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sexta-feira, 1 de junho de 2018

O espectro de Shakespeare, mais de 400 anos depois



por Moisés Monteiro de Melo Neto*

Tenho dez anos, acabei de cruzar a ponte de ferro (feita com trilhos de trem?) que liga a rua da Imperatriz à rua Nova, Recife. É uma tarde chuvosa e eu venho do dentista, como recompensa me levaram à minha sorveteria favorita: Confiança (que também era uma fábrica de biscoitos, na rua da Imperatriz); ao dobrar à esquerda em direção à Praça Joaquim Nabuco, onde tomaríamos o ônibus para Boa Viagem, onde eu morava, paramos numa banca de revista; enquanto a pessoa que estava comigo escolhia uma revista eu fixei meu olhar sobre um livro com capa verde limão, havia seis letras douradas que me chamaram a atenção. Abri-o. 

Moisés Monteiro de Melo Neto, como Hamlet



Li a palavra ESPECTRO, perguntei o que significava e me disseram: fantasma. Pedi o livro e a pessoa que estava comigo comprou para mim. Começou assim o meu envolvimento com Shakespeare. A peça era HAMLET, que eu interpretaria durante dois anos, algum tempo depois, dirigido por Paulo Falcão e pelo argentino Alberto Gieco. Tragédia maior, em vários sentidos. Sonho de uma noite de verão foi outra peça que acompanhei uma montagem luxuosa bem de perto; dirigida por Antônio Cadengue, tendo Susana Costa como Titânia, Buarque de Aquino como Oberon e Augusta Ferraz como Puck (na época fazíamos parte do grupo Ilusionistas). Também interpretei Mercúcio, personagem de Romeu e Julieta (numa adaptação de Rubem Rocha Filho, dirigida por José Francisco Filho). Aos quinze anos ganhei a obra completa de Shakespeare, presente de um primo mais velho, da nossa família, os Belli. Com prazer devorei peça por peça. Depois desta maratona eu nunca mais fui o mesmo. Faz 400 anos que William Shakespeare morreu, mas continua a perseguir com carinho todos os atores, diretores e muitos autores. Nascido na bucólica Strattford-upon-Avon, em 1564, antes de expressar-se através da criação literária, foi ator (um crítico o chamou de “corvo arrogante”, ao tratar de uma interpretação sua no palco; lembro aqui do conselho de Hamlet aos atores: “que a discrição te sirva de guia; acomoda o gesto à palavra e a palavra ao gesto, tendo sempre em mira não ultrapassar a modéstia da natureza, porque o exagero é contrário aos propósitos da representação, cuja finalidade sempre foi, e continuará sendo, como que apresentar o espelho à natureza, mostrar à virtude suas próprias feições, à ignomínia sua imagem e ao corpo e idade do tempo a impressão de sua forma”)  e a seguir   o mais influente dramaturgo do mundo, cujas  38 peças são exemplo quase ímpar da capacidade humana na escrita. Seu pai, John Shakespeare, afirma-se que era um comerciante chegou a prefeito da sua cidade natal. Sua mãe, Mary Arden, vem de uma família de proprietários de terras. Teve sete irmãos. Criou-se católico, mas só em um soneto ou dois ele ousa defender, ou pelo menos citar, os companheiro sufocados pela rigidez da Igreja Anglicana. Casou-se com Anne Hathaway e geraram: Susanna e dois filhos gêmeos, um chamava-se Hamnet (quase Hamlet, teve má sorte, morreu aos 11, longe do pai que estava em Londres). Parece, especulações novamente, que o jovem artista, fugiu com uma trupe de teatro (muitos deles visitavam a cidade de Shakespeare); Quando em 1592, fecharam os teatros, por causa da peste, ele se dedicou  aos poemas líricos Vênus e Adônis e O Rapto de Lucrécia. Logo depois construiu o Globe Theatre (sucesso por 15 anos, mas em 1613, na peça Henrique VIII, pegou fogo e virou cinzas; foi reconstruído, mas depois foi demolido em 1644. Em 1997, o projeto do americano Sam Wanamaker (morreu em 1993), de reconstrução dessa famosa casa de espetáculos, perto do lugar onde ficava o primeiro Globe, trouxe de volta um pouco do antigo fascínio deste Teatro. Além de ator e escritor, ele foi sócio da Lord Chamberlain´s Men (ou King´s Men, o que já dá o tom da sua gratidão aos nobres que o apoiavam, não é?). 


Moisés Monteiro de Melo Neto como Ricardo III, de Shakespeare


Sobre sua vida sabemos pouco, embora haja uma enxurrada de livros sobre sua produção e até a lenda sobre a autoria de parte dos seus textos. Estudou até os 7, retornou até os 11. Conheceu , ainda adolescente o teatro e se apaixonou, foi para Londres e cavou seu caminho quase até o topo. Christopher Marlowe (teria sido ele, que forjara a própria morte e escrevia tudo de Shakespeare?) estava no seu caminho; Thomas Kyd e outros protegidos da rainha. Mas ele chegou até Elizabeth; o resto se mistura com lenda, o que é ótimo, para quem curte a produção deste bardo.  Suas comédias, dramas históricos, tragédias (Macbeth, Rei Lear, Otelo) são jóias de valor incalculável. Da sua forte herança latina brotaram as tragicomédias ou romances. Teve a glória em vida, mas acho que nem no sonho mais louco imaginou até aonde iriam as projeções da sua sombra e da sua luz. O Mercador de Veneza, A Comédia dos Erros, Os dois fidalgos de Verona, Muito barulho por nada, Noite de reis, Medida por medida, Conto do Inverno, Cimbelino, Megera Domada, A Tempestade, Tito Andrônico, Romeu e Julieta, Julio César, Antônio e Cleópatra, Coriolano, Timon de Atenas, Henrique IV, Ricardo III, Henrique V e outras peças como Henrique VIII, fascinam com sua genialidade enigmática sublime; 400 anos depois do desaparecimento físico do misterioso bardo inglês, que tratou tão apropriadamente temas tão fortes, com um colorido (forma e conteúdo) tão cheio de som, riso, siso e fúria da alma humana, ainda dá muito o que falar. Uma vez, em Londres, eu parei diante da estátua dele no Museu de cera de Madame Tussaud e me perguntei: qual seria a figura exata de Shakespeare? Há tantas representações diferentes dele. Voltei no tempo, ao dia em que ganhei aquele Hamlet, e o li numa noite cheia de chuva, relâmpagos, trovões, ventos uivantes, próximo ao mar de Boa Viagem.



*O recifense Moisés Neto é doutor em Letras, escritor, pesquisador e professor 

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