Pesquisar este blog

domingo, 6 de novembro de 2022

SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO AOS PEIXES, do PADRE ANTÔNIO VIEIRA

 


 

Vieira defendeu os cristãos-novos contra a Inquisição, condenou a rebeldia do quilombo dos Palmares e reprovou as reformas da capitania de São Paulo que favoreciam a escravização dos índios. Morreu lúcido aos 89 anos de idade, em Salvador, em 1697O Sermão de Santo Antônio aos Peixes foi pregado em 13 de Junho de 1654 em São Luís do Maranhão, em 1654, três dias antes de embarcar escondido para Portugal no auge da luta dos jesuítas contra a escravização dos índios pelos colonizadores, procurando o remédio da salvação dos Índios. O sermão revela toda a ironia, riqueza nas sugestões alegóricas e agudo senso de observação sobre os vícios e vaidades do homem, comparando-o, por meio de alegorias, aos peixes.



Critica a prepotência dos grandes, que, como peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos, os quais “engolem” e “devoram”. O alvo são os colonos do Maranhão, que no Brasil são grandes, mas em Portugal “acham outros maiores que os comam, também a eles”.

Censura os soberbos (= roncadores); os pregadores (= parasitas); os ambiciosos (= voadores); o hipócritas e traidores (= polvos).

Na abertura do Sermão de Santo Antônio aos Peixes, a apresentação do tema de extração bíblica (Vos estis sal terrae) oferece oportunidade para o questionamento das causas da ineficácia da oratória sacra. A argumentação conceptista apoia-se no paralelismo sintático, na repetição anafórica das alternativas que servem de eixo básico do raciocínio: “Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar”.

 

Alguns recursos estilísticos de Pe. Antônio Vieira neste sermão

1. Antíteses

“Tanto pescar e tão pouco tremer!”

“No mar, pescam as canas, na terra pescam as varas (…)”

“(…) deu-lhes dois olhos, que direitamente olhassem para cima (…) e outros dois que direitamente olhassem para baixo (…)”

“A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar (…)”

“(…) traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras.”

“(…) António (…) o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano.”

“Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar!”

2. Comparações

“Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de Santo António.”

“O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens.”

“(…) com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge;
com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela;
com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura (…)”

“As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia (…)”

“(…) e o salteador, que está de emboscada (…) lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas?”

“Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!”

3. Paralelismos e anáforas

“Ou é porque o sal não salga, e os pregadores…;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes…
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores…;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes…
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores…;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes…”

“Deixa as praças, vai-se às praias;
deixa a terra, vai-se ao mar…”

“Quantos, correndo fortuna na Nau Soberba (…), se a língua de António, como rémora (…)

Quantos, embarcados na Nau Vingança (…), se a rémora da língua de António (…)

Quantos, navegando na Nau Cobiça (…), se a língua de António (…)

Quantos, na Nau Sensualidade (…), se a rémora da língua de António (…)”

“(…) com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge;
com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela;
com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura (…)”

“Se está nos limos, faz-se verde;
se está na areia, faz-se branco;
se está no lodo, faz-se pardo (…)”

4. Ironia

Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não prego a vós, prego aos peixes.”

“E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (…) o dito polvo é o maior traidor do mar.”

5. Metáforas

“Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi rémora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (…) se vêem e choram na terra tantos naufrágios.”

“(…) pois às águias, que são os linces do ar (…) e aos linces que são as águias da terra (…)”

“(…) onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos?!”

” (…) vestir ou pintar as mesmas cores (…)”

“(…) e o polvo dos próprios braços faz as cordas.”

6. Trocadilhos

“Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.”

“E porque nem aqui o deixavam os que o tinham deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal.”

“(…) o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo António abria a sua contra os que se não queriam lavar.”

 

Leia na íntegra o Sermão de Santo Antônio aos Peixes

Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.

 

I

Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal! [...]

Mas porque nestas duas ações teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem conosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comumente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia[...]; faça-lhes bufonarias o macaco, contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.

No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque mão morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens, os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao Mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo Mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por isso os animais que viviam mais perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres.

Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. [...]

III

Este é, peixes, em comum o natural que em todos vós louvo, e a felicidade de que vos dou os parabéns, não sem inveja. Descendo ao particular, infinita matéria fora se houvera de discorrer pelas virtudes de que o Autor da natureza a dotou e fez admirável em cada um de vós. [...]

Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego aos peixes.[...]

«Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.

Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. [...]

A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem..

Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens.

Se cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganais-vos. Assim como Deus as castiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis remeiros delas, que os maiores que cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos.

Assim foi; mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo que esses mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá chegam, acham outros maiores que os comam também a eles. Este é o estilo da divina justiça tão antigo e manifesto, que até os Gentios o conheceram e celebraram [...]

Outra cousa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida?[...]

Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos. [...]

Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados, arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos; enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores[...]

Considerai, pegadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água, e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem o mar. [...]

Grande ambição é que, sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o castigo da ambição. O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário