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quinta-feira, 18 de setembro de 2014

As metáforas insólitas em João Cabral de Melo Neto: o rio Capibaribe


Relendo João Cabral, destaco alguns trechos de O cão sem plumas, poema dividido em 4 partes: Paisagem do Capibaribe (I e II), Fábula do Capibaribe (III) e Discurso do Capibaribe(IV), são 425 versos organizados em 51 estrofes, bem irregulares do ponto de vista da distribuição dos versos (divisões silábicas muito díspares).Observe nesse trecho, a metáfora central contida no título da obra: “O cão sem plumas”imagem poética da cidade de Recife, seu rio e sua gente:



A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água



Não se trata de poema sobre o povo em geral, mas sobre a população pobre que tenta sobreviver na cidade. Pobreza pensada em termos econômicos, combinada a atributo de cor da pele, na época evocada em discussões sobre raça, que, em país com legado escravocrata, é diferença socialmente recriada como desigualdade em termos da distribuição das chances de trabalho e de vida. Nesse sentido, Cabral diz que o rio...

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespas
como um negro.

A essa altura, dá-se a primeira reelaboração da metáfora-tema. Além de se referir ao rio propriamente dito, ela é usada pelo autor para inserir nos versos as classes trabalhadoras que viviam às margens do rio, nos mocambos, e viviam do rio, pegando caranguejos nos manguezais.


[...]
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.

[...]
Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
[...]
Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geleias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo

conquistando seu voo).

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