Vieira
defendeu os cristãos-novos contra a Inquisição, condenou a rebeldia do quilombo
dos Palmares e reprovou as reformas da capitania de São Paulo que
favoreciam a escravização dos índios. Morreu lúcido aos 89 anos de idade,
em Salvador, em 1697O Sermão de Santo Antônio aos Peixes foi pregado em 13 de Junho de 1654 em São Luís
do Maranhão, em 1654, três dias antes de embarcar escondido para Portugal
no auge da luta dos jesuítas contra a escravização dos índios pelos
colonizadores, procurando o remédio da salvação dos Índios. O sermão revela
toda a ironia, riqueza nas sugestões alegóricas e agudo senso de observação
sobre os vícios e vaidades do homem, comparando-o, por meio de alegorias, aos
peixes.
Critica a prepotência dos grandes,
que, como peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos, os quais “engolem” e
“devoram”. O alvo são os colonos do Maranhão, que no Brasil são grandes, mas em
Portugal “acham outros maiores que os comam, também a eles”.
Censura os soberbos (= roncadores);
os pregadores (= parasitas); os ambiciosos (= voadores); o hipócritas e
traidores (= polvos).
Na abertura
do Sermão de Santo Antônio aos Peixes, a apresentação do tema de
extração bíblica (Vos estis sal terrae) oferece oportunidade para o
questionamento das causas da ineficácia da oratória sacra. A argumentação
conceptista apoia-se no paralelismo sintático, na repetição anafórica das
alternativas que servem de eixo básico do raciocínio: “Ou é porque o sal não salga,
ou porque a terra não se deixa salgar”.
Alguns recursos
estilísticos de Pe. Antônio Vieira neste sermão
1. Antíteses
“Tanto pescar e tão pouco tremer!”
“No mar, pescam as canas, na terra
pescam as varas (…)”
“(…) deu-lhes dois olhos, que direitamente
olhassem para cima (…) e outros dois que direitamente olhassem para baixo (…)”
“A natureza deu-te a água, tu não
quiseste senão o ar (…)”
“(…) traçou a traição às escuras, mas
executou-a muito às claras.”
“(…) António (…) o mais puro exemplar
da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou
engano.”
“Oh que boa doutrina era esta para a
terra, se eu não pregara para o mar!”
2. Comparações
“Certo que se a este peixe o vestiram
de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de Santo
António.”
“O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os
homens.”
“(…) com aquele seu capelo na cabeça,
parece um monge;
com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela;
com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura (…)”
“As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia (…)”
“(…) e o salteador, que está de
emboscada (…) lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais
Judas?”
“Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua
maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!”
3. Paralelismos e
anáforas
“Ou é porque o sal não salga, e os
pregadores…;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes…
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores…;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes…
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores…;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes…”
“Deixa as praças, vai-se às praias;
deixa a terra, vai-se ao mar…”
“Quantos, correndo fortuna na Nau Soberba (…), se a língua de António,
como rémora (…)
Quantos, embarcados na Nau Vingança (…), se a rémora da língua de
António (…)
Quantos, navegando na Nau Cobiça (…), se a língua de António (…)
Quantos, na Nau Sensualidade (…), se a rémora da língua de António (…)”
“(…) com aquele seu capelo na cabeça,
parece um monge;
com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela;
com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura (…)”
“Se está nos limos, faz-se verde;
se está na areia, faz-se branco;
se está no lodo, faz-se pardo (…)”
4. Ironia
Mas ah sim, que me não lembrava! Eu
não prego a vós, prego aos peixes.”
“E debaixo desta aparência tão
modesta, ou desta hipocrisia tão santa (…) o dito polvo é o maior traidor do
mar.”
5. Metáforas
“Esta é a língua, peixes, do vosso
grande pregador, que também foi rémora vossa, enquanto o ouvistes; e porque
agora está muda (…) se vêem e choram na terra tantos naufrágios.”
“(…) pois às águias, que são os
linces do ar (…) e aos linces que são as águias da terra (…)”
“(…) onde permite Deus que estejam
vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos?!”
” (…) vestir ou pintar as mesmas
cores (…)”
“(…) e o polvo dos próprios braços
faz as cordas.”
6. Trocadilhos
“Os homens tiveram entranhas para
deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar
vivo à terra.”
“E porque nem aqui o deixavam os que
o tinham deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente
Portugal.”
“(…) o peixe abriu a boca contra quem
se lavava, e Santo António abria a sua contra os que se não queriam lavar.”
Leia na íntegra
o Sermão de Santo Antônio aos Peixes
Vos estis sal
terrae. S. Mateus, V, l3.
I
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da
terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é
impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa,
havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa
desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa
salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira
doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira
a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e
os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa
salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que
dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a
Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir
a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal! [...]
Mas porque nestas duas ações teve maior parte a omnipotência que a
natureza (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às
virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só
eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais
terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o
bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e
benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e
vivem conosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e
nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a
mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus
mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e
não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja
dele. Os autores comumente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à
pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não
condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não
fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens,
tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da
terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas
pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes
ditos o papagaio, mas na sua cadeia[...]; faça-lhes bufonarias o macaco,
contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela;
preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a
cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios
dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem
a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com
grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas
cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das
portas a dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero
lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.
No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que
cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais quais livraram melhor? Dos leões
escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias
escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes? Todos
escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos que
dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal
castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque mão morreram também
os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como
mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens, os
peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que as
águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os
outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que,
infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era
um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao Mundo
pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele
houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo Mundo visse que da
companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por isso os animais que viviam
mais perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram
livres.
Vede, peixes, quão grande bem é estar
longe dos homens. [...]
III
Este é, peixes, em
comum o natural que em todos vós louvo, e a felicidade de que vos dou os
parabéns, não sem inveja. Descendo ao particular, infinita matéria fora se
houvera de discorrer pelas virtudes de que o Autor da natureza a dotou e fez
admirável em cada um de vós. [...]
Ah moradores do Maranhão, quanto eu
vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este
coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego aos
peixes.[...]
«Os homens com suas
más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos
outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo
todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos
finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos
homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e
eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o
vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar para a
terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e
para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais
que só os Tapuias se comem uns aos
outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos.
Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às
praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele
entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os
homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis
logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros,
comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores;
comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico,
que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue;
come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais
velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os
que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra,
e já o tem comido toda a terra.
Já se os homens se
comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria
de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade,
considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. [...]
A diferença que há
entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o
peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é
comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que
padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se
come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não
tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que
os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem..
Parece-vos bem isto, peixes?
Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não,
e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre
os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os
maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão
os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de
dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os
homens.
Se cuidais, porventura, que estas
injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganais-vos. Assim como
Deus as castiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os
mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando
menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos
miseráveis remeiros delas, que os maiores que cá foram mandados, em vez de
governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá
traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos.
Assim foi; mas, se entre vós se acham
acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Portugal e
tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo que esses mesmos
maiores que cá comiam os pequenos, quando lá chegam, acham outros maiores que
os comam também a eles. Este é o estilo da divina justiça tão antigo e
manifesto, que até os Gentios o conheceram e celebraram [...]
Outra cousa muito geral, que não
tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós é aquela tão notável
ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para
estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado
e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água,
e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que,
assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior
ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano,
perder a vida?[...]
Por este exemplo vos concedo, peixes,
que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o
fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se
derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos. [...]
Rodeia a nau o tubarão nas calmarias
da Linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais
parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros.
Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados, arremessa-se
furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia
companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos;
enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores[...]
Considerai, pegadores vivos, como
morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O tubarão
morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior
ignorância que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tubarão porque
comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a
maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia
pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós o
pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que
hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos
desta desgraça com uma pouca de água, e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância
com quanta água tem o mar. [...]
Grande ambição é que, sendo o mar tão
imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro
elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o castigo da ambição. O voador fê-lo
Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de
ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas
as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo.
Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés
amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és
ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A natureza deu-te a água, tu não
quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um
com o seu elemento. Se o voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não
viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água,
mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas.