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domingo, 1 de março de 2020

O que pode um professor de Literatura? Perguntou-me um aluno, durante as minhas férias de final de ano... (Moisés Monteiro de Melo Neto)



PARTE 2


   Se Proust, Virginia Woolf e Joyce inventaram o monólogo interior no romance do século 20, numa mistura de vários seguimentos temporais cravejados de digressões e experimentação (vide Ulysses, Joyce), isto agora parece não ser mais o que  nos interessa tanto, hoje, neste torvelinho no qual  as referências éticas estão intrinsecamente ligadas a uma direita desconcertante em seus propósitos elitistas e a uma esquerda não se decide por uma epistemologia mais criteriosa (no sentido acadêmico).  Dar sentido à vida parece uma tarefa cada vez mais supérflua no processo da transmodernidade líquida, sólida ou gasosa que nos abate em números avassaladores. Presos a smartphones, vivemos num mundo de siglas,  códigos,  novidades que nos cerceiam e alucinam com sua velocidade inessencial.  Há muito tempo que não adianta ser realista.

Moisés Monteiro de Melo Neto


            Narrativas ao modo de Hemingway, Fitzgerald e Faulkner, que refletem certo tom jornalístico que difere das filosóficas inserções no absurdo de Camus e do apogeu de narrativa enigma, nos moldes de Clarice Lispector, Herman Hesse ou a estilística excepcional de Thomas Mann (vide Doutor Fausto), tudo isto parece meio distante do que se faz, agora e não adianta buscarmos nos contos de Borges,  Murilo Rubião, nos romances do Realismo Mágico, nas distopias de Orwell, no horror kafkiano, nas revoltas de J. D.  Salinger,  no erotismo intelectualizado (e até biográfico) de Marguerite yourcenal (Memórias de Adriano), ou insisitir que o que temos em Saramago também nos aliviaria (por, por exemplo, não apelar para o consumismo e tender para a esquerda política). A que conclusão eu chego? A arte é o absoluto mais possível e ela não tem que ser engajada, o mesmo em meio a esta época de desprezo e esquecimento e à literatura cabe suprir o que não é dito pelos outros textos. Ela não precisa mostrar o mundo e nem acrescentar algo a ele.  O que a literatura pode é fazer saber que não há verdade absoluta e sim verdades relativas (que se contradizem recheadas de incertezas em meio a alucinação coletiva produto da cultura de massa da indústria cultural etc.), só aí é que a literatura pode ser crítica e resistência, desconstruir o “não  pensamento” das  ideias recebidas nos smartphones e computadores, a esmagar todo pensamento original  e individual (e a crítica literária parece preguiçosa diante disto).
            Parece que a ficção está no mundo para as pessoas que querem uma vida diferente da que vivem. Em toda obra literária lateja um desejo insatisfeito. Seria a literatura um sonho lúcido? Provavelmente não. Uma fantasia sobre existência?  Lembrando aqui que os meios audiovisuais não podem substituir a literatura, no que se trata das possibilidades que a língua escrita oferece no sentido de ampliação  lexical, por exemplo (a exceção seria a literatura oral de alto nível). E aqui não estamos ó nos referindo ao livro de papel.
            Para ser político um escritor só precisa mostrar bem uma situação e deixar que o leitor reflita sobre ela. O escritor tem que resistir ao desencanto?  Possivelmente. As novas tendências como a autoficção pelulam e em meio a tanta diversidade é oferecido o pacto fáustico com o capitalismo: o best-seller ou ser autor de séries de TV com histórias que desobrigam os espectadores de juízes morais. Isso só para falar de dois vieses que poderiam ser inimigos da escrita e da leitura da literatura séria. Tais escritores vivem de marketing.
            Ah!  Como continuarmos humanos diante dos mais terríveis verdades sobre  nós num mundo múltiplo que  a literatura tenta abarcar  e onde a ontologia, política religiosidade, moral estão a girar numa espiral caótica de tantos hipertextos? Mesmo assim a literatura, no que trata da sua produção e consumo, caminha pelo século 21: apesar de tantas incertezas e da fragmentação excessiva do saber.  Sobrepõe-se a curiosidade sobre a vida dos outros (na leitura de ficção) e apontar as mazelas contemporâneas exige dose forte de ironia (para evitar o moralismo que quer ser o dono da verdade. As desgraças da realidade nos ameaçam cada vez mais? Talvez se buscássemos descrever o real sem o interpretar, numa espécie de redução fenomenológica (processo pelo qual tudo que é informado pelos sentidos é mudado em uma experiência de consciência, em um fenômeno que consiste em se estar consciente de algo, como o novo romance francês o fez, nos anos 50, com seus experimentalismos) e buscássemos nesta descrição um modo de juntar pela memória nosso mundo tão fragmentado, talvez aí ficássemos mais calmos diante de tão acelerada transformação. Mas devemos mesmo recusar a indústria cultural?  Acho que pelo menos temos que analisar os danos que ela causa e os quase impossíveis  benefícios em  mio a tanto lugar-comum.
            Navegando pela TV ou pela internet o sujeito vai colocando tudo aquilo num amálgama alucinante sem se deter para refletir.  Cabe a nós, professores de Letras, também, buscar uma explicação e um modo novo para analisar isto na literatura. E distinguir os vieses multiculturais que se instalam como ideologia contrária à alta cultura como se esta fosse a única alternativa para enfrentar a economia globalizada:  termos que acertar identidades restritivas.
            Como trabalhar em sala de aula, por exemplo, a autobiografia ficcional ou autoficção, metaficção, que os grandes autores da literatura fizeram, Cervantes,  Machado de Assis, Julia Kristeva criou o termo intertextualidade a partir dos conceitos de polifonia e dialogismo, de Mikhail Bakhtin (1920). Gerard Genette preferiu falar sobre hipertexto (o texto B) e hipotexto (texto A), para comparar o original e a intertextualidade. Já o uso excessivo do hipertexto, hoje, talvez esteja ligado a uma grave crise ontológica, crivada pela preferência alusões. Paira aí um tom melancólico, nostálgico até: “você diz que depois deles não apareceu mais ninguém”, lamentava Belchior nos anos 70. Mas podemos ver aí algo de ironia, gosto pelo lúdico e pelos jogos sincrônicos na representação do passado.
   Todo escritor é um leitor que escreve e isso pode incluir resistência ética, desconstrução derridiana, a angustiante busca da essência da literatura (ou da “não literatura”) sofrer com o envelhecimento pessoal não é nada para um bom escritor. Também não é bom confiar demais na obsolência dos livros. Eles viverão para sempre, de uma forma ou de outra, mesmo entre culturas apocalípticas, de fim do trajeto, fim de mundo, numa espécie de melancolia irônica, trabalho de luto. Se o professor de literatura perguntar a si mesmo se deve cultuar radicalismos trágicos, ele deverá levar em consideração o alto grau de cabotinismo de quem se aproveita de tais coisas para se projetar numa sociedade cada vez mais artificial. Entre a informação e a invenção irá uma parte a lembrar que a crítica nunca terá a palavra final.
            Não acredito no fim dos heróis literários, como Ginsberg e o Kerouac se a sociedade de hoje oferece difíceis condições ao escritor, ela age mal, mas isto só  o  fortalece: não temos tempo de temer a morte nem a vulgaridade do seu  tempo e lugar. Os escritores não devem bancar os heróis. Não precisamos deles há muito tempo. Solidão, desamparo, trabalho insano? Problema de cada um. A literatura não é algo extra-humano, não precisa de “sacerdotes” de nenhuma força superior.  Religião é outra coisa.  Não quero aventureiros do absoluto. Quero o escritor comum, disposto a um trabalho bom. só isso. Literatura produzida por quem entende do assunto. Se cada vez o autor for personagem de sua obra ficcional,  e isto é quase certo, teremos aí a autoficção como tendência forte (e isso não é ficcionalizar uma biografia, como Jack Kerouac o fez), a metaderivação, autorreferência, a literatura sobreviverá  se multiplicando à custa de si mesma,  indefinidamente; não será explorando espíritos desmesurados que a humanidade vai saber como lidar com sua medida extrema. Os escritores transformar-se-ão em personagens centrais da sua ficção.  Usarão autores famosos como Saramago fez em O ano de morte de Ricardo Reis (1984) e Ana Miranda o fez em Boca do Inferno (1989)? O que difere estes livros uma biografia é a sua mistura com a ficção. Biografias romanceadas que inventam episódios ou tratam livremente de episódios conhecidos (Gore Vidal, em Lincoln e Criação, por exemplo). Eu mesmo fiz isto no teatro com Delmiro Gouveia, Padre Cícero, Rimbaud, Cleópatra: não mentia, mas imaginava como a verdade poderia ser trazida à cena. Como ator também, interpretei Pilatos e Kafka, dentre outros personagens reais, injetando neles algo da minha visão, a do autor e a do diretor. Jorge Amado ao escrever o romance e a peça sobre Castro Alves chegou a extremos antes impensáveis na literatura brasileira. O próprio Castro ao escrever peça sobre T. A. Gonzaga, exagerou.  
            Outras questões candentes atiçam nossa imaginação, como, por exemplo, as atuais democracias e os seus  regimes de classes,  a própria crise da antiga cultura como sustentáculo das ações  humanas, que está se agravando, principalmente no Brasil, onde religião, política e cultura estão se confundindo de modo avassalador e livros como Memórias Posturas de Brás Cubas,  Os Sertões,  dentre outros,  estão sendo proibidos nas escolas públicas (2020), por um  regime cheio de piadinhas muito bem inseridas que funcionam como cortina de fumaça para disfarçar  uma crise ética sem precedentes no país.
            O brasileiro, hoje, nada no mar da incerteza, tenta agarrar-se ao mastro de um barco quase à deriva, onde na corda bamba sobre o abismo,  indo com seus irmãos  e  engajar-se numa corrente fé, com pouquíssimo estudo, que devora almas incultas, com um discurso mal costurado e manipulador do desespero  que infringe o respeito ao próximo, ataca os professores, que  neste caso parecem mártires de um futuro que se anuncia reacionário onde o individualismo,  paradoxalmente, triunfa.
            O que faz o professor de literatura? Ganha a vida falando sobre escritores e suas obras?  Claro que não é exatamente isto, a questão da linguagem humana é o centro das suas preocupações, a técnica e a cristalização da experiência também contam muito. Enquanto isso, celebridades acadêmicas como Judith Butler fazem a festa da mídia, congressos, eventos literários. O que é a prática atual da literatura de ficção?  Há autores, hoje, que, como seus antecessores, possam servir como modelos de vida ou de escrita? Parece que a reposta é negativa. O retrocesso é indesejável, a nostalgia paralisa; o que parece mais possível é uma revitalização mesclada às marcas do nosso tempo que a condicionam de maneira persistente e colocam os escrúpulos como um fardo do qual a maior parte da população brasileira deseja se livrar e isto está refletido no modo como a mídia espelha a política, a economia, a moral, a tecnologia. Vivemos este interregno: um momento que as regras antigas estão em xeque, e outras estariam em gestação e o tempo é memória estilhaçada na internet, querem fazer dele um morto mal enterrado, mas há o retorno do recalcado que voltará para cobrar esta coisa em instância: o passado  se recusa a morrer, os  professores de literatura sabem disso muito bem.
Mandei este e-mail como resposta ao meu aluno. Saí de cabo Verde  e parti para Lisboa. Chegando lá fui surpreendido por uma greve dos funcionários do aeroporto. Depois de conseguir resgatar minhas malas segui para o hotel.  Descansei um pouco e saí para rever a nossa antiga metrópole,  sempre muito boa quando se tem dinheiro para gastar nela.

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