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sábado, 9 de maio de 2020

BIOFICÇÃO, pelo Prof. Dr. MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO: biografia, história e literatura no cadinho da escrita


            Ah, poder multiplicar os fantasmas de mim mesmo, até o ponto de reconhecer-me como ninguém!
            Nunca me imaginei no ofício  de coveiro, mas é o que   fazemos depois de  velhos:  enterrar amigos e parentes.
            Estar em Lisboa fazia-me observar, ao  modo de Fernando  Pessoa “talvez  eu tenha  voltado a Portugal  para saber quem  sou”  (cena no romance  de Saramago) diz Ricardo Reis; Salazar Riv).  É como se um heterônimo  meu me dissesse: “tudo é insignificante. Que papel vem a ser o dos homens? Sei:  devemos  nos negar a acompanhar nossos fantasmas  em direção à morte, não é?”
            Se o romance convencional em   200 páginas  expressava a visão  de mundo do autor e número restrito de personagens, Roberto Bolaño,  há uns 20 anos lançou  o seu “os detetives selvagens”,   com cerca de 600,  e os best-seller / comum fazem  assim (vide “Game of thrones”). (sobre o fim de Utopia revolucionária na América Latina).

Prof. Dr.  MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO:

"Não podemos perder o bonde da história, nem esquecer que literatura é ficção e vida"

            O romance  de Tiago Salazar tem  pouco mais de 300 páginas e foge com o  tempo num painel  geracional, já os norte-americanos arriscam  o romance enciclopédico com dezenas de personagens e mistura de temas numa  estrutura  intrincada, torrencial e caótica,  misturando linguagem acadêmica com gírias e até incorreções   gramaticais.  Perguntei a Tiago Salazar  se  ele tinha lido “Graça infinita” (do Ianque David Fostes Wallace (1962-2008),  ele  afirmou que tinha conhecimento. eu disse que gostava das digressões filosóficas daquele autor suicida sobre a tristeza da  sociedade de consumo. Wallace dizia rejeitar o “status quo” de cultura feita para divertimento que os E.U.  impõem  com o modelo  para o mundo,  infundindo o individualismo, a hiperconectividade, particularismos sexuais e étnicos (como faz Jonathan Franzen, no romance “Liberdade” (2011).  Eu disse que achei legal “cidade em chamas (de Garth  Risk  Hallberg),  crítica a N. Y.C., que volta no tempo para criticar o final  dos anos 70,  época de minha adolescência e que desempenha no final dos anos 90.   Parece que Halberg  queria ensinar alguma coisa com seu romance meio oitocentista.  Tiago  desconversou. Nossa conversa voltou-se para o Recife e ele disse que conheceu Roger de Renor,  amigo e incentivador de Chico Science,  que retratou tipos e cenas recifenses nos anos 90,  com influência do pop,  indivíduos   diluídos na massificação da vida,   o homem  de multidão, coveiro das ilusões românticas, tipo “voltei, Recife, a saudade me trouxe  pelo braço”.  Rimos muito e fomos a uma livraria, ele me apresentou o agente literário  dele, naquele 7 de janeiro de 2020. Isso já dentro da Livraria  Leya,  oficina e livro (15,50 euros  ). Tiago fora para o Festival do 1º Romance de Chambéry.

Prof. Dr.  MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO e o romancista portuguêsTiago Salazar


Pus-me a pensar no itinerário  sinuoso que a Providência me traçou e que eu segui de uma etapa à outra acreditando ser o meu próprio guia.  Devia  continuar a fazer de conta que era eu próprio  que tomava as decisões?  O livro de Tiago era de 2016.
            Fiquei imaginando o ânimo realista português  ao tratar do amor, como no romance Os Maias, ou Machado, em Brás Cubas e Quincas Borba.  Citei O grande Gatsby, que fez do amor romântico  apenas um entre vários temas do  seu  conteúdo, como  no romance de Tiago;  a psicanálise diz que o amor  romântico é uma ilusão do imaginário. Proust o trata  ironicamente.  Ciúme e desespero pavoroso,  hoje,  são sintomas da psicopatologia cotidiana. É franqueza  identificar amor com sexo?  (eu e minhas sinceridades ultrajante, Tiago ria) com as minhas tiradas e que nem sempre são bem-aceitas, esse meu discurso sobre sexualidade. Acho que o discurso amoroso é  hoje  de uma extrema solidão.  A ciência não aprofunda a discussão sobre o amor, parece tema inatual.
            Despedi-me de Tiago convidando-o a voltar ao Recife.
Eu comecei a preparar uma matéria para uma revista. o tema, é óbvio: “Literatura contemporânea”.  pensei em fazer algo  sobre “reparação”,  romance de inglês Ian  McEWan,  considerado o 1º grande romance do terceiro milênio. O enredo  exibe família rica e se inicia em 1935,  na Inglaterra, seguindo por  6 (seis) décadas.  Os amantes Robbie (filho da empregada) e Cecilia que são separados por garotinha chamada Briony (que vai retornar escritora). Ele mora na 2ª  Guerra. Briony sente-se culpada., a  narrativa é coisa de mestre.  Faz-nos lembrar a questão de como nos utilizamos da memória sem nos deixar imobilizar por ela.  Ao contrário  da recherche proustiana, às vezes queremos esquecê-lo. Narrar é apenas estruturar lembranças?  As aventuras existências, quando rememoradas. Lembrei-me  de o museu da  inocência, romance de Orhan Pamuk.
            Cuja narrativa mescla exotismo com aspectos sociológicos e tem ambientação  em Istambul, em estilo lento puxando para o clássico.
            No meu artigo eu comentava as nuances de um romance de clima e daqueles outros cuja importância está centrada em reflexões filosóficas, as digressões na narrativa, no romance em questão percebe-se diferenças entre amor e processos e estados existenciais.
            Eu estava com meu notebook e na varanda do Lisboa City,  na suíte do 7º andar, onde visualizava, um ângulo de 180º  um parte interessante de Lisboa, junto à casa de misericórdia.  Há muitos bares e restaurantes. Saía à noite e jovem  instrumentistas  cantavam o vira de maneira melancólico em meio ao fins noturno numa pracinha.
            Que diferença, fazem ao mundo os amores obsessivos?  A garotinha do romance que eu estava analisando  envelhece e vai se aperfeiçoando  como escritora.  Analisa seu amor infantilizado numa atitude de quem aceita pensar  e enfrentar as incertezas da nossa época.  o entrelaçamento de trajetória  que o amor provoca aqui uma reescritura, numa espécie de metaliterariedade dando à intriga o tempero da possível “reparação”,  mas será que isto é vida ou só mesmo ficção? A ficção dá forma e significação à vida real,  tão cheia de ambiguidade, também. Briony acha que destruiu o amor daquele casal, mas será que eles teriam  sido  felizes  se ela não tivesse denunciado Robbie? Afinal   as forças das convenções sociais  podem ser avassaladoras na elite da Inglaterra e em qualquer lugar. Só a ficção oferece final feliz.
            Com referências mais plásticas e cinematográficas do que literárias, certas obras exigem a noção de intertexto mais puxada para a intersemiose (vários sistemas sígnicos) mesmo  sem  grandes armações  lúdicas na  narrativa. Pode  também haver referências interculturas e até intratextualidade (com outras obras do  próprio  autor), afinal escrita  e leitura não cessam  de  lembar ruma da outra,  cabendo ao leitor ter conhecimento literário sólido e boa memória: um  romance traz ideias, possibilidades, através de casos imaginários que, às vezes, guardamos com maior nitidez do que s acontecimentos reais e os levamos mais a sério. Se é o  autor falando pela boca doe personagem, não o sabemos Montaigne, em 1580,  dizia “sou eu mesmo  a matéria do meu livro”.
            As condições ideológicas  e históricas do nosso tempo,  o desenrolar da trama e as reflexões das personagens nos fazem pensar que inocência já não cabe  neste século XXI,  tão desconjuntado, será que  os sujeitos contemporâneos à década de 20 deste século  estão presos a um corpo  que pretende deter a  passagem  do tempo e simularmos amor numa atividade sexual  compulsiva num mundo que os empurros para uma história sem  saída entre a memória e a invenção de uma nova maneira de amar e viver?
            Evitar  os lugares-comuns  e ao mesmo tempo prender a atenção do leitor não é tarefa fácil, quando o que se deve fazer é administrar as surpresas e suspenses.
            Somos prisioneiros da nossa história  cultural cheia de perdas de referências e nostalgia de tempos menos agitados do que o nosso? O que dirão os historiadores de cultura material sobre nossos dias, no futuro? Que usos e gostos são estes nossos, agora? No que diferem tanto do final  do século passado?  O que suscitará  maiores  reflexões sobre o comportamento humano em nossa época, além de comunicação digital e a fragilidade ética, a banalização da violência, a desimportância dos sentimentos,  as novas concepções,   sobre Deus e a justiça nesta época estranha?
            Encontrar  um paratexto que nos sirva como epígrafe  não é tarefa fácil, os jovens de hoje  jamais se apaixonaria se não nos ouvissem falar do amor,  mas que força terá no futuro esse modelo de amor que estamos forjando, hoje?  Parecerá arcaico diante do ceticismo generalizado e rompe os limites do eu?
            Vemos  que a autoficção, a autoexposição  nas redes sociais, o individualismo  forçam  uma  tendência quase umbilical entre a  vida  do autor e a obra numa mitomania literária.
            O  narcisismo e o voyeurismo avançam, como nos já antigos reality  shows e prevemos novos gêneros literários que representem o cuidado de si e da “POLIS”,  mostrar o eu,  que  parecerá  inominável, então ressurgido numa narrativa que  lembrará a vida do autor, como Marguerite Duras o fez  em  “O Amante” (1984),  mesmo que  não se acredite mais na possibilidade de dizer a verdade sobre si mesmo,  sobre a existência, em  autoficção, esse gênero literário que  reúne memórias  e romance, romanesca biografia,  ou ainda registro imediato da experiência, não necessariamente  memorialística,  numa invenção de um eu fantasioso em oposição ao caráter absolutamente  verdadeiro dos fatos, em  verbalização imediata.
            A verdade reinventada através do autor-personagem-narrador (!) reconfigurando sua vida em inversão cronológica, mistura de épocas,  remexendo suas  verdades interiores (experiência mais linguística do que literária?).  aqui o sistema de signos não representariam a “realidade”,  mas fariam  apenas a referem,  demonstração, em  ordem pluridimensional (o real). Assim a ordem unidimensional (a linguagem) numa espécie de recusa que rompe paralelos entre o real  e a linguagem  se chama aí literatura, ainda, mesmo quando o enunciado, na ficção, não tem referencial fixo (eu/outro),  dependendo  do contexto de fala para que seu referente  seja  identificado: eis  a autoficção (considerando  a teoria literária e os perturbados  linguísticos).

Prof. Dr.  MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO, em Londres, exemplifica a bioficção: "Arthur Conan Doyle criou Sherlock Holmes e deu a ele um endereço verdadeiro, em Londres."




            A verdade vire ficção (potencialmente) e esta injunção, é um discurso imaginário onde, às  vezes, o “real”  não pode ser alcançado diretamente, só  se  manifestando no duplo, pois quando narramos nossas vidas  ela se revestem de autoficções,  dando sentido ao que passou, mesmo que seja sentido provisório,  imaginário e quando se trata de literatura a proporção é maior. O pior se dá quando  expomos os outros que conhecemos, mas a literariedade pode salvar a obra,  a livre expressão, o que espraia na boa literatura: a polifonia (versus o discurso monológico),  de um eu não complacente consigo, não vaidoso que se questiona objetivamente.
            O  narrador da bioficção não deve  ser autocentrado,  de preferência seria de bom tom fazer digressões  sobre literatura, artes que conhece e apreciou por exemplo: descrever objetos que o leitor contemporâneo  conhece (de uso globalizado), marcas, ingredientes culinários, pormenores aparentemente, significantes, mas que fazem a diferença,  são os efeitos de real,  em  linguagem  menos  metafórica do que referencial, o que se destaca num  mundo afogado na modernidade  líquida  das imagens virtuais. Se também usa o estranhamento poético, faz bem.  Fazer o leitor sentir-se como se folheasse  um livro de arte tirado da estante acima do sofá, como escreveu  Cecília Meireles: “a vida  só é possível  reinventada”.
            Representar a alma ferida/danificada do nosso tempo. é ao mesmo  tempo comprazimento com o cotidiano, com o doméstico, a festa na prisão do  consumo barato,  da ostentação fake de apego  aos objetos num mundo  produzido em série”.
            Outro fato a se discutir aqui é a ideologia.  Ideologia não é simplesmente conjunto de ideias relativas ao papel do homem no mundo, é também as más intenções embutidas na divulgação destas ideias e a literatura  também é veículo delas.  Marxismo e liberalismo  democrático vão tomando novos rumos e as letras o refletem com seriedade ou em espelho chaplinesco. Há variadas forças (comunismo capitalista chinês, islâmico e por aí vai). Vivemos uma pós-utopia? Podemos encontrar na literatura contemporânea um realismo cínico, uma realidade disfórica? Ou em estado de disforia; que apresenta uma sensação de mal-estar, de desconforto, de ansiedade e/ou de depressão constante; que se opõe à euforia; contrário ao que se relaciona com otimismo, ânimo, sentimento de exaltação e de alegria. quando o desastre já ultrapassou perigo.
            Vemos em alguns casos as denúncias da sociedade  do espetáculo, do mercado globalizado e do absurdo que nos rodeia numa mídia que usa frases anódinas, medíocres, às vezes.
            Eu sempre achei que  o que o escritor  tem a dizer é uma importante do que sua forma escrita. A  temática e o estilo que os leitores atuais preferem seria ainda uma incógnita?  O que é uma análise lúcida numa obra literária,  hoje?  Provocaria um arrepio de liberdade neste universo pós-tudo onde existimos? Ofereceria a literatura um lugar imaginário onde,  a vida vale a pena ser vivida, isto é, menos inconfortável mais fraternal  num futuro pós-exótico, erótico, familiar, sacro,  espécie de realismo socialista mágico (no sentido alegórico político) e que não seja literatura de entretenimento algo que nos permite o reencontro com o humano?
            O angolano Gonçalo Manuel de Albuquerque Tavares e seus “livros pretos”, uma teatralogia (“O Reino”), o 1º é  “Um homem:  Klaus Keump” (sobre uma cidade  invadida por tropas inimigas).  Há algo  nele que nos lembra a tese de Hannah  Arendt: a banalização do mal,  que expõe  o modo metódico como friamente  a mídia   manipula o horror,  mas seria  imprescindível a memória do mal para evitar sua repetição?  Contra isso restam a razão e a força (ou a favor disto) dos discursos morais e políticos?  Estaríamos vivendo o prelúdio  de uma grande tragédia que se anuncia pós-utópico, distópico? Quando tomaremos uma atitude séria em relação às linguagens estereotipadas na mídia e que as pessoas repetem. Faz-se ainda necessário que as classifiquemos, pois só assim, deslocando-as,  classificando-as, poderemos  pensar numa possível revolução. As figuras são lidas por um lado do cérebro e as palavras por outra?).
            É bom relembrar: a linguagem literária (verbal) não pode representar exatamente o real, só referir-se a ele (há literatura o verismo  é sempre um efeito do real).
            Vivemos sob a égide da homofobia classicista e racista que acha que os índios estão extintos, a arte é crime ler um romance é perda de tempo, eis nossa era cravada por hiperinformações negativas que a maior parte da população introjeta, suando ou se agasalhando num círculo  vicioso meio sem saída,  calada, pois só lhe restaria fazer o pior possível (esculhambar com tudo isso?)
            Nesta estereotipia caótica de discursos na qual estamos fatalmente mergulhados pululam informações superficiais como vírus que nos atacam?  Literatura não é resposta:  é pergunta.
            Sob a vigilância do desastre:
            O que a literatura  pode fazer é estimular a percepção do real. isto  pode se dar com escrita elíptica,  memórias, fragmentos de reflexão, história individual  destroçada pela “história” (numa ficção documental) ou de modo tradicional,  não importam  tanto os deslocamentos  estruturais ou temáticas, a literatura conduz  o leitor à reflexão.  Vamos lembrar aqui o livro do desassossego,  escrito como peças de um móbil,  por Fernando Pessoa. A  desconfiança de hoje do sujeito como eu
            Destaco também o caráter transgenérico de escritores que são também artistas plásticos,  por exemplo. O que é a linguagem, agora: língua crescida e projetada que só o sufocamento pode  produzir?  Desmoronam  as últimas  barreiras do ser “si mesmo”?  toda memória parece insatisfatória quando as palavras parecem apenas cascas das coisas que passaram, matéria e linguagem, células de inutilidade ou de utilidade incompreensível na fração circular de cada segundo. Caberia ao autor, agora, enumerar restos em meio às ruínas culturais das literaturas  engajadas, com mensagens, em  meio ao atual excesso de informações, consumo,  imagens, tecnologia fantasmagórica ininterrupta deste nexo eterno instante – já  atento para deter qualquer epifania?  Resta-nos o trabalho de linguagem  de outro tipo, dizer o que ainda não foi dito, dizer menos sobre nossos luto e revolta,  neste monte de inutilidades que temos que limpar,  no papel ou no  aparelho digital, saber que até isso é uma dízima, neste hipernomeado e hipersaturado mundo, ao mesmo tempo trágico, grave e engraçado.
            Fazer   literatura é acreditar no futuro, haverá um leitor (que pode ser da  elite ou do povo). Os leitores de hoje tornam atuais velhos clássicos (obra literária concretiza-se na leitura),  por isso são “atuais”). O livro hipermoderno (muito além do “pós-moderno”) enfrentará mau tempo? Uma era violenta onde a tecnologia auxiliará o totalitarismo e o desamor geando medo e incerteza? Será o acaso  de futuro (que  se transforma em passado  cada vez mais rapidamente)?  O hibridismo vai abolir a separação  dos gêneros literários?  Haverá mais livros calcados em obras anteriores (intertextualidade) em releitura, reescrita deste mundo  cada vez mais fragmentado e disperso na tentativa  de se ver na  sua totalidade.  Será que estamos na possibilidade de um novo tipo de fantasioso “realismo”,dessa vez com cara de jornalismo informativo (com marcas de “neutralidade”), voltando  a contar histórias num estilo comunicativo sem experimentalismos  que dificultem a leitura, a legibilidade?  Uma literatura  com a função da linguagem  referencial em destaque (também  a metalinguística e a emotiva) é o que pressentimos pelo  que é lançado no mercado, agora, sem utopias teleológicas. São textos do Kairós, do hoje, o que acontece na sociedade agora, como faz Patti Smith, a poeta roqueira que representa na Suécia, cerimônias  do Nobel,  Bob Dylan,  prêmio Nobel de literatura (pela 1ª  vez dado a um música).
Patricia Lee Smith mais conhecida pelo nome artístico Patti Smith, é uma poetisa, cantora, fotógrafa, escritora, compositora e musicista norte-americana. Ela tornou-se proeminente durante o movimento punk com seu álbum de estréia, Horses em 1975.

            Em meio a mutações temáticas, a literatura segue, longe dos artigos manifestos lançando novas tendências, temas aí a reinvenção.
            É engajada?  Não são as causas defendidas um texto que o fazem literário e sim sua potência de ser exato ao falar de algo que estava no mundo e o leitor não percebia e o presente através daquela linguagem que fala  do que não conseguimos  definir facilmente sem esta linguagem artística, que impulsiona nossa  autoconhecimento, nos fez refletir, seja uma ficção de mil páginas ou um poema com poucos versos.
            Gostaria de terminar citando na íntegra o discurso que Bob Dylan enviou ou à Academia Sueca seu discurso de agradecimento pelo Nobel de Literatura, mas pediu à cantora Patti Smith, que fez uma apresentação emocionada da canção A Hard Rain's A-Gonna Fall, lançada em 1963, que o representasse:
"Boa noite a todo mundo. Eu estendo minhas mais calorosas saudações aos membros da Academia Sueca e a todos os outros convidados e convidadas de distinção presentes na noite de hoje. Sinto muito não poder estar pessoalmente com vocês, mas, por favor, saibam que absolutamente estou com vocês em espírito, e que fico honrado de receber um prêmio de tamanho prestígio. Receber o Prêmio Nobel de Literatura é algo que eu nunca teria podido imaginar, nem prever. Desde muito jovem me é familiar a experiência de ler e absorver as obras daqueles que foram considerados à altura desta distinção: Kipling, Shaw, Thomas Mann, Pearl Buck, Albert Camus, Hemingway. Sempre me causaram profunda impressão esses gigantes da literatura cuja obra é tema de aulas, fica abrigada em bibliotecas de todo o mundo e é mencionada com palavras de reverência. O fato de eu agora me juntar aos nomes dessa lista me deixa definitivamente sem palavras. Não sei se esses homens e mulheres um dia pensaram na honra do Nobel como algo que pudesse lhes caber, mas imagino que qualquer um que escreva um livro, ou um poema, ou uma peça de teatro em qualquer lugar do mundo pode acalantar esse sonho secreto, bem no fundo. Provavelmente enterrado tão fundo que eles nem sabem que está ali.
Se um dia alguém me dissesse que eu tinha a mais remota chance de ganhar o Prêmio Nobel, eu seria obrigado a pensar que teria mais ou menos a mesma chance de pisar na lua. A bem da verdade, durante o ano em que eu nasci e por alguns anos ainda não houve ninguém no mundo que fosse considerado digno de receber este Prêmio Nobel. Então, reconheço que estou de fato na mais rara das companhias, para dizer o mínimo.
Eu estava em turnê quando recebi essa notícia surpreendente, e levei mais do que uns poucos minutos para assimilar adequadamente a ideia. Comecei a pensar em William Shakespeare, a grande figura literária. Imagino que ele se considerasse um dramaturgo. A ideia de que estivesse escrevendo literatura não podia ter lhe passado pela cabeça. Suas palavras eram escritas para o palco. Destinadas a ser pronunciadas, e não lidas. Quando estava escrevendo Hamlet, tenho certeza que ele estava pensando em muitas coisas diferentes: “Quem são os atores certos para esses papéis?” “Como isso aqui deveria ser encenado?” “Será que é a melhor ideia ambientar a peça na Dinamarca?” Sua visão criativa e suas ambições sem sombra de dúvida estavam no primeiro plano em sua mente, mas havia também questões mais prosaicas que ele devia considerar e resolver. “O financiamento está encaminhado?” “Vai haver poltronas boas para todos os mecenas?” “Onde é que eu vou arranjar uma caveira humana?” Eu seria capaz de apostar que a questão mais afastada da mente de Shakespeare era “Isso é literatura?”.
Quando comecei a escrever canções, na minha adolescência, e mesmo quando comecei a ter algum renome por causa da minha capacidade, minhas aspirações para essas canções só iam até aí. Eu achava que elas podiam ser ouvidas em cafés ou em bares, talvez em lugares como o Carnegie Hall, o London Palladium. Se estivesse sonhando bem alto, talvez pudesse imaginar que ia conseguir gravar um disco e aí ouvir minhas músicas no rádio. Era esse o grande prêmio que eu tinha mente. Gravar discos e ouvir suas próprias músicas no rádio queria dizer que você estava chegando a um grande público e que não precisava parar de fazer o que tinha decidido fazer.
Bom, eu venho fazendo o que decidi fazer já há bastante tempo. Gravei dezenas de discos e fiz milhares de shows no mundo todo. Mas as minhas canções é que são o centro vital de quase tudo que eu faço. Parece que elas encontraram um lugar na vida de muita gente de muitas culturas diferentes e sou grato por isso.
Mas tem uma coisa que eu preciso dizer. Como artista eu já toquei para 50.000 pessoas e já toquei para 50 pessoas e posso dizer a vocês que é mais difícil tocar para 50. Cinquenta mil pessoas têm uma só persona, o que não acontece com 50. Cada pessoa tem uma identidade separada, individual, um mundo todo seu. Elas podem perceber tudo com mais clareza. Sua honestidade e como ela se relaciona com a extensão do seu talento entram em julgamento. O fato de que o comitê do Nobel é tão pequeno não é algo que tenha passado despercebido para mim.
Mas, como Shakespeare, eu normalmente estou ocupado demais lidando com meus projetos criativos e tratando de todos os aspectos das questões prosaicas da vida. “Quem são os melhores músicos para essas canções?” “Será que estou gravando no estúdio certo?” “Será que essa música está no tom certo?” Certas coisas não mudam nunca, nem em 400 anos.
Nem uma única vez eu tive tempo de me perguntar, “Será que as minhas canções são literatura?”.
Então, agradeço realmente à Academia Sueca, tanto por ter parado para considerar precisamente essa questão quanto por oferecer, afinal, uma resposta tão maravilhosa.
Tudo de bom a cada um de vocês" (Bob Dylan)




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