PARTE 2
Se Proust, Virginia Woolf e Joyce inventaram o monólogo interior no romance do século 20, numa mistura de vários seguimentos temporais cravejados de digressões e experimentação (vide Ulysses, Joyce), isto agora parece não ser mais o que nos interessa tanto, hoje, neste torvelinho no qual as referências éticas estão intrinsecamente ligadas a uma direita desconcertante em seus propósitos elitistas e a uma esquerda não se decide por uma epistemologia mais criteriosa (no sentido acadêmico). Dar sentido à vida parece uma tarefa cada vez mais supérflua no processo da transmodernidade líquida, sólida ou gasosa que nos abate em números avassaladores. Presos a smartphones, vivemos num mundo de siglas, códigos, novidades que nos cerceiam e alucinam com sua velocidade inessencial. Há muito tempo que não adianta ser realista.
Moisés Monteiro de Melo Neto
Narrativas
ao modo de Hemingway, Fitzgerald e Faulkner, que refletem certo tom
jornalístico que difere das filosóficas inserções no absurdo de Camus e do
apogeu de narrativa enigma, nos
moldes de Clarice Lispector, Herman Hesse ou a estilística excepcional de
Thomas Mann (vide Doutor Fausto),
tudo isto parece meio distante do que se faz, agora e não adianta buscarmos nos
contos de Borges, Murilo Rubião, nos
romances do Realismo Mágico, nas distopias
de Orwell, no horror kafkiano, nas revoltas de J. D. Salinger,
no erotismo intelectualizado (e até biográfico) de Marguerite yourcenal (Memórias de Adriano), ou insisitir que o que temos em Saramago
também nos aliviaria (por, por exemplo, não apelar para o consumismo e tender
para a esquerda política). A que conclusão eu chego? A arte é o absoluto mais
possível e ela não tem que ser engajada, o mesmo em meio a esta época de
desprezo e esquecimento e à literatura cabe suprir o que não é dito pelos
outros textos. Ela não precisa mostrar
o mundo e nem acrescentar algo a ele.
O que a literatura pode é fazer saber que não há verdade absoluta
e sim verdades relativas (que se
contradizem recheadas de incertezas em meio a alucinação coletiva produto da
cultura de massa da indústria cultural etc.), só aí é que a literatura pode ser
crítica e resistência, desconstruir o “não
pensamento” das ideias recebidas
nos smartphones e computadores, a esmagar todo pensamento original e individual (e a crítica literária parece
preguiçosa diante disto).
Parece
que a ficção está no mundo para as pessoas que querem uma vida diferente da que vivem. Em toda obra
literária lateja um desejo insatisfeito. Seria a literatura um sonho lúcido? Provavelmente
não. Uma fantasia sobre existência?
Lembrando aqui que os meios audiovisuais não podem substituir a
literatura, no que se trata das possibilidades que a língua escrita oferece no
sentido de ampliação lexical, por
exemplo (a exceção seria a literatura oral de alto nível). E aqui não estamos ó
nos referindo ao livro de papel.
Para
ser político um escritor só precisa mostrar bem uma situação e deixar que o
leitor reflita sobre ela. O escritor tem que resistir ao desencanto? Possivelmente. As novas tendências como a autoficção
pelulam e em meio a tanta diversidade é oferecido o pacto fáustico com o capitalismo: o best-seller ou ser autor de séries de
TV com histórias que desobrigam os espectadores de juízes morais. Isso só para
falar de dois vieses que poderiam ser inimigos
da escrita e da leitura da literatura séria. Tais escritores vivem de
marketing.
Ah! Como continuarmos humanos diante dos mais terríveis verdades sobre nós num mundo múltiplo que a literatura tenta abarcar e onde a ontologia, política religiosidade,
moral estão a girar numa espiral caótica de tantos hipertextos? Mesmo assim a
literatura, no que trata da sua produção e consumo, caminha pelo século 21:
apesar de tantas incertezas e da fragmentação excessiva do saber. Sobrepõe-se a curiosidade sobre a vida dos
outros (na leitura de ficção) e apontar as mazelas
contemporâneas exige dose forte de ironia (para evitar o moralismo que quer ser
o dono da verdade. As desgraças da realidade nos ameaçam cada vez mais? Talvez se
buscássemos descrever o real sem o interpretar, numa espécie de redução fenomenológica
(processo pelo qual tudo que é informado pelos
sentidos é mudado em uma experiência de consciência, em um fenômeno que
consiste em se estar consciente de algo, como o novo
romance francês o fez, nos anos 50, com seus experimentalismos) e buscássemos nesta descrição um modo de juntar
pela memória nosso mundo tão fragmentado,
talvez aí ficássemos mais calmos diante de tão acelerada transformação. Mas
devemos mesmo recusar a indústria cultural?
Acho que pelo menos temos que analisar
os danos que ela causa e os quase
impossíveis benefícios em mio a tanto lugar-comum.
Navegando
pela TV ou pela internet o sujeito vai colocando tudo aquilo num amálgama
alucinante sem se deter para refletir.
Cabe a nós, professores de Letras, também, buscar uma explicação e um
modo novo para analisar isto na literatura. E distinguir os vieses
multiculturais que se instalam como ideologia contrária à alta cultura como se
esta fosse a única alternativa para enfrentar a economia globalizada: termos que acertar identidades restritivas.
Como
trabalhar em sala de aula, por exemplo, a autobiografia ficcional ou autoficção,
metaficção, que os grandes autores da literatura fizeram, Cervantes, Machado de Assis, Julia Kristeva criou o
termo intertextualidade a partir dos conceitos de polifonia e
dialogismo, de Mikhail Bakhtin (1920). Gerard Genette preferiu falar sobre
hipertexto (o texto B) e hipotexto (texto A), para comparar o original e a
intertextualidade. Já o uso excessivo do hipertexto, hoje, talvez esteja ligado
a uma grave crise ontológica, crivada
pela preferência alusões. Paira aí um tom melancólico, nostálgico até: “você diz
que depois deles não apareceu mais ninguém”, lamentava Belchior nos anos 70.
Mas podemos ver aí algo de ironia, gosto pelo lúdico e pelos jogos sincrônicos na
representação do passado.
Todo escritor é um leitor que escreve e isso
pode incluir resistência ética, desconstrução derridiana, a
angustiante busca da essência da literatura (ou da “não literatura”) sofrer com
o envelhecimento pessoal não é nada para um bom escritor. Também não é bom
confiar demais na obsolência dos livros. Eles viverão para sempre, de uma forma
ou de outra, mesmo entre culturas apocalípticas, de fim do trajeto, fim de
mundo, numa espécie de melancolia irônica, trabalho de luto. Se o professor de
literatura perguntar a si mesmo se deve cultuar radicalismos trágicos, ele
deverá levar em consideração o alto grau de cabotinismo de quem se aproveita de
tais coisas para se projetar numa sociedade cada vez mais artificial. Entre a
informação e a invenção irá uma parte a lembrar que a crítica nunca terá a
palavra final.
Não
acredito no fim dos heróis literários, como Ginsberg e o Kerouac se a sociedade
de hoje oferece difíceis condições ao escritor, ela age mal, mas isto só o
fortalece: não temos tempo de temer a morte nem a vulgaridade do
seu tempo e lugar. Os escritores não
devem bancar os heróis. Não precisamos
deles há muito tempo. Solidão, desamparo, trabalho insano? Problema de cada um.
A literatura não é algo extra-humano, não precisa de “sacerdotes” de nenhuma
força superior. Religião é outra
coisa. Não quero aventureiros do
absoluto. Quero o escritor comum, disposto a um trabalho bom. só isso. Literatura produzida por quem
entende do assunto. Se cada vez o autor for personagem de sua obra
ficcional, e isto é quase certo, teremos
aí a autoficção como tendência forte (e isso não é ficcionalizar uma biografia,
como Jack Kerouac o fez), a metaderivação,
autorreferência, a literatura
sobreviverá se multiplicando à custa de
si mesma, indefinidamente; não será
explorando espíritos desmesurados que a humanidade vai saber como lidar com sua
medida extrema. Os escritores transformar-se-ão em personagens centrais da sua
ficção. Usarão autores famosos como
Saramago fez em O ano de morte de Ricardo
Reis (1984) e Ana Miranda o fez em Boca
do Inferno (1989)? O que difere estes livros uma biografia é a sua mistura com
a ficção. Biografias romanceadas que inventam episódios ou tratam livremente de
episódios conhecidos (Gore Vidal, em Lincoln
e Criação, por exemplo). Eu mesmo fiz
isto no teatro com Delmiro Gouveia, Padre Cícero, Rimbaud, Cleópatra: não
mentia, mas imaginava como a verdade poderia ser trazida à cena. Como ator também, interpretei Pilatos e Kafka, dentre
outros personagens reais, injetando neles algo da minha visão, a do autor e a
do diretor. Jorge Amado ao escrever o romance e a peça sobre Castro Alves
chegou a extremos antes impensáveis na literatura brasileira. O próprio Castro
ao escrever peça sobre T. A. Gonzaga, exagerou.
Outras
questões candentes atiçam nossa imaginação, como, por exemplo, as atuais democracias e os seus regimes de classes, a própria crise da antiga cultura como sustentáculo
das ações humanas, que está se agravando, principalmente no
Brasil, onde religião, política e cultura estão se confundindo de modo
avassalador e livros como Memórias
Posturas de Brás Cubas, Os Sertões, dentre outros, estão sendo proibidos nas escolas públicas (2020), por um regime cheio de piadinhas muito bem inseridas
que funcionam como cortina de fumaça para disfarçar uma crise
ética sem precedentes no país.
O
brasileiro, hoje, nada no mar da incerteza, tenta agarrar-se ao mastro de um
barco quase à deriva, onde na corda bamba sobre o abismo, indo com seus irmãos e engajar-se
numa corrente fé, com pouquíssimo estudo, que devora almas incultas, com um discurso mal
costurado e manipulador do desespero
que infringe o respeito ao próximo, ataca os professores, que neste caso parecem mártires de um futuro que
se anuncia reacionário onde o individualismo,
paradoxalmente, triunfa.
O
que faz o professor de literatura? Ganha a vida falando sobre escritores e suas
obras? Claro que não é exatamente isto,
a questão da linguagem humana é o centro das suas preocupações, a técnica e a
cristalização da experiência também contam muito. Enquanto isso, celebridades
acadêmicas como Judith Butler fazem
a festa da mídia, congressos, eventos
literários. O que é a prática atual da literatura de ficção? Há autores, hoje, que, como seus
antecessores, possam servir como modelos de vida ou de escrita? Parece que a
reposta é negativa. O retrocesso é indesejável, a nostalgia paralisa; o que
parece mais possível é uma revitalização mesclada às marcas do nosso tempo que
a condicionam de maneira persistente e colocam os escrúpulos como um fardo do
qual a maior parte da população brasileira deseja se livrar e isto está refletido
no modo como a mídia espelha a política, a economia, a moral, a tecnologia.
Vivemos este interregno: um momento que as regras antigas estão em xeque, e
outras estariam em gestação e o tempo é memória estilhaçada na internet,
querem fazer dele um morto mal enterrado, mas há o retorno do recalcado que
voltará para cobrar esta coisa em instância: o passado se recusa a morrer, os professores de literatura sabem disso muito
bem.
Mandei este e-mail
como resposta ao meu aluno. Saí de cabo
Verde e parti para Lisboa. Chegando lá
fui surpreendido por uma greve dos funcionários do aeroporto. Depois de
conseguir resgatar minhas malas segui para o hotel. Descansei um pouco e saí para rever a nossa
antiga metrópole, sempre muito boa
quando se tem dinheiro para gastar nela.
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