas em redondilha maior e rima nos versos pares. Notem como nas estrofes finais o olhar do autor se acentua:

 

21 O detetive se escondeu

No pântano, que rebuliço

Era astúcia do biólogo

Ou mesmo um tal feitiço?

Proteger Henry do pior

Era esse o compromisso

 

22 Numa noite de lua e neblina

Tudo então se esclareceu

Biólogo mata homem errado

Aí se comprometeu

Amarrou sua mulher

E nela muito bateu

 

23 Atraiu Henry, pra matá-lo

O truque com o cão era tal

Pintou o bicho em fosforescente

Para aspecto fatal

assim tinha matado o tio

com o sobrinho seria igual

 

24 Sherlock frustrou-lhe os planos

Matando o cão danado

E o biólogo maluco

Ao fugir morre afogado

Mais um caso resolvido

e documento arquivado.

 

CORDEL DAS FAMÍLIAS BELLI E MONTEIRO DE MELO, aqui o Prof. Dr. Moisés faz a biografia, retrata parte da sua árvore genealógica, a raiz ítalo-indígena. Seu bisavô materno veio de Nápoles, mascateou na Paraíba e enriqueceu a ponto de comprar uma ilha fluvial em Cabedelo, tornar-se vice-cônsul, são histórias surpreendentes como a da tia Carmela, que recebia espíritos, tocava piano na tal ilha, e também a do tio-avô Osíris de Belli. Já o seu avô paterno, barbeiro, poeta e músico, era indígena; iniciou Moisés na arte dos versos.




39 Vô Moisés me contava

Nas tardes em Sanharó

Aonde eu ia de trem

Nunca me sentia só

Chorava sozinho em criança

Não dar mais dor à mãe, no pó

 

40 Cresceu assim, vô Moisés

Músico, barbeiro e poeta

Colocava dedo pra cima

Parecia até profeta

Serás escritor, meu neto

Tens meu nome, tua meta

 

41 A mãe dele era uma índia

Maltratada na cidade

As esposas não gostavam dela

 Impunham autoridade

Moisés pagava o pato

Agregado e outridade

 

42 Quando pai Neco morreu

Duas casinhas, vô herdou

Bisavó e meu avô

Ela morreu, ele casou

Nasce meu pai, vó Elisa

Partiu, “sozinho” ficou

 

Atenção para o folheto MITO NO CORDEL, foi feito a partir de um aluno da UNEAL, que desafiou Moisés para expor o que é Mito. Em uma semana surgiu então mais um livrinho, desta vez expondo a visão do nosso professor.



1 Mito vem do grego mythós

 narrativas fantásticas

 explica a origem de tudo

palavrinhas elásticas

no princípio era o verbo

mas vem de artes plásticas

 

2 Na cavernas se criou

mas ao ar  livre  também

o que importa para o povo

explica o mundo e o além

que esse mundo é assim

 

3 Grécia antiga, muitos deuses

e também lá no Egito

Já na Índia tinha tantos

 Que depois se chamou mito

Várias interpretações

Aí inventaram o rito

 

4 Sobre a origem do mundo

Quis o homem adivinhar

 a natureza e os deuses

coisa assim de arrepiar

Mitos nos ensinam tanto

O problema é decifrar!

 

 Em A PELEJA DE CHICO SCIENCE E ARIANO SUASSUNA, Moisés, que foi aluno de Ariano e escreveu 3 livros sobre Science e o Movimento Mangue, trata de um encontro, que se deu na FUNDARPE, órgão de cultura do Governo de Pernambuco. O encontro foi articulado por um jornal local e Moisés transformou em peleja o embate entre o antagonista Ariano, sempre conservador e genial, e o malungo beleza, que obteve estrondoso sucesso e marcou os anos Recife na sua Manguetown. Ariano fundou o Movimento Armorial, que zelava por nossas raízes, Science misturou cultura pernambucana com o hip hop, para dizer o mínimo.


1      Diário de Pernambuco

 sexta-feira, num 13,pense

janeiro de noventa e cinco

Moisés Monteiro de Melo Neto lê a entrevista com Science e Suassuna:
Armorial versus Movimento Mangue


deixo aqui o suspense

encontrou-se Ariano

com nosso Chico Science

 

 

No CORDEL DO GATO PRETO, o autor faz experiência com o ensino da literatura através do cordel, coisa que pratica como professor universitário e já utilizava, ao lado do teatro como instrumento de ensino, com desenvoltura, levando seus professorando a incorporarem novas práticas didáticas. Notando o fascínio dos alunos por histórias de terror, Moisés já adaptara à cena teatral o conto de Poe, desta vez, transpondo-o ao cordel, suavizando o horror do feminicídio e do alcoolismo, acentuando o fantástico e o sobrenatural.


1 Não espero e nem peço

que acreditem nessa história

é história muito estanha

sem honra tão pouco glória

Nem eu mesmo acredito

Então não conto vitória

 

2 Não é loucura nem sonho...

 Não vou morrer sem contar

Esta minha louca minha história!

A esposa dizia: pra me acalmar

meu espírito inquieto

cuidar da casa e esperar

 

3 O fantasma da obsessão...

 pelo  gato... o estranho animal

pela preta criatura

que  consequência fatal

... os  acontecimentos... tortura

 tortura.. me  destruiu no final!

 

 

Em CORDEL DO TERROR ACADÊMICO, temos novo desafio que Moisés enfrenta: falar do mundo teórico na carreira universitária. Ele cita Morin (antropólogo, filósofo, pesquisador e professor universitário francês conhecido por seus trabalhos sobre imaginário e mitologia), Maffesoli (sociólogo francês conhecido sobretudo pela popularização do conceito de tribo urbana.), Gilbert Durand (antropólogo, filósofo, pesquisador e professor universitário francês conhecido por seus trabalhos sobre imaginário e mitologia), dentre outros. O resultado é um inusitado olhar sobre a Universidade, fascínio centro de Liberdade a enfrentar a opressão nos seus mais variados ambientes.

12 Que coisa danada!

 Detentores do poder

 de um lado ou de outro

 ser culto é ter quere?

Livre arbítrio é assim?

 Cada um sobreviver?

 

Por fim temos o CORDEL DO TERROR EM PERNAMBUCO, um apanhado, em forma de cordel, das mais misteriosas assombrações em Pernambuco: uma “viagem dantesca” que o sujeito poético deste cordel faz guiado, como o florentino por Virgílio em A Divina Comédia. Surgem figuras como o tal guia, o fantasma de um judeu do bairro recifense da Boa Vista, local onde Moisés reside, uma sereia misteriosa no cais do antigo porto da capital pernambucana, Comadre Florzinha, o Papafigo, o espírito de um peculiar cangaceiro, a perna cabeluda, Biu do Alicate e tantos outros malassombros.

13 Podia jurar que eu vi

ponte de Nassau a cruzar

O bicho e estátuas todas

Pareciam num dançar

tive que me benzer

 não podia acreditar

 

14 Ele apontou para mim

 pensei, ia me enfeitiçar.

Mas eu, já enfeitiçado,

Ele teve que parar

Disse: Escreva meu poema

Eu mal pude acreditar

 

15  Escreva meu poema,

poetize meu caminhar

correm musas no Recife

sereias, tritões a sussurrar

místicos do mundo inteiro

   concentração a girar.

 

16 É estranho ser poeta

escrever minha ficção

 vá fazer, vou orientar

Sussurrou-me Abraão

Disse eu era assinalado,

ele disse, ria não

 

17 Não ria, vou sugerir

 Queremos cérebro seu

 Pra mensagem transmitir

Eu disse, não sou judeu

 ele riu, risada estranha

 também não sou ateu

 

Como vemos, a seara cordelística de Moisés Monteiro de Melo Neto é permeada por uma peculiar visão do fazer literário. Que essa literatura in progress se alastre iluminando, inspirando, fazendo crescer as letras no nosso país.

 

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

UM RETRATO DO BRASIL: A LITERATURA CONTEMPORÂNEA E A DENÚNCIA SOCIAL

 

UM RETRATO DO BRASIL: A LITERATURA CONTEMPORÂNEA E A DENÚNCIA SOCIAL

 

Arthur Paz Rios

Graduando em Letras - Universidade de Pernambuco (Campus Garanhuns)

 

Resumo:

O presente artigo busca perpassar pelos caminhos traçados pela literatura contemporânea brasileira, atentando para os aspectos sociais, políticos, metafísicos e, consequentemente, ideológicos presentes nas obras e nos jogos imagéticos constituídos e lapidados pelos autores estudados. Logo, entre estes, estão Hilda Hilst, Raimundo Carrero, Miró da Muribeca, Bernardo Carvalho e Caio Fernando Abreu, os quais terão destacadas as suas contribuições individuais para o panorama literário vigente e as suas respectivas abordagens acerca da diversidade cultural brasileira. Além disso, através de uma comparação das temáticas e estilos desses autores, investigar-se-á como suas obras dialogam com questões de identidade, marginalização social, sexualidade e sociedade de consumo, por exemplo, oferecendo uma mundividência multifacetada das experiências hodiernas do país.

 

Palavras-chave: Contemporaneidade, Literatura, Crítica Social.

 

Abstract:

This article seeks to traverse the paths traced by contemporary Brazilian literature, paying attention to the social, political, metaphysical and, consequently, ideological aspects present in the works and imagery games constituted and polished by the studied authors. Therefore, among these are Hilda Hilst, Raimundo Carrero, Miró da Muribeca, Bernardo Carvalho and Caio Fernando Abreu, who will have highlighted their individual contributions to the current literary scene and their respective approaches to Brazilian cultural diversity. In addition, through a comparison of the themes and styles of these authors, it will be investigated how their works dialogue with questions of identity, social marginalization, sexuality and consumer society, for example, offering a multifaceted world view of the country's current experiences.

 

Keywords: Contemporaneity, Literature, Social Criticism.

 

INTRODUÇÃO

 

            De início, sabe-se que a literatura contemporânea em vigência no Brasil é um campo vasto e diversificado que busca refletir as complexidades e os desafios da sociedade atual (tanto coletiva, como individualmente), e, por isso, o intuito desta pesquisa é adentrar no universo de algumas das vozes as quais ecoam no âmbito dessa realidade literária, cultural e filosófica, analisando assim, as contribuições dos autores Hilda Hilst, Raimundo Carrero, Miró da Muribeca, Bernardo Carvalho e Caio Fernando Abreu. Nessa perspectiva, ao investigar a história e o impacto social das obras desses escritores, torna-se possível observar como eles abordam seus temas e preocupações oriundos da contemporaneidade, tendo em vista que não há datas específicas para determinarem o início e o término desse movimento, também considerado como pós-modernismo por alguns autores, e, portanto, toda arte escrita que está sendo produzida nos dias de hoje ou que foi feita há poucas décadas, independente do seu viés ou estilo literário, pode se enquadrar nos moldes desmoldados do advento da literatura contemporânea.

            Ao seguir a linha de pensamento da ótica em questão, é passível de crítica e reflexão que essa manifestação artística exibe características distintas as quais refletem as complexidades e as transformações do meio social hodierno, pois, caracterizada por uma abordagem densa acerca das inquietudes humanas e, por muitas vezes, provocativa, tal literatura desafia antigos tabus e normas da sociedade, além de servir de instrumento de resistência contra os inúmeros preconceitos, o que permite explorar temas como identidade e aceitação, sexualidade, a chaga da marginalização social e as complexas relações humanas. Assim, autores contemporâneos frequentemente utilizam uma prosa sensível e disposta de poesia também, capaz de se aprofundar nas emoções e nas experiências das personagens, dando voz e trazendo à tona as camadas menos privilegiadas da coletividade. Ademais, esse tipo de escrita, em variados momentos, transcende as fronteiras e quebra determinados padrões e barreiras entre os gêneros literários, empregando técnicas experimentais e narrativas fragmentadas, a fim de coadunar a fluidez da realidade à obra em si, uma vez que uma abordagem audaciosa visa, não apenas refletir os caminhos os quais vêm sendo traçados por esse Brasil da pós-modernidade, mas também questionar, provocar e reinterpretar o real, proporcionando a união da arte erudita com a arte popular.

            Por conseguinte, ao desafiar normas e questionar as complexas contradições do país, os autores estudados passam, com o verbo no Presente do Indicativo, a promover uma representação autêntica e identitária das várias relações étnicas e sociais do Brasil.

 

HILDA HILST E O “CHOQUE” NA SOCIEDADE

 

            Hilda Hilst (1930-2004) foi uma escritora reconhecida por sua ousadia e pela exploração corajosa de temas polêmicos tanto na sua poesia, quanto no mundo da prosa, pois, ao abordar questões acerca da morte, da sexualidade, da espiritualidade e da natureza humana, ela desafiou as convenções literárias e estigmas sociais de sua época. Nesse sentido, sua escrita atingiu um nível em que transcendia os limites da expressão tradicional, no momento que traz à tona as subjetividades e certas introspecções da experiência humana, portando uma linguagem provocativa e avassaladora. Além disso, a sensibilidade psicológica e a profundidade emocional presentes nas obras de Hilst influenciaram a forma como os autores contemporâneos exploram a psicologia das personagens e as suas respectivas complexidades no que tange às relações humanas, expondo também as contradições e as angústias as quais o indivíduo, enquanto posição de sujeito, enfrenta.

            Um exemplo notável é a obra O Caderno Rosa de Lori Lamby, que aborda a sexualidade infantil de maneira polêmica, forçando uma reavaliação das fronteiras do que pode ser explorado literariamente, além das noções éticas e morais do “certo” e do “errado”. A voz que narra essa obra, é corajosa e, de certa forma, desconcertante, já que a autora utiliza uma linguagem infantilizada para dar voz a pensamentos e situações explicitamente sexuais, o que cria um contraste desconfortável em várias situações. Atrelado a isso, ela parece estar desafiando o leitor a confrontar a interseção entre a pureza da infância e a sexualidade adulta, o que pode ser enxergado como uma mistura forte de elementos literários, linguísticos e uma inovação narrativa para que o objetivo da autora seja atingido. Essa influência pode ser observada em obras que empregam narrativas não lineares, onde há a fragmentação e a linguagem poética para que se crie um impacto emocional mais profundo.

 

A DUALIDADE EM RAIMUNDO CARRERO

 

            Raimundo Carrero, por sua vez, através de sua narrativa marcada por características realistas e uma abordagem específica acerca das camadas sociais menos privilegiadas, destacou-se como um observador sensível das dinâmicas urbanas e rurais, não só do Brasil contemporâneo de maneira geral, como também se instalou como um representante do sertão pernambucano, além de migrar a sua cosmovisão para a realidade recifense, inserindo-se frequentemente no cenário da literatura atual brasileira. Carrero utiliza uma linguagem direta e poética para criar personagens vívidos e, de certa forma, condizentes com os paradoxos e antíteses da mente humana, visto que o ideal do sagrado e do profano pode perpassar pelo desenrolar da história de uma mesma personagem, o que confere autenticidade às suas histórias e provoca uma reflexão sobre as realidades vivenciadas pelas pessoas “comuns”, isto é, conflitos e questões pessoais, que mesmo que, inicialmente, pareçam ser contraditórias, mas buscam explicitar a completude das relações individuais e coletivas humanas.

            Outro aspecto importante da obra desse autor é a utilização de eu líricos e narradores femininos, característica a qual, consoante o próprio Raimundo, pode ser resultado de uma estrutura familiar majoritariamente composta por mulheres, no que se refere à sua criação. Além disso, seu impacto literário e social permite, através de suas dualidades expressadas pelas personagens, conceber para o sertão nordestino, uma questão imagética que vai além do “mero” ambiente semiárido repleto de religiosidade. Sim, essa característica faz-se inerente à sua personalidade e escrita por ser o que compõe o seu “ser” e a sua história. Entretanto, esse fato não se limita apenas em retratar esse afluente de suas obras, tendo em vista que tudo se elucida por completo a partir do momento em que o autor, de maneira cubista, estilisticamente falando, traz diversas óticas à tona para a sua obra, tratando da complexidade existencial humana e misturando elementos culturais variados no que tange a valores éticos e morais, por exemplo. Acerca dessa dualidade vivenciada por Raimundo Carrero, no tocante às amarras desamarradas da contemporaneidade, onde se inova e, concomitantemente, se reverencia o tradicional, o fragmento a seguir faz-se passível de reflexão acerca dessa temática em debate.

 

A literatura, na modernidade, é palavra autônoma, palavra que nasce de um sujeito que emerge da recusa a adesão à Palavra, que surge na distancia da Lei. O sujeito da literatura é um sujeito que domina os segredos da ficção. Ele não mais ausculta os mistérios e segredos do divino contidos na Palavra, ele busca escutar os mistérios e segredos do humano que vive nesse mundo. Mas Raimundo Carrero vive essa tensão entre ser sujeito de discurso religioso e sujeito de discurso literário. Ele vive na equivocidade de um lugar de sujeito que, por um lado, tende a absolutizar a linguagem e separá-la do mundo, numa ênfase formalista, que faz da linguagem literária criação autônoma do escritor, onde o escritor se faz Deus, típica dos modernismos, e por outro, vive na submissão à Palavra, à letra da Lei, que faz daquele que escreve um mensageiro de uma Palavra que não é sua, de ensinamentos e lições que vem de Outrem. O dilaceramento de seus personagens, que é também seu dilaceramento, aparece na própria forma, por vezes, fragmentada, em flashes de sua escrita. (DE ALBUQUERQUE JÚNIOR, p. 140, 2019)

 

 

A CRUEZA ARREBATADORA DE MIRÓ DA MURIBECA

 

                        A poesia de Miró é densa. Intensa. Consoante a crítica literária brasileira, de maneira geral, a poesia é expressa por poucas palavras, mas traz consigo uma vastidão de significados e interpretações possíveis acerca de um mesmo verso, por exemplo. Portanto, há de perceber-se que o poeta em questão dispõe dessas características de forma deveras marcante, tendo em vista que com o pouco, é possível se dizer muito.

                        Nesse sentido, Miró soma à contemporaneidade através da sua lírica, pois sua linguagem franca e acessível denuncia as chagas sociais existentes no meio urbano do país, especificamente, utilizando a cidade do Recife como principal fonte de inspiração para sua poesia, de certa forma, panfletária. Ele utiliza o vocabulário e as expressões das ruas, o que reverbera ainda mais sua obra, por ser sempre dramatizada e oralizada pelo autor, e acaba por transformar e democratizar suas obras a uma ampla gama de leitores, inclusive aqueles que não têm uma formação literária formal, pois a linguagem coloquial abrange todos os tipos de grupos sociais, uma vez que essas pessoas conseguem compreender a mensagem facilmente, pois seus versos são muito diretos e duros, isto é, impactam de uma forma que faz-se impossível não se sensibilizar com essa dureza em forma de literatura. Atrelado a isso, é perceptível que essa abordagem específica de Miró quebra barreiras linguísticas e culturais, promovendo a inclusão e a compreensão das realidades das periferias urbanas. Seu poema é permeado por uma consciência social aguda e um compromisso com a justiça social, visto que suas palavras não apenas documentam as lutas e as injustiças enfrentadas pelas comunidades marginalizadas, mas também convocam à ação, à militância crua, sem influências corporativistas ou liberais. Além disso, ele foi um defensor vocal da igualdade, da dignidade humana e da superação das barreiras sociais e econômicas, denunciando a violência policial, o racismo estrutural e a hipocrisia e contradições da ações do Estado. Por conseguinte, seja escrita ou encenada, sua obra se torna, assim, um veículo para a conscientização e o engajamento da coletividade contra as amarras desiguais e estratificadas do sistema. Dessa forma, o poema a seguir, de autoria de Miró da Muribeca, pode traduzir liricamente o que se está tentando ser dito por meio do linguajar acadêmico.

 

Deus, Tu que agora carregas um homem,

Puxando pelas rédeas o seu cavalo e uns

sacos de cimento

De cada lado um sol insuportável …

Deus,

Choves agora no meu coração

Para que eu não pense em comprar um

guarda-chuvas de balas

E fazer justiça com as próprias mãos.

 

            Sua escrita, logo, é um grito de alerta que corta o ar (tomando como referência as “lâminas” cabralinas), que denuncia a injustiça das classes sociais e a desigualdade que persistem nos becos e vielas do bairro da Muribeca e de tantos outros lugares esquecidos pelo progresso da engrenagem capitalista. A cada palavra, Miró escancara as feridas abertas da sociedade, expondo as mazelas que muitos preferem ignorar e fingir certo tipo de cegueira coletiva. Portanto, seu verso é a voz dos que não têm voz, a luz que clareia os cantos sombrios da existência, e a força que impulsiona a mudança, uma vez que a poesia, quando tingida pela realidade, torna-se uma poderosa ferramenta de transformação social e representatividade, principalmente para um artista preto, pobre e periférico.

            Exemplificando que a língua das ruas é mais viva do que nunca, os seguintes versos de Manuel Bandeira podem iluminar o ideal da ótica em reflexão.

Evocação do Recife

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

Ao passo que nós

O que fazemos

É macaquear

A sintaxe lusíada...

 

O GLOBAL NOS ROMANCES DE BERNARDO CARVALHO

 

                        Uma das características marcantes dos romances de Bernardo Carvalho é a sua narrativa fragmentada, na qual diferentes vozes e perspectivas se entrelaçam para criar, de certa forma, uma complexidade literária rica, uma vez que esse estilo literário espelha a natureza da sociedade contemporânea, espaço de múltiplas óticas e perspectivas as quais competem por espaço e significado. Nessa perspectiva, ao explorar a complexidade humana por meio de personagens cheias de contradições existenciais e narrativas não lineares, Carvalho confronta a ambiguidade da vida moderna.

                        Acerca da temática das suas obras, frequentemente são abordadas questões de identidade em um mundo globalizado, tendo em vista que estas exploram as tensões dicotômicas entre o local e o global, o individual e o coletivo, o passado e o presente, por exemplo. Assim, o autor questiona as noções tradicionais de identidade cultural e nacional, desafiando os estereótipos e as simplificações que frequentemente permeiam o discurso acerca da globalização, estimulando uma reflexão crítica sobre como as identidades são moldadas e reconfiguradas em um meio social cada vez mais interconectado. Além disso, outro aspecto do impacto sociocultural dos romances de Bernardo Carvalho está no seu engajamento com questões ideológicas e políticas contemporâneas, pois a escrita dos seus livros frequentemente lança luz no âmbito de questões urgentes, como o meio ambiente, as desigualdades sociais e os dilemas morais da sociedade moderna, não só brasileira, como mundial, explorando, com profundidade no que tange a aspectos metafísicos também, a cosmovisão variada das personagens. Atrelada a essa perspectiva, Antônio Cândido reflete acerca da relação intrínseca entre o autor, a obra e o leitor.

 

Com efeito, entendemos por literatura, neste contexto, fatos eminentemente associativos; obras e atitudes que exprimem certas relações dos homens entre si, e que, tomadas em conjunto, representam uma socialização dos seus impulsos íntimos. Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma confidencia, um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma "expressão". A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento, para chegar a uma "comunicação". (CÂNDIDO, p.146, 1965.)

 

                        Na obra Simpatia pelo demônio, por exemplo, o escritor traz à tona a ideia do terrorismo islâmico e sua respectiva relação com os desejos particulares do ser humano, as noções de bem e mal, com a temática das guerras religiosas e raciais também. Nesse sentido, o personagem principal, “Rato”, realiza diálogos introspectivos e o autor provoca, por meio de uma severa crítica ao terrorismo, a ideia de que essa chaga da sociedade tem uma guerra direta com o desejo, por proibir à juventude, principalmente, seu direito à liberdade e ao prazer. Logo, criando uma conexão com CÂNDIDO,1965, percebe-se que os anseios do autor se transformam nas ações e nos monólogos introspectivos de suas próprias personagens, evidenciando assim, a inerência entre o ser literário e o seu respectivo meio social.

 

CAIO FERNANDO ABREU: À FLOR DA PELE

 

                        Caio Fernando Abreu, um dos mais polêmicos e marcantes escritores brasileiros da contemporaneidade, deixou um legado literário marcado pela intensidade emocional, pela profundidade psicológica e pela crueza de suas narrativas. Sua obra, frequentemente descrita como visceral pela crítica literária, pode ser genericamente definida como um testemunho poderoso da experiência humana, visto que esta aborda temas como a alienação, a solidão, a sexualidade (mais especificamente, o erotismo homossexual) e a busca pela identidade em uma sociedade complexa e inúmeras vezes hostil. Nesse viés, uma das características marcantes da sua obra é a abordagem destemida e honesta das emoções humanas, já que as histórias exploram o lado mais complexo da psiqué humana, revelando a angústia, a melancolia e a inquietação que habitam a introspecção visceral das personagens. Portanto, essa profundidade emocional torna suas narrativas cativantes, de certa forma, pois provocam no leitor um contato com suas próprias emoções e reflexões pessoais.

                        Outro aspecto importante do autor é a sua escrita poética e lírica, onde suas palavras fluem com uma musicalidade única, criando uma atmosfera densa e evocativa que envolve quem o lê, porque frequentemente são incorporados elementos do simbolismo e do surrealismo em sua escrita, com a criação de imagens vívidas e perturbadoras que desafiam as convenções narrativas tradicionais. Ao seguir essa linha de pensamento, nota-se que essa escrita estilística única contribui para a visceralidade de sua obra, a qual é fortemente influenciada pelo contexto social e político de sua época. Ele viveu durante um período de grande turbulência no Brasil, marcado pela ditadura militar e por uma busca crescente por liberdade, principalmente, e autenticidade. Nesse sentido, é refletido também esse momento histórico, explorando temas como repressão, censura e uma resistência artística contra as restrições dogmáticas impostas pela sociedade e pelo Estado.

 

Dia após dia, eu noto, torna-se mais simpático, mais eficiente, mais solícito - para utilizar palavras que não sei bem o que significam, mas imagino sempre alguém sorrindo muito, fazendo reverências, curvando constantemente a cabeça, como uma gueixa. Gueixa, ele, a grande puta, com seu silêncio de passinhos miúdos e pés amarrados. Preciso tentar certa ordem no que digo, e dizer de novo, vê se me entendes: ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto. Dentro dele, eu espio o de fora de nós. E não me atrevo.

O que vejo nos outros, com seus grandes poros abertos, são caras demasiado vivas. As caras de fora se debruçam sobre ele e eu tenho medo, eu nunca poderia olhar de frente para todos aqueles olhos boiando na superfície branco-gelatinosa, raiada de veiazinhas vermelhas, e eu sinto nojo.

Não dos olhos, mas do interior das caras que transparece nas veiazinhas. Também não são as bocas, mas os gosmosos vermelhuscos de dentro, quando se abrem demasiado. Os inúmeros pontinhos pretos dos narizes, às vezes subindo para a testa, entre as sobrancelhas, o interior rosado dos narizes, as goelas abertas com suas umidades móveis ao fundo, cheias de pequenos espasmos, miúdas convulsões. Quando as grandes caras vivas se debruçam, sinto que transpareço nas veiazinhas dos olhos deles, e tenho medo que apenas um piscar me lance para fora, entre as coisas pontudas. E quando ele abre sua boca movediça para escarrar palavras, gotas de saliva e mau hálito, tenho medo de ele ser essa palavra, essa gota, esse hálito. O mesmo de quando esfrega as palmas das mãos e solta no ar os feixes de energia, como se fosse uma vibração, não um ser. (ABREU, p.44, 2019)

 

            O trecho em destaque faz parte de um dos contos (Eu, Tu, Ele) do livro Morangos Mofados. Há de se perceber que sua escrita é poética e lírica, além de ser repleta de metáforas e imagens fortes as quais criam uma atmosfera densa. Evocativa. Abreu usa uma linguagem rica e visual, pois faz uso da experiência de leitura sensorial e gradativa, à medida que as múltiplas emoções sentidas no ato de ler vão se aflorando. Ele descreve as pessoas ao redor do narrador de uma maneira quase que grotesca, enfatizando os detalhes físicos e fisiológicos das pessoas, o que passa a criar uma sensação de estranheza e repulsa. Além disso, a ideia de "ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto" é uma reflexão profunda, pessoal e filosófica, provavelmente influenciada pela quietude externa e inquietude interna de Clarice Lispector. Essa ideia sugere, por conseguinte, que o narrador está em conflito com sua própria existência e identidade, como se estivesse tentando se distanciar de si mesmo para escapar da opressão do mundo exterior.

            Ademais, a imagem do narrador temendo ser reduzido a uma "palavra, uma gota, um hálito" quando as pessoas ao redor se aproximam é uma representação poderosa da ansiedade social e da sensação de ser esmagado pela presença dos outros e pela liquidez e volatilidade das relações do meio coletivo. Essa sensação de vulnerabilidade e fragilidade emocional é um tema recorrente em sua obra, refletindo a luta dos personagens para encontrar sua própria identidade e uma conexão com um mundo que muitas vezes soa contraditório e brutal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

                        Em conclusão, a literatura contemporânea brasileira, representada por escritores como Hilda Hilst, Raimundo Carrero, Miró da Muribeca, Bernardo Carvalho e Caio Fernando Abreu, os quais foram o foco desse artigo, revela-se como um espelho das complexidades e desafios da sociedade atual. Cada autor, à sua maneira, contribui para essa narrativa, explorando temas profundos e, por muitas vezes, provocativos, os quais reverberam no tocante à complexa experiência humana em sociedade. Através de suas obras, eles desafiam normas, quebram barreiras e questionam as contradições do Brasil pós-moderno, promovendo uma representação original das diversas relações étnicas e socioculturais do país, visto que, mimeticamente, refletem a realidade, mas também incitam à reflexão, à resistência e à reinterpretação do mundo que nos cerca. A literatura contemporânea é, portanto, um veículo poderoso para dar munição às camadas menos privilegiadas do meio coletivo.

                        Através de estilos distintos e narrativas ousadas, esses autores deixam um legado literário que vai além de seu tempo, transcendendo fronteiras e enriquecendo o cenário cultural e filosófico da arte do Brasil e dos diversos brasis os quais circundam as suas regiões. Carrero e Miró, por exemplo, elevam a nível nacional as barbáries sociais que atormentam o solo pernambucano, além de sublimarem os seus anseios existenciais através das personagens e eu líricos, isto é, o ato de passar para o papel da arte, aquilo que talvez não pudessem pôr em prática nas suas vidas do cotidiano normativo, a atribuição de fingidor ao poeta ou prosador (alusão a Fernando Pessoa). Logo, esses autores nos convidam a desafiar as convenções sociais e a abraçar a diversidade de perspectivas cubistas que moldam nosso mundo. Em última análise, a literatura contemporânea é um reflexo da nossa sociedade em constante evolução, por nos ascender como vigilantes, críticos e engajados na busca por uma compreensão mais crua de quem somos, tanto como indivíduos e como sujeitos compositores da coletividade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. São Paulo: Companhia das letras, 2019.

 

BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

 

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.

 

CARRERO, Raimundo. Somos pedras que se consomem. Editora Iluminuras Ltda, 1995.

 

CARVALHO, Bernardo. Simpatia pelo demônio. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

 

DE ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Um emaranhado pegajoso de emblemas e culpas: o sertão na literatura e no pensamento de Raimundo Carrero. Minas Gerais: Artcultura: Revista de História, Cultura e Arte, 2019.

 

HILST, Hilda. O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo: Companhia Das Letras, 2021.

 

MOTA, Urariano. Miró da Muribeca, poeta querido e rebelde do Recife. Vermelho, Brasília-DF, 05 de Agosto de 2022. Disponível em: https://vermelho.org.br/coluna/miro-da-muribeca-poeta-querido-e-rebelde-do-recife/ Acesso em: 06 de Setembro de 2023.