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quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Luzilá Gonçalves Ferreira: Muito Além do Corpo, Voltar a Palermo e Os Rios Turvos Pelo Prof. Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto Professor da UNEAL (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE ALAGOAS)


Análise de livros da escritora pernambucana (Garanhuns/ Recife) Luzilá Gonçalves Ferreira, uma apaixonada pelas Letras
Muito Além do Corpo, Voltar a Palermo e Os Rios Turvos
                                   Pelo Prof. Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto
Professor da UNEAL (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE ALAGOAS)



A leitura de “Muito além do corpo” (1987) e “Rios turvos” (1994), romances da pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira, é um deleite. A autora vem lutando pela divulgação das letras femininas, com um afã invejável, vai compondo sua obra, lançou em 2018 seu último romance sobre a fundadora da cidade de Garanhuns. Ela faz parte da Academia Pernambucana de Letras. Ela é autora de mais dois romances: “A garça mal ferida” (93) e “Voltar a Palermo”, este último, lançado em 2002, tem como eixo narrativo a história de Maria, uma brasileira cinquentona, que volta à Argentina, onde havia morado na época da ditadura militar. Na cabeça “recuerdos” sobre um motorista de táxi (Nino, sobre quem sabia quase nada fora uma relação-relâmpago).

Luzilá explica que se inspirou levemente no filho de outro taxista, seu freguês. Que por um dia substituiu o pai, lá em Buenos Aires onde ela morava. E também cavou em si própria e daí retirou a personagem professora, que, metamorfoseada numa pessoa sedenta de amor e movidades que busca saciar-se através de uma velha fantasia amorosa.

O texto de Luzilá, como sempre, é extremamente poético. Ela tem uma intimidade total com a criação literária e uma visão particular sobre o “feitiço” das letras.

Do mesmo modo que em “Muito além do corpo”, romance que ganhou o prêmio Nestlé em 88, temos uma personagem que ao questionar-se, reencontra-se numa nova forma de amar, que faz com que ela reflita sobre os intrincados caminhos da paixão.

Se em “Rios turvos” ela revirou a vida de Bento Teixeira, cristão-novo (autor de “Prosopopéia”, poema que marcou o início do Barroco na literatura nacional) e de sua mulher (um caso que terminou em tragédia), e em “Humana, demasiado humana” ela destrinchou/forjou a alma de Lou Andréas-Salomé (que foi amante de Rilke e Nietzsche) em “Voltar a Palermo” ela mostra uma fêmea em busca de si mesma e de um tempo que talvez seja reencontrado.

Há passagens que nos lembram Mauro Mota: “Abri a janela e de súbito Buenos Aires inteira foi minha, sua paisagem cinza e seus cheiros me penetraram, como nos penetra o cheiro da pessoa amada. Era uma mistura de odores vários, gasolina e óleo queimado, fumaça e poeira, mas igualmente perfume de flor, beleza a se esparramar ao longo da nueve de julho, que nome tinham aquelas árvores? Um dia eu soubera, quando ainda não havia deixado Buenos Aires e a cidade era como uma extensão do meu corpo”.


LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA: MUITO ALÉM DO CORPO”


“Muito além do corpo”, Romance da Pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira(prêmio Nestlé de Literatura Brasileira – 3º lugar, 1988, 79 páginas, editora: Scipione) é repleto de inventividade, dando menos valor ao ambiente e aos costumes, a autora aprofunda-se na dimensão existencial das personagens, no caráter psicológico e social. O livro se divide em quatro partes: Tu, Eu, Ele e Tu (Ele).

Há que se considerar também a poeticidade enxuta, uma “interferência lírica”, como ressaltou o mestre Adonias Filho, que “assegura por sua vez o acabamento ficcional em todas as suas exigências literárias” .

Luzilá vai “muito além do corpo”, até os limites da imaginação, do intimismo, buscar o reconhecimento do ser humano, como o francês Proust, em outra perspectiva, tentou no seu “Em busca do tempo perdido”.

É o horror e a surpresa refrescante de uma intelectual vendo chegar, o analisado previamente (idealizado), amor.

O romance começa com a narradora (1ª pessoa) descobrindo a ação do tempo no corpo do seu amado, “um pouco de ventre que me comoveu (...) o vinco na testa (...) então me fazia pequena e redonda, e o frio e a tristeza se dissolviam (...) a respiração dele me aquecia a nuca e o coração (...) eu amo este corpo, eu amo este homem (...) havia algo além daquele corpo, que o ultrapassava e lhe dava um sentido que tumesmo ignoravas. E eu: apenas pressentia”.

Quem é esse “tu”, a que a narradora se refere? (p. 8) trata-se de uma referência a um terceiro, que pouco a pouco vai se revelando.

“Algo mais para que o contato com o corpo de um homem provocasse em mim aquela deliciosa desordem de vísceras e alma, e cada vez que tentara amar só de corpo, sempre restara o vazio no após (...) à sensação de solidão se mesclava uma leve náusea: que fazia junto de mim aquele corpo insuficiente?” (p. 8) “contigo nunca fora assim” (novamente a narradora aponta para um terceiro vértice).

“Homem e mulher, e cada um se espelhava no outro semelhante, cada corpo remetendo ao outro, companheiro”. (p. 9). “Um tácito acordo de espírito (...) macaíba em flor (...) terra molhada”.

No Capítulo II, a narradora apresenta sutilmente, e de modo sempre “enxuto”, seu amante, evitando uma noção demasiado romântica da vida. E temendo a felicidade como algo “pequeno-burguês”. Luzilá parece querer agradar ao júri que lhe deu o 3º lugar no concurso (Adonias Filho, Eduardo Portela, José J. Vieira, J. Garbublio e Álvaro Gomes), mas ela se supera na arte de escrever e resolve “começar do começo cronológico” (p. 13).

A narradora usa sempre o “tu”, em vez de você e salpica o texto com frases como “amar é sempre uma tomada de posição contra” (p. 15) ou “aquela parte de mim que por ti ardia” e “éramos seres de exceção” (p. 16). E finalmente o nome do amado: “Mário (...) não estou sabendo resolver tua ausência dentro de mim”. Um pouco intelectual não? E um toque de Clarice Lispector também permeia todo o texto como uma sombra: “tudo era pesado e misterioso (...) então não mais eras Tu e sim um Ele escorregadio” (p. 22).

Há um individualismo pressionando o relato amoroso: “Preciso me encontrar a sós comigo mesmo”, e o discurso do outro: “que tua figura não se interponha entre mim e o que posso viver às vezes”.

Então a narradora fala da paralisia do seu amado.

A 2ª parte do livro (“EU”) dialoga com Cecília Meireles: “também não sei em que espelho ficou perdida minha outra face (...) quem é essa que assim me fita?”, a narradora atribui ao astigmatismo não ter se visto assim antes (humor). “A gente deveria possuir vários nomes”, nova referência a poetas: Fernando Pessoa, Mário de Andrade: “Eu sou trezentos”. Há também existencialismo: “sou tantas (...) neste corpo que carrego há mais de quarenta anos”. E o toque feminino: “Mulher é coisa complexa (...) bicho monogâmico (...) agora seu maridinho chegou, meu amor” (p. 29). E retoma: “Quarenta anos foram precisos para chegar a isto, e, toneladas de alimento e amor e tanta literatura”, aqui uma nota autobiográfica: a menina-moça Luzilá funde-se com a quarentona narradora na paixão pelos livros: “a fala silenciosa dos que haviam partido tantos anos antes” (p. 31). E trabalha a metalinguagem, questionando-se sobre “o fazer” do livro. (p. 31).

Outro poeta é citado nesta 2ª parte: Drummond (p. 32): “Amor é privilégio dos maduros” e Romain Roland: “o cúmulo da dor confina com a libertação” (p.33)
Luzilá é poética. A narradora rememora a infância: episódio da declaração de guerra (Brasil x Alemanha) e medo do mundo acabar: “sentada na escuridão, eu chorei pelos lírios que nunca floresceriam (...) naquela noite eu aprendi a primeira lição sobre o limitado poder do amor” (p. 37)

Há também um toque de James Joyce, num discurso direto/indireto onde o fluxo de consciência transcorre como “as frutas que boiavam na água, caindo ploc ploc ploc” (p. 38)

E veio o episódio do bodinho (nome: em flor, enflor), que a narradora ganhou quando criança, e que a machucou quando cresceu, “amor às vezes maltrata” e que foi vendido para abate. “Todo o mundo vai ter que morrer um dia. E de repente o mundo todo virou uma coisa triste, uma prisão e ninguém podia sair de dentro dele” (p. 40)
Há uma certa confusão sobre “usina” (p. 40) e “engenho” (p. 43) na narrativa que mergulha de repente nas histórias paralelas ao núcleo central do romance. “Causos” da juventude da narradora nos típicos lugares do interior de Pernambuco.
Chegamos à última parte do livro: “Ele”, que começa assim: “Dia de São João”, íamos nos encontrar à noite (...) olharíamos balões no céu: (...) copinhos de canjica (...) ramos de ingá (...) lembrava uma paisagem de Franz Post,  o céu estava azul. Fizeram fogueira”. (p. 53)

Há metáforas como “um silêncio equívoco esticava os fios do telefone, feito açúcar de alfenim”, que a narradora usa para introduzir o tema da separação do amado, naquela mesma noite de São João em que fora ao cinema e conhecera o outro: “em silêncio nos amamos por séculos (...) estranha foi a volta para ti, depois daquele encontro com ele” (p. 57) e a narradora conta ao amado como é bonito seu novo amor: “deve ser, teu rosto resplende”, responde ele (p. 59)

Vem a ruptura, que Luzilá trata poeticamente.

“O corpo é metáfora de nós, sinal evidente de algo mais profundo (...) meu existir efêmero e eterno” (p. 60)

E a narradora também é brega: “Te amei como ninguém te amou querida, de ti o menor gestor adorei” (citando “perfídia”) ao descrever o choque da separação e o bilhete, “não me procura, por favor, teu”, que o outro deixara. E vem um texto muito bonito sobre os amantes verdadeiros que se separam: “partiste e ficou em mim aquela parte de ti que só a mim pertencia e que está colada em mim, como uma segunda pele. Como fiquei em ti, e disso o sabias: que te indo, eu te acompanharia, menina acocorada e quietinha em algum lugar de ti, a te espiar, a te amar de longe, a te dar a certeza da impossível solidão, eu em ti, eu do teu corpo” (p. 61)

Luzilá repete as mesmas metáforas (p. 29 e 62): “transmudados em sombras esfumaçadas...”

A narradora se entrega a um jovem vinte anos mais jovem e ele diz: “amo suas rugas e seu cansaço”. E ela pensava: “envergonhava-me quase, de não poder lhe ofertar a pele de pêssego (...) seus dedos refaziam o caminho que o tempo abrira no canto dos meus olhos, no vinco da testa, ao lado dos meus lábios, as marcas de tanto sorriso, tanta dor, tanta vida” (p. 64)

Há um “deslumbramento” subjacente: “eu voltava aos quinze anos e ele era o meu primeiro amor (...) o nosso amor era o perfume do amor”.

Luzilá é sereia e nos encanta com sua poesia.

Há também um toque daqueles romances típicos dos anos 70: um caleidoscópio psicodélico que numa página junta Freud (“machista”), Woody Allen (“genial”), Bethânia (um “sarro”), uma calabreza e mais dois chopinhos (p. 68)

Sobre o seu “segundo homem” no livro, a narradora compara: “Ele quase com a duração de um relâmpago, passou em minha vida, deixando-me encandeada” (p. 69), ou: “amor meteoro” (p. 70)

E o corpo termina só, “a inenarrável solidão dos seres sobre a terra” (p. 71). E “tu sob a terra, onde já não chegam cores, nem perfumes nem sons (p. 72)

O “tu” parece ser tanto o amante, quando o leitor de Luzilá: “Eu te amo, tu do outro lado” (p. 73)

“Tua mão buscou a minha. Aproximei minha face de ti,

– Queria teu perdão, falaste.

– Te amo, respondi” (p. 79).

Luzilá não precisa turvar águas para parecer profunda. Ela tem autenticidade verbal. Seu romance é como a ponta de um iceberg: faz-nos supor o que não se escreveu. O familiar nela torna-se fonte de estranhamento. Joga com o leitor, surpreende-o com pequenas armadilhas, busca sua cumplicidade ao mesmo tempo oferece fruição estética. Com ela mergulhamos num universo feminino poético essencial fascinante, insinuante, compacto, sugestivo.

Em “Muito além do corpo”, ela tece e destece, qual Penélope, as tramas de dois amores entrecruzados, às vezes meio neobarroca, na sua paixão por Bach, nas comparações entre as fontes da vida e a morte (p. 60) , no êxtase.

Criou um romance (novela?) moderno, cheio de impulso vital. Tentativa de conjurar passado e presente num texto sintético e denso, imagem a imagem, balançando entre o corpo e o espírito.
Luzilá, pernambucana que soube buscar no silêncio da palavra a força da linguagem.


OS RIOS TURVOS

“Do amor não vi senão breves enganos...” formadores dos Rios Turvos da minha vida.

“Um único amor amara ... vinte anos, dos trinta e sete de sua vida e só preocupações, invejas, sobressaltos. Um ciúme tão grande que melhor seria se não tivesse amado, mas viver sem amor ninguém pode, “é doce o mal que nos causa uma mulher.”

O romance Os Rios Turvos, narrado em 3a pessoa, lembra a função documental que teve a arte. Trata-se da vida do autor do poema épico Prosopopéia: O português Bento Teixeira, portanto uma biografia (do nosso primeiro poeta) que se mistura à ficção. O tema da obra nada mais é do que a trajetória amorosa do português Bento Teixeiracom a brasileira natural do Espírito Santo Filipa Raposa, a grande paixão de sua vida e a responsável por seu destino trágico: a própria mulher o denuncia ao Tribunal do Santo Ofício acusando-o de judeu e mau cristão e ainda instiga outras pessoas a fazerem. Vai trair o marido por vária vezes, obrigando-o a morar em lugares diferentes da Paranambuco (Pernambuco) do início da colonização.

O apetite sexual da esposa era sabido de todos. Desde adolescente tinha uma malícia natural: Seduzia – com seus olhos belos e verdes até os padres nos confessionários. Bento via-se obrigado a constantes mudanças: Olinda, Igarassu, nas terras de João Paes no Cabo, freguesia de Santo Antônio. Neste último lugar, havia pouquíssimos homens, mas Filipa consegue trair o marido com o frei Duarte Pereira, vigário da freguesia de Santo Agostinho e único homem do lugar.

Ao chegar ao engenho de João Paes no Cabo, pensou que ia controlar a mulher, mas esta era mais esperta e dormira com o padre Duarte muitas vezes (mesmo já mãe de dois filhos) sem que o marido desconfiasse.

Uma das situações mais humilhantes para Bento foi quando a esposa o traiu com um mulato, crime repugnante na época.

Bento Teixeira era filho de pais humildes e cristãos-novos. Seria, portanto, um dos filhos desgarrados de David cuja família abandonou Portugal por conta da perseguição a judeus. Apesar da pobreza dos pais, Bento ao chegar ao Brasil, na Vila de Salvador na Bahia, foi ajudado pelo bispo Don Antônio Barreiras que lhe ensinou latim e o iniciou nas artes. Leu os gregos tais como Ovídio, Aristóteles. Conseguiu estudar no colégio da Companhia de Jesus e fazer algumas amizades que lhe foram úteis mais tarde como testemunhas contra as pressões da Santa Inquisição.

Sem pensar que era um gesto herético Bento traduziu, a pedido do sobrinho Antônio Teixeira, do latim para o português o livro DEUTERONÔMIO, livro da Torá, que Javeh ditara a Moisés – conforme afirmava sua mãe cristã-nova. Porém esta missão caberia apenas à Igreja. Leu livros que figuravam no Index e acabou, pelos colegas, sendo denunciado ao visitador, mas não foi logo preso. Tornou-se alvo predileto da Inquisição e de alguns padres por ele criticado.

Bento esteve um período no mosteiro de São Bento, para onde chega com carta de recomendação.

Ensina latim, aritmética e poesia para sobreviver. Revela-se fiel aos princípios da igreja para livrar-se da Inquisição, mas não deixa de criticá-la: “(...) almeja escravos para a lavoura.” p. 49 este seria o propósito da Igreja, pensava Bento.

Embora não fosse exímio escritor (às vezes criticado pela própria Filipa), Bento fazia sonetos e trovas. Escreveu um poema épico – PROSOPOPÉIA – à semelhança de Camões homenageando o governador da capitania de Pernambuco, Jerônimo de Albuquerque. Seus escritos, no entanto, não tinham a espontaneidade dos versos de Filipa.

A esposa gostava de ler à noite. Ficava com o marido. Liam Gil Vicente, Salomão, Camões, Ovídio, Catulo. Para a esposa, Bento mostrara seus escritos e a ela dizia de sua dificuldade para escrever, fato que não ocorria com Filipa. Às vezes a dificuldade de Bento era usada por Filipa para xingá-lo, outras vezes ela o ajudava.
Apesar de tudo que fizera Filipa Raposa (as traições constantes que levou Bento a assassiná-la) Bento – após a morte da esposa – sentia falta dela, afinal “era uma parte dele que morria. Ele que não soubera o que era amor. Não amou o pai – homem rude, astero, exigente; a mãe que o obrigou a ser judeu; nem mesmo aos dois filhos, cópias de Filipa, “a raposa atenuada em felinos.” Tudo seria diferente se ele não fosse um Pinto, um cristão-novo e ela não fosse uma Raposa, uma cristã-velha? Quem saberia dizer?

Quando matou Filipa, Bento confiou seus filhos a João Paes – dono das terras onde morou em Santo Agostinho. Escreve-lhe e lhe explica sobre tudo que fizera por causa da esposa. Foge para Olinda – o mosteiro de São Bento, onde ficaria (até que a Inquisição o pegasse) escondido.

Antes de morrer, ainda agonizando ao receber o golpe de faca de Bento, Filipa pediu que o marido pegasse em uma gaveta do quarto um maço de cartas – poemas que ela escrevera (ou os amantes escreveram para ela?). Durante a fuga para Olinda Bento os perde. Lê apenas alguns poemas, quase nada.

No mosteiro de São Bento, o poeta ganhou a inimizade de Frei Damião por desafiar o religioso nos seus argumentos espirituais e por denunciá-lo aos outros padres dizendo que o referido frei freqüentava a casa de mulheres casadas como Isabel Raposa e Ana Lins. Por tal feito compra um inimigo declarado.

Em 12 de agosto de 1595, recebeu ordem de prisão. Começam os julgamentos e Bento prepara documentos para sua defesa.

Em 22 de outubro de 1595, é mandado a Lisboa como acusado do Santo Ofício por praticar heresias, ter o sangue daqueles que mataram a Cristo.

Ao redigir os documentos, para se defender das acusações, exibe seu conhecimento. Usa citações eruditas, textos latinos. Quando interrogado pelos inquisidores, sempre se diz inocente, mas acaba cedendo às imposições do tribunal: reconhece sua culpa. Renega e abjura de suas ações e crenças visando à liberdade que não vem e Lisboa torna-se seu grande cárcere. Em julho de 1600 morre e um ano depois a Santa Inquisição concedeu licença para que se publicasse, em Lisboa, a primeira edição de Prosopopéia.

Bento morreu pensando na sua Filipa de olhos verdes e cabelo de fogo. A Filipa adolescente que lia com ele Ovídio, Gil Vicente, os poemas de amor de Salomão:

“Beije-me ele com os beijos de sua boca porque é melhor o seu amor do que a própria vida. Vive sem amor! se um deus me falasse assim, eu recusaria, tanto é doce o mal que nos causa uma mulher.” – Razão da sua vida e da sua morte. – E morre sorrindo como um pequeno judeu após ter feito sua oração. Morreu pensando no que poderia ter sido e não foi.

Observamos na obra Os Rios Turvos os intertextos que enfatizam sobretudo a temática do amor: Ovídio aparece tantas vezes como epígrafes dos capítulos, o Ovídio degustado por Bento e Filipa em seus serões; Camões de Sôbolos Rios, o Camões dos breves enganos: “Do amor não vi senão breves enganos”; o intertexto bíblico, na história dos judeus, na comparação de Bento a Jonas ‘a caminho de Nínive, o grande mar’ (p. 195), nas citações latinas; nos poemas encomiásticos (escritos por Bento) onde confessava o mistério de um Pai, um Filho e um Espírito Santo e por fim na Prosopopéia aquele longo poema que escrevera em Paranambuco, Pernambuco e os versos à maneira de Camões que lhe vinham sempre à mente:

“Cantem, poetas, o Poder Romano
Submetendo Nações ao jogo duro...” (p. 209)

Filipa Raposa, cristã-velha e Bento Teixeira, cristão-novo dois seres tão diferentes, unidos pelas águas dos Rios Turvos do amor, um amor que nem eles conseguiram perceber na sua inteireza ou até mesmo nas suas contradições.

Destacamos ainda nas brigas de Filipa com o marido (quando ela ao ler os textos dele percebia versos inteiros de outros poetas) uma preocupação com o fazer literário, os caminhos complicados da criação poética percebidos pelos protagonistas. Bento chega a discutir sobre a habilidade de Gil Vicente para compor os versos de Auto da Alma:

“Alma humana, formada / de nenhuma cousa feita.” (p. 23) “Eu e tu, Filipa para dizermos estas cousas, utilizamos todas estas frases (...) Gil Vicente o diz em sete vocábulos.” (p. 23)

Um relato dramático para falar da vida, do amor, do desejo, da inveja, das contradições, do poder da igreja, da morte, enfim, coisas da vida de um cristão-novo do século XVI brasileiro e sua mulher uma cristã-velha. Uma recriação que não esconde o aspecto social do primeiro século da formação do nosso país.


terça-feira, 14 de agosto de 2018

Vida de José Pimentel

Como tudo muda. Falei, ontem à noite,com a produtora Lilian Pimentel e transmiti minha grande admiração pelo trabalho de José Pimentel, artista que acompanho desde os anos 80. Hoje ele apertou a mão dela com força e carinho, ela (filha dele) parecia confiante nos cuidados com um dos nossos mais queridos artistas, que se encontra internado, no Recife,  no Hospital Esperança.
Nosso eterno intérprete de Cristo merece nosso carinho todo especial.
Força!

Sempre pronto para pular!

Na vida devemos não temer desafios e enfrentar as mais difíceis decisões, sabendo que para ganhar algo é preciso abrir mão de outras coisas. O livre arbítrio e a vontade de avançar deve ser um prazer.
Vida que segue, vamos com força!
Bom dia!

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Moisés Monteiro de Melo Neto e Rosália Calsavara preparam-se para o lançamento da peça deles "Sonho de Primavera", em Braille




Moisés Monteiro de Melo Neto e Rosália Calsavara, hoje pela manhã: preparando o lançamento da nossa peça Sonho de Primavera, em Braille. Com o presidente José Diniz, o vice-presidente DA ASSOCIAÇÃO DE CEGOS em Pernambuco, Antonio Muniz. Edgar Oliveira (1º à direita) fez a transcrição.

Apresentação da montagem no Recife (PE) da peça Ubu Rei, ontem, com André Alencar no papel-título: Teatro Marco Camarotti., Recife (PE)

A discussão dos sistemas de poderes e suas engrenagens também norteia a peça Ubu Rei ou A Revolta dos Coadjuvantes, porém com um viés mais sarcástico e iconoclasta. A peça, que tem direção de Marianne Consentino, é apresentada por participantes do Curso de Interpretação para Teatro do Sesc Santo Amaro todos os sábados e domingos de agosto, às 19h e 17h, respectivamente, no Teatro Marco Camarotti.

Moisés Monteiro de Melo Neto no final da apresentação da montagem no Recife (PE) da peça Ubu Rei, ontem, com André Alencar (muito bem no papel-título); dentre outros presentes estavam a produtora Mísia Coutinho.O CIT Sesc está de parabéns. Teatro Marco Camarotti. André interpreta Jesus, na Paixão dos Guararapes. Interpretando Pilatos, já contracenou com ele, na Paixão dos Guararapes, e afirma "Profissionalíssimo, já, venceu e ganhou o papel de Jesus através de um concurso em um programa de TV"



Moisés Monteiro de Melo Neto assistiu à montagem do Grupo Ornitorrinco, em 1985, no Teatro Ruth Escobar. Apresentado pela primeira vez em 1896 e retirado de cena quase que imediatamente, dada a rejeição provocada por supostamente ter ultrapassado limites do decoro e da razoabilidade por deixar descair-se sobre o grotesco. O texto foi reescrito pelo autor e só atingiu a notoriedade após sua (precoce) morte, pelos níveis de absurdo e escárnio que atinge, “corrompendo” as estruturas dramatúrgicas então vigentes. 

Com toques de surrealismo, a obra é ambientada em um país marcado pela corrupção chamado Alíquota. No centro da trama, um covarde com o ego inflado, influenciado por uma mulher despótica, arma um golpe a partir do assassinato do rei. A dramaturgia é apoiada no texto de Alfred Jarry com intervenções de Renata Pimentel.

“Ubu Rei” é modelado nas linhas conceituais de “Macbeth”, parodiando-lhe as ações impulsionadas na inspiração de sua mulher, deixando o protagonista tentar-se pela ambição ao trono. Durante uma parada militar mata, com seus conjurados, o soberano e seus filhos, mas o príncipe herdeiro e sua mãe se refugiam em uma caverna. Ubu se torna o cruel governante da Polônia, transformando-se num emblema das obras de Jarry, caricatural, ostentoso e egocêntrico. Longe de uma tragédia, situa-se como uma grande farsa e como tal, leva ao riso, um riso devastador e mesmo desrespeitoso. Essa é sua função! Ridicularizar o status quo com personagens absolutamente modernos e desprovidos de um maior psicologismo(como bem aponta Sábato Magaldi, uma herança ficcional do século XIX) que se movem pelo egoísmo, ganância, estupidez e covardia, remexendo na podridão interior do ser humano que chafurda na lama da ambição em sua  busca  infindável da autossatisfação.

Ficha técnica:
Coordenação Geral: Ailma Andrade
Coordenação Pedagógica: Rodrigo Cunha
Direção: Marianne Consentino
Assistente de Direção: Carlos Lima
Equipe Pedagógica: Anamaria Sobral, Anastácia Rodrigues, Marianne Consentino, Renata Pimentel, Rodrigo Cunha e Sônia Guimarães
Produção: Carlos Lima
Elenco: Amanda Pegado, André Alencar, Andrezza Oliveira, Bárbara Souza, Bruna Justino, Brunna Martins, Camila Mendes, César Pimentel, Fernando Rybka, José Miranda, Larissa dos Anjos, Leonardo Alves, Luiz Diego Garcia, Marília Linhares, Marina Fenício e Pedro Toscano
Direção de Arte: Pedro Toscano
Assistentes de Direção de Arte: Fernando Rybka, Joana Liberal e Maria Agrelli
Identidade Visual: Joana Liberal
Desing Gráfico: Daniel Veras
Fotografia: Danilo Galvão
Figurino: Fábio Caio
Assistentes de Figurino: Nelma Caio, Fátima Caio e Emanuel Duart
Produção: Bárbara Souza, Camila Mendes e Carlos Lima
Sonoplastia: Anastácia Rodrigues, André Alencar, Larissa dos Anjos, Marina Fenício e Sônia Guimarães
Operador de som: Jorge Roberto
Iluminação: Dado Sodi
Operador de Luz: Junior Brow
Maquiagem: Brunna Martins, Marília Linhares e Marina Fenício
Aquecimento corpóreo-vocal: Amanda Pegado, André Alencar, Bárbara Souza, Bruna Justino e José Miranda
Texto: Alfred Jarry e Renata Pimentel
Mediadores: Rodrigo Cunha e Carlos Lima

Moisés Monteiro de Melo Neto e a atriz que interpreta Mãe Ubu,  montagem recifense de Ubu Rei (peça de Alfred Jarry)



sábado, 4 de agosto de 2018

O que faz um dramaturgo?


APÊNDICE
A Dramaturg?
must:
1) A critical sensibility, together with the ability to write mature essays and reviews addressed not merely to professionals and scholars, but also to reasonably intelligent, generally aware readers and theatregoers.
2) A thorough knowledge, in depth, of the dramatic repertory based on a wide range of reading in dramatic literature, scholarship, and criticism in all periods and genres of drama, with special areas of expertise of his own.
3) The ability to do scholarly research, plus practical experience in tracking down scripts, options, copyright information, and publication as well as production histories of plays.
4) The ability to read and translate plays from, ideally, several foreign languages but as a minimum one, and the even more valuable ability to adapt the translated text into stageworthy dialogue in English.
5) The ability to read new scripts intelligently, and to write summaries and appraisals of them with professional competence.
6) The ability to cut scripts knowledgeably, with an understanding of how to do so without destroying their logic or losing their essential dramatic and theatrical values.
7) Experience in preparing a dramaturg's protocol--a fivepart pre-production study of a play-together with a glossary of the text, for the information of the director and possibly the rest of the company. The parts consist of (a) the historical, cultural, and social background of the play; (b) relevant biographical information concerning the playwright, plus a history of the writing of the play and an assessment of its place in the author's oeuvre ; (c) a critical and production history of the play, including a report on the textual problems (if any) of the original and an assessment of the major translations (if the play was written in a language other than English); (d) a comprehensive critical analysis of the play, including the dramaturg's suggestions for a directorial-design concept for a new production; and (e) a comprehensive bibliography of materials on the play: editions, essays, articles, reviews, interviews, recordings, films, videotapes, etc.
8) The ability to prepare useful background study guides-often a digested version of the protocol or parts thereof--to be made available to student or "group" audiences.
9) Experience and expertise in collaborating with directors and designers to create a production concept, or, if a specific "concept" is not to be employed, an approach to the play and an articulation of its goals in production.
10) Based on the dramaturg's intimate knowledge of a play, and on pre-production discussion with a director about his approach to the play, the expertise to contribute significantly to a play's casting and design.
11) Expertise in taking dramaturgical rehearsal notes (which can be of crucial value to a receptive director), knowing at what points in the rehearsal process his notes are of value, what sort of notes are useful at different stages of the rehearsal process, and what sort of notes have constructive value together with what sort do not.
12) A thorough awareness of dramaturg's rehearsal decorum. It is most important for the dramaturg to take notes during rehearsal as inconspicuously as possible. He must be aware that the very sight of someone vigorously writing notes can be unnerving to directors and actors, who may feel that premature judgment is being made upon them. What helps most in allaying this source of irritation is the dramaturg's creation of the feeling in the company, as early as possible in the rehearsal process, that he is part of the same team and anxious for the same, good result. The courtesies and parameters that guide the dramaturg are these: he avoids interrupting of his own volition the director's work or the rehearsal; he does not show his notes to, or discuss them with, any member of the company without the request or consent of the director; in manner and in conversation, he avoids exhibiting negative responses toward the director's or the company's labors. The dramaturg, as much as any member of the company, shares the responsibility for creating an atmosphere of mutual trust and respect during rehearsals.
13) Knowledge of the do's and don'ts governing the dramaturg's conduct during consultation sessions with the director. However discussion between the two occurs, whether regularly and formally or only occasionally and informally, the dramaturg suggests his opinion to the director but does not force it on him, and understands that the final decision on all matters raised in discussion is necessarily the director's.
14) In working with playwrights, the ability to break down a script, analyzing its structural strengths and weaknesses, and make constructive suggestions for revision.
15) Training and experience in appropriate writing styles and formats for program notes (which should reflect the director's concept of the play and production and provide audiences--even critics--with a relevant context for viewing the playin-production), newsletter articles, interviews, and publicity releases.
16) Experience in keeping notes for, and writing up, postproduction records: production logs, season histories, post-production critical evaluations.
17) The experience of an apprenticeship in a professional theatre, working within the framework of its particular procedures and policies, and gaining familiarity with its overall administrative and budgetary set-up.
18) Above all, to have developed his individual "idea of a theatre" out of which he would, if this earth were heaven, map out seasons of repertory to advance that particular idea; and even if this earth is not heaven, to have developed the determination to work tirelessly toward advancing such a theatre, or orienting a theatre in which he works toward his artistic goal. Concomitantly, to have developed enough common sense to recognize that a theatre in which he is employed will not normally adapt itself overnight to his particular aesthetic orientation, but to retain enough idealism to yearn and plan for the existence of his ideal theatre, some day, somewhere. For dramaturgy as a profession ultimately looks toward the shaping of the artistic policy of a theatre, the formulation of its artistic policy being evidenced in its choice of repertoire, its approach to productions, and the cultural and aesthetic orientations of the artists it employs.


PREFÁCIO DE CROMWELL: DO GROTESCO E DO SUBLIME


A grande batalha contra os cânones clássicos travou-se em FRANÇA. Embora a vitória fosse de duração breve, ela TEVE INFLUENCIA PROFUNDA SOBRE A DRAMATURGIA MO­DERNA. Através da mediação de MADAME DE STAEL, as tendências fundamentais do romantismo alemão foram transmitidas à França, há muito preparada por desenvolvimentos próprios a re­ceber o germe da rebeldia. Essa disposição tornou possível o imenso êxito de uma companhia inglesa que, em 1827/28 apresentou SHAKESPEARE em Paris. O entusiasmo de VICTOR HU­GO (1802 - 1885) foi tamanho que chamou SHAKESPEARE "o maior criador depois de Deus". No seu prefácio a Cromwell iria exclamar: "Em nome da verdade, todas as regras são abolidas, sendo o artista senhor de escolher as convenções que lhe aprouverem, a começar pela linguagem que poderá ser prosa ou verso." (A tragédia clássica era toda em verso). ALFRED DE VIGNY (1797 - 1863) acompanha esta proclamação; "Nada de unidades, nada de distinções entre os gêneros, nada de estilo nobre".

Atores recifenses nos camarins da montagem de CLEÓPATRA (texto e direção do pernambucano Moisés Monteiro de Melo Neto, espetáculo cômico dramático, Teatro Valdemar de oliveira, 2012)



PREFÁCIO DE CROMWELL: DO GROTESCO E DO SUBLIME
Recordando: Oliver Cromwell foi o grande expoente da primeira revolução burguesa da idade moderna, a Revolução Puritana na Inglaterra, ainda no século XVII. Lutando contra o exército do rei, Cromwell e os "round heads" venceram o movimento e impuseram uma república. Durante essa república - conhecida como o "laboratório liberal" Inglês - houve grande desenvolvimento econômico e a promulgação do Ato de Navegação, em que qualquer nação que quisesse comercializar com a Inglaterra deveria usar os navios ingleses como transporte. Vejamos em HUGO, Victor. Do grotesco e do Sublime. Tradução do “Prefácio ao Cromwell”. Trad. Celia Berretini. Perspectiva, São Paulo, 1988:
—    ... se uma obra é boa ou má, pouco lhes importa sobre que ideias astá assentada, com que espírito germinou. (p.13)
—    Eis o primeiro homem, eis o primeiro poeta. É jovem, é lírico. A prece é toda a sua religião: a ode é toda a sua poesia. (p.17)
—    Homero, com efeito, domina a sociedade antiga. (p.18)
—    ... a expressão de uma semelhante civilização não pode ser senão a epopeia. (...) Heródoto é um Homero. (p.18)
—    Como Aquiles que arrasta o corpo de Heitor, a tragédia grega gira em torno de Tróia. (p.20)
—    É preciso abster-nos de lançar um olhar desdenhoso a esta época em que estava em germe tudo o que depois frutificou, a este tempo cujos menores escritores, se nos permitem uma expressão trivial, mas franca, serviram de esterco para a ceifa que devia seguir-se. A Idade Média está enxertada no baixo império. (p.24)
—    Antigos havia somente estudado a natureza sob uma única face, repelindo sem piedade da arte quase tudo o que, no mundo submetido à sua imitação, não se referia a um certo tipo de belo. ... O cristianismo conduz a poesia à verdade. ... a musa moderna ... sentirá ... que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz. ... se ... o meio de ser harmonioso é ser incompleto. ... a poesia dará um grande passo, ... Ela se porá a fazer como a natureza, a misturar nas suas criações, sem entretanto confundi-las, a sombra com a luz, o grotesco com o sublime, ... o ponto de partida da religião é sempre o ponto de partida da poesia. (p.24/25)
—    ... eis uma nova forma que se desenvolve na arte. Este tipo é o grotesco. Esta forma é a comédia. (p.26)
—    ... acabamos de indicar o traço característico, ... a literatura romântica da literatura clássica. (p.26)
—    ... é da fecunda união do tipo grotesco com o tipo sublime que nasce o gênio moderno, (p.27)
—    ... o grotesco tem um papel imenso ... de um lado, cria o disforme, e o horrível; do outro, o cômico e o bufo. (p.28/29)
—    E como é livre e franco no seu andar! (p.29)
—    O gênio moderno ... transforma os gigantes em anões; dos cíclopes faz os gnomos. ... Certamente, as eumênides gregas são bem menos horríveis, e, como consequência, bem menos verdadeiras que as feiticeiras de Macbeth. Plutão não é o diabo. (p.30)
—     ... como objetivo junto do sublime, como meio de contraste, o grotesco é, ... a mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte. ... o grotesco é um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de partida de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais excitada. (p.31
—    Quando a arte é consequente com ela mesma, leva de maneira bem mais segura cada coisa para seu fim. (p.31)
—    ... o grotesco, ... na poesia nova, enquanto o sublime representará a alma tal qual ela é, purificada pela moral cristã, ele representará o papel da besta humana. ... O belo tem somente um tipo; o feio tem mil. ... o belo, ... é ... a forma considerada na sua mais simples relação, ... o feio, ... é um pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza, não com o homem, mas com toda a criação. (p.32/33)
—    ... arquitetura que, na Idade Média, ocupa o lugar de todas as artes. (p.34)
—    É verdade dizer que, na época em que acabamos de deter-nos, a predominância do grotesco sobre o sublime, nas letras, está vivamente marcada. (p.36)
—    Shakespeare, é o drama; e o drama, que funde sob um mesmo alento o grotesco e o sublime, ... o drama é o caráter próprio da terceira época de poesia, da literatura atual. (p.36/37)
—    ... para resumirmos ... a poesia tem três idades, das quais cada uma corresponde a uma época da sociedade: a ode, a epopeia e o drama. Os tempos primitivos são líricos, os tempos antigos são épicos, os tempos modernos são dramáticos. A ode canta a eternidade, a epopeia soleniza a história, o drama pinta a vida. O caráter da primeira poesia é a ingenuidade, o caráter da Segunda é a simplicidade, o caráter da terceira, a verdade. Os rapsodos marcam a transição dos poetas líricos aos poetas épicos, como os romancistas, dos poetas épicos aos poetas dramáticos. Os historiadores nascem com a segunda época; os cronistas e os críticos com a terceira. As personagens da ode são colossos: ... os da epopeia são gigantes: ... os do drama são homens. A ode vive do ideal, a epopeia do grandioso, o drama do real. Enfim, esta tripla poesia provém de três grandes fontes: a bíblia, Homero, Shakespeare. (p.37)
—    A sociedade, com efeito, começa por cantar o que sonha, depois canta o que faz, e enfim se põe a pintar o que pensa. (p.38)
—    ... tudo, na natureza e na vida, passa por estas três fases, do lírico, do épico e do dramático, (p.38)
—    Há tudo em tudo; só que existe em cada coisa um elemento gerador ao qual se subordinam todos os outros, e que impõe ao conjunto seu caráter próprio. (p.39)
—    É, pois, no drama que tudo vem dar, na poesia moderna. (p.40)
—    Do dia em que o cristianismo disse ao homem: “Você é duplo, ... desde esse dia foi criado o drama. (p.41/42)
—    Porque a verdadeira poesia, a poesia completa, está na harmonia dos contrários. ... tudo o que está na natureza está na arte. (p.42)
—    ... do grotesco aliado ao sublime, ... na poesia dos povos cristãos, o primeiro destes dois tipos representa a fera humana, o segundo a alma. (...) Os dois tipos assim isolados (...) ir-se-ão cada um por seu lado, deixando entre eles o real, (...) depois destas abstrações, restará alguma coisa a representar: o homem. Depois destas tragédias e comédias, alguma coisa a fazer: o drama. (p.43)
—    “Do sublime ao ridículo há apenas um passo” (...) este grito de angústia é o resumo do drama e da vida. (p.44/45)
—    É, pois, o grotesco uma das supremas belezas do drama. (p.45)
—    ... a localidade exata é um dos primeiros elementos da realidade. (p.48)
—    A unidade de tempo não é mais sólida que a unidade de lugar. (...) Cruzar a unidade de tempo com a unidade de lugar como as barras de uma prisão, e aí fazer entrar pedantescamente, em nome de Aristóteles, todos estes fatos, todos estes povos, todas estas figuras que a providência desenrola em tão grandes massas na realidade! É mutilar homens e coisas; é caretear a história. (p.49)
—    ... ação. (...) é ela que marca o ponto de vista do drama. (p.50)
—    Repete-se entretanto, e repetir-se-á algum tempo ainda, sem dúvida: — Sigam as regras! Imitem os modelos! Foram as regras que formaram os modelos! — Um momento! Há neste caso duas espécies de modelos, os que fizeram segundo as regras, e, antes deles, os que segundo os quais, se fizeram as regras. Ora, em qual destas duas categorias o gênio deve procurar um lugar? Ainda que seja sempre duro estar em contato com os pedantes, não vale mil vezes mais dar-lhes lições que deles receber? E depois, imitar? O reflexo vale como a luz? O satélite que se arrasta sem cessar no mesmo círculo vale como o astro central e gerador? Com toda a sua poesia, Virgílio é apenas a lua de Homero. (p.55)
—    A arte não conta com a mediocridade. (...) a mediocridade não existe para ela. (p.56)
—    O poeta, (...) não deve, pois, pedir conselho senão à natureza, à verdade, e à inspiração, que é também uma verdade e uma natureza. (p.57)
—    ... o limite intransponível (...) separa a realidade segundo a arte da realidade segundo a natureza. (...) a verdade da arte não poderia jamais ser, (...) a realidade absoluta. A arte não pode representar a própria coisa. [signo] (p.59/60)
—    ... o domínio da arte e o da natureza são perfeitamente diferentes. (p.60)
—    ... o drama é um espelho em que se reflete a natureza. (...) É, pois, preciso que o drama seja um espelho de concentração que, longe de enfraquecê-los, reuna e condense os raios corantes, que faça de um vislumbre uma luz, de um luz uma chama. Só então o drama é arte. (p.61)
—    ... a finalidade da arte é quase divina: ressuscitar, se trata da história: criar, se trata da poesia. (p.61)
—    A cor local não deve estar na superfície do drama, mas no fundo, no próprio coração da obra, (p.62)
—    O verso é a forma ótica do pensamento. (p.68)
—    ... rima, esta escrava rainha, (p.69)
—    A categoria de uma obra deve ser fixada não segundo sua forma, mas segundo seu valor intrínseco. (p.71)
—    Não se fixa uma língua. (p.71)Os defeitos, pelo menos o que assim nomeamos, são frequentemente a condição nativa, necessária, fatal, das qualidades. (p.87)