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quinta-feira, 16 de julho de 2020

Analisando a letra de “Pardo”, do compositor Caetano Veloso



por Moisés Monteiro de Melo Neto

Quando Caetano Veloso diz “Nêgo” e intitula seu texto como “pardo”, já estabelece uma espécie paradoxalmente múltipla de dicotomia, se é que isto é possível. Vai adiante nesta proposta dúbia quando liricamente deduz que “Teu rosa é mais rosa que o rosa da mais rosa rosa”, a falar de certas partes do corpo do outro e ao mesmo tempo reativar recursos poéticos (rosa é o mais utilizado de todos, provavelmente, no mundo) que funcionem como elementos catalisadores de certa visão consoladora de que não estamos sós e que corpo e alma pode ser expressos por meios simples e, ainda eficazes. Apela para um erotismo meio retro quando traduz momento de prazer e estranhamento: “Veio um beijo preto/ Sangue sob a pétala”, parte para a boca e sua reentrância para traduzir a antecipação do gozo através da palavra, Caetano é muito esperto ao atender ao gosto de todos: intelectuais ou não e chegar ao povo e ao poder de forma rápida, o que os versos demonstram, ainda mais quando a isto se junta uma melodia envolvente, de mestre, que a utiliza desde o seus primórdios, nos tempos da Tropicália. Continua “Veio um papo reto/ Língua sobre a úvula”: aqui o autor (existem bons autores e bons textos e não há mais preconceito quanto havia antigamente entre letra de música e poema), mas aí fica um estranhamento unido a uma obviedade gritante, pois  o leitor/ ouvinte vai ligar úvula à outra palavra (vulva?), lembrando que  úvula é um apêndice cônico do véu palatino situado na parte posterior da boca. Na linguagem coloquial ou vulgar dá-se à úvula nomes tais quais campainhaváulagoela ou sininho, dada sua semelhança e que úvula serve como um alarme de que algo está a passar pela nossa garganta e é hora de fechar As vias respiratórias para que não entre nem na cavidade nasal nem na traqueia, ou seja, (é uma válvula que se fecha para impedir que a comida chegue ao nariz ou faça com que nos engasguemos com ela).
O baiano de santo Amaro da Purifica cão continua: “Nêgo/Nenhum Orixá poderá desmanchar o que houve lá”, reafirmando sua devoção (já se disse até ateu!) pela cultura afrodescendente e lançamento o charme do encantamento sobre suas palavras melódicas. E logo o eu lírico retorna à conquista atraente do seu chamado enquanto alvo de um jogo sensual e crítico, de certo modo: “Pra que me quereres? / Homens e mulheres há/ Por que tanto queres”, apelando para uma espécie de sexualidade revestida de normalidade dentro dos padrões libertadores e que não chega a se explicitar pelo masculino pautado no machismo ou qualquer outra crença metafísica, moral, religiosa ou física e entrança o seu texto com um oxímoro que lembra o tom barroco de muitas outra produções suas: “Não me querer, querer”.
Aí ele ropõe o jogo através de uma mundividência que lhe é peculiar: “Sou pardo e não tardo a sentir me crescer o pretume/Sou pardo e me ardo de amores por ti sem ciúme/Sou pardo e não tardo a sentir me crescer o pretume/ Sou pardo e me ardo de amores por ti sem ciúme de amores”. Observe como aqui os versos são maiores e que isto forçará a prosódia a um ritmo que vai ter que ser calculado com base numa métrica enfática com proporções de onda que ao mesmo tempo empurra e arrasta o leitor/ouvinte, num caramanchão antropológico de possíveis prazeres e constatações subjetivas. Termina com uma interlocução convidativa e irmã da multiculturalidade, quase uma exclamação: “Nêgo”. 


*Moisés Monteiro de Melo Neto possui graduação em Letras (1992), mestrado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (2004) e doutorado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (2011). Atualmente é professor assistente da Universidade Estadual de Alagoas e professor adjunto da UPE (Universidade Estadual de Pernambuco). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: Dramaturgia, Literatura Comparada, Estudos Culturais, Produção Textual, Literaturas em Língua Portuguesa. É professor desde 1992. Tem textos teatrais premiados, artigos, contos e ensaios publicados.  Trabalhou com diretores de teatro como Luís Mendonça, João Falcão, José Francisco Filho (que dirigiu vários textos de Moisés), Antunes Filho pediu que ele escrevesse para o programa da sua montagem de A Falecida, de Nelson Rodrigues, José Celso Martinez emprestou o Teatro Oficina para Moisés lançar seu livros. Sua peça Certo Delmiro Gouveia recebeu prêmio do Governo do Estado de Pernambuco; Foi vencedor do Prêmio Klaus Vianna, concedido pela FUNARTE, em 2007, como diretor/ roteirista do espetáculo Recife: Paralelo 8,  tem formação em Letras, pós-graduado em Literatura Brasileira, Mestre e Doutor em Letras pela UFPE. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: Dramaturgia, Literatura Comparada, Estudos Culturais, Produção Textual, Literaturas em Língua Portuguesa, Narrativas biográficas. É professor desde 1992. Autor de vários livros, dentre os quais: Teatro Ilusionista, Contracultura, Tetralogia do Amor Cruel, História da Literatura Brasileira, Notícias Americanas, Anticânone: literatura em Pernambuco a partir do século XX , Chico Science: a rapsódia afrociberdélica, pelas Editoras Corisco e Comunicarte,  Mágico Alakazam, uma biografia, publicada pela FUNDARPE, Abismos da poeticidade em Jomard Muniz de Britto: do Escrevivendo aos Atentados Poéticos, sua tese de doutorado com publicação pelo SESC. É autor de diálogos para filmes premiados domo Cassino Americano, que recebeu Menção Honrosa no Festival JVC, em Tóquio e assistência  de direção cinematográfica (do filme Incenso, vencedor de vários prêmios, dentre os quais Ary Severo e Firmo Neto) peças teatrais que receberam menções honrosas e prêmios; atuou como colaborador do Suplemento Literário do Jornal do Commercio, Recife, nos anos 1990. Foi responsável pelo dramaturgismo da peça Um minuto para dizer que te amo, vencedora de vários prêmios, que além de ficar em cartaz no Recife de 2017 a 2020, fez turnê por outras cidades do nordeste.


Caetano Veloso e filósofo, cineata, poeta (etc.) Jomard Muniz de Britto (sobre quem escrevi minha tese de doutorado,, amigos desde a Tropicália, da qual JMB participou ativamente assinando manisfesto junto com o baiano.







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