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domingo, 19 de julho de 2020

Dom Casmurro e as novas leituras do livro






É um livro com provas e anti provas do adultério, contado e prestado pelo próprio Bentinho. Há de ser extremo Puritano (quase um seminarista) e, acreditar que Capitolina não traiu assim Dom Casmurro. No entanto não começo esse escrito dizendo que tem ou não o termo estraga-prazeres em inglês: o famoso "spoiler".
- Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Antes de terminar a xícara de café, terminei de ler Dom Casmurro, na minha visão o Magnus Opus de Machado. Voltando, a dissimulada que envolve qualquer cena - desde o muro rabiscado ao debruçar das janelas... Alguns vão mencionar "como confiar em um livro com narrador em primeira pessoa?". Os relatos cegos de ciúmes, o desprezo pelo não culpado do fato; como sofreu Ezequiel acontecido ou não a traição.
O complicado de analisar a obra é que há um ou dois momentos a sós de Capitu e Escobar e nunca narrados, a não ser de uma forma póstuma. Como o dinheiro guardado e a tarde de que Escobar passou pela casa sem a presença de Bentinho. O choro e o olhar fixo apaixonado da oblíqua aos olhos de ressaca no caixão. Lembremos que Dom Casmurro teve uma oportunidade intimista com Sancha; desde o aperto de mão à viuvez.
A peça de Otelo que Bentinho assistiu e que inspirou o romance, o ato controverso e romântico de se matar. Têm coisas que é ditas nas entrelinhas, como uma fotografia e a culpa sempre julgada fora da adúltera e o investimento somado ao sofrimento da dissimulada. A discussão nem teóricos resolveram e a maioria do público sempre julgará que apenas é uma história de amor jovial com final trágico. E a solidão com outras mulheres que um velho advogado teve. "a terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios. (João Victor Filgueira)

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Adaptação da obra de Tulio Carella "ORGIA" feita por Moisés Monteiro de melo Neto com Wellington Junior e Breno Fittipaldi foi encenada no Recife

Adaptação da obra de Tulio Carella "ORGIA" feita por  Moisés Monteiro de melo Neto com Wellington Junior e Breno Fittipaldi foi encenada no Recife


Orgia, de Tulio Carella, é comentado por especialistas em literatura, história e sociologia
Leia comentários publicados na imprensa brasileira e outras apreciações sobre o livro no universo blog e redes sociais





ORGIA – OS DIÁRIOS DE TULIO CARELLA, RECIFE 1960, lançamento da Opera Prima Editorial, vem recebendo resenhas elogiosas e comentários de estudiosos.
Leia aqui uma seleção de apreciações sobre esse livro de grande importância não apenas na área literária, mas também nos estudos de história recente de Brasil e Argentina. Por sua acurada observação da realidade e cultura brasileiras, a publicação tem, ainda, enorme interesse para as áreas de sociologia, estética e filosofia.
José Mario Rodrigues, cronista e escritor pernambucano: “Era um escritor de expressão e não apenas um contador de intimidades que assustam os mais puritanos. É ele mesmo quem diz: “Não gosto de indivíduos puros, de pessoas que nunca pecam. Gosto de pecadores” (…) Mesmo o diário ora lançado, cuidadosamente, pela editora Opera Prima, foi esgotado na época ou sua tiragem, como sempre acontece aqui, foi reduzida. Que bom seria se  nos dessem outros livros deste argentino que Hermilo Borba Filho considerou “um dos mais sérios dessa inválida América Latina”. Página de OPINIÃO, do “Jornal do Commercio”, Recife, 21 de maio de 2011.
Ítalo Moriconi, professor de Literatura, escritor, poeta e organizador de antologias literárias: “Puxa!  Sou fã deste livro, que eu lia escondido na biblioteca proibida de meu pai. Bom que esteja sendo reeditado, é um clássico dos clássicos do homoerotismo.” (em FaceBook, maio de 2011).
Cecilia Palmeiro, professora do Departamento de Estudos Íbero e Latino-americanos da Universidade de Londres : “É maravilhoso!!!!  Um processo de devir perlonghereano  mesmo! (referência a tese do poeta e antropólogo Néstor Perlongher (1949-1992)” (FaceBook, maio de 2011).
Laymert Garcia dos Santos, filósofo e professor do Departamento de Sociologia da Unicamp: “O livro traz uma visão diferente: qual é o modo de ser do negro na intimidade absoluta. O que interessa é o ponto de vista ontológico – o modo de ser negro – e o ponto de vista epistemológico – como posso conhecer o modo de ser negro, mergulhando fundo na sexualidade deles”. (Folha de São Paulo, Ilustrada E4, 10 de maio de 2011).
João Silvério Trevisan, escritor e pesquisador da cultura homossexual no Brasil: ” Do que conheço da literatura e arte homoerótica, “Orgia” é uma das coisas mais emblemáticas e contundentes, inclusive pela qualidade literária”. (Folha de São Paulo, Ilustrada E4, 10 de maio de 2011).

Foi também graças a esses contrastes que o Brasil ofereceu à Argentina e ao mundo esse Orgia, exemplar da melhor literatura erótica, dotado de grande beleza de estilo e acuidade reflexiva.” (João Silvério Trevisan, ‘ESTADOS UNIDOS DO FOGO’ , resenha publicada no CADERNO 2 de O ESTADO DE SÃO PAULO, 25 de maio 2011 
Raúl Antelo, ensaísta, estudioso da literatura argentina e professor de Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina, cujo estudo sobre Carella – “A Linguagem que Excede as Coisas” – é citado no estudo introdutório da atual edição de “Orgia”: “Uma ótima surpresa, a edição está fantástica, com a foto do autor na capa ao estilo Puig, e as panorâmicas do Recife no interior, muito bonito.” (Em correspondência com o editor).  
Osvaldo Bazán, autor de “Historia de la Homosexualidad en la Argentina” (Marea Editorial, Buenos Aires, 2004): “É um livro muito moderno. Eu mesmo queria traduzi-lo para o espanhol”. (Folha de São Paulo, Ilustrada E4, 10 de maio de 2011)
Caio Liudvik, doutor em filosofia e autor de “Sartre e o Pensamento Mítico” (Loyola): “Do sol recifense e dos meios homossexuais de que então se aproxima, provém a iluminação graças ao “amor ao pecado” no leito de muitos anônimos populares — transgressões que o levaram, às vésperas da escuridão autoritária, a ser preso, torturado e deportado”. Guia de Livros da Folha de São Paulo, edição maio 2011;
Leda Alves, viúva do tradutor e escritor Hermilo Borba Filho (1917-1976), presidente da Companhia Editora de Pernambuco:  “A edição é muito bonita. Tulio Carella era um homem muito sério e inteligente e recordo bem o carinho imenso que por ele tinham os seus alunos de teatro do Recife.” (Depoimento por telefone, maio de 2011).
Diário de Pernambuco, 29 de maio de 2011, em reportagem de Paulo Carvalho:  Depoimento do encenador Antonio Cadengue: “Considero Orgia uma das mais belas páginas do homoerotismo, que além dessa característica faz um belo diagnóstico da cidade e do período político em que se vivia (quando a direita estava muito organizada e a esquerda não havia se dado conta disso). A prisão de Tulio Carella, inclusive, pode ser considerada como uma confirmação de alguns movimentos não muito claros (ainda que se pudesse ser observados nos jornais da época)”, avalia o encenador.
Outro artista que se considera influenciado por Orgia é Jomard Muniz de Britto. “Não fui contemporâneo dele. E nessa época não frequentava os lugares que ele frequentava: eu era um rapaz bem comportado. A importância é de ser uma literatura pioneira, do que se chama hoje de homoerotismo. A presença dele foi uma coisa muito forte. Eu considero o livro de Tulio Carella um similar em impacto a Deus no pasto (atualmente esgotado), de Hermilo Borba Filho”, arremata. ( Diário de Pernambuco).
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, ensaio da socióloga Carolina Leão: “Outra digressão: Bahktin, em Cultura Popular na Idade Média, investiga a relação entre cultura e civilização, mostrando como determinadas manifestações populares são encaradas como primitivas e deveriam ser evitadas pela incipiente burguesia se esta quisesse se mostrar como polida e cortês. As danças sensuais e a gula, movimentos do baixo ventre, eram alguns dos indicadores de atos primitivos, relacionados à volúpia, ao descontrole dos instintos naturais que acabaram sendo normatizados no processo civilizador (a partir do século 16). A obra de Carella percorre exatamente essas questões. Nela, temos o argentino civilizado e encantado com a oferta fálica pelas ruas do Recife. A oferta de negros. Enquanto a moral branca, vestia-se de forma minuciosa e trancafiava seu corpo e seu desejo. Cabia à burguesia acompanhá-la pelos sobrados, pelos casarios ou pelo indiscreto estreitamento das casas conjugadas que revelam muito mais do que se poderia saber sobre a alteridade do senhor, seu vizinho. Cabia à experiência popular vivenciar o inferno típico da cidade: a sobrevivência. Desse modo, não nos distanciamos muito do início da nossa colonização e da dialética da nossa modernidade.”   
 Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, ensaio do professor de Literatura ANCO MARCIO TENÓRIO VIEIRA, da Universidade Federal de Pernambuco: “Assim, é por meio da interpolação narrativa, pela tentativa de presentificar fatos que são agora apenas matéria da memória, que Orgia se organiza formalmente. Sabemos que o autor dessa obra era de fato argentino, dramaturgo, poeta e crítico literário; sabemos que ele viera ao Recife para ensinar no seu curso de teatro e que nesta cidade viveu uma experiência densa e única; assim como sabemos que ele foi confundido pela polícia com um agente cubano e, depois de preso, espancado e destituído da Universidade, expulso do Brasil. Orgia poderia ser apenas o registro desses eventos. Ou melhor, poderia ser apenas a publicação dos diários que ele — Tulio Carella — escrevera durante a sua estada no Recife, entre os anos de 1960 e 1962. No entanto, ele precisava entender melhor o que de fato acontecera consigo. De volta a Buenos Aires, distanciado do seu objeto, ele constrói um narrador na terceira pessoa, que é o psicanalista. Mais do que um narrador que se refere ao passado, é um narrador que tenta dar sentido ao que ele vivera. Ele deixa de ser Tulio Carella para ser Lúcio Ginarte; atribui os diários que escrevera a este personagem de papel, e constrói um narrador que narra e interpreta a sua própria experiência. Afinal, tudo agora era apenas memória: tanto a cidade quanto os diários que registraram o seu tempo no Recife. Ao transformar as suas memórias em matéria de um romance, Túlio Carella pode alargar o mundo que viu e viveu em terras distantes, safar-se do julgamento dicotômico entre verdade/mentira, e mostrar que tanto a memória quanto a arte são realidades etéreas.”


MAIS:
O Recife Libertino

21/05/2011 - 19:59:39
Tulio Carella, no início dos anos 1950
Com o título acima, o escritor JOSÉ MARIO RODRIGUES publicou, em 21 de maio, artigo no “Jornal do Commercio”, do Recife, sobre o lançamento da Opera Prima Editorial, ORGIA, OS DIÁRIOS DE TULIO CARELLA
Se Tulio Carella voltasse ao Recife com a mesma idade que tinha, em 1960, quando aqui esteve a convite Hermilo Borba e Ariano, para ensinar teatro na UFPE, decerto seu diário não chegaria ao fim. Com a sua vocação para a libertinagem, que resultou o farto material de “Orgia”, sua vida, hoje, iria trilhar o caminho da tragédia. Isso seria péssimo, pois ele era um escritor de expressão e não apenas um contador de intimidades que assustam os mais puritanos. É ele mesmo quem diz: “Não gosto de indivíduos puros, de pessoas que nunca pecam. Gosto de pecadores”.
O Recife mudou. No roteiro do prazer, da sensualidade que se expõe, hibernam o trágico, o assalto, o crime que se disfarça na fantasia enganadora das ilusões amorosas. É tudo um risco. Qualquer descuido, o que menos pode acontecer é um boa noite cinderela. A cultura da violência é tão grande, que um simples jogo de futebol transforma o Centro do Recife numa praça de guerra. Andar na rua, após um jogo, é preciso coragem. Mas o Recife do poema que Carella soube escrever com todas as suas imagens, é memória. Fruto da solidão e da vontade de descobrir a cidade, de se entregar ao mundo das bolinações, suas investidas na noite chegaram à constatação da terrível verdade: “Entre o que se propõe e o que alcança há um abismo”. A danação do Recife pulsava na danação de Tulio Carella. Os deuses da luxúria faziam bacanal sem culpa.


Na “Trajetória de uma confissão”, título da introdução do escritor e jornalista Alvaro Machado, há uma máxima que virou epígrafe do livro do notável argentino, usada para explicar a sua concupiscência: “A noite e a solidão estão plenas do diabo.” Conheci Tulio Carella em Buenos Aires, numa época de instabilidade política de lá e daqui. Ele estava sendo monitorado pelas forças militares, sobretudo por ter sido preso, equivocadamente, em Fernando de Noronha, como se fosse contrabandista das armas vindas de Cuba para as Ligas Camponesas. Sem essa republicação de Orgia, traduzida por Hermilo Borba Filho, eu iria passar batido. Não teria conhecimento da obra deste escritor que foi ensaísta, dramaturgo, poeta. Não há nada dele publicado entre nós. Mesmo o diário ora lançado, cuidadosamente, pela editora Opera Prima, foi esgotado na época ou sua tiragem, como sempre acontece aqui, foi reduzida. Que bom seria se Alvaro Machado nos desse outros livros deste argentino que Hermilo considerou “um dos mais sérios dessa inválida América Latina”.




Estados Unidos do fogo
O fascínio de um argentino pelo Brasil, o 'país da brasa', é relançado na obra Orgia
25 de maio de 2011 | 0h 00
João Silvério Trevisan - O Estado de S.Paulo
ESPECIAL PARA O ESTADO
Reprodução
Fetiche. Foto de Pierre Verger feita entre 1946 e 1948
O olhar estrangeiro pode desvendar aspectos ocultos de outro país. O diário brasileiro do argentino Tulio Carella evidencia isso. Publicado no Brasil com o título de Orgia (ed. Ópera Prima, 312 págs., R$ 64), esse livro acaba de ser relançado após mais de 40 anos esgotado. Foi a convite do seu amigo e tradutor Hermilo Borba Filho que Carella veio para o Recife em 1960, como professor na Escola de Teatro da Universidade local, e lá permaneceu quase 2 anos. Nesses diários, o quarentão Carella relata o clima político do País, mas sobretudo suas experiências sexuais, de modo tão obsessivo quanto as viveu.
Fascinado, Carella referia-se ao Brasil como "país da brasa". Sua estada no Recife efervescente do período lhe provocou um verdadeiro choque epifânico: "Creio que está nascendo um outro eu". Nessa cidade, parecia ter chegado a Sodoma e adentrado o paraíso: "tudo é força erótica, contato corporal", encontra-se "Vênus deitada, Urano nas esquinas". Viveu quase em estado de êxtase sexual, graças aos negros locais, que amou e por quem foi amado. "Acho que pelas veias dos negros não corre sangue, mas luz do sol, a substância vital dos trópicos. (...) Aqui eles têm o ar de cisne e usam seus farrapos com uma majestade indescritível".
De adorador dos Estados Unidos do Fogo (como batizara o Brasil), Carellla passou a vítima do "país dos contrastes" - para citar outro estrangeiro que tentou desvendar nossa difícil identidade. Com forte sotaque espanhol e frequentador assíduo do cais de Santa Rita, acabou sendo detido pelo Exército como suspeito de intermediar as relações entre cubanos revolucionários e as Ligas Camponesas. Corria o explosivo ano de 1962. Os militares, paranoicos com a subversão, esqueceram que esse cais era então um famoso ponto de sexo anônimo entre homens. Ao vasculhar a casa de Carella, descobriram não as provas da sua subversão mas os relatos de suas aventuras homossexuais. Só então se deram conta do equívoco. Como garantia, as autoridades fotocopiaram seus diários, ameaçando divulgá-los caso ele fizesse denúncias sobre as torturas sofridas. Ainda assim, a notícia se espalhou e Carella foi expulso da universidade. O reitor, segundo relato de Hermilo, não queria um professor que "vivia caçando homens; e o que é pior, negros". Em seguida, Carella foi obrigado a voltar para a Argentina. Orgia saiu publicado no Brasil em 1968. Depois de esgotado, mergulhou no esquecimento.
Entrei em contato com essa obra de Carella no Recife, em finais da década de 70, quando fazia pesquisas para meu livro Devassos no Paraíso (Record). Através de amigos locais, como Antonio Cadengue, consegui entrevistar ex-alunos dele, que me deram um exemplar desse livro já então raro. Inseri a história de Carella e trechos do seu livro num capítulo em que narrei como estrangeiros iguais a ele tinham sucumbido aos apelos eróticos do "país da brasa" - entre outros, Conrad Detrez, Fernand Legros, George Michael, Nestor Perlongher, Elizabeth Bishop.
Na década de 90, o livro "brasileiro" de Tulio Carella foi descoberto na Argentina, justamente através da minha obra. Passei a ser procurado por conterrâneos dele, interessados em localizar os originais perdidos e até mesmo editá-los a partir da versão em português. Atualmente, um estudante prepara uma tese que resgata a literatura homoerótica de Carella. Enquanto isso, no Brasil, Orgia criou uma pequena sub cultura, a partir de Devassos no Paraíso. Quando estudante de cinema em Nova York, Karim Aïnouz chegou a fazer um curta, Paixão Nacional, vagamente inspirado na história do exílio brasileiro de Carella. Aliás, um dos sonhos de Karim era filmar a história de Carella, mas agora isso parece ter se tornado coisa do passado, depois que se tornou famoso.
O curioso é que, sem conhecer o livro, sofri algo semelhante ao equívoco que vitimara Carella, quase 20 anos antes. Em 1978, fui interrogado, fotografado e fichado na polícia, junto com os demais editores do jornal Lampião, sob acusação de atentar contra a moral e os bons costumes, segundo a Lei de Imprensa. Como prova de que o Brasil continuava paradoxal (ou destrambelhado, vá lá), o delegado começou perguntando se eu já tinha ido a Cuba, se conhecia alguém que tinha visitado Cuba, etc. Até que um auxiliar veio cochichar no seu ouvido, e a sessão terminou de repente. Tive que voltar outro dia, para sofrer o interrogatório certo. Afinal, eu não era um subversivo padrão. Diante de mim e do meu advogado, ambos de terno e gravata, o delegado visivelmente confuso perguntou como devia me chamar. Em linguajar cru e direto (que aqui transcrevo mais respeitosamente), eu lhe respondi: "Pode me chamar de homossexual mesmo". Eu não sabia que Tulio Carella já vivera antes as consequências deste país de contrastes. Ou, quem sabe, de piadas prontas, não fossem os aspectos trágicos de tais equívocos. Foi também graças a esses contrastes que o Brasil ofereceu à Argentina e ao mundo esse Orgia, exemplar da melhor literatura erótica, dotado de grande beleza de estilo e acuidade reflexiva.
JOÃO SILVÉRIO TREVISAN É ESCRITOR E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE DEVASSOS NO PARAÍSO E REI DO CHEIRO (RECORD)

Vida dupla de um intelectual
Redação do DIARIODEPERNAMBUCO.COM.BR
29/05/2011 | 09h24 | Tulio Carella


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Escritor argentino Tulio Carella protagonizou no Recife experiências com homens do cais do porto; passagens são narradas no livro Orgia, relançado no Brasil

Paulo Carvalho


Entre os anos de 1940 e 1950, Tulio Carella foi um dos escritores mais cultuados de Buenos Aires. Poeta, ensaísta, dramaturgo, crítico e roteirista, ganharia neste período dois prêmios concedidos pela Sociedade de Autores Argentinos. Atrelado ao sucesso editorial também viria certa fama de professor universitário carismático (reconhecimento transnacional e, como sabemos, raro nos casos de talento para as letras).

Acontece que por volta de 1960, o argentino recebeu um convite - se não exatamente irrecusável - cheio de boas promessas: dar aulas no curso de Arte Dramática/Formação de Ator, da Universidade Federal de Pernambuco. Os autores da proposta, Ariano Suassuana e Hermilo Borba Filho, também professores da Escola de Belas Artes, não poderiam adivinhar os efeitos da experiência tropical sobre esse espírito platino de 48 anos.

Carella encontrou no Recife um ambiente de transição que pouco lhe atraiu no sentido propriamente ideológico (à esquerda, lembremos, estava a agitação política das Ligas Camponesas e Cuba; do outro lado, uma direita já bem articulada que promoveria, por engano, sua prisão e expulsão do país, além de pouco tempo depois um golpe militar).

Não era um revolucionário e sua ligação com o Recife tratou-se de uma adesão afetiva ou erótica. A vida que levou na cidade foi, portanto, e talvez pudéssemos dizer assim na iminência de um golpe militar, prosaica. Na UFPE, dava aulas disputadas, com seu já reconhecido talento. Na vida social, foi alvo de um relativo abandono por parte de seus pares, suprido pela vida paralela de bolinações e experiências homoafetivas - resumidas por uma pergunta inspirada pelo francês André Gide. Queria descobrir, junto aos trabalhadores do porto do Recife, afinal, “que é um negro?”.

Parte desta temporada, vivida entre 1960 e 1962, distante de seu casamento de mais de 30 anos com uma pianista argentina, foi narrada em folhas de diários e lançadas originalmente sob dionisíaco título Orgia - Diário Primeiro (José Álvaro Editor, 1968). Com tradução assinada pelo companheiro de cátedra, Hermilo, a edição original foi o quarto volume da Coleção Erótica, série coordenada pelo pernambucano e pelo também teatrólogo Aldomar Conrado.

A circulação do título foi reduzida - talvez pelo período do lançamento, auge da ditadura; talvez também pela temática homoérotica do diário - motivo pelo qual viraria item de colecionador, disputado nos sebos do país (uma falta, aliás, intensificada pela publicação exitosa, em 1986, de Devassos no paraíso, de João Silvério Trevisan. No livro de Trevisan, constam trechos, entre outras passagens, do romance de Carella com um pugilista sarará de apelido King-Kong).

Foi motivado pelo silêncio em torno do nome Carella que a editora paulistana Opera Prima relançou no início deste mês Orgia: Os diários de Tulio Carella, Recife, 1960. Na edição, a tradução de Hermilo ganhou uma apresentação assinada por Alvaro Machado, além da longa bibliografia de Carella.

No título, Carella não realiza uma incursão estritamente acadêmica. Pelo contrário, Orgia é como um traje sisudo de uma análise socióloga revirado ao avesso. Suas inúmeras experiências homossexuais (antecipadas pela epígrafe A noite e a solidão estão plenas do diabo) resultam como costuras de uma narrativa  muito bem trabalhada em duas vozes narrativas (cujo efeito é de um romance dentro de um romance).

“Penso que o título prenuncia toda uma passagem de uma sensualidade espontânea para uma situação de coação entre as pessoas. Pela condição de consumo que ia se misturando no circuito do desejo, do sexo, da sensualidade. Isto tudo já estava em transformação e ele pega num ponto de ]passagem”, avalia o editor Alvaro Machado.

Com se fosse uma ficção (é um roman à clef portanto), Orgia traz personagens com nome trocados. Por exemplo, Tulio virou Lúcio Ginarte; Ariano, Adriano; Hermilo, Hermindo. Troca que não evitaria um escândalo na Argentina e o “sepultamento vivo” do autor durante os anos de chumbo por lá.

O mais estranho é que, até os dias de hoje, o silêncio permanece:  Orgia nunca foi editado em espanhol, assim como, outros títulos de Carella não receberam estudos profundos ou reedições como esta da Opera Prima, aqui ou ou em seu país.


Devassos no paraíso iluminou resgate

Livro de João Silvério Trevisan foi fundamental para o processo de recuperação da memória de Tulio Carella

Para Álvaro Machado, editor à frente da Opera Prima, a nova publicação de Orgia trata-se de uma redescoberta do escritor argentino, também autor do esgotado Roteiro Recifense (com poemas em espanhol sobre o Brasil, editado pela Imprensa Universitária em 1965) e de ensaios de referência sobre a cultura portenha El tango, mito y essencia (1956) ; El Sainete Criollo: Antología (1957) e Picaresca Porteña (1966).

Machado enfatiza a importância do escritor João Silvério Trevisan nesse papel de resgate da memória de Carella.“Como aconteceu comigo, acho que a maioria das pessoas tomou conhecimento de Orgia através do livro Devassos no paraíso, de João Silvério Trevisan (Editora Record, 1986, hoje esgotado). No livro, Trevisan republicou os trechos mais homoeróticos da tradução do Hermilo. Mas fazia muito tempo que eu não ouvia falar deste escritor. Tive vontade de conhecer o texto inteiro e só encontrei, com alguma dificuldade, em sebo”, explica.

“Comecei o trabalho de edição em 2005 e o contrato com Leda Alves (mulher de Hermilo) foi assinado em 2007”, acrescenta Machado. “São seis anos, então, nos quais pesquisei a bibliografia dele tanto no Brasil como na Argentina, descobrindo o que aconteceu de fato com o autor em no nosso país”.

Segundo Machado, um dos feitos de sua pesquisa foi situar o ano em que começam os relatos, 1960. “Os livros que o citavam davam datas diferentes, mas pelos acontecimentos narrados - a morte de Carlos Pena Filho; a prisão de Adolf Eichmann, na Argentina... isso tudo é cronológico: mês a mês. Pode ser que haja um segundo volume, mas o que ele deixou foi esse mesmo, de 1960”, aponta.

A respeito das críticas que recebeu sua apresentação, o editor se mostra receptivo às sugestões para a terceira edição de Orgia. “Depois que o livro é publicado a gente começa a ter um pouco mais retorno. As pessoas se situam, veem o texto inteiro e, como aconteceu com a própria Leda, começam a lembrar de mais passagens, mais detalhes. No entanto, do que as pessoas têm falado, acho que minha pesquisa está basicamente correta e numa segunda ou terceira edição podemos acrescentar algumas coisas. Digo acrescentar (e não alterar) porque o que está no livro são dados corretos”.

O editor, contudo não consegue encontrar explicações para o silêncio em torno da figura de Carella. “De 1968 até a metade da ditadura argentina, quando ele morreu, é compreensível que ele não tenha publicado nada muito em função do clima político que havia no seu país. Depois dele morrer, em 1979, no entanto, nunca mais ele foi reeditado e republicado - nenhuma obra, mesmo o livro sobre o Tango, que é uma referência no assunto - o que é um sinal muito atípico. Os argentinos costumam ter carinhos por seus autores. Eles têm muitos leitores qualificados, numa proporção melhor do que a nossa, às vezes. Eu acredito que este livro, Orgia, foi o principal motivo do silêncio em torno da obra dele, por uma questão moral, certo tipo de preconceito. Mas, claro, nada justifica o esquecimento de obra de mais de 20 livros (alguns em mais de uma edição e duas delas premiadas pela Sociedade de Autores Argentinos). Qualquer estudioso que se debruce sobre a obra dele vê o primor que é o estilo dele”, avalia.

De acordo com o editor, Carella não teve filhos e tem pelo menos um irmão e um sobrinho-neto que, agora, reclamam direitos  autorais. “Eu fiz uma pesquisa na Argentina (entre 2006 e 2008), publicando no jornal La Nación, anúncios pedindo contatos com familiares para fins culturais. Queria saber da família informações como as circunstâncias em que ele tinha morrido; e se existiam os originais para comparar com a versão do Hermilo (sem os originais a revisão foi muito mais difícil – eu fiz quatro ou cinco provas de revisão); até 2008 eu procurei. Fiz três viagens para Argentina; usei o catálogo telefônico de Buenos Aires para Cerellas; e não consegui nenhuma confirmação, mesmo porque esse sobrinho neto está em Mercedes, interior da Argentina”, relata.

Machado conta que também pediu ajuda, durante a pesquisa, ao autor de A história da homossexualidade na Argentina, o argentino Osvaldo Bazán (no título, Bazán dedica um capítulo inteiro a Carella, inclusive realizando citação de uma pesquisa de Machado publicada na internet sobre o tema, em 2005, e que tinha como base, principalmente, os quatro volumes de memórias de Hermilo). “Ele não tinha sinal. Mas depois do sucesso que o capítulo de seu livro fez, através das resenhas dos jornais argentinos, ele se sentiu interessado para fazer a reversão para o espanhol e procurou uma editora pequena. Juntos conseguiram encontrar estes familiares. É de fato um caso muito atípico, porque os originais não estão de posse da família”;

“Eu deduzi que o original foi passado para Hermilo durante uma visita de Hermilo a Buenos Aires. Os militares brasileiros não apreenderam os diários em si porque eles declararam ter tirado cópias dos “trechos mais escabrosos” (conforme eles). Além disso, pela escrita do diário temos certeza que ele trabalhou literariamente sobre ele mesmo depois da volta dele (no começo ele dá uma dica de como vai acabar a aventura dele: numa cela de prisão, numa ilha - provavelmente Fernando de Noronha - com mar cheio de tubarões)”

Apesar dessa situação atípica, de um livro que não possui original, mas apenas a tradução (que ficou como obra autoral, base para qualquer trabalho) - afinal, um tipo de polêmica que não ajuda muito a carreira de nenhum livro - Machado  afirma que está colocando, com algum esforço, o livro no mercado. “Teve uma entrada mínima na livreira e percebo que ele está encontrando leitores. É um livro com valor literário evidente, muito moderno hoje em dia, talvez mais moderno do que na época em que foi publicado”.

“Venho argumentando”, acrescenta, “que não é justo com um autor que tem tantas obras valiosas e reconhecidas, que vai fazer 100 anos em 2012, tenha sido esquecido dessa maneira. É muito melhor publicar o livro inteiro da forma como foi feita (já que não são apenas passagens eróticas, mas há muita informação crítica e reflexões estéticas e filosóficas de primeira linha) do que ficar vendo pipocar  aqui e ali reproduções de duas ou três páginas eróticas apenas ad infinitum. Penso que a trilogia portenha, do autor, por exemplo, merece ser republicada de qualquer maneira. Não tem uma justificativa para ter desaparecido tanto”, conclui Machado.


O RITMO DA CIDADE
Os anos 1960 no Recife foram marcados pela força dos movimentos católicos, políticos e artísticos. O próprio campo no qual Carella vai se disseminar mostra a construção de sua autonomia e autoridade. O teatro, nessa década, atinge sua maturidade como instituição artística, o que é comprovado pela própria criação de um curso universitário voltado ao seu ensinamento. Sobre a década de 1960, falamos demasiado das revoluções ideológicas. Mas esquecemos as tecnológicas. O fato é que nessa época também estamos no fim dos bondes elétricos, que começaram a ser substituídos pelos pesados trolebus. Apenas 60 frotas percorriam os trechos mais movimentados da cidade, o que lhe garantia, ainda, a possibilidade da movimentação e do ato da flâneurie. Túlio circulou pela cidade em transformação, em seu anonimato arbitrário.

Anonimato e condição estrangeira lhe permitiam críticas pontuais à modernidade local. Ao ser apresentado ao Teatro de Santa Isabel, não contém o comentário que, para o recifense, deve soar como ofensa. “O automóvel para diante de um teatro: é o Santa Isabel. Mostram-no com orgulho pueril e conservador. Para uma cidade de província é um luxo. O Santa Isabel tem uma falsa atmosfera senhorial, uma imitação de luxo. Somente o edifício é equilibrado, com o pórtico neoclássico, o saguão lajeado de branco e preto, e a altura elegante”.

Aqui não era reconhecido como autoridade. Podia se misturar à experiência social. Perder-se na cidade. Perder-se não somente na experiência coletiva, em meio à multidão subnutrida. Mas perder-se também no próprio meio intelectual.

Não demorou, porém, para perceber que os olhares constantes lançados a ele nas pontes do Recife tinham a ver com o modo particular de se vestir. Era um estrangeiro. E como um explorador medieval repleto de espelhos e colares, foi conveniente aos negros, mulatos e mestiços, que negociaram seu membro enrijecido por uma camisa nova, um maço de cigarro ou alguns trocados para comprar uma bebida. Negros, mulatos e mestiços que, embora sejam ressaltados por suas características biológicas positivas, eram pobres, miseráveis ou apenas alpinistas sociais por uma questão de sobrevivência.

Naturalmente, não podemos reduzir a sedução homerótica relatada no livro apenas à dialética social de dominantes e dominados. Obviamente, há o prazer. E como todo assunto ligado ao prazer, é um tabu. O prazer dos mulatos em Orgia é, porém, sempre reticente. Na maioria das vezes, demonstram-se receosos, dizem que aquela foi a primeira penetração de suas vidas. Preferem ser visto como dominantes. A questão masters and servants é substituída por dominantes (os civilizados, polidos, que encaminham a sedução) e dominados (os que se subjugam a ela).

Nesse sentido, a localização de Túlio no Recife é estratégica. Morando numa pensão da Sete de Setembro, fazia trajetos específicos que, coincidentemente ou não, levaram-no aos becos, às vielas e aos guetos, onde até hoje o ato de se exibir homoeroticamente é tradição. Conde da Boa Vista, Cinema São Luiz, Duque de Caxias, Cais de Santa Rita. A cidade é comércio até às 18h. Convive-se com a gritaria e o azudeme das frutas que se mis- turam à maresia e ao odor de urina das calçadas. Ainda hoje, os mesmos locais funcionam como gueto. Com a pressa do dia, é difícil olhar para os lados e observar o cortejo sensual que se segue enquanto a cidade vive seu cotidiano. Talvez os anos 1960 foram o marco inicial da derrocada da cidade como experiência sensorial estética, dentro dos parâmetros modernos de apreensão e percepção das trocas urbanas permitidas pela flâneurie. Talvez os que estejam inseridos no gueto percebam que um olhar a mais numa ponte, às 17h da tarde, é um código de liberação e permissão.

Por outro lado, as intervenções conceituais do autor sobre a cidade nos revelam algo incomodo. “Cidade pequena, inferno grande. Pois bem: este é inferno, onde todos se veem a cada instante, conhecem-se a fundo e não podem libertar-se”, escreveu Carella, sobre o ato do mexerico. Inevitável na cidade, a fofoca, ou, para falarmos sociologicamente, o ato de vigiar e punir, lhe incomoda. Frustra-se com a possibilidade de passar incólume à nova cidade. De um canto ou de outro, ecoam-se os sacarmos, as ironias e os desafetos.

Outro dado interessante. A elite intelectual e artística sempre se valeu de diários e correspondências de suas impressões europeias, que contribuíram para a própria identidade da cidade a partir do contato com a experiência moderna por excelência. Nesse caso, temos a inversão. O Recife e sua intelectualidade são analisados através de um relato descritivo que desloca o protagonista recorrente em tais gêneros narrativos. Ao vivenciar o Recife, e sua marginalidade, Carella nos coloca diante de anônimos. Mas, não se iluda, estes anônimos, mulatos, pedintes ou fofoqueiros, personagens secundários da cidade, também são idealizados.

Orgia é um relato minucioso do homoerotismo, mas é também a descrição da vivência citadina, com seus sinais, com seus indícios, com sua regionalidade. Sedutor, mas melancólico, e por vezes sufocante como a cidade do Recife. Ontem e hoje.

Carolina Leão é doutora em Sociologia.


 
Adaptação da obra de Tulio Carella "ORGIA" feita por  Moisés Monteiro de Melo Neto com Wellington Junior e Breno Fittipaldi foi encenada no Recife

Memórias de ruas asfaltadas pelo “prazer” 



Orgia, do escritor argentino Túlio Carella, que teve sua primeira edição, no Brasil, em 1968, em tradução de Hermilo Borba Filho, fala de um personagem — Lúcio Ginarte, poeta e dramaturgo —, residente na então mais importante cidade da América Latina — Buenos Aires —, que recebe, em 1960, um convite da Universidade Federal de Pernambuco para ser professor de um recém-fundado curso de teatro. Na passagem entre uma cidade e outra, o personagem conhece uma nova paisagem econômica, social e cultural. Não só: ele descobre prazeres afetivo -sexuais distintos da sua orientação sexual. Entre o deslocamento geo-sócio-cultural e a descoberta da nova orientação sexual, subsiste a memória. Memória da Buenos Aires que ficou para trás (suas ruas, seus monumentos, os amigos, os familiares e a vida cultural), memória do que vai sendo vivido no presente. É na confecção de um diário que ele guarda os feitos e os fatos dessa memória recente, do presente que vai se plasmando ante os seus sentidos. Como diz o narrador do romance, “Lúcio Ginarte despeja em seus cadernos parte de suas experiências. São tão abundantes que não é possível anotar todas. Receia que a seleção não corresponda ao melhor, mas acha que seja a mais próxima dele. Sem perceber suprime os escrúpulos morais para obter a felicidade”. Finda a experiência de professor e o seu retorno para Buenos Aires, resta o diário — matéria-prima para a confecção de um futuro romance. A capital da Argentina já não é a mesma que ele deixara. Não porque esta sofrera alguma brusca transformação, mas porque o protagonista da história já não é o mesmo. Uma cidade se inventa pelo olhar de quem a observa, e o seu olhar sobre a natureza humana fora alargado: seja culturalmente, seja afetivo-sexualmente. A cidade que deixara para trás também já não é a cidade que vivera e que inventara a partir do que vira, ouvira, tocara e fora tocado, mas a cidade registrada nos diários. Entre duas realidades eternizadas — Buenos Aires e Recife —, restou o recurso da imaginação: o construir e o reconstruir dos espaços sócio-culturais, o construir e o reconstruir da sua afetividade sexual.

Toda narrativa é uma tentativa de presentificar os fatos retidos pela memória, uma tentativa de dar sentido ao que vimos e guardamos na memória. Não se narra o instante presente, narra-se o que já aconteceu. O instante presente é passível apenas de descrição — aquilo a que se refere —, não de narração — quando nos referimos a um fato e, ao mesmo tempo, o interpretamos. Esta observação faz-se necessária porque Orgia é um romance que se estrutura entre dois tipos de registros: o da memória e o do diário. A primeira narrativa — a da memória — tem o foco narrativo na terceira pessoa; a segunda narrativa — a do diário — se dá na primeira pessoa, e acolhe o que Lúcio Ginarte reteve ou considera relevante de ser registrado dos fatos do dia.

Adaptação da obra de Tulio Carella "ORGIA" feita por  Moisés Monteiro de melo Neto com Wellington Junior e Breno Fittipaldi foi encenada enoRecife



É pelo modo narrativo na terceira pessoa que se inicia o romance de Túlio Carella. Por meio deste narrador conhecemos as dúvidas de Lúcio Ginarte em aceitar o convite para lecionar no Recife (recorrendo, inclusive, a uma vidente), os seus primeiros contatos com a cidade (as pessoas, o clima, seus odores, seus olhares) e a sua vida intelectual. O foco narrativo muda quando o narrador inscreve passagens do diário de Lúcio Ginarte. Assim, o romance se constrói interpolando dois olhares: o do narrador, que tenta ver os fatos com olhar distanciado e crítico, e o do personagem, que registra suas impressões da cidade. A narrativa na terceira pessoa é toda em itálico, reforçando a ideia de distanciamento (afinal, o aspear e o itálico em um texto denotam a referência a um enunciado proferido por outrem, que podemos ou não aceitar); a do diário, em letra corrente. Assinale-se, porém, que ao inserir passagens do diário do protagonista em sua narrativa, o narrador redimensiona o sentido que o autor do diário quis dar a sua narrativa, já que essas passagens estão enfeixadas pelo seu texto. Assim, se toda narrativa refere e interpreta ao mesmo tempo, o narrador de Orgia tanto se refere ao diário, citando-o, quanto o interpreta: seja ao escolher os trechos que devem ilustrar a sua narrativa, seja ao inserir esses excertos nas passagens que ele considera adequadas. É sempre interessante comparar as passagens do diário de Lúcio Ginarte que estão em Orgia e que, posteriormente, foram também citadas por Hermilo Borba Filho em seu romance Deus no pasto (1972). Elas mudam completamente de sentido, já que o texto que as precede e o que as sucede redimensionam as informações contidas no diário. O diário em Orgia torna-se uma espécie de memória da memória. Memória primeira quando do registro de Lúcio Ginarte; memória segunda ao ser inserida em uma narrativa secundária. Dessa forma, o diário alarga o próprio olhar do narrador onisciente. É como se o diário de Ginarte encerrasse um mundo ou um olhar sobre o mundo que o próprio narrador, apesar da sua onisciência, não pudesse penetrar em sua plenitude.

Assim, é por meio da interpolação narrativa, pela tentativa de presentificar fatos que são agora apenas matéria da memória, que Orgia se organiza formalmente. Sabemos que o autor dessa obra era de fato argentino, dramaturgo, poeta e crítico literário; sabemos que ele viera ao Recife para ensinar no seu curso de teatro e que nesta cidade viveu uma experiência densa e única; assim como sabemos que ele foi confundido pela polícia com um agente cubano e, depois de preso, espancado e destituído da Universidade, expulso do Brasil. Orgia poderia ser apenas o registro desses eventos. Ou melhor, poderia ser apenas a publicação dos diários que ele — Túlio Carella — escrevera durante a sua estada no Recife, entre os anos de 1960 e 1962. No entanto, ele precisava entender melhor o que de fato acontecera consigo. De volta a Buenos Aires, distanciado do seu objeto, ele constrói um narrador na terceira pessoa que é o psicanalista. Mais do que um narrador que se refere ao passado, é um narrador que tenta dar sentido ao que ele vivera. Ele deixa de ser Túlio Carella para ser Lúcio Ginarte; atribui os diários que escrevera a este personagem de papel, e constrói um narrador que narra e interpreta a sua própria experiência. Afinal, tudo agora era apenas memória: tanto a cidade quanto os diários que registraram o seu tempo no Recife. Ao transformar as suas memórias em matéria de um romance, Túlio Carella pode alargar o mundo que viu e viveu em terras distantes, safar-se do julgamento dicotômico entre verdade/mentira, e mostrar que tanto a memória quanto a arte são realidades etéreas.

Por fim, faz-se necessário observar que é nesse jogo de interpolação entre narrativas na primeira e na terceira pessoa que podemos observar as transformações que o personagem Lúcio Ginarte irá passar durante a sua estada no Recife. Cada vez mais, ao longo do romance, o narrador na terceira pessoa vai cedendo espaço ao narrador do diário. Ao ver que o seu personagem, pouco a pouco, suprime “os escrúpulos morais para obter a felicidade”, o narrador cede a palavra ao próprio Lúcio Ginarte; seus comentários vão ficando dispensáveis. Não há mais necessidade que ele, o narrador na primeira pessoa, psicanálise o seu personagem. Este, agora, a partir das narrativas fixadas no diário, refere e interpreta a si mesmo. Dessa forma, Orgia pode ser classificado como um romance de formação.

Anco Marcio Tenório Vieira é professor do Departamento de Letras da UFPE



Adaptação da obra de Tulio Carella "ORGIA" feita por  Moisés Monteiro de Melo Neto com Wellington Junior e Breno Fittipaldi foi encenada no Recife



O desejo sob o sol que nos (des)protege 


“Por toda parte, vê-se uma profusão de combinação de cores que choca Lúcio, mas ele descobre que é preciso a cor intensa para não desaparecer na luz tropical. A policromia é uma defesa contra o sol que devora o branco dos climas quentes”.

flâneurie exige uma predisposição à melancolia. Como deixar-se envolver pela multidão sem ser confrontado com os sentimentos desconhecidos que nos protegem de nós mesmos? Também requer uma curiosidade laboriosa que, fronteiriça, limita-se entre o entregar-se ao coletivo, descortinando-o quase antropologicamente, e o criar uma espécie de panopticom privado, no qual as imagens e as ideias do outro sejam observadas não como moral, mas como arte. A princípio, o desafio do flâneur não era científico, mas estético: o alumbramento diante da cidade e a desconstrução do mito da metrópole em nome da experiência individual (e da assinatura do artista, claro).

Quando chegou ao Recife, em 1960, para ministrar uma disciplina no recém-formado curso de Artes Dramáticas, da Universidade do Recife (hoje UFPE), o argentino Túlio Carella encontrou condições especiais, sociais e individuais para criar sua janela e observatório pessoal. Na Argentina, já era um intelectual de representação significativa, tendo vivenciado o modernismo portenho e crescido numa cidade cuja modernização chegara com estrutura econômica, ainda no final do século 19. Embora reconhecido, Túlio parecia um outsider. No Recife, o sonho de ser anônimo e, enfim, vaticinar seu deslocamento íntimo, realiza-se durante os dois anos em que as ruas predominadas pelo cheiro dos manguezais viram seu percurso cotidiano, registrado analiticamente em forma de um diário estetizado pela melancolia e sensualidade de Carella.

O Recife emerge de sua narrativa confessional surpreendente, junto com seus personagens; seu ethos; sua aura católica e o provincianismo burguês; sua movimentação e conservadorismo. Aspectos culturais relevantes para o entendimento do ser e pertencer à capital pernambucana revelam-se nas páginas de Orgia, diário traduzido por Hermilo Borba Filho, que depois de décadas esgotado tem relançamento pela editora Operaprima. Em cinco décadas, Orgia ganhou status de cult por sua narrativa homoerótica dispor de elementos caros ao tema, como a guetificação da atividade sexual e a marginalização do afeto. É fácil analisar Orgia por essa perspectiva. A começar pelo título e a descrição da contracapa: “quem sabe por que escrevo este diário? Por amor ao pecado, talvez, para quem lê-lo?,ou tento justificar-me a mim mesmo com uma exagerada grandeza no erótico? Que procuro? Que persigo”, diz.

A narrativa explora detalhadamente a arte da sedução, da entrega e do desejo homossexual. O que faltou, no entanto, nessa análise tão ligada ao afeto homossexual, foi a percepção de que Orgia fala também do Recife. Dos seus guetos, da sua marginália. Da homossexualidade compulsória dos morenos, mulatos e mestiços que circulavam pela cidade oferecendo o falo como sedução, troféu e moeda de troca. Ao nos propiciar essa passagem pela intimidade pessoal do escritor, Orgia incomoda, desconcerta e seduz, contraditoriamente, das formas mais diversas. Compartilhamos a angústia do autor, em seu deslocamento. Mas em tempos do politicamente correto a ferro e fogo nos incomodamos com sua sinceridade. Uma delas é a sua capciosa e retórica pergunta feita regularmente nas 300 páginas do livro: “o que é um negro?”, pergunta o personagem Lúcio, durante os idílios sexuais com os mulatos encontrados nas zonas de prostituição da cidade ou quando se vê diante de um belo exemplar do gênero. Malandros, mendigos, amantes. Negros. O que é um negro?

Não podemos deixar de voltar à Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, obra que tentou desvendar psicossocialmente as etnias formadoras da identidade brasileira e cuja atenção recorreu às raças africanas impostas à economia açucareira. Em sua obra monumental, Freyre fetichiza os primeiros contatos dos colonizadores com os povos primitivos. Diz que os galegos aportaram no Brasil praticamente pisando em índias nuas, voluptuosas que, segundo o intelectual, despertou nos portugueses o arquétipo da moura encantada de suas lendas tradicionais. Os últimos capítulos de Casa Grande & Senzala avaliam a participação e influência da cultura negra no sistema patriarcal e mostram o confronto entre o mundo civilizado e o primitivo – e o processo sádico que surge a partir da figura do senhor de engenho, que seduz e estupra as negras escravas, não por sê-las de raça inferior ou malemolência provocante.

Aqui, a questão é o poder que permite e banaliza a imposição do homem branco sob os demais. No entanto, o discurso é de que a malemolência e sensualidade acabariam por incitar o faro sexual dos dominadores. Quem discute as presas fáceis? Eram fáceis? Se “desfrutáveis”, deixaram-se seduzir por livre arbítrio, fizeram apenas por uma questão atávica ou foi a entrega uma forma de “negociar” a própria liberdade e ascendência social?

Outra digressão: Bahktin, em Cultura Popular na Idade Média, investiga a relação entre cultura e civilização, mostrando como determinadas manifestações populares são encaradas como primitivas e deveriam ser evitadas pela incipiente burguesia se esta quisesse se mostrar como polida e cortês. As danças sensuais e a gula, movimentos do baixo ventre, eram alguns dos indicadores de atos primitivos, relacionados à volúpia, ao descontrole dos instintos naturais que acabaram sendo normatizados no processo civilizador (a partir do século 16). A obra de Carella percorre exatamente essas questões. Nela, temos o argentino civilizado e encantado com a oferta fálica pelas ruas do Recife. A oferta de negros. Enquanto a moral branca, vestia-se de forma minuciosa e trancafiava seu corpo e seu desejo. Cabia à burguesia acompanhá-la pelos sobrados, pelos casarios ou pelo indiscreto estreitamento das casas conjugadas que revelam muito mais do que se poderia saber sobre a alteridade do senhor, seu vizinho. Cabia à experiência popular vivenciar o inferno típico da cidade: a sobrevivência. Desse modo, não nos distanciamos muito do início da nossa colonização e da dialética da nossa modernidade.

Vejamos alguns trechos comentados de Orgia. “E começo a andar para apreender os aspectos da cidade. Na fila que esperava o ônibus havia muitos morenos, limpos e comunicativos. Vê-se outros mais nas ruas e todos têm um aspecto alegre, sereno pacífico. Há uma predominância de jovens, quase não se veem velhos. Os canais lodosos, amarelados recordam-lhe as águas do Rio de la Plata. O centro da cidade não é muito grande. E formado por duas ruas paralelas e muitas transversais”, transcreve Carella, através do personagem Lúcio. O ato de se deixar movimentar pelo ritmo da cidade pontua a flâneurie de Carella, que tece comentários sobre o provincianismo do Recife em meio à sua modernização: “Não é difícil compreender a geografia do Recife. Há uma ilha e dali partem as ruas, que se abrem como um leque. O rio Capibaribe ondula sinuosamente em curvas pronunciadas. As pontes são simétricas, mas diferentes. Um ar calmo, provinciano, parece envolver tudo. O que mais lhe chama a atenção é o duplo aspecto da cidade. Até aqui chegou o horrível progresso, com seus arranha-céus de cimento, metal e vidro. A avenida Guararapes é um exemplo de modernismo decepcionante”.

Túlio chegou ao Recife após o boom desenvolvimentista da era Juscelino, que foi seguida por recessão, inflação e pobreza, principalmente na região nordestina. Embora a situação econômica não fosse uma das melhores, a cidade já contava com uma reflexão urbanística modernizante desde os anos 1920. Em certo trecho, um moreno lhe chama para a Praia do Pina, que diz ser ideal para a entrega amorosa. Já Boa Viagem seria indiscreta: alterna edifícios modernos com verdadeiras cabanas. Vazios imensos intercalados de arranha-céus e casas miseráveis.

Por onde anda, Carella se depara com mendigos, pedintes. Sente-se deprimido e vai à Igreja comungar. A oferta de igrejas não se compara a dos mulatos, mas é opulenta. Para Carella, as ruas com casas e sobrados coloniais de cores amarela, celeste e rósea são a verdadeira fisionomia da cidade. “A calma dominical envolve este lugar da esfera terrestre que nem sempre aparece no mapa. As mulheres e os homens vestem-se com esmero minucioso. Vão à missa. Há ruas asfaltadas e ruas de paralelepípedos onde permanecem os trilhos dos desaparecidos bondes. O tempo os irá desgastando. Lúcio confessa mentalmente sua ignorância da cidade, da sua história, sua gente, seus costumes”, revela. Em outra parte: “O Recife, como certas cidades, não se entrega à primeira vista. Seu encanto está oculto e talvez por isto se torne mais penetrante quando encontrado”, conceitua, compactuando da tese freyriana de que o Recife é uma cidade para ser descoberta, redescoberta em seus mistérios, em suas ruas obscuras, em seu ethos conservador.

Adaptação da obra de Tulio Carella "ORGIA" feita por  Moisés Monteiro de melo Neto com Wellington Junior e Breno Fittipaldi foi encenada em Recife



10/05/2011 - 10h20
Escritor argentino fala sobre sexualidade de recifenses em livro reeditado FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO
Há 50 anos, ao deixar a mulher em Buenos Aires e aceitar o convite do teatrólogo Hermilo Borba Filho para dar aulas de teatro no Recife, Tulio Carella iniciava uma jornada que o conduziria ao prazer selvagem, à tortura e, por fim, à ruína.
Teatrólogo, poeta, tradutor e ensaísta argentino, Carella (1912-1979) era, naquele 1960, um intelectual respeitado em seu país.
Foi indicado a Hermilo (1917-1976) pelo italiano radicado em São Paulo Alberto d'Aversa (1920-1969), a quem fora feito o convite original.
No Brasil, lhe atraíam "a brasa que arde como um fogo maravilhoso e perdurável", o "duplo aspecto destruidor e purificador que dá luz e sombra, ilumina e barra o caminho ao mesmo tempo".
Achava que o país deveria se chamar "Estados Unidos do Fogo".

Vagava pelo centro em encontros e bolinações com homens rudes, operários de pouca instrução. Registrou tudo, com crueza de detalhes íntimos, em seus diários.
No Recife, encantou-se com os negros ("A cor escura dos nordestinos me atrai como um abismo") e, guiado pela solidão nos grandes intervalos da atividade acadêmica, entregou-se à libertinagem sexual, principalmente homossexual.
Numa época em que crescia o desconforto dos militares com o momento político (Jango assumiria o governo em 1961), num bastião esquerdista (berço das Ligas Camponesas de Francisco Julião), a movimentação sorrateira de Carella foi tomada por subversão política.
Supondo que ele era o elo entre as Ligas e Cuba, os militares o prenderam e torturaram. Ao acharem os diários, descobriram que tudo não passava de orgia.
Despacharam-no de volta para Buenos Aires, não sem antes ameaçar divulgar os diários, caso ele denunciasse o que sofrera.
Em 1968, Borba Filho convenceu Carella a publicar os diários no Brasil, numa coleção erótica criada pelo teatrólogo pernambucano na José Alvaro Editor.
"Orgia", o livro, que passou anos esgotado, tornou-se um cult da literatura gay e raridade até mesmo em sebos. Ganha agora reedição pela Opera Prima Editorial.

É TUDO VERDADE
Quando voltou à Argentina, Carella trabalhou ficcionalmente os diários e fez um "roman à clef", história real contada como ficção.
O livro alterna narração em terceira pessoa com relato de diário tradicional, em primeira pessoa.
Responsável pelo novo volume, o jornalista e editor Alvaro Machado assina as notas e uma introdução que situa historicamente a obra e seu autor. Ele viajou a Buenos Aires e ao Recife e revisou lapsos de digitação, pontuação e montagem tipográfica da edição de 1968.
Machado conheceu "Orgia" por meio de "Devassos no Paraíso" (Record, esgotado), de João Silvério Trevisan, estudo sobre a homossexualidade no Brasil e maior responsável por difundir Carella e sua obra depois de esgotada a edição original.
Autor e livro viraram ícones da militância gay --Carella foi listado pelo Grupo Gay da Bahia como um dos "cem desviantes sexuais mais célebres na história do Brasil".
Em "Devassos", Trevisan transcrevia o trecho em que o autor faz sexo com um halterofilista sarará chamado King-Kong (leia ao lado), depois reproduzida em outras obras fora do Brasil.
"Do que eu conheço de literatura e de arte homoerótica, 'Orgia' é uma das coisas mais emblemáticas e contundentes, inclusive pela qualidade literária", diz Trevisan.
O escritor classificou de "muito estranho" não ter sido consultado por Machado para a reedição. "Porque, na verdade, eu que revelei Tulio Carella para o Brasil e os argentinos. Talvez houvesse uma competição embutida."
O sociólogo e professor da Unicamp Laymert Garcia dos Santos destaca o caráter socioantropológico de "Orgia", lembrando que, ao longo da obra, Carella repete uma pergunta: "Que é um negro?".
"O livro traz uma visão diferente: qual é o modo de ser do negro na intimidade absoluta. O que interessa é o ponto de vista ontológico --o modo de ser negro-- e o ponto de vida epistemológico _como posso conhecer o modo de ser negro, mergulhando fundo na sexualidade deles."
ORGIA
AUTOR Tulio Carella
TRADUÇÃO Hermilo Borba Filho
EDITORA Opera Prima
QUANTO R$ 64 (312 págs.)
AVALIAÇÃO bom.

Bernardo Carvalho, madeira de lei. Por Moisés Monteiro de Melo Neto







Os escritores Moisés Monteiro de Melo Neto e Bernardo Carvalho


O escritor Bernardo Carvalho nasceu no Rio de Janeiro, vive em São Paulo, mas para ele é fundamental o sentimento de não pertencer a um lugar, certo deslocamento que impossibilita ao mesmo tempo integração e  reconhecimento, ver as coisas de fora. São Paulo é sua terra estrangeira dentro do Brasil, seu estranhamento e em O sol se põe em São Paulo o narrador-protagonista (publicitário, neto de japoneses imigrantes) encontra-se com a dona de um restaurante japonês, Setsuko  (80 anos) instalam ali mesmo um terceiro espaço, cheio de identidades trocadas: ela lhe conta para que ele escreva, e  fazemos assim a viagem com eles a um Japão reinventado. “ Ela vinha de Osaka, o berço da Yakuza. No fundo, sou um moralista. O mundo está cheio deles. É um azar quando se tornam escritores. Estão sempre prontos a dar opinião sobre tudo.”(p.16). Ele critica a opção da irmã, que migrou para o Japão, em busca de emprego.   O jogo metalingüístico é óbvio, as frases curtas nos ao narrador que retornara àquele restaurante depois de 10 anos. Este narrador está desempregado e descasado; é descendente de japoneses; sua irmã foi morar no Japão – ele não fala muito sobre as duas. É a inquietação do um eu em passagem, há também o triângulo amoroso que nos remete ao passado, no Japão, depois da guerra. E os  personagens nesse entre-lugar tentam reconstruir suas identidades. Pós-moderno? Avesso dos estrangeiros no Brasil? Parecem inúteis tais classificações aqui, onde as informações históricas, geográficas mesclam-se em tom agressivo: “depois de me foder por nada, trabalhando como redator de comerciais de uma agência de publicidade...”.  Parece Dashiel Hammet. Pressentimos o Noir.
 O pôr-do-sol em São Paulo pode ser belo na poluição e Setsuko, voz dupla com o narrador, vem da terra do sol nascente, que vem se pôr em São Paulo. São universos paralelos, sutilmente contraditórios  Nissei (americano filho de japonês), sansei (neto)? Da Ásia,da América do Sul, fugindo da miséria, da opressão, do nada e seguindo um sonho. E o narrador escuta as histórias como se tudo estivesse na sombra no restaurante Seiyoken. Sakê, cerveja o apagar das luzes , perguntas, códigos: estrada de  palavras. Fecha-se a trilogia ''Nove noites'' (2002) e ''Mongólia'' (2003) são fronteiras apagadas, Setsuko foi jovem de família respeitada, conhecemos através dela o filho de um industrial e um ator de kyogen, o teatro cômico local.  Tudo parece um outro lugar, a ambigüidade, a entrega, as imposturas, angústia, a literatura como dissimulação...
O sol se põe em São Paulo foi reescrito 20 vezes. Temos nele a metalinguagem . É um livro que trata de literatura japonesa, cuja sociedade não preza a individualidade, não preza o estilo individual - a ruptura não faz parte da tradição cultural.
Carvalho faz parte de uma vertente da literatura brasileira a partir dos anos 80 : Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll e Chico Buarque. O jogo e a história em dubiedade: toda parte, lugar nenhum. A desconfiança A relação com o passado , com o conhecer-se, qual Édipo. Em “O sol se põe...”:  há ainda a história contada pelo homem com o lábio leporino que vamos conhecer no final da obra. Paira sobre tudo a desconfiança em relação a uma verdade histórica Há muitos microrelatos, vestígios, alguns enganosos. É literatura falando de si em processo metaficcional historiográfico o errante e sua relação com as coisas. Instabilidade, o desconhecido, projetos da existência e da experiência subjetiva: problematizações, desconstruções, como em O sol se põe em São Paulo, a construção do personagem principal, ambígua : “Voltar ao Japão como operário (apesar de nunca ter posto os pés lá antes) seria perpetuar o fracasso e o erro, a fuga apenas nos afundava ainda mais no inferno. A literatura podia ser a minha miragem, mas pelo menos era uma forma de abraçar o inferno como pátria. No fundo, era nisso que eu acreditava.” (CARVALHO, 2007, p. 20).
Carvalho ressalta: “A literatura que serve para alguma coisa é a que o mercado quer. Se vivêssemos na Idade Média, a literatura serviria para a Igreja. Se vivêssemos num país comunista, faríamos literatura oficial. Não servir para nada é um negócio radical e muito importante; permite que se faça uma literatura de ruptura, que não obedece a demandas preexistentes. Não é o novo pelo novo. Não é isso. É criar um mundo que ainda não existe. Criar uma vontade nas pessoas que elas ainda não têm (romance de demanda). Isso é genial. É uma oferta para ver se germina. É lógico que eu acho que a literatura serve para alguma coisa. Mas preciso manter esta ideia, porque é uma ideia política, de resistência: literatura não serve para nada mesmo. Mas eu vou continuar fazendo. A ilusão de que não tem função é super-importante. Para mim, é fundamental; me dá um alento; me deixa respirar. Para o tipo de literatura que eu faço, há cada vez menos espaço. A maioria dos escritores é composta por ingleses e americanos. Passei dois meses convivendo com alguns escritores anglo-saxões e me dei conta de que a importância do mercado é um negócio chocante. Esses escritores só funcionam em função do mercado porque se você for um escritor nos Estados Unidos e na Inglaterra e não funcionar no mercado, você não existe. Para mim, fazer literatura com essa preocupação é algo muito sem graça.”
A literatura no Brasil, país de analfabetos , onde o texto faz parte apenas de uma cultura de classe média ou de uma elite grosseira, iletrada, ignorante, que cultiva e reproduz a ignorância para os seus filhos: a arte que Carvalho defende não funciona na sociedade, não tem função, entra em desacordo - não tem lugar no Brasil . trata-se de um tipo de literatura que tem importância mas ele diz não ter nenhuma conseqüência social. Uma literatura que pode ser de resistência, A idéia de que a literatura não serve para nada surgiu na modernidade, e ele a considera importante. É uma idéia política. É essa idéia que faria a literatura de verdade sobreviver.
É uma literatura que se quer militante contra a perda do interesse dos leitores pela ficção na literatura. “Parte do livro pode ser lida como um pastiche dos romances do Tanizaki, narrado por uma das personagens principais. O Japão produziu grandes escritores no século XX. E isso em termos absolutos, mundiais. No caso desse romance, o que me interessava era o deslocamento do qual eu vinha falando, o Japão no Brasil e o Brasil no Japão, as coisas fora do lugar. E o curto-circuito que a inadequação e o estranhamento podem provocar na criação de outros pontos de vista, de outras maneiras de ver. Há uma frase no final do livro que resume esse sentimento e essa vontade: o oposto é o que mais se parece conosco".
Uma professora universitária escreveu um ensaio longuíssimo sobre Nove noites, dizendo que o personagem era um gay enrustido. E como o romance seria autobiográfico, só podia ser eu o gay enrustido. Então, com O sol se põe em São Paulo, eu queria fazer um livro que essa professora não descobrisse que o gay enrustido era eu. Até agora ela não descobriu.Se eu trato de gay enrustido, é porque isso me interessa, mas aquele não sou eu.”
Bernardo lembra Beckett a escreve algo dissonante, novo e inovador que demanda força de vida , um mundo sombrio, Sade também: Vozes dissonantes, incompatíveis com seu tempo. Forte, paradoxal. Uma celebração do humano.
Ele faz  o elogio da ficção e propõe uma formulação que não é simples ao ver " a imaginação como elemento constitutivo da realidade e não um artigo supérfluo". É parte da tendência da literatura brasileira contemporânea ao realismo e ao documental, uma tendência natural. Quanto maior a violência dessa realidade, mais ela vai impor uma representação unívoca, mais ela vai reduzir as possibilidades de representação. A questão não é representar ou deixar de representar a realidade (até porque, de alguma forma, ela sempre acaba representada), mas não sucumbir a uma determinada idéia de representação da realidade como modelo e paradigma. A imaginação é um elemento complexo da realidade. A literatura e a arte cessam quando você passa a aceitar modelos para a criação.
Os seus livros explicitam a manipulação do leitor até quase o grotesco. É muito visível. Mas o que o romance faz é manipular o leitor e fazer com que ele participe?
Carvalho polemiza: “Guimarães Rosa, que eu considero um gênio. Há três traduções no mundo do Rosa: duas boas (Itália e Alemanha) e uma na França (mais ou menos). Mas se perguntar para um alemão, italiano ou francês quem é Guimarães Rosa, ninguém sabe. Nos Estados Unidos, Grande sertão foi traduzido como bangue-bangue. Este jornalista nunca ouviu falar em Guimarães Rosa. É triste: você pode ser um gênio da literatura, pode fazer uma obra incontestável, e mesmo assim não vai ter lugar para você. No cânone internacional, ocidental, não tem lugar para o brasileiro, pode ser o maior gênio da raça. Você fica babando ovo para escritor inglês e americano (há alguns geniais), mas não tem a contrapartida. Ninguém vai ler escritor brasileiro. E não é escritor pequenininho como eu, é Guimarães Rosa. Ninguém sabe quem é Guimarães Rosa e nem quer saber. A cultura brasileira é samba, futebol e música popular. Não é alta cultura. O Brasil tem a oferecer cultura popular, futebol e administração da miséria. Não sei como lidar com isso. Eu sou um pouco paranoico. Mas se pode ver a paranoia como a criação do sentido. Se o mundo não faz sentido - e não faz -, o paranoico é que aquele que vê sentido onde não tem. O mundo não faz sentido, a vida não tem sentido, não faz sentido eu estar vivo. A paranoia me atraía como uma matriz de sentido, uma matriz desvairada. A eda paranoia me atraía como ficção, como produção de ficção.Eu escrevo os romances que eu gostaria de ler. É importante que o leitor participe de forma ativa da leitura, que seja empurrado para dentro do texto não de maneira meramente passiva, queria deixar isso claro. Então, o jogo em meus livros é importante. Tem a função de cooptar o leitor, de fazê-lo ter uma participação ativa no livro”.