Análise de
livros da escritora pernambucana (Garanhuns/ Recife) Luzilá Gonçalves Ferreira,
uma apaixonada pelas Letras
Muito Além do Corpo, Voltar a Palermo e Os Rios Turvos
Pelo Prof. Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto
Professor da UNEAL (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE ALAGOAS)
A leitura de “Muito além do corpo” (1987) e “Rios turvos” (1994), romances da pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira, é um deleite. A autora vem lutando pela divulgação das letras femininas, com um afã invejável, vai compondo sua obra, lançou em 2018 seu último romance sobre a fundadora da cidade de Garanhuns. Ela faz parte da Academia Pernambucana de Letras. Ela é autora de mais dois romances: “A garça mal ferida” (93) e “Voltar a Palermo”, este último, lançado em 2002, tem como eixo narrativo a história de Maria, uma brasileira cinquentona, que volta à Argentina, onde havia morado na época da ditadura militar. Na cabeça “recuerdos” sobre um motorista de táxi (Nino, sobre quem sabia quase nada fora uma relação-relâmpago).
Luzilá explica que se inspirou levemente no filho de outro taxista, seu freguês. Que por um dia substituiu o pai, lá em Buenos Aires onde ela morava. E também cavou em si própria e daí retirou a personagem professora, que, metamorfoseada numa pessoa sedenta de amor e movidades que busca saciar-se através de uma velha fantasia amorosa.
O texto de Luzilá, como sempre, é extremamente poético. Ela tem uma intimidade total com a criação literária e uma visão particular sobre o “feitiço” das letras.
Do mesmo modo que em “Muito além do corpo”, romance que ganhou o prêmio Nestlé em 88, temos uma personagem que ao questionar-se, reencontra-se numa nova forma de amar, que faz com que ela reflita sobre os intrincados caminhos da paixão.
Se em “Rios turvos” ela revirou a vida de Bento Teixeira, cristão-novo (autor de “Prosopopéia”, poema que marcou o início do Barroco na literatura nacional) e de sua mulher (um caso que terminou em tragédia), e em “Humana, demasiado humana” ela destrinchou/forjou a alma de Lou Andréas-Salomé (que foi amante de Rilke e Nietzsche) em “Voltar a Palermo” ela mostra uma fêmea em busca de si mesma e de um tempo que talvez seja reencontrado.
Há passagens que nos lembram Mauro Mota: “Abri a janela e de súbito Buenos Aires inteira foi minha, sua paisagem cinza e seus cheiros me penetraram, como nos penetra o cheiro da pessoa amada. Era uma mistura de odores vários, gasolina e óleo queimado, fumaça e poeira, mas igualmente perfume de flor, beleza a se esparramar ao longo da nueve de julho, que nome tinham aquelas árvores? Um dia eu soubera, quando ainda não havia deixado Buenos Aires e a cidade era como uma extensão do meu corpo”.
LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA: MUITO ALÉM DO CORPO”
“Muito além do corpo”, Romance da Pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira(prêmio Nestlé de Literatura Brasileira – 3º lugar, 1988, 79 páginas, editora: Scipione) é repleto de inventividade, dando menos valor ao ambiente e aos costumes, a autora aprofunda-se na dimensão existencial das personagens, no caráter psicológico e social. O livro se divide em quatro partes: Tu, Eu, Ele e Tu (Ele).
Há que se considerar também a poeticidade enxuta, uma “interferência lírica”, como ressaltou o mestre Adonias Filho, que “assegura por sua vez o acabamento ficcional em todas as suas exigências literárias” .
Luzilá vai “muito além do corpo”, até os limites da imaginação, do intimismo, buscar o reconhecimento do ser humano, como o francês Proust, em outra perspectiva, tentou no seu “Em busca do tempo perdido”.
É o horror e a surpresa refrescante de uma intelectual vendo chegar, o analisado previamente (idealizado), amor.
O romance começa com a narradora (1ª pessoa) descobrindo a ação do tempo no corpo do seu amado, “um pouco de ventre que me comoveu (...) o vinco na testa (...) então me fazia pequena e redonda, e o frio e a tristeza se dissolviam (...) a respiração dele me aquecia a nuca e o coração (...) eu amo este corpo, eu amo este homem (...) havia algo além daquele corpo, que o ultrapassava e lhe dava um sentido que tumesmo ignoravas. E eu: apenas pressentia”.
Quem é esse “tu”, a que a narradora se refere? (p. 8) trata-se de uma referência a um terceiro, que pouco a pouco vai se revelando.
“Algo mais para que o contato com o corpo de um homem provocasse em mim aquela deliciosa desordem de vísceras e alma, e cada vez que tentara amar só de corpo, sempre restara o vazio no após (...) à sensação de solidão se mesclava uma leve náusea: que fazia junto de mim aquele corpo insuficiente?” (p. 8) “contigo nunca fora assim” (novamente a narradora aponta para um terceiro vértice).
“Homem e mulher, e cada um se espelhava no outro semelhante, cada corpo remetendo ao outro, companheiro”. (p. 9). “Um tácito acordo de espírito (...) macaíba em flor (...) terra molhada”.
No Capítulo II, a narradora apresenta sutilmente, e de modo sempre “enxuto”, seu amante, evitando uma noção demasiado romântica da vida. E temendo a felicidade como algo “pequeno-burguês”. Luzilá parece querer agradar ao júri que lhe deu o 3º lugar no concurso (Adonias Filho, Eduardo Portela, José J. Vieira, J. Garbublio e Álvaro Gomes), mas ela se supera na arte de escrever e resolve “começar do começo cronológico” (p. 13).
A narradora usa sempre o “tu”, em vez de você e salpica o texto com frases como “amar é sempre uma tomada de posição contra” (p. 15) ou “aquela parte de mim que por ti ardia” e “éramos seres de exceção” (p. 16). E finalmente o nome do amado: “Mário (...) não estou sabendo resolver tua ausência dentro de mim”. Um pouco intelectual não? E um toque de Clarice Lispector também permeia todo o texto como uma sombra: “tudo era pesado e misterioso (...) então não mais eras Tu e sim um Ele escorregadio” (p. 22).
Há um individualismo pressionando o relato amoroso: “Preciso me encontrar a sós comigo mesmo”, e o discurso do outro: “que tua figura não se interponha entre mim e o que posso viver às vezes”.
Então a narradora fala da paralisia do seu amado.
A 2ª parte do livro (“EU”) dialoga com Cecília Meireles: “também não sei em que espelho ficou perdida minha outra face (...) quem é essa que assim me fita?”, a narradora atribui ao astigmatismo não ter se visto assim antes (humor). “A gente deveria possuir vários nomes”, nova referência a poetas: Fernando Pessoa, Mário de Andrade: “Eu sou trezentos”. Há também existencialismo: “sou tantas (...) neste corpo que carrego há mais de quarenta anos”. E o toque feminino: “Mulher é coisa complexa (...) bicho monogâmico (...) agora seu maridinho chegou, meu amor” (p. 29). E retoma: “Quarenta anos foram precisos para chegar a isto, e, toneladas de alimento e amor e tanta literatura”, aqui uma nota autobiográfica: a menina-moça Luzilá funde-se com a quarentona narradora na paixão pelos livros: “a fala silenciosa dos que haviam partido tantos anos antes” (p. 31). E trabalha a metalinguagem, questionando-se sobre “o fazer” do livro. (p. 31).
Outro poeta é citado nesta 2ª parte: Drummond (p. 32): “Amor é privilégio dos maduros” e Romain Roland: “o cúmulo da dor confina com a libertação” (p.33)
Luzilá é poética. A narradora rememora a infância: episódio da declaração de guerra (Brasil x Alemanha) e medo do mundo acabar: “sentada na escuridão, eu chorei pelos lírios que nunca floresceriam (...) naquela noite eu aprendi a primeira lição sobre o limitado poder do amor” (p. 37)
Há também um toque de James Joyce, num discurso direto/indireto onde o fluxo de consciência transcorre como “as frutas que boiavam na água, caindo ploc ploc ploc” (p. 38)
E veio o episódio do bodinho (nome: em flor, enflor), que a narradora ganhou quando criança, e que a machucou quando cresceu, “amor às vezes maltrata” e que foi vendido para abate. “Todo o mundo vai ter que morrer um dia. E de repente o mundo todo virou uma coisa triste, uma prisão e ninguém podia sair de dentro dele” (p. 40)
Há uma certa confusão sobre “usina” (p. 40) e “engenho” (p. 43) na narrativa que mergulha de repente nas histórias paralelas ao núcleo central do romance. “Causos” da juventude da narradora nos típicos lugares do interior de Pernambuco.
Chegamos à última parte do livro: “Ele”, que começa assim: “Dia de São João”, íamos nos encontrar à noite (...) olharíamos balões no céu: (...) copinhos de canjica (...) ramos de ingá (...) lembrava uma paisagem de Franz Post, o céu estava azul. Fizeram fogueira”. (p. 53)
Há metáforas como “um silêncio equívoco esticava os fios do telefone, feito açúcar de alfenim”, que a narradora usa para introduzir o tema da separação do amado, naquela mesma noite de São João em que fora ao cinema e conhecera o outro: “em silêncio nos amamos por séculos (...) estranha foi a volta para ti, depois daquele encontro com ele” (p. 57) e a narradora conta ao amado como é bonito seu novo amor: “deve ser, teu rosto resplende”, responde ele (p. 59)
Vem a ruptura, que Luzilá trata poeticamente.
“O corpo é metáfora de nós, sinal evidente de algo mais profundo (...) meu existir efêmero e eterno” (p. 60)
E a narradora também é brega: “Te amei como ninguém te amou querida, de ti o menor gestor adorei” (citando “perfídia”) ao descrever o choque da separação e o bilhete, “não me procura, por favor, teu”, que o outro deixara. E vem um texto muito bonito sobre os amantes verdadeiros que se separam: “partiste e ficou em mim aquela parte de ti que só a mim pertencia e que está colada em mim, como uma segunda pele. Como fiquei em ti, e disso o sabias: que te indo, eu te acompanharia, menina acocorada e quietinha em algum lugar de ti, a te espiar, a te amar de longe, a te dar a certeza da impossível solidão, eu em ti, eu do teu corpo” (p. 61)
Luzilá repete as mesmas metáforas (p. 29 e 62): “transmudados em sombras esfumaçadas...”
A narradora se entrega a um jovem vinte anos mais jovem e ele diz: “amo suas rugas e seu cansaço”. E ela pensava: “envergonhava-me quase, de não poder lhe ofertar a pele de pêssego (...) seus dedos refaziam o caminho que o tempo abrira no canto dos meus olhos, no vinco da testa, ao lado dos meus lábios, as marcas de tanto sorriso, tanta dor, tanta vida” (p. 64)
Há um “deslumbramento” subjacente: “eu voltava aos quinze anos e ele era o meu primeiro amor (...) o nosso amor era o perfume do amor”.
Luzilá é sereia e nos encanta com sua poesia.
Há também um toque daqueles romances típicos dos anos 70: um caleidoscópio psicodélico que numa página junta Freud (“machista”), Woody Allen (“genial”), Bethânia (um “sarro”), uma calabreza e mais dois chopinhos (p. 68)
Sobre o seu “segundo homem” no livro, a narradora compara: “Ele quase com a duração de um relâmpago, passou em minha vida, deixando-me encandeada” (p. 69), ou: “amor meteoro” (p. 70)
E o corpo termina só, “a inenarrável solidão dos seres sobre a terra” (p. 71). E “tu sob a terra, onde já não chegam cores, nem perfumes nem sons (p. 72)
O “tu” parece ser tanto o amante, quando o leitor de Luzilá: “Eu te amo, tu do outro lado” (p. 73)
“Tua mão buscou a minha. Aproximei minha face de ti,
– Queria teu perdão, falaste.
– Te amo, respondi” (p. 79).
Luzilá não precisa turvar águas para parecer profunda. Ela tem autenticidade verbal. Seu romance é como a ponta de um iceberg: faz-nos supor o que não se escreveu. O familiar nela torna-se fonte de estranhamento. Joga com o leitor, surpreende-o com pequenas armadilhas, busca sua cumplicidade ao mesmo tempo oferece fruição estética. Com ela mergulhamos num universo feminino poético essencial fascinante, insinuante, compacto, sugestivo.
Em “Muito além do corpo”, ela tece e destece, qual Penélope, as tramas de dois amores entrecruzados, às vezes meio neobarroca, na sua paixão por Bach, nas comparações entre as fontes da vida e a morte (p. 60) , no êxtase.
Criou um romance (novela?) moderno, cheio de impulso vital. Tentativa de conjurar passado e presente num texto sintético e denso, imagem a imagem, balançando entre o corpo e o espírito.
Luzilá, pernambucana que soube buscar no silêncio da palavra a força da linguagem.
OS RIOS TURVOS
“Do amor não vi senão breves enganos...” formadores dos Rios Turvos da minha vida.
“Um único amor amara ... vinte anos, dos trinta e sete de sua vida e só preocupações, invejas, sobressaltos. Um ciúme tão grande que melhor seria se não tivesse amado, mas viver sem amor ninguém pode, “é doce o mal que nos causa uma mulher.”
O romance Os Rios Turvos, narrado em 3a pessoa, lembra a função documental que teve a arte. Trata-se da vida do autor do poema épico Prosopopéia: O português Bento Teixeira, portanto uma biografia (do nosso primeiro poeta) que se mistura à ficção. O tema da obra nada mais é do que a trajetória amorosa do português Bento Teixeiracom a brasileira natural do Espírito Santo Filipa Raposa, a grande paixão de sua vida e a responsável por seu destino trágico: a própria mulher o denuncia ao Tribunal do Santo Ofício acusando-o de judeu e mau cristão e ainda instiga outras pessoas a fazerem. Vai trair o marido por vária vezes, obrigando-o a morar em lugares diferentes da Paranambuco (Pernambuco) do início da colonização.
O apetite sexual da esposa era sabido de todos. Desde adolescente tinha uma malícia natural: Seduzia – com seus olhos belos e verdes até os padres nos confessionários. Bento via-se obrigado a constantes mudanças: Olinda, Igarassu, nas terras de João Paes no Cabo, freguesia de Santo Antônio. Neste último lugar, havia pouquíssimos homens, mas Filipa consegue trair o marido com o frei Duarte Pereira, vigário da freguesia de Santo Agostinho e único homem do lugar.
Ao chegar ao engenho de João Paes no Cabo, pensou que ia controlar a mulher, mas esta era mais esperta e dormira com o padre Duarte muitas vezes (mesmo já mãe de dois filhos) sem que o marido desconfiasse.
Uma das situações mais humilhantes para Bento foi quando a esposa o traiu com um mulato, crime repugnante na época.
Bento Teixeira era filho de pais humildes e cristãos-novos. Seria, portanto, um dos filhos desgarrados de David cuja família abandonou Portugal por conta da perseguição a judeus. Apesar da pobreza dos pais, Bento ao chegar ao Brasil, na Vila de Salvador na Bahia, foi ajudado pelo bispo Don Antônio Barreiras que lhe ensinou latim e o iniciou nas artes. Leu os gregos tais como Ovídio, Aristóteles. Conseguiu estudar no colégio da Companhia de Jesus e fazer algumas amizades que lhe foram úteis mais tarde como testemunhas contra as pressões da Santa Inquisição.
Sem pensar que era um gesto herético Bento traduziu, a pedido do sobrinho Antônio Teixeira, do latim para o português o livro DEUTERONÔMIO, livro da Torá, que Javeh ditara a Moisés – conforme afirmava sua mãe cristã-nova. Porém esta missão caberia apenas à Igreja. Leu livros que figuravam no Index e acabou, pelos colegas, sendo denunciado ao visitador, mas não foi logo preso. Tornou-se alvo predileto da Inquisição e de alguns padres por ele criticado.
Bento esteve um período no mosteiro de São Bento, para onde chega com carta de recomendação.
Ensina latim, aritmética e poesia para sobreviver. Revela-se fiel aos princípios da igreja para livrar-se da Inquisição, mas não deixa de criticá-la: “(...) almeja escravos para a lavoura.” p. 49 este seria o propósito da Igreja, pensava Bento.
Embora não fosse exímio escritor (às vezes criticado pela própria Filipa), Bento fazia sonetos e trovas. Escreveu um poema épico – PROSOPOPÉIA – à semelhança de Camões homenageando o governador da capitania de Pernambuco, Jerônimo de Albuquerque. Seus escritos, no entanto, não tinham a espontaneidade dos versos de Filipa.
A esposa gostava de ler à noite. Ficava com o marido. Liam Gil Vicente, Salomão, Camões, Ovídio, Catulo. Para a esposa, Bento mostrara seus escritos e a ela dizia de sua dificuldade para escrever, fato que não ocorria com Filipa. Às vezes a dificuldade de Bento era usada por Filipa para xingá-lo, outras vezes ela o ajudava.
Apesar de tudo que fizera Filipa Raposa (as traições constantes que levou Bento a assassiná-la) Bento – após a morte da esposa – sentia falta dela, afinal “era uma parte dele que morria. Ele que não soubera o que era amor. Não amou o pai – homem rude, astero, exigente; a mãe que o obrigou a ser judeu; nem mesmo aos dois filhos, cópias de Filipa, “a raposa atenuada em felinos.” Tudo seria diferente se ele não fosse um Pinto, um cristão-novo e ela não fosse uma Raposa, uma cristã-velha? Quem saberia dizer?
Quando matou Filipa, Bento confiou seus filhos a João Paes – dono das terras onde morou em Santo Agostinho. Escreve-lhe e lhe explica sobre tudo que fizera por causa da esposa. Foge para Olinda – o mosteiro de São Bento, onde ficaria (até que a Inquisição o pegasse) escondido.
Antes de morrer, ainda agonizando ao receber o golpe de faca de Bento, Filipa pediu que o marido pegasse em uma gaveta do quarto um maço de cartas – poemas que ela escrevera (ou os amantes escreveram para ela?). Durante a fuga para Olinda Bento os perde. Lê apenas alguns poemas, quase nada.
No mosteiro de São Bento, o poeta ganhou a inimizade de Frei Damião por desafiar o religioso nos seus argumentos espirituais e por denunciá-lo aos outros padres dizendo que o referido frei freqüentava a casa de mulheres casadas como Isabel Raposa e Ana Lins. Por tal feito compra um inimigo declarado.
Em 12 de agosto de 1595, recebeu ordem de prisão. Começam os julgamentos e Bento prepara documentos para sua defesa.
Em 22 de outubro de 1595, é mandado a Lisboa como acusado do Santo Ofício por praticar heresias, ter o sangue daqueles que mataram a Cristo.
Ao redigir os documentos, para se defender das acusações, exibe seu conhecimento. Usa citações eruditas, textos latinos. Quando interrogado pelos inquisidores, sempre se diz inocente, mas acaba cedendo às imposições do tribunal: reconhece sua culpa. Renega e abjura de suas ações e crenças visando à liberdade que não vem e Lisboa torna-se seu grande cárcere. Em julho de 1600 morre e um ano depois a Santa Inquisição concedeu licença para que se publicasse, em Lisboa, a primeira edição de Prosopopéia.
Bento morreu pensando na sua Filipa de olhos verdes e cabelo de fogo. A Filipa adolescente que lia com ele Ovídio, Gil Vicente, os poemas de amor de Salomão:
“Beije-me ele com os beijos de sua boca porque é melhor o seu amor do que a própria vida. Vive sem amor! se um deus me falasse assim, eu recusaria, tanto é doce o mal que nos causa uma mulher.” – Razão da sua vida e da sua morte. – E morre sorrindo como um pequeno judeu após ter feito sua oração. Morreu pensando no que poderia ter sido e não foi.
Observamos na obra Os Rios Turvos os intertextos que enfatizam sobretudo a temática do amor: Ovídio aparece tantas vezes como epígrafes dos capítulos, o Ovídio degustado por Bento e Filipa em seus serões; Camões de Sôbolos Rios, o Camões dos breves enganos: “Do amor não vi senão breves enganos”; o intertexto bíblico, na história dos judeus, na comparação de Bento a Jonas ‘a caminho de Nínive, o grande mar’ (p. 195), nas citações latinas; nos poemas encomiásticos (escritos por Bento) onde confessava o mistério de um Pai, um Filho e um Espírito Santo e por fim na Prosopopéia aquele longo poema que escrevera em Paranambuco, Pernambuco e os versos à maneira de Camões que lhe vinham sempre à mente:
“Cantem, poetas, o Poder Romano
Submetendo Nações ao jogo duro...” (p. 209)
Filipa Raposa, cristã-velha e Bento Teixeira, cristão-novo dois seres tão diferentes, unidos pelas águas dos Rios Turvos do amor, um amor que nem eles conseguiram perceber na sua inteireza ou até mesmo nas suas contradições.
Destacamos ainda nas brigas de Filipa com o marido (quando ela ao ler os textos dele percebia versos inteiros de outros poetas) uma preocupação com o fazer literário, os caminhos complicados da criação poética percebidos pelos protagonistas. Bento chega a discutir sobre a habilidade de Gil Vicente para compor os versos de Auto da Alma:
“Alma humana, formada / de nenhuma cousa feita.” (p. 23) “Eu e tu, Filipa para dizermos estas cousas, utilizamos todas estas frases (...) Gil Vicente o diz em sete vocábulos.” (p. 23)
Um relato dramático para falar da vida, do amor, do desejo, da inveja, das contradições, do poder da igreja, da morte, enfim, coisas da vida de um cristão-novo do século XVI brasileiro e sua mulher uma cristã-velha. Uma recriação que não esconde o aspecto social do primeiro século da formação do nosso país.
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