por Moisés Monteiro de Melo Neto
Quando Caetano Veloso diz “Nêgo”
e intitula seu texto como “pardo”, já estabelece uma espécie paradoxalmente múltipla
de dicotomia, se é que isto é possível. Vai adiante nesta proposta dúbia quando
liricamente deduz que “Teu rosa é mais rosa que o rosa da mais rosa rosa”, a falar
de certas partes do corpo do outro e ao mesmo tempo reativar recursos poéticos
(rosa é o mais utilizado de todos, provavelmente, no mundo) que funcionem como
elementos catalisadores de certa visão consoladora de que não estamos sós e que
corpo e alma pode ser expressos por meios simples e, ainda eficazes. Apela para
um erotismo meio retro quando traduz momento de prazer e estranhamento: “Veio
um beijo preto/ Sangue sob a pétala”, parte para a boca e sua reentrância para
traduzir a antecipação do gozo através da palavra, Caetano é muito esperto ao
atender ao gosto de todos: intelectuais ou não e chegar ao povo e ao poder de
forma rápida, o que os versos demonstram, ainda mais quando a isto se junta uma
melodia envolvente, de mestre, que a utiliza desde o seus primórdios, nos
tempos da Tropicália. Continua “Veio um papo reto/ Língua sobre a úvula”: aqui
o autor (existem bons autores e bons textos e não há mais preconceito quanto
havia antigamente entre letra de música e poema), mas aí fica um estranhamento
unido a uma obviedade gritante, pois o leitor/ ouvinte vai
ligar úvula à outra palavra (vulva?), lembrando que úvula é
um apêndice cônico do véu palatino situado na parte posterior da boca. Na
linguagem coloquial ou vulgar dá-se à úvula nomes tais quais campainha, váula, goela ou sininho,
dada sua semelhança e que úvula serve como um alarme de que algo está a passar
pela nossa garganta e é hora de fechar As vias respiratórias para que
não entre nem na cavidade nasal nem na traqueia, ou seja, (é uma válvula que
se fecha para impedir que a comida chegue ao nariz ou faça com que nos
engasguemos com ela).
O baiano de santo Amaro da
Purifica cão continua: “Nêgo/Nenhum Orixá poderá desmanchar o que houve lá”,
reafirmando sua devoção (já se disse até ateu!) pela cultura afrodescendente e lançamento o charme do
encantamento sobre suas palavras melódicas. E logo o eu lírico retorna à
conquista atraente do seu chamado enquanto alvo de um jogo sensual e crítico,
de certo modo: “Pra que me quereres? / Homens e mulheres há/ Por que tanto
queres”, apelando para uma espécie de sexualidade revestida de normalidade
dentro dos padrões libertadores e que não chega a se explicitar pelo masculino pautado
no machismo ou qualquer outra crença metafísica, moral, religiosa ou física e
entrança o seu texto com um oxímoro que lembra o tom barroco de muitas outra
produções suas: “Não me querer, querer”.
Aí ele ropõe o jogo através
de uma mundividência que lhe é peculiar: “Sou pardo e não tardo a sentir me
crescer o pretume/Sou pardo e me ardo de amores por ti sem ciúme/Sou pardo e
não tardo a sentir me crescer o pretume/ Sou pardo e me ardo de amores por ti
sem ciúme de amores”. Observe como aqui os versos são maiores e que isto
forçará a prosódia a um ritmo que vai ter que ser calculado com base numa
métrica enfática com proporções de onda que ao mesmo tempo empurra e arrasta o
leitor/ouvinte, num caramanchão antropológico de possíveis prazeres e
constatações subjetivas. Termina com uma interlocução convidativa e irmã da
multiculturalidade, quase uma exclamação: “Nêgo”.
*Moisés Monteiro de Melo Neto possui
graduação em Letras (1992), mestrado em Letras pela Universidade Federal de
Pernambuco (2004) e doutorado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco
(2011). Atualmente é professor assistente da Universidade Estadual de Alagoas e
professor adjunto da UPE (Universidade Estadual de Pernambuco). Tem experiência
na área de Letras, com ênfase em Literatura, atuando principalmente nos
seguintes temas: Dramaturgia, Literatura Comparada, Estudos Culturais, Produção
Textual, Literaturas em Língua Portuguesa. É professor desde 1992. Tem textos
teatrais premiados, artigos, contos e ensaios publicados. Trabalhou com diretores de teatro como Luís
Mendonça, João Falcão, José Francisco Filho (que dirigiu vários textos de
Moisés), Antunes Filho pediu que ele escrevesse para o programa da sua montagem
de A Falecida, de Nelson Rodrigues,
José Celso Martinez emprestou o Teatro Oficina para Moisés lançar seu livros.
Sua peça Certo Delmiro Gouveia
recebeu prêmio do Governo do Estado de Pernambuco; Foi vencedor do Prêmio Klaus
Vianna, concedido pela FUNARTE, em 2007, como diretor/ roteirista do espetáculo
Recife: Paralelo 8, tem formação em Letras, pós-graduado em
Literatura Brasileira, Mestre e Doutor em Letras pela UFPE. Tem experiência na
área de Letras, com ênfase em Literatura, atuando principalmente nos seguintes
temas: Dramaturgia, Literatura Comparada, Estudos Culturais, Produção Textual,
Literaturas em Língua Portuguesa, Narrativas biográficas. É professor desde
1992. Autor de vários livros, dentre os quais: Teatro Ilusionista, Contracultura, Tetralogia do Amor Cruel, História da Literatura Brasileira, Notícias Americanas, Anticânone: literatura
em Pernambuco a partir do século XX , Chico Science: a rapsódia afrociberdélica,
pelas Editoras Corisco e Comunicarte, Mágico Alakazam, uma biografia, publicada
pela FUNDARPE, Abismos da poeticidade em
Jomard Muniz de Britto: do Escrevivendo aos Atentados Poéticos, sua tese de
doutorado com publicação pelo SESC. É autor de diálogos para filmes premiados
domo Cassino Americano, que recebeu
Menção Honrosa no Festival JVC, em Tóquio e assistência de direção cinematográfica (do filme Incenso, vencedor de vários prêmios,
dentre os quais Ary Severo e Firmo Neto) peças teatrais que receberam menções
honrosas e prêmios; atuou como colaborador do Suplemento Literário do Jornal do
Commercio, Recife, nos anos 1990. Foi responsável pelo dramaturgismo da peça Um minuto para dizer que te amo,
vencedora de vários prêmios, que além de ficar em cartaz no Recife de 2017 a
2020, fez turnê por outras cidades do nordeste.
Nenhum comentário:
Postar um comentário