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segunda-feira, 11 de maio de 2020

ATENTADO POÉTICO, maio de 2020


ABCdário das nossas precariedades
JOMARD MUNIZ DE BRITTO (JMB)
(transcrito por moisesmonteirodemeloneto)

Alegria, amanhã e quase sempre
Beleza em qualquer lugar e pessoa
Curiosidade mais do que intelectualidade
Desejo sempre desejante, mutante
Elogio compartilhado e discutido
Fantasia: tudo pelo imaginário
Gesto, grito para animar
História, harmonia, contradições
Ingenuidade ímpar, na medida do impossível
Julgar para merecer também ser julgado
Kaos no mundo e nos corações
Liberdade para todos e todas
Morte, apesar dos lutos
Narrativa para discutir
O de ouvir para ser melhor ouvido
Respiração ambiental
Surpresa para crianças e velhinhos
Tempo dos acontecimentos vividos
Último sem medo de acontecer
Viagem para dentro os pensa,mentos
Xadrez de estrelas sem ódios
Y: ilusão para mudanças?
Z: zombar até mesmo de nós mesmos

sábado, 9 de maio de 2020

BIOFICÇÃO, pelo Prof. Dr. MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO: biografia, história e literatura no cadinho da escrita


            Ah, poder multiplicar os fantasmas de mim mesmo, até o ponto de reconhecer-me como ninguém!
            Nunca me imaginei no ofício  de coveiro, mas é o que   fazemos depois de  velhos:  enterrar amigos e parentes.
            Estar em Lisboa fazia-me observar, ao  modo de Fernando  Pessoa “talvez  eu tenha  voltado a Portugal  para saber quem  sou”  (cena no romance  de Saramago) diz Ricardo Reis; Salazar Riv).  É como se um heterônimo  meu me dissesse: “tudo é insignificante. Que papel vem a ser o dos homens? Sei:  devemos  nos negar a acompanhar nossos fantasmas  em direção à morte, não é?”
            Se o romance convencional em   200 páginas  expressava a visão  de mundo do autor e número restrito de personagens, Roberto Bolaño,  há uns 20 anos lançou  o seu “os detetives selvagens”,   com cerca de 600,  e os best-seller / comum fazem  assim (vide “Game of thrones”). (sobre o fim de Utopia revolucionária na América Latina).

Prof. Dr.  MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO:

"Não podemos perder o bonde da história, nem esquecer que literatura é ficção e vida"

            O romance  de Tiago Salazar tem  pouco mais de 300 páginas e foge com o  tempo num painel  geracional, já os norte-americanos arriscam  o romance enciclopédico com dezenas de personagens e mistura de temas numa  estrutura  intrincada, torrencial e caótica,  misturando linguagem acadêmica com gírias e até incorreções   gramaticais.  Perguntei a Tiago Salazar  se  ele tinha lido “Graça infinita” (do Ianque David Fostes Wallace (1962-2008),  ele  afirmou que tinha conhecimento. eu disse que gostava das digressões filosóficas daquele autor suicida sobre a tristeza da  sociedade de consumo. Wallace dizia rejeitar o “status quo” de cultura feita para divertimento que os E.U.  impõem  com o modelo  para o mundo,  infundindo o individualismo, a hiperconectividade, particularismos sexuais e étnicos (como faz Jonathan Franzen, no romance “Liberdade” (2011).  Eu disse que achei legal “cidade em chamas (de Garth  Risk  Hallberg),  crítica a N. Y.C., que volta no tempo para criticar o final  dos anos 70,  época de minha adolescência e que desempenha no final dos anos 90.   Parece que Halberg  queria ensinar alguma coisa com seu romance meio oitocentista.  Tiago  desconversou. Nossa conversa voltou-se para o Recife e ele disse que conheceu Roger de Renor,  amigo e incentivador de Chico Science,  que retratou tipos e cenas recifenses nos anos 90,  com influência do pop,  indivíduos   diluídos na massificação da vida,   o homem  de multidão, coveiro das ilusões românticas, tipo “voltei, Recife, a saudade me trouxe  pelo braço”.  Rimos muito e fomos a uma livraria, ele me apresentou o agente literário  dele, naquele 7 de janeiro de 2020. Isso já dentro da Livraria  Leya,  oficina e livro (15,50 euros  ). Tiago fora para o Festival do 1º Romance de Chambéry.

Prof. Dr.  MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO e o romancista portuguêsTiago Salazar


Pus-me a pensar no itinerário  sinuoso que a Providência me traçou e que eu segui de uma etapa à outra acreditando ser o meu próprio guia.  Devia  continuar a fazer de conta que era eu próprio  que tomava as decisões?  O livro de Tiago era de 2016.
            Fiquei imaginando o ânimo realista português  ao tratar do amor, como no romance Os Maias, ou Machado, em Brás Cubas e Quincas Borba.  Citei O grande Gatsby, que fez do amor romântico  apenas um entre vários temas do  seu  conteúdo, como  no romance de Tiago;  a psicanálise diz que o amor  romântico é uma ilusão do imaginário. Proust o trata  ironicamente.  Ciúme e desespero pavoroso,  hoje,  são sintomas da psicopatologia cotidiana. É franqueza  identificar amor com sexo?  (eu e minhas sinceridades ultrajante, Tiago ria) com as minhas tiradas e que nem sempre são bem-aceitas, esse meu discurso sobre sexualidade. Acho que o discurso amoroso é  hoje  de uma extrema solidão.  A ciência não aprofunda a discussão sobre o amor, parece tema inatual.
            Despedi-me de Tiago convidando-o a voltar ao Recife.
Eu comecei a preparar uma matéria para uma revista. o tema, é óbvio: “Literatura contemporânea”.  pensei em fazer algo  sobre “reparação”,  romance de inglês Ian  McEWan,  considerado o 1º grande romance do terceiro milênio. O enredo  exibe família rica e se inicia em 1935,  na Inglaterra, seguindo por  6 (seis) décadas.  Os amantes Robbie (filho da empregada) e Cecilia que são separados por garotinha chamada Briony (que vai retornar escritora). Ele mora na 2ª  Guerra. Briony sente-se culpada., a  narrativa é coisa de mestre.  Faz-nos lembrar a questão de como nos utilizamos da memória sem nos deixar imobilizar por ela.  Ao contrário  da recherche proustiana, às vezes queremos esquecê-lo. Narrar é apenas estruturar lembranças?  As aventuras existências, quando rememoradas. Lembrei-me  de o museu da  inocência, romance de Orhan Pamuk.
            Cuja narrativa mescla exotismo com aspectos sociológicos e tem ambientação  em Istambul, em estilo lento puxando para o clássico.
            No meu artigo eu comentava as nuances de um romance de clima e daqueles outros cuja importância está centrada em reflexões filosóficas, as digressões na narrativa, no romance em questão percebe-se diferenças entre amor e processos e estados existenciais.
            Eu estava com meu notebook e na varanda do Lisboa City,  na suíte do 7º andar, onde visualizava, um ângulo de 180º  um parte interessante de Lisboa, junto à casa de misericórdia.  Há muitos bares e restaurantes. Saía à noite e jovem  instrumentistas  cantavam o vira de maneira melancólico em meio ao fins noturno numa pracinha.
            Que diferença, fazem ao mundo os amores obsessivos?  A garotinha do romance que eu estava analisando  envelhece e vai se aperfeiçoando  como escritora.  Analisa seu amor infantilizado numa atitude de quem aceita pensar  e enfrentar as incertezas da nossa época.  o entrelaçamento de trajetória  que o amor provoca aqui uma reescritura, numa espécie de metaliterariedade dando à intriga o tempero da possível “reparação”,  mas será que isto é vida ou só mesmo ficção? A ficção dá forma e significação à vida real,  tão cheia de ambiguidade, também. Briony acha que destruiu o amor daquele casal, mas será que eles teriam  sido  felizes  se ela não tivesse denunciado Robbie? Afinal   as forças das convenções sociais  podem ser avassaladoras na elite da Inglaterra e em qualquer lugar. Só a ficção oferece final feliz.
            Com referências mais plásticas e cinematográficas do que literárias, certas obras exigem a noção de intertexto mais puxada para a intersemiose (vários sistemas sígnicos) mesmo  sem  grandes armações  lúdicas na  narrativa. Pode  também haver referências interculturas e até intratextualidade (com outras obras do  próprio  autor), afinal escrita  e leitura não cessam  de  lembar ruma da outra,  cabendo ao leitor ter conhecimento literário sólido e boa memória: um  romance traz ideias, possibilidades, através de casos imaginários que, às vezes, guardamos com maior nitidez do que s acontecimentos reais e os levamos mais a sério. Se é o  autor falando pela boca doe personagem, não o sabemos Montaigne, em 1580,  dizia “sou eu mesmo  a matéria do meu livro”.
            As condições ideológicas  e históricas do nosso tempo,  o desenrolar da trama e as reflexões das personagens nos fazem pensar que inocência já não cabe  neste século XXI,  tão desconjuntado, será que  os sujeitos contemporâneos à década de 20 deste século  estão presos a um corpo  que pretende deter a  passagem  do tempo e simularmos amor numa atividade sexual  compulsiva num mundo que os empurros para uma história sem  saída entre a memória e a invenção de uma nova maneira de amar e viver?
            Evitar  os lugares-comuns  e ao mesmo tempo prender a atenção do leitor não é tarefa fácil, quando o que se deve fazer é administrar as surpresas e suspenses.
            Somos prisioneiros da nossa história  cultural cheia de perdas de referências e nostalgia de tempos menos agitados do que o nosso? O que dirão os historiadores de cultura material sobre nossos dias, no futuro? Que usos e gostos são estes nossos, agora? No que diferem tanto do final  do século passado?  O que suscitará  maiores  reflexões sobre o comportamento humano em nossa época, além de comunicação digital e a fragilidade ética, a banalização da violência, a desimportância dos sentimentos,  as novas concepções,   sobre Deus e a justiça nesta época estranha?
            Encontrar  um paratexto que nos sirva como epígrafe  não é tarefa fácil, os jovens de hoje  jamais se apaixonaria se não nos ouvissem falar do amor,  mas que força terá no futuro esse modelo de amor que estamos forjando, hoje?  Parecerá arcaico diante do ceticismo generalizado e rompe os limites do eu?
            Vemos  que a autoficção, a autoexposição  nas redes sociais, o individualismo  forçam  uma  tendência quase umbilical entre a  vida  do autor e a obra numa mitomania literária.
            O  narcisismo e o voyeurismo avançam, como nos já antigos reality  shows e prevemos novos gêneros literários que representem o cuidado de si e da “POLIS”,  mostrar o eu,  que  parecerá  inominável, então ressurgido numa narrativa que  lembrará a vida do autor, como Marguerite Duras o fez  em  “O Amante” (1984),  mesmo que  não se acredite mais na possibilidade de dizer a verdade sobre si mesmo,  sobre a existência, em  autoficção, esse gênero literário que  reúne memórias  e romance, romanesca biografia,  ou ainda registro imediato da experiência, não necessariamente  memorialística,  numa invenção de um eu fantasioso em oposição ao caráter absolutamente  verdadeiro dos fatos, em  verbalização imediata.
            A verdade reinventada através do autor-personagem-narrador (!) reconfigurando sua vida em inversão cronológica, mistura de épocas,  remexendo suas  verdades interiores (experiência mais linguística do que literária?).  aqui o sistema de signos não representariam a “realidade”,  mas fariam  apenas a referem,  demonstração, em  ordem pluridimensional (o real). Assim a ordem unidimensional (a linguagem) numa espécie de recusa que rompe paralelos entre o real  e a linguagem  se chama aí literatura, ainda, mesmo quando o enunciado, na ficção, não tem referencial fixo (eu/outro),  dependendo  do contexto de fala para que seu referente  seja  identificado: eis  a autoficção (considerando  a teoria literária e os perturbados  linguísticos).

Prof. Dr.  MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO, em Londres, exemplifica a bioficção: "Arthur Conan Doyle criou Sherlock Holmes e deu a ele um endereço verdadeiro, em Londres."




            A verdade vire ficção (potencialmente) e esta injunção, é um discurso imaginário onde, às  vezes, o “real”  não pode ser alcançado diretamente, só  se  manifestando no duplo, pois quando narramos nossas vidas  ela se revestem de autoficções,  dando sentido ao que passou, mesmo que seja sentido provisório,  imaginário e quando se trata de literatura a proporção é maior. O pior se dá quando  expomos os outros que conhecemos, mas a literariedade pode salvar a obra,  a livre expressão, o que espraia na boa literatura: a polifonia (versus o discurso monológico),  de um eu não complacente consigo, não vaidoso que se questiona objetivamente.
            O  narrador da bioficção não deve  ser autocentrado,  de preferência seria de bom tom fazer digressões  sobre literatura, artes que conhece e apreciou por exemplo: descrever objetos que o leitor contemporâneo  conhece (de uso globalizado), marcas, ingredientes culinários, pormenores aparentemente, significantes, mas que fazem a diferença,  são os efeitos de real,  em  linguagem  menos  metafórica do que referencial, o que se destaca num  mundo afogado na modernidade  líquida  das imagens virtuais. Se também usa o estranhamento poético, faz bem.  Fazer o leitor sentir-se como se folheasse  um livro de arte tirado da estante acima do sofá, como escreveu  Cecília Meireles: “a vida  só é possível  reinventada”.
            Representar a alma ferida/danificada do nosso tempo. é ao mesmo  tempo comprazimento com o cotidiano, com o doméstico, a festa na prisão do  consumo barato,  da ostentação fake de apego  aos objetos num mundo  produzido em série”.
            Outro fato a se discutir aqui é a ideologia.  Ideologia não é simplesmente conjunto de ideias relativas ao papel do homem no mundo, é também as más intenções embutidas na divulgação destas ideias e a literatura  também é veículo delas.  Marxismo e liberalismo  democrático vão tomando novos rumos e as letras o refletem com seriedade ou em espelho chaplinesco. Há variadas forças (comunismo capitalista chinês, islâmico e por aí vai). Vivemos uma pós-utopia? Podemos encontrar na literatura contemporânea um realismo cínico, uma realidade disfórica? Ou em estado de disforia; que apresenta uma sensação de mal-estar, de desconforto, de ansiedade e/ou de depressão constante; que se opõe à euforia; contrário ao que se relaciona com otimismo, ânimo, sentimento de exaltação e de alegria. quando o desastre já ultrapassou perigo.
            Vemos em alguns casos as denúncias da sociedade  do espetáculo, do mercado globalizado e do absurdo que nos rodeia numa mídia que usa frases anódinas, medíocres, às vezes.
            Eu sempre achei que  o que o escritor  tem a dizer é uma importante do que sua forma escrita. A  temática e o estilo que os leitores atuais preferem seria ainda uma incógnita?  O que é uma análise lúcida numa obra literária,  hoje?  Provocaria um arrepio de liberdade neste universo pós-tudo onde existimos? Ofereceria a literatura um lugar imaginário onde,  a vida vale a pena ser vivida, isto é, menos inconfortável mais fraternal  num futuro pós-exótico, erótico, familiar, sacro,  espécie de realismo socialista mágico (no sentido alegórico político) e que não seja literatura de entretenimento algo que nos permite o reencontro com o humano?
            O angolano Gonçalo Manuel de Albuquerque Tavares e seus “livros pretos”, uma teatralogia (“O Reino”), o 1º é  “Um homem:  Klaus Keump” (sobre uma cidade  invadida por tropas inimigas).  Há algo  nele que nos lembra a tese de Hannah  Arendt: a banalização do mal,  que expõe  o modo metódico como friamente  a mídia   manipula o horror,  mas seria  imprescindível a memória do mal para evitar sua repetição?  Contra isso restam a razão e a força (ou a favor disto) dos discursos morais e políticos?  Estaríamos vivendo o prelúdio  de uma grande tragédia que se anuncia pós-utópico, distópico? Quando tomaremos uma atitude séria em relação às linguagens estereotipadas na mídia e que as pessoas repetem. Faz-se ainda necessário que as classifiquemos, pois só assim, deslocando-as,  classificando-as, poderemos  pensar numa possível revolução. As figuras são lidas por um lado do cérebro e as palavras por outra?).
            É bom relembrar: a linguagem literária (verbal) não pode representar exatamente o real, só referir-se a ele (há literatura o verismo  é sempre um efeito do real).
            Vivemos sob a égide da homofobia classicista e racista que acha que os índios estão extintos, a arte é crime ler um romance é perda de tempo, eis nossa era cravada por hiperinformações negativas que a maior parte da população introjeta, suando ou se agasalhando num círculo  vicioso meio sem saída,  calada, pois só lhe restaria fazer o pior possível (esculhambar com tudo isso?)
            Nesta estereotipia caótica de discursos na qual estamos fatalmente mergulhados pululam informações superficiais como vírus que nos atacam?  Literatura não é resposta:  é pergunta.
            Sob a vigilância do desastre:
            O que a literatura  pode fazer é estimular a percepção do real. isto  pode se dar com escrita elíptica,  memórias, fragmentos de reflexão, história individual  destroçada pela “história” (numa ficção documental) ou de modo tradicional,  não importam  tanto os deslocamentos  estruturais ou temáticas, a literatura conduz  o leitor à reflexão.  Vamos lembrar aqui o livro do desassossego,  escrito como peças de um móbil,  por Fernando Pessoa. A  desconfiança de hoje do sujeito como eu
            Destaco também o caráter transgenérico de escritores que são também artistas plásticos,  por exemplo. O que é a linguagem, agora: língua crescida e projetada que só o sufocamento pode  produzir?  Desmoronam  as últimas  barreiras do ser “si mesmo”?  toda memória parece insatisfatória quando as palavras parecem apenas cascas das coisas que passaram, matéria e linguagem, células de inutilidade ou de utilidade incompreensível na fração circular de cada segundo. Caberia ao autor, agora, enumerar restos em meio às ruínas culturais das literaturas  engajadas, com mensagens, em  meio ao atual excesso de informações, consumo,  imagens, tecnologia fantasmagórica ininterrupta deste nexo eterno instante – já  atento para deter qualquer epifania?  Resta-nos o trabalho de linguagem  de outro tipo, dizer o que ainda não foi dito, dizer menos sobre nossos luto e revolta,  neste monte de inutilidades que temos que limpar,  no papel ou no  aparelho digital, saber que até isso é uma dízima, neste hipernomeado e hipersaturado mundo, ao mesmo tempo trágico, grave e engraçado.
            Fazer   literatura é acreditar no futuro, haverá um leitor (que pode ser da  elite ou do povo). Os leitores de hoje tornam atuais velhos clássicos (obra literária concretiza-se na leitura),  por isso são “atuais”). O livro hipermoderno (muito além do “pós-moderno”) enfrentará mau tempo? Uma era violenta onde a tecnologia auxiliará o totalitarismo e o desamor geando medo e incerteza? Será o acaso  de futuro (que  se transforma em passado  cada vez mais rapidamente)?  O hibridismo vai abolir a separação  dos gêneros literários?  Haverá mais livros calcados em obras anteriores (intertextualidade) em releitura, reescrita deste mundo  cada vez mais fragmentado e disperso na tentativa  de se ver na  sua totalidade.  Será que estamos na possibilidade de um novo tipo de fantasioso “realismo”,dessa vez com cara de jornalismo informativo (com marcas de “neutralidade”), voltando  a contar histórias num estilo comunicativo sem experimentalismos  que dificultem a leitura, a legibilidade?  Uma literatura  com a função da linguagem  referencial em destaque (também  a metalinguística e a emotiva) é o que pressentimos pelo  que é lançado no mercado, agora, sem utopias teleológicas. São textos do Kairós, do hoje, o que acontece na sociedade agora, como faz Patti Smith, a poeta roqueira que representa na Suécia, cerimônias  do Nobel,  Bob Dylan,  prêmio Nobel de literatura (pela 1ª  vez dado a um música).
Patricia Lee Smith mais conhecida pelo nome artístico Patti Smith, é uma poetisa, cantora, fotógrafa, escritora, compositora e musicista norte-americana. Ela tornou-se proeminente durante o movimento punk com seu álbum de estréia, Horses em 1975.

            Em meio a mutações temáticas, a literatura segue, longe dos artigos manifestos lançando novas tendências, temas aí a reinvenção.
            É engajada?  Não são as causas defendidas um texto que o fazem literário e sim sua potência de ser exato ao falar de algo que estava no mundo e o leitor não percebia e o presente através daquela linguagem que fala  do que não conseguimos  definir facilmente sem esta linguagem artística, que impulsiona nossa  autoconhecimento, nos fez refletir, seja uma ficção de mil páginas ou um poema com poucos versos.
            Gostaria de terminar citando na íntegra o discurso que Bob Dylan enviou ou à Academia Sueca seu discurso de agradecimento pelo Nobel de Literatura, mas pediu à cantora Patti Smith, que fez uma apresentação emocionada da canção A Hard Rain's A-Gonna Fall, lançada em 1963, que o representasse:
"Boa noite a todo mundo. Eu estendo minhas mais calorosas saudações aos membros da Academia Sueca e a todos os outros convidados e convidadas de distinção presentes na noite de hoje. Sinto muito não poder estar pessoalmente com vocês, mas, por favor, saibam que absolutamente estou com vocês em espírito, e que fico honrado de receber um prêmio de tamanho prestígio. Receber o Prêmio Nobel de Literatura é algo que eu nunca teria podido imaginar, nem prever. Desde muito jovem me é familiar a experiência de ler e absorver as obras daqueles que foram considerados à altura desta distinção: Kipling, Shaw, Thomas Mann, Pearl Buck, Albert Camus, Hemingway. Sempre me causaram profunda impressão esses gigantes da literatura cuja obra é tema de aulas, fica abrigada em bibliotecas de todo o mundo e é mencionada com palavras de reverência. O fato de eu agora me juntar aos nomes dessa lista me deixa definitivamente sem palavras. Não sei se esses homens e mulheres um dia pensaram na honra do Nobel como algo que pudesse lhes caber, mas imagino que qualquer um que escreva um livro, ou um poema, ou uma peça de teatro em qualquer lugar do mundo pode acalantar esse sonho secreto, bem no fundo. Provavelmente enterrado tão fundo que eles nem sabem que está ali.
Se um dia alguém me dissesse que eu tinha a mais remota chance de ganhar o Prêmio Nobel, eu seria obrigado a pensar que teria mais ou menos a mesma chance de pisar na lua. A bem da verdade, durante o ano em que eu nasci e por alguns anos ainda não houve ninguém no mundo que fosse considerado digno de receber este Prêmio Nobel. Então, reconheço que estou de fato na mais rara das companhias, para dizer o mínimo.
Eu estava em turnê quando recebi essa notícia surpreendente, e levei mais do que uns poucos minutos para assimilar adequadamente a ideia. Comecei a pensar em William Shakespeare, a grande figura literária. Imagino que ele se considerasse um dramaturgo. A ideia de que estivesse escrevendo literatura não podia ter lhe passado pela cabeça. Suas palavras eram escritas para o palco. Destinadas a ser pronunciadas, e não lidas. Quando estava escrevendo Hamlet, tenho certeza que ele estava pensando em muitas coisas diferentes: “Quem são os atores certos para esses papéis?” “Como isso aqui deveria ser encenado?” “Será que é a melhor ideia ambientar a peça na Dinamarca?” Sua visão criativa e suas ambições sem sombra de dúvida estavam no primeiro plano em sua mente, mas havia também questões mais prosaicas que ele devia considerar e resolver. “O financiamento está encaminhado?” “Vai haver poltronas boas para todos os mecenas?” “Onde é que eu vou arranjar uma caveira humana?” Eu seria capaz de apostar que a questão mais afastada da mente de Shakespeare era “Isso é literatura?”.
Quando comecei a escrever canções, na minha adolescência, e mesmo quando comecei a ter algum renome por causa da minha capacidade, minhas aspirações para essas canções só iam até aí. Eu achava que elas podiam ser ouvidas em cafés ou em bares, talvez em lugares como o Carnegie Hall, o London Palladium. Se estivesse sonhando bem alto, talvez pudesse imaginar que ia conseguir gravar um disco e aí ouvir minhas músicas no rádio. Era esse o grande prêmio que eu tinha mente. Gravar discos e ouvir suas próprias músicas no rádio queria dizer que você estava chegando a um grande público e que não precisava parar de fazer o que tinha decidido fazer.
Bom, eu venho fazendo o que decidi fazer já há bastante tempo. Gravei dezenas de discos e fiz milhares de shows no mundo todo. Mas as minhas canções é que são o centro vital de quase tudo que eu faço. Parece que elas encontraram um lugar na vida de muita gente de muitas culturas diferentes e sou grato por isso.
Mas tem uma coisa que eu preciso dizer. Como artista eu já toquei para 50.000 pessoas e já toquei para 50 pessoas e posso dizer a vocês que é mais difícil tocar para 50. Cinquenta mil pessoas têm uma só persona, o que não acontece com 50. Cada pessoa tem uma identidade separada, individual, um mundo todo seu. Elas podem perceber tudo com mais clareza. Sua honestidade e como ela se relaciona com a extensão do seu talento entram em julgamento. O fato de que o comitê do Nobel é tão pequeno não é algo que tenha passado despercebido para mim.
Mas, como Shakespeare, eu normalmente estou ocupado demais lidando com meus projetos criativos e tratando de todos os aspectos das questões prosaicas da vida. “Quem são os melhores músicos para essas canções?” “Será que estou gravando no estúdio certo?” “Será que essa música está no tom certo?” Certas coisas não mudam nunca, nem em 400 anos.
Nem uma única vez eu tive tempo de me perguntar, “Será que as minhas canções são literatura?”.
Então, agradeço realmente à Academia Sueca, tanto por ter parado para considerar precisamente essa questão quanto por oferecer, afinal, uma resposta tão maravilhosa.
Tudo de bom a cada um de vocês" (Bob Dylan)




domingo, 29 de março de 2020

A MÁSCARA DA MORTE RUBRA, conto de Edgar Allan Poe

A “Morte Rubra” havia muito devastava o país. Jamais se viu peste tão fatal ou tão hedionda. O sangue era sua revelação e sua marca. A cor vermelha e o horror do sangue. Surgia com dores agudas e súbita tontura, seguidas de profuso sangramento pelos poros, e então a morte. As manchas rubras no corpo e principalmente no rosto da vítima eram o estigma da peste que a privava da ajuda e compaixão dos semelhantes. E entre o aparecimento, a evolução e o fim da doença não se passava mais de meia hora.
Mas o príncipe Próspero era feliz, destemido e astuto. Quando a população de seus domínios se reduziu à metade, mandou vir à sua presença um milhar de amigos sadios e divertidos dentre os cavalheiros e damas da corte e com eles retirou-se, em total reclusão, para um dos seus mosteiros encastelados. Era uma construção imensa e magnífica, criação do gosto excêntrico, mas grandioso do próprio príncipe. Circundava-a a muralha forte e muito alta, com portas de ferro. Depois de entrarem, os cortesões trouxeram fornalhas e grandes martelos para soldar os ferrolhos. Resolveram não permitir qualquer meio de entrada ou saída aos súbitos impulsos de desespero dos que estavam fora ou aos furores do que estavam dentro. O mosteiro dispunha de amplas provisões. Com essas precauções, os cortesões podiam desafiar o contágio. O mundo externo que cuidasse de si mesmo. Nesse meio-tempo era tolice atormentar-se ou pensar nisso. O príncipe havia providenciado toda a espécie de divertimentos. Havia bufões, improvisadores, dançarinos, músicos, beleza, vinho. Lá dentro, tudo isso mais segurança. Lá fora, a “Morte Rubra”.
Lá pelo final do quinto ou sexto mês de reclusão, enquanto a peste grassava mais furiosamente lá fora, o príncipe Próspero brindou os mil amigos com um magnífico baile de máscaras.
Que voluptuosa cena a daquela mascarada! Mas antes descrevamos os salões em que ela se desenrolava. Era uma série imperial de sete salões. Em muitos palácios, porém, esses salões formam uma perspectiva longa e reta, quando as portas se abrem até se encostarem nas paredes de ambos os lados, de tal modo que a vista de toda essa sucessão é quase desimpedida. Ali, a situação era muito diferente, como se devia esperar da paixão do príncipe pelo fantástico. Os salões estavam dispostos de maneira tão irregular que os olhos só podiam abarcar pouco mais de cada um por vez. Havia um desvio abrupto a cada vinte ou trinta metros e, a cada desvio, um efeito novo. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica dava para um corredor fechado que acompanhava as curvas do salão. A cor dos vitrais dessas janelas variava de acordo com a tonalidade dominante na decoração do salão para o qual se abriam. O da extremidade leste, por exemplo, era azul – e de um azul intenso eram suas janelas. No segundo salão os ornamentos e tapeçarias, assim como as vidraças, eram cor de púrpura. O Terceiro era inteiramente verde, e verdes também os caixilhos das janelas. O quarto estava mobiliado e iluminado com cor alaranjada. O quinto era branco, e o sexto, roxo. O sétimo salão estava todo coberto por tapeçarias de veludo negro, que pendiam do teto e pelas paredes, caindo em pesadas dobras sobre um tapete do mesmo material e tonalidade. Apenas nesse salão, porém, a cor das janelas deixava de corresponder à das decorações. As vidraças, ali, eram rubras – de uma violenta cor de sangue.


Ora, em nenhum dos sete salões havia qualquer lâmpada ou candelabro, em meio à profusão de ornamentos de ouro espalhados por todos os cantos ou dependurados do teto. Nenhuma lâmpada ou vela iluminava o interior da seqüência de salões. Mas nos corredores que circundavam a suíte havia, diante de cada janela, um pesado tripé com um braseiro, que projetava seus raios pelos vitrais coloridos e, assim, iluminava brilhantemente a sala, produzindo grande número de efeitos vistosos e fantásticos. Mas no salão oeste, ou negro, o efeito do clarão de luz que jorrava sobre as cortinas escuras através das vidraças da cor do sangue era desagradável ao extremo e produzia uma expressão tão desvairada no semblante dos que entravam que poucos no grupo sentiam ousadia bastante para ali penetrar.
Era também nesse apartamento que se achava, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo oscilava de um lado para o outro com um bater surdo, pesado, monótono; quando o ponteiro dos minutos completava o circuito do mostrador e o relógio ia dar as horas, de seus pulmões de bronze brotava um som claro, alto, grave e extremamente musical, mas em tom tão enfático e peculiar que, ao final de cada hora, os músicos da orquestra se viam obrigados a interromper momentaneamente a apresentação para escutar-lhe o som; com isso os dançarinos forçosamente tinham de parar as evoluções da valsa e, por um breve instante, todo o alegre grupo mostrava-se perturbado; enquanto ainda soavam os carrilhões do relógio, observava-se que os mais frívolos empalideciam e os mais velhos e serenos passavam a mão pela teste, como se estivessem num confuso devaneio ou meditação. Mas, assim que os ecos desapareciam interiormente, risinhos levianos logo se riam do próprio nervosismo e insensatez e, em sussurros, diziam uns aos outros que o próximo soar de horas não produziria neles a mesma emoção; mas, após um lapso de sessenta minutos (que abrangem três mil e seiscentos segundos do tempo que voa), quando o relógio dava novamente as horas, acontecia a mesma perturbação e idênticos tremores e gestos de meditação de antes.
Apesar disso tudo, que festa alegre e magnífica! Os gostos do príncipe eram estranhos. Sabia combinar cores e efeitos. Menosprezando a mera decoração da moda, seus arranjos mostravam-se ousados e veementes, e suas idéias brilhavam com um esplendor bárbaro. Alguns podiam considerá-lo louco, sendo desmentidos por seus seguidores. Mas era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para convencer-se disso.
Para essa grande festa, ele próprio dirigiu, em grande parte, a ornamentação cambiante dos sete salões, e foi seu próprio gosto que inspirou as fantasias dos foliões. Claro que eram grotescas. Havia muito brilho, resplendor, malícia e fantasia – muito daquilo que foi visto depois no Hernani. Havia figuras fantásticas com membros e adornos que não combinavam. Havia caprichos delirantes como se tivessem sido modelados por um louco. Havia muito de beleza, muito de libertinagem e de extravagância, algo de terrível e um tanto daquilo que poderia despertar repulsa. De um ao outro, pelos sete salões, desfilava majestosamente, na verdade, uma multidão de sonhos. E eles – os sonhos – giravam sem parar, assumindo a cor de cada salão e fazendo com que a impetuosa música da orquestra parecesse o eco de seus passos. Daí a pouco soa o relógio de ébano colocado no salão de veludo. Então, por um momento, tudo se imobiliza e é tudo silêncio, menos a voz do relógio. Os sonhos se congelam como estão. Mas os ecos das batidas extinguem-se – duraram apenas um instante – e risos levianos, mal reprimidos, flutuam atrás dos ecos, à medida que vão morrendo. E logo a música cresce de novo, e os sonhos revivem e rodopiam mais alegremente que nunca, assumindo as cores das muitas janelas multicoloridas, através das quais fluem os raios luminosos dos tripés. Ao salão que fica a mais oeste de todos os sete, porém, nenhum dos mascarados se aventura agora; pois a noite está se aproximando do fim: ali flui uma luz mais vermelha pelos vitrais cor de sangue e o negror das cortinas escuras apavora; para aquele que pousa o pé no tapete negro, do relógio de ébano ali perto chega um clangor ensurdecido mais solene e enfático que aquele que atinge os ouvidos dos que se entregam às alegrias nos salões mais afastados.
Mas nesses outros salões cheios de gente batia febril o coração da vida. E o festim continuou em remoinhos até que, afinal, começou a soar meia-noite no relógio. Então a música cessou, como contei, as evoluções dos dançarinos se aquietaram, e, como antes, tudo ficou intranqüilamente imobilizado. Mas agora iriam ser doze as badaladas do relógio; e desse modo mais pensamentos talvez tenham se infiltrado, por mais tempo, nas meditações dos mais pensativos, entre aqueles que se divertiam. E assim também aconteceu, talvez, que, antes de os últimos ecos da última badalada terem mergulhado inteiramente no silêncio, muitos indivíduos na multidão puderam perceber a presença de uma figura mascarada que antes não chamara a atenção de ninguém. E, ao se espalhar em sussurros o rumor dessa nova presença, elevou-se aos poucos de todo o grupo um zumbido ou murmúrio que expressava a reprovação e surpresa – e, finalmente, terror, horror e repulsa.
Numa reunião de fantasmas como esta que pintei, pode-se muito bem supor que nenhuma aparência comum poderia causar tal sensação. Na verdade, a liberdade da mascarada dessa noite era praticamente ilimitada; mas a figura em questão ultrapassava o próprio Herodes, indo além dos limites até do indefinido decoro do príncipe. Existem cordas, nos corações dos mais indiferentes, que não podem ser tocadas sem emoção. Até para os totalmente insensíveis, para quem a vida e morte são alvo de igual gracejo, existem assuntos com os quais não se pode brincar. Na verdade, todo o grupo parecia agora sentir profundamente que na fantasia e no rosto do estranho não existia graça nem decoro. A figura era alta e esquálida, envolta do pés a cabeça em vestes mortuárias. A máscara que escondia o rosto procurava assemelhar-se de tal forma com a expressão enrijecida de um cadáver que até mesmo o exame mais atento teria dificuldade em descobrir o engano. Tudo isso poderia ter sido tolerado, e até aprovado, pelos loucos participantes da festa, se o mascarado não tivesse ousado encarnar o tipo da Morte Rubra. Seu vestuário estava borrifado de sangue, e sua alta testa, assim como o restante do rosto, salpicada com o horror rubro.
Quando os olhos do príncipe Próspero pousaram nessa imagem espectral (que andava entre os convivas com movimentos lentos e solenes, como se quisesse manter-se à altura do papel), todos perceberam que ele foi assaltado por um forte estremecimento de terror ou repulsa, num primeiro momento, mas logo o seu semblante tornou-se vermelho de raiva.
– Quem ousa…? perguntou com voz rouca aos convivas que estavam perto – quem ousa nos insultar com essa caçoada blasfema? Peguem esse homem e tirem sua máscara, para sabermos quem será enforcado no alto dos muros, ao amanhecer!
O príncipe Próspero estava na sala leste, ou azul, ao dizer essas palavras. Elas ressoaram pelos sete salões, altas e claras, pois o príncipe era um homem ousado e robusto e a música se calara com um sinal de sua mão.
O príncipe achava-se no salão azul com um grupo de pálidos convivas ao seu lado. Assim que falou, houve um ligeiro movimento dessas pessoas na direção do intruso, que, naquele momento, estava bem ao alcance das mãos, e agora, com passos decididos e firmes, se aproximava do homem que tinha falado. Mas por causa de um certo temor sem nome, que a louca arrogância do mascarado havia inspirado em toda a multidão, não houve ninguém que estendesse a mão para detê-lo; de forma que, desimpedido , passou a um metro do príncipe e, enquanto a vasta multidão, como por um único impulso, se retraía do centro das salas para as paredes, ele continuou seu caminho sem deter-se, no mesmo passo solene e medido que o distinguira desde o inicio, passando do salão azul para o púrpura, do púrpura para o verde, do verde para o alaranjado, e desse ainda para o branco, e daí para o roxo, antes que se fizesse qualquer movimento decisivo para detê-lo. Foi então que o príncipe Próspero, louco de raiva e vergonha por sua momentânea covardia, correu apressadamente pelos seis salões, sem que ninguém o seguisse por causa do terror mortal que tomara conta de todos. Segurando bem alto um punhal desembainhado, aproximou-se, impetuosamente, até cerca de um metro do vulto que se afastava, quando este, ao atingir a extremidade do salão de veludo, virou-se subitamente e enfrentou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo e o punhal caiu cintilando no tapete negro, sobre o qual, no instante seguinte, tombou prostrado de morte o príncipe Próspero. Então, reunindo a coragem selvagem do desespero, um bando de convivas lançou-se imediatamente no apartamento negro e, agarrando o mascarado, cuja alta figura permanecia ereta e imóvel à sombra do relógio de ébano, soltou um grito de pavor indescritível, ao descobrir que, sob a mortalha e a máscara cadavérica, que agarravam com tamanha violência e grosseria, não havia qualquer forma palpável.
E então reconheceu-se a presença da Morte Rubra. Viera como um ladrão na noite. E um a um foram caindo os foliões pelas salas orvalhadas de sangue, e cada um morreu na mesma posição de desespero em que tombou ao chão. E a vida do relógio de ébano dissolveu-se junto com a vida do último dos dissolutos. E as chamas dos braseiros extinguiram-se. E o domínio ilimitado das Trevas, da Podridão e da Morte Rubra estendeu-se sobre tudo.


segunda-feira, 16 de março de 2020

INSTAPOESIA (pesquisa dos meus alunos)


Instapoesia: uma literatura que marca presença

Espalho o meu amor (em poesia ou não) nas redes sociais, também. Uno-me assim a um movimento crescente de poetas, que cravaram seu espaço no online com textos curtos, compartilháveis e fáceis de se relacionar, e acabaram refletidos com muito sucesso na literatura tradicional. Pela força no Instagram, os escritores acabaram apelidados de instapoetas. Nomes como João Doederlein, Ryane Leão, Lucão e Zack Magiezi exploram de forma engenhosa temas como amor, decepção, saudade e autoestima, literatura em si... a maioria com caráter motivacional, bebendo de fontes filosóficas e do velho formato dos provérbios, enquanto ainda se arriscam na tendência metalinguística – que fala sobre a própria poesia e a arte de escrever. Estas centenas de milhares de poetas do Instagram migraram para o papel e, rapidamente, chegaram à lista de best-sellers. Na comparação entre os meses de janeiro a agosto de 2017 com o mesmo período de 2018, os livros de poesia nacionais cresceram em venda 107%*, fenômeno diretamente causado pelos autores virtuais. Destaca-se na lista a obra Textos Cruéis Demais para Serem Lidos Rapidamente, do perfil no Instagram de mesmo nome, atualmente o livro de ficção nacional mais vendido do país neste ano. Gosto da indiana, naturalizada no Canadá, Rupi Kaur. Autora de Outros Jeitos de Usar a Boca e O Que o Sol Faz com as Flores, publicados no Brasil pela editora Planeta, em 2017 e 2018, respectivamente, os títulos somam 275.000 exemplares comercializados por aqui até o momento. No mundo, já ultrapassam a marca do milhão. Por exemplo uso aqui um amor literário: “Porque há o direito ao grito. Então eu grito”. A frase de Clarice Lispector é um dos motores de Igor Pires da Silva, 23 anos, idealizador do perfil Textos Cruéis Demais. “Eu escrevo melhor do que eu falo. Tenho dislexia. Então escrever poesia é o jeito que eu encontrei de gritar no mundo”, diz Igor. O rapaz natural de Guarulhos, São Paulo, que hoje estuda comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), começou a escrever ainda na infância. Mas foi ao enfrentar uma depressão que a poesia ganhou a função de ferramenta de sobrevivência. Durante um trajeto de ônibus voltando da faculdade, em 2016, a frase “textos cruéis demais para serem lidos rapidamente” surgiu em sua mente. Na época, ele já escrevia poesia com outras quatro amigas, grupo que se conheceu através da rede online Tumblr.



A página nasceu primeiramente no Facebook antes de chegar adaptada, com textos menores em imagens quadradas, ao Instagram. A visibilidade aumentou quando celebridades começaram a compartilhar os poemas do grupo, caso de Marília Mendonça, que alavancou em 20.000 seguidores a página em menos de 24 horas.
A força na internet atiçou o desejo de Igor de migrar para o papel. Ele jogou o sonho de escrever um livro no Facebook, esperando o retorno de alguma casa editorial. “Na época não deu em nada. Mandei e-mails para editoras e recebi muitos nãos”, conta. Ele já tinha desistido da ideia quando chegou o decisivo e-mail da Globo Livros, perguntando se ainda tinha interesse em publicar. A aposta da editora deu certo. Em 10 meses nas lojas, o livro conta com mais de 200.000 exemplares vendidos, e se mantém há 36 semanas na lista de mais vendidos da Veja. O sucesso foi tanto que Igor, que escreveu sozinho o primeiro, agora prepara um segundo, com a colaboração das colegas de grupo, as autoras Maria Luiza Moreira, 21, e Letícia Loureiro, 21, e a designer Gabriela Barreira, 23 anos.
O diferencial do próximo livro, previsto para o ano que vem, é a parceria com as amigas. “Serão três partes, uma de cura, outra de amor e outra de perdão. Com três pessoas olhando para os temas”, conta. Igor afirma que o coletivo, que já teve outra formação, opta por não assinar os poemas por um motivo simples. “A palavra tem mais peso que a assinatura. Não quero ser maior que a poesia”, diz. “Não fazemos poesia em troca de likes. O propósito é falar de assuntos que tocam o leitor.”
João Doederleindeclarou:  ‘A poesia me ensinou a ver o lado bom da vida.Também conhecido como @akapoeta, autor conquistou celebridades, fashionistas e leitores de livrarias com o sucesso no Instagram. Quem usa as redes sociais com frequência provavelmente já tropeçou na série Ressignificados, assinada pelo brasiliense João Doederlein, 22 anos, também conhecido pelo apelido virtual @akapoeta. A imagem traz no topo uma palavra e abaixo seu significado, como em um dicionário, mas com um texto explicativo poético, formado por frases curtas. Criado em 2016, o formato consagrou Doederlein na internet.“O Ressignificados nasceu por causa de sentimentos de amor que tive por uma garota na época”, conta.
A série saiu do virtual para estampar uma coleção de camisetas, em uma parceria do poeta com uma marca de roupas, e ganhar a lista de mais vendidos de VEJA com O Livro dos Ressignificados (Paralela), título que soma 85.000 exemplares vendidos, um ano após o lançamento.
Estudante de publicidade e propaganda na Universidade de Brasília, Doederlein escreve desde os 11 anos em blogs, e antes da poesia apostou em crônicas e contos. No Facebook, ele ainda mantém uma página desta época, a Contos Mal Contados, onde ele publicava histórias de “heróis mal-encarados e dragões injustiçados”. “Gosto de expressar o outro lado da moeda”, diz.
A habilidade de ponderar é parte da essência do escritor, que, aos 16 anos, sofreu uma crise de ansiedade, e, durante o processo de recuperação, percebeu o impacto que seus textos tinham em pessoas com diferentes dores. “A poesia me ensinou a ver o lado bom da vida. Fiquei mais positivo”, conta. Sobre seu papel em meio aos ânimos exaltados dos usuários das redes, ele mantém o cerne de suas ideias. “Alguém tem que contrabalancear as coisas. Ninguém aguenta passar o tempo inteiro com sentimentos tensos e pesados”, diz. “A orelha do meu segundo livro, Coração-Granada (lançado em julho deste ano), diz: ‘esse livro é um banho quente depois de um dia de trabalho’. Quero ser o banho quente com meus textos. Participar da calmaria, para as pessoas recuperarem a energia e os sentimentos através da arte.”
Ryane Leão: ‘A Rupi Kaur abriu o caminho para mim’. Autora do perfil ‘Onde Jazz Meu Coração’ navega com destreza pela atual onda do empoderamento feminino nas redes – e na lista de best-sellers. Aos 19 anos, Ryane Leão deixou Cuiabá, sua cidade natal, e se mudou para São Paulo para fazer faculdade na Universidade de São Paulo (USP), onde começou estudando moda, antes de mudar para letras. A metrópole se tornou cenário para a poesia da aspirante a escritora, que passou a colar pelos muros seus versos em cartazes, tipo lambe-lambes. Hoje, aos 29 anos, Ryane é a feliz autora de um best-seller de poesia, o Tudo Nela Brilha e Queima (Planeta), foi destaque na Bienal do Livro e da Festa Literária de Paraty (Flip) este ano, e comanda a escola de inglês Odara, voltada para mulheres negras.
As conquistas foram alcançadas ao longo de dez anos com muitos percalços. “A mudança para São Paulo foi bem difícil. Trabalhei de tudo para pagar o aluguel, fui recepcionista, garçonete, dei aulas de inglês”, conta. “Eu escrevia por hobby. Demorou muito para a poesia ser algo rentável para mim.”
Entre o lambe-lambe e os textos em blog, Ryane chegou às redes sociais com o perfil Onde Jazz Meu Coração, em que publica textos sobre autoafirmação, relacionamentos e empoderamento feminino. As temáticas lembram as da indiana Rupi Kaur, fenômeno do gênero. Foi com o sucesso da autora que Ryane conseguiu publicar seu primeiro livro. “A editora estava procurando alguém parecida. Entraram em contato comigo pelo Instagram depois que uma amiga me indicou”, conta. Com quase 20.000 exemplares vendidos em menos de um ano, a autora já prepara um segundo título para 2019.
“A Rupi Kaur abriu o caminho para mim. Acho um presente a comparação. Ela é incrível”, diz. “A literatura ainda é muito branca e elitista. Aí surge uma poeta imigrante, mulher, de cor, e vira best-seller. A Rupi abriu as portas para mim e para outras mulheres.”
A principal semelhança de Rupi e Ryane reside principalmente na missão de falar sobre assuntos que a literatura tende a ocultar ou romantizar. “Não é fácil ter amor próprio e autoestima. Não somos inabaláveis. Falamos de relações abusivas, de racismo, machismo, mas não ficamos na dor pela dor. A ideia é mostrar que passamos por tudo isso, mas podemos sobreviver.”
A identificação de outras mulheres e da força dos movimentos feministas nas redes ajudou Ryane a crescer no meio virtual, com o amplo compartilhamento de seus textos. Ela percebe a onda e navega nela com tranquilidade. “Quero aproveitar esse momento de mais mulheres falando e publicando. Chegou ao fim o medo de contar nossas histórias.”
Zack Magiezi: ‘Faço poesia simples, para que ela seja democrática’ Autor viralizou na internet com série de poemas ‘Notas sobre Ela’ e conquistou seguidores pelo estilo romântico de tom nostálgico. Quando decidiu criar um perfil no Instagram, Zack Magiezi, 35 anos, que já angariava seguidores com a página Estranheirismo no Facebook, entendeu que precisava aliar sua poesia à uma identidade visual. “Na essência, o Instagram é uma rede de fotos e não de textos”, analisa. Como trabalha sozinho e não sabia usar programas de edição de imagem, ele resolveu uma antiga dívida com um amigo que havia comprado dele um violão. O amigo quitou o débito com uma velha máquina de datilografia. “Comecei a datilografar e fotografar o texto. Chamou a atenção o estilo antigo num ambiente digital”, conta. A troca foi acertada. Segundo Zack, até hoje o amigo não aprendeu a tocar violão. “Já a máquina, me serviu bastante”, diz rindo o poeta que soma quase 1 milhão de seguidores na rede e três livros publicados, que somam mais de 60.000 exemplares vendidos. O perfil online se consolidou com uma série de pílulas literárias batizadas de Notas sobre Ela. “Eram pequenos fragmentos na tentativa de retratar o feminino”, diz. Ousado, o autor não se acomodou na ideia que lhe deu fama, e continuou a experimentar formatos e o uso da língua portuguesa. Em tom confessional, os textos de Zack falam de perda, amor e o medo da finitude. “Passei por alguns términos de histórias que não foram bem finalizadas. Elas terminaram bem, mas eu não sabia lidar com o fim. Não sabia para onde ir, o que fazer”, conta.
Sendo um dos mais seguidos entre os instapoetas brasileiros, Zack analisa que os autores do movimento são jovens, todos experimentando, em busca da própria voz. “O que gosto do meu perfil é a linguagem. Faço poesia simples, para que ela seja democrática e chegue em mais pessoas”, diz. A facilidade da linguagem, contudo, não significa para ele que os textos sejam sem profundidade. “É uma rede social de superfícies, por isso é legal ter ali algo de dentro dos indivíduos.”Apesar da forte presença nas redes sociais, Zack passa longe de ser um entusiasta da internet. “As pessoas querem conhecer as outras baseadas apenas nas redes sociais e isso não funciona”, avalia, antes de dizer que quer se firmar na literatura para não depender apenas da internet para sobreviver. “Se o Zuckerberg puxar a tomada, o que eu vou fazer? Por isso quero me consolidar como escritor.” O ex-coordenador administrativo de um colégio em Minas Gerais se dedica exclusivamente à literatura desde 2016, quando lançou seu primeiro livro, Estranherismo (Bertrand Brasil). Ele prepara agora um novo título, com pequenos textos em prosa. “O livro é uma plataforma que te permite mais. É diferente o tempo de uma pessoa que senta para ler um livro e quem passa o olho por uma timeline. O livro ainda é melhor que um celular.”
Lucão: ‘Não dependo da dor para escrever’. Ex-redator publicitário faz sucesso na internet com versos curtos e temas leves, enquanto na literatura aposta pela primeira vez em um romance

“Eu e você não rima. Rimos”. Textos curtos costurados com jogos de palavras e aliados a temáticas românticas e bem-humoradas se tornaram a característica da poesia de Lucas Cândido Brandão, ou Lucão para os íntimos – e também para seus mais de 400.000 seguidores. “A experiência que me levou a escrever foi ler. Fui atraído pela poesia e pela liberdade de formatos”, conta o autor de 33 anos. Ao contrário de boa parte dos colegas instapoetas, não foi uma perda ou uma dor que o fez começar a rabiscar versos ainda na adolescência. “Minha vida foi ótima, recebi muito amor e quero falar sobre isso”, conta. “Eu brinco que não dependo da dor para escrever. Se eu tivesse que sofrer para criar viveria numa armadilha. Tem que tomar cuidado. Para escrever bem tem que fazer terapia antes”, diz o autor filho de uma psicóloga.
Lucão começou a divulgar seus textos aos 19 anos, antes da onda das redes sociais, quando os blogs eram o endereço virtual do momento. Foi natural a transição para o Facebook e Instagram, em 2014, quando misturou os primeiros versos com fotos em seus perfis. A paixão pela escrita o levou a cursar publicidade e propaganda e trabalhar, em seguida, como redator publicitário. Até que, também em 2014, recebeu por e-mail da Saraiva o primeiro convite para publicar um livro. “Quis deixar o emprego para me dedicar ao trabalho de escritor, mas tive medo. Quando veio o convite para o segundo livro, tomei coragem”, conta o autor que há dois anos se dedica à escrita.Seu primeiro livro, É Cada Coisa que Escrevo Só pra Dizer que Te Amo, levou para o papel o estilo “instagramável”. “São versos curtos, poesia breve, livro fotogênico para as pessoas tirarem fotos e compartilharem nas redes”, conta. O segundo, Telegramas, é um trabalho mais íntimo, com poemas maiores. Juntos, os dois títulos publicados pela Benvirá, selo da Saraiva, somam mais de 30.000 exemplares vendidos. Em seguida, Lucão decidiu publicar um livro independente. Foi daí que nasceu Dois Avessos, feito em parceria com o amigo também poeta Fabio Maca. “Foi uma nova fase da minha escrita, com poemas mais longos e profundos”, conta. A evolução dos textos culminou em seu mais recente trabalho na literatura: o romance Amores ao Sol (Planeta). A trama, uma ficção inspirada numa história real, narra a história de um homem em busca de uma mulher que ele conheceu no caminho de Santiago de Compostela. “Aconteceu algo parecido. Encontrei em Compostela um brasileiro que tinha conhecido uma argentina. Ele estava um pouco apaixonado por ela, mas se desencontraram. Depois não o vi mais e fiquei sem saber o fim da história.” Lucão decidiu criar o fim desconhecido da trama. “Eu não pensava em escrever romance, sou poeta. Mas essa história apareceu na minha frente.” Para os próximos passos, ele já pensa em um novo livro de poemas e esboça outro de crônicas. “Sou escritor e quero experimentar estilos na escrita.”
São jovens que se tornaram conhecidos nas redes sociais, desafiam a velha ideia de que poesia não vende e se tornam objeto de estudo de acadêmicos

No meio do caminho de Carlos Drummond de Andrade tinha o Instagram. O poeta mineiro, talvez o mais celebrado do século XX, já não lidera a lista de livros mais vendidos de poesia nacional. Segundo a empresa de pesquisa de mercado GfK, Claro Enigma, que ocupou a primeira posição do ranking entre janeiro e agosto de 2017 – em grande parte, provavelmente, porque estava na lista de leituras obrigatórias da Fuvest, o vestibular da Universidade de São Paulo (USP) –, não repetiu o feito no mesmo período deste ano. Agora, o posto é do grupo Textos Cruéis Demais (TCD), liderado pelo jovem Igor Pires da Silva. Já o segundo lugar da lista, que no ano passado era do poeta marginal Paulo Leminski, hoje é de João Doederlein, o @akapoeta.
Foi Leminski quem chacoalhou o mercado editorial em 2013, quando seu Toda Poesia (Companhia das Letras) desafiou a velha história de que poesia não vende no Brasil, tornando-se um best-seller. Essa máxima continua a ser colocada em xeque, agora com os instapoetas, que puxaram o crescimento do gênero neste ano e ocupam cinco das dez posições do ranking de livros de poesia mais vendidos (confira a lista ao final da reportagem). “É sempre uma surpresa quando um livro de poesia vende, ainda mais entre o público jovem”, diz a editora Veronica Gonzalez, do selo Globo Alt, que lançou Textos Cruéis Demais para Serem Lidos Rapidamente em novembro do ano passado. “Achávamos que seria um livro que iria bem, mas não nessa magnitude.”
O sucesso comercial era esperado pelo selo Paralela, do Grupo Companhia das Letras, quando aceitou publicar O Livro dos Ressignificados, de João Doederlein. Bruno Porto, editor do título, lembra que o selo tem obtido resultados comerciais e de repercussão bastante favoráveis ao trabalhar com influenciadores digitais, como a youtuber Kéfera Buchmann. “A gente tinha visto que dava bastante certo lançar livros desse pessoal, porque eles mesmos divulgavam nas redes sociais deles. O projeto do João era bom e a Rupi Kaur já tinha aberto o caminho para autores como ele”, afirma.
Outros dois autores, esses brasileiros, contribuíram para que o mercado passasse a prestar atenção no que vinha sendo publicado na internet. Pedro Gabriel é uma constante na lista de best-sellers desde que lançou Eu Me Chamo Antônio, em 2013, pela Intrínseca. De lá para cá, foram mais dois livros e um total de aproximadamente 240.000 exemplares vendidos. Já Clarice Freire, da mesma editora, conta com cerca de 85.000 exemplares vendidos de Pó de Lua (2014) e Pó de Lua nas Noites em Claro (2016).
Pedro Gabriel, que conquistou as redes ao postar mensagens e frases escritas em guardanapos, acredita que pode ter sido um precursor dos instapoetas. “Ajudei a colocar algumas pedras nesse caminho. Mostrei que uma grande editora poderia se interessar pelo trabalho que faço e que era possível fazer poesia em português e viver disso”, diz. “Você pode participar de oficinas, feiras, tudo o que faz parte da cadeia do livro. Eu vivo do que eu ganho fazendo o que eu gosto. Nunca achei que um pedaço de guardanapo que todo mundo joga fora poderia trazer o meu alimento.”
Muita gente achou que com a internet as poesias seriam esquecidas. Mas daí surgiram pela timeline a arte de colocar os sentimentos em formas de palavras, dando destaque aos que chamamos hoje de Instapoetas (Instapoets). E assim, passamos a consumir um pouco mais de literatura e receber gentileza em nossos feeds.
O que antes ficava apenas no papel foi parar no Instagram. Os versos hoje se espalham pelo mundo todo e muitos desses artistas fazem tanto sucesso que lançam até livros. Os temas ganham mais notoriedade ainda quando falam sobre o amor, a violência, relacionamentos, autoconhecimento, feminismo, saudade, o cotidiano, entre outros assuntos comuns – tanto para mim quanto para você.
Em tempos difíceis, a poesia se faz necessária. Os textos curtos, rápidos, diretos e servem como doses instantâneas de reflexão, inspiração. Muitos até parecem confissão. Listamos aqui alguns desses Instapoetas que são incríveis para seguir e para você apreciar, caso ainda não conheça. Confira:

RUPI KAUR
Rupi Kaur é uma poeta indiana que mora no Canadá. O sucesso de sua obra se deve principalmente pela delicadeza da autora. Seus poemas são francos e diretos, falam aquilo que muitas vezes não conseguimos exprimir. A maioria deles são relacionados a temas íntimos das mulheres, como relacionamentos, abusos, decepções, amores, cura, autoestima e feminilidade. Rupi tem seus livros traduzidos para o português e ficou na lista dos mais vendidos durante muitas semanas.

RYANE LEÃO
Ryane Leão escreve poesias sobre “mulheres infinitas” (como ela mesmo diz). Professora e ativista, Ryane também espalha suas palavras em lambe-lambes e recita seus poemas em saraus e slams. Seu livro “Tudo nela brilha e queima” (Editora Planeta) traz histórias pra inspirar outras mulheres a contarem as delas. A poeta também possui uma uma escola chamada Black to Black. Lá, ensina inglês para mulheres negras com foco em cultura afro e feminismo negro.
 JOÃO DOEDERLEIN
João Doederlein explora novos significados e definições para as palavras além do dicionário. O seu “O Livro dos Ressignificados” (2017) foi lançado pela editora Paralela. Além disso, João também cria poesias que exploram temas como amor, saudade, ansiedades da vida moderna e as dificuldades da vida adulta.

ZACK MAGIEZI
O publicitário Zack Magiezi ficou bastante famoso pela rede com a sua série “Notas sobre ela”. Mas, o poeta também compartilha poemas curtos datilografados, que exploram principalmente temas relacionados a outros sentimentos. Zack é autor dos livros “Estranherismo” (2016) e, claro, “Notas sobre ela” (2017), ambos publicados pela Bertrand Brasil.
VERENA SMIT
Verena Smit tem o poder de transformar palavras dando novos significados à elas através de trocadilhos poéticos. Verena nasceu em São Paulo, é artista visual, formada em cinema e em fotografia. Ela já participou de exposições em Nova York, Lisboa e São Paulo e já lançou o livro “Eu Você” pela Editora Paralela.

SAULO PESSATO
Saulo Pessato intercala textos curtos com vídeos em que declama versos próprios. Autor de “Poesia Reclamada no Jardim das Borboletas” (2016), Saulo também lançou o livro “Verso entre Virilhas” (2018), pela Editora Laranja Original. Saulo costuma dizer que é intérprete de lirismos e que nem sempre sua poesia é bonitinha. Seus temas são variados.
Para seguir: 
GERMANA ZANETTINI 
A jornalista, tradutora e poeta Germana Zanettini criou a série “Poesia na Pele”, na qual explora e usa o próprio corpo para expressar seus versos. Germana também é autora de “Eletrocardiodrama” (2017), livro lançado pela Editora Laranja Original. “A série ‘Poesia na Pele’ foi um trabalho experimental, mas que rendeu bastante exposição e ajudou a me assumir como poeta, revelando partes de mim a que ninguém tinha acesso – meu corpo e meus escritos. É mais uma forma de sentir e de transmitir sensações”, comenta.
EULÍRICAS
Para ela, tudo pode ser lido. A poesia existe em todas as coisas, por isso a vontade de publicá-las também em objetos, lugares e momentos. Estamos falando de Camila Lordelo, a mente e o coração por trás do projeto eulíricas, que tem como objetivo, espalhar palavras e amor através da “poesia nas coisas”. Camila dá vida para poemas e sensíveis peças como colares, fotos, porta joias, pratos, quadros e outras ‘coisas’ que sua imaginação encontrar. 

AMANDA LOVELACE
A americana Amanda Lovelace sempre gostou de histórias de contos de fadas. Ao crescer, foi natural se formar em literatura inglesa e se especializar em sociologia. Porém, as histórias de contos de fadas foram transformadas em poemas curtos e contam sobre momentos de abuso, perda, inspiração, autoaceitação, amor-próprio, relacionamentos, sobretudo sobre a possibilidade de escrevermos nossos próprios finais felizes. Amanda compartilha linguagem direta, em forma de poesia, e temática contemporânea. No Brasil, a Editora Leya lançou dois de seus livros com os títulos de “A princesa salva a si mesma neste livro” e “A bruxa não vai para a fogueira neste livro”.
LUCÃO
O publicitário Lucas Candão é quem está por trás de bonitos poemas que falam sobre amor, autoconhecimento e saudade. Lucão é escritor de dois livros, “Telegrama” e “É Cada Coisa Que Escrevo Pra Dizer Que Te Amo”, lançado em 2015. Fundo branco e letra de mão são a marca registrada da prosa do autor carioca – e a felicidade dos seguidores e fãs no Instagram – que sempre reconhecem seus versos quando ele publica algo novo.

Que é amplamente lida, não há dúvida. Mas será que a “instapoesia” estimula a leitura também de outros autores? Miguel Braga Vieira, professor de literatura brasileira da Universidade Estadual de Londrina (UEL), acredita que os poetas das redes sociais, como outros best-sellers, podem ter esse papel de fazer despertar o interesse do público por outras leituras. “Uma pessoa não vai se tornar leitora com Os Sertões, e sim a partir de autores que chamam mais atenção”, diz. “Um número maior de pessoas está lendo e não tem problema algum em ser poesia no Instagram, mas o legal é que eles possam passar a ler outras coisas também”, diz.
Assim como outros livros que caem no gosto popular – ou qualquer obra escrita, na verdade – os títulos dos instapoetas não são regulares: há alguns com reflexões mais e também menos aprofundadas, cuidado e conhecimento maior ou menor da linguagem. No entanto, o meio inicial de propagação do trabalho destes jovens escritores pode ser um fator decisivo na criação e temática dos poemas, algo que os diferencia dos artistas ditos tradicionais. Para o professor da UEL, pode haver certa preocupação por parte deles de agradar seu público por antecedência, respondendo a anseios de seus leitores. “São escritores que estão em busca de aumentar sua circulação. Se for pensar em arte, ela não abre tanto a mão em busca de aceitação imediata, de curtidas e seguidores”, diz Vieira, que não enxerga nessa característica algo necessariamente negativo. “Não há nada que impeça isso, e vejo o movimento com bons olhos, é um estímulo da poesia.”
A aceitação e assimilação dos best-sellers por parte da academia é ainda um tema controverso – e que varia a cada profissional do meio e cada universidade. Mas já há ao menos um indício de que os estudiosos da literatura estão prestando atenção no fenômeno dos instapoetas. A doutoranda Layse Barnabé de Moraes, da UEL, se debruça atualmente a uma tese que parte do livro Outros Jeitos de Usar a Boca, de Rupi Kaur, para analisar o movimento recente formado também por outras escritoras que usam a poesia como meio de cura. “Ela toca em assuntos muito básicos, da vivência feminina, que não são nada delicados e sensíveis, a maneira como geralmente se lida com a literatura feita por mulheres. Ela fala de temas como abuso, o pai imigrante, ser uma mulher indiana”, afirma Layse.
O projeto ainda deve levar alguns dos poemas das escritoras, que incluem também a americana Nayyirah Waheed e a canadense Key Ballah, a mulheres em situação de vulnerabilidade – presas, que estão em asilos, órfãs e que sofreram violência sexual ou doméstica, por exemplo. A ideia da estudante é ouvir essas histórias e apresentar os poemas das autoras, propondo um ambiente de troca de vivências.