. Platão quer a verdade, o verdadeiro, aquilo que é puro,
e que não se confunde com os sentidos mundanos, precários e falhos da
existência. A alma, que está em nós como essência, é o ponto que liga esta à
eternidade de onde veio. A educação, conforme Platão, consiste em fazer com que
se aprenda a buscar a profundidade de nossa alma (logos) e entender como ela se
conecta às essências verdadeiras que estão na Ideia (o Mundo Ideal). Toda
República é um texto sobre a justiça e os melhores valores para se construir um
governo justo.
Verdade, para Platão, é a contemplação da perfeição que surge quando
alma enxerga para além do trivial e dos sentidos. A sabedoria no sentido
platônico implica reconhecer a verdade que está fora de nós, mas que dá sentido
àquilo que nós somos. “Fora de nós” significa fora dos sentidos, fora da
imadiatez da visão audição....A verdade é uma Essência com vida própria, e que
não depende de nossas interpretações filosóficas. Como lembra o comentador, “O
Livro X contém uma refutação do ateísmo baseada, em última análise, no fato de
a alma existir antes do corpo”. [1]A filosofia é o exercício da contemplação
e da descoberta da verdade que se encontra no mundo das Essências. Sábio é quem
chega à iluminação e percebe que o mundo dos sentidos e da razão humana são
enganadores porque fazem o ser humano crer que ele próprio é autor de seu
destino e criador de suas imaginações. Perceber que somos apenas cópias falhas
de um outro mundo – o mundo real ou mundo das Essências – é o centro da
filosofia deste pensador ateniense. Nesse sentido, muitos consideram que a
filosofia de Platão assemelha-se a uma religião, pois não busca outra coisa do
que reconhecer que a transcendência fundamenta todo o ser (Ver narrativa de Er,
aquele que ressuscita e conta como funciona a migração das almas – Útima parte
do livro X). Igual uma religião, a filosofia platônica pressupõe o reconhecimento
da Autoridade (Ideia, Essência) – de onde tudo provém – e a recordação ou o
reconhecimento de há algo além de nós – algo que não é apenas uma imaginação e
subjetividade, mas objetivamente existente. Cada nova descoberta da razão
humana é apenas uma recordação do que já está nas Essências. Segundo seus
pressupostos, não existe propriamente algo com a imaginação criadora. Por isso
condena a arte e a poesia. Elas produzem impressões falsas para a educação das
pessoas. Pois as pessoas só são capazes de imaginar algo que já lhes está dado
a priori. Basta fazer o exercício da contemplação. Assim, o conhecimento está
em nós como uma revelação daquilo que já existe como Essência, e o processo de
conhecimento nada mais é do olhar para o interior da própria pessoa e perceber
os valores eternos e prefeitos já dados, sem a necessidade da intervenção do
ser humano. Os valores morais, para Platão, não são circunstanciais e consequências
de nossas ações sociais, relacionais e de convivência, como a filosofia moral
os entenderia atualmente. São Essências verdadeiras – independentemente de
nossas vontades ou do modelo cultural do contexto em que se vive. De modo que
quando descobrimos algo, apenas estamos desvendando, reconhecendo, vendo,
percebendo aquilo que já sempre existiu, a eternidade que sustenta todas as coisas
que vemos. Imaginação e reflexão, para o filósofo de Atenas, é recordação e
contemplação e elevação da alma para o lugar de onde ela veio.
O livro X, grosso modo, possui 3 partes, mais ou menos distintas, mas
que se interligam com a alma e a verdade essencial, que Platão defende para o
Governo da Cidade Justa. A primeira parte é formada por um diálogo entre
Sócrates e Glauco, os atores principais desse texto platônico, e constitui mais
da metade do livro X. Nesse diálogo Platão põe-se a atacar a arte da imitação
(Mímese) e também poetas. A segunda parte, conforme entendo, situa-se em
elaborar uma maneira de falar dos valores ideais e de como a alma pode se
perder. E a última, constitui o desfecho do livro X, em que Platão, valendo-se
da narrativa de uma pessoa que esteve morta por dez dias, propõe o que passaria
com a alma quando o corpo morre. Nesse caso, trata-se de uma pessoa, um armênio
chamado Er, que esteve por vários dias entre os mortos de uma grande batalha.
Voltando à vida, Er narrou as peripécias da alma, sua migração, seu sofrimento,
sua salvação ou condenação.
O livro X de A República é um livro estranho para quem está acostumado
com a filosofia moderna e também com a cultura secular de nossos dias. É
preciso se afastar do mundo secularizado e de nossas concepções científicas
modernas. Se não o fizermos, corremos o risco de não entender Platão. Os
antigos ainda não conheciam a moderna separação entre religião e ciência
praticada entre nós hoje. A separação entre filosofia e teologia é algo que só
se deu no Renascimento europeu. Estão certos, assim entendo, todos aqueles e
aquelas que consideram Sócrates, Platão e Aristóteles, também teólogos. Não
teria sido por isso que a teologia cristã valeu-se tanto deles? O que seria de
Agostinho sem Platão e de Tomás de Aquino sem Aristóteles?
O que nos diz Platão no Livro X de A República? Muitas coisas, mas,
sobretudo, duas: a) que o governo ideal e a boa educação precisam conhecer o
que a alma nos revela; b) que a arte praticada por artistas e poetas não ajuda
para a edificação de uma cidade justa e ideal. Por que a Mímese (arte de
imitar; daí vem a palavra mímica) deve ser condenada? As coisas que vemos são
cópias de ideias, mas os sentidos não sabem disso. Só alma o saberá se for
educada para isso. Platão quer uma educação ideal, ou seja, uma educação que se
sirva dos valores que estão nas essências eternas. Para Platão, ao homem não
cabe a criação de valores novos, mas encontrar os valores que alma perdeu,
quando veio para o mundo existencial. Mas por que a alma veio para esse mundo
então? Platão não é claro sobre isso. Pelo menos, não no livro X. (Mas eu sei
meus alunos...eu sei...Direi em aula). A imitação só causa mais confusão à
medida que não ensina a buscar fundamento algum e imitar o que já é cópia.
Desse modo, a alma não aprende o valor verdadeiro e nem aprende a buscar na
razão, na alma, os fundamentos de toda a existência. Desse mesmo modo, os
poetas valem-se das coisas existências, percebidas pelos sentidos. Quando
narram as grandes epopeias, o fazem sob o crivo do visível, dos sentidos e
defendem valores medíocres. Os verdadeiros valores da Cidade Justa não estão na
vontade e no desejo humano, mas na capacidade de alma elevar-se e ver que a
justiça e bondade, que deve ser o centro do governo de Atenas, não está nas
coisas e sim na alma humana quando ela medida profundamente sobre o sentido de
tudo que há. Só a razão pode nos fazer ver que o mundo justo existe longe de
nós. A justiça e a bondade não são valores deduzidos das práticas da
existência. O que os homens acham bom e justo, varia de acordo com o lugar, a
região e a cultura. Platão quer valores que ultrapassem a relatividade
histórica de lugar e momento cultural. Os valores ideias de cidade justa
precisam ser encontrados na alma e suas manifestações. Todo o livro X é uma análise
da função da alma como fundamento do que é eterno, duradouro em contraposição à
existência, sempre cambaleante e precária.
REFERÊNCIA
PLATÃO. A República. Tradução de Leonel Villandro.
Edição Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. (Clube do Livro).
[1]. PLATÃO. Fedro.
São Paulo: Martin Claret, 2007. Comentário de Paul Tannery, A
vida, a obra e a doutrina de Platão, p. 11-46. A citação é da página 26.
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