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domingo, 29 de março de 2020

A MÁSCARA DA MORTE RUBRA, conto de Edgar Allan Poe

A “Morte Rubra” havia muito devastava o país. Jamais se viu peste tão fatal ou tão hedionda. O sangue era sua revelação e sua marca. A cor vermelha e o horror do sangue. Surgia com dores agudas e súbita tontura, seguidas de profuso sangramento pelos poros, e então a morte. As manchas rubras no corpo e principalmente no rosto da vítima eram o estigma da peste que a privava da ajuda e compaixão dos semelhantes. E entre o aparecimento, a evolução e o fim da doença não se passava mais de meia hora.
Mas o príncipe Próspero era feliz, destemido e astuto. Quando a população de seus domínios se reduziu à metade, mandou vir à sua presença um milhar de amigos sadios e divertidos dentre os cavalheiros e damas da corte e com eles retirou-se, em total reclusão, para um dos seus mosteiros encastelados. Era uma construção imensa e magnífica, criação do gosto excêntrico, mas grandioso do próprio príncipe. Circundava-a a muralha forte e muito alta, com portas de ferro. Depois de entrarem, os cortesões trouxeram fornalhas e grandes martelos para soldar os ferrolhos. Resolveram não permitir qualquer meio de entrada ou saída aos súbitos impulsos de desespero dos que estavam fora ou aos furores do que estavam dentro. O mosteiro dispunha de amplas provisões. Com essas precauções, os cortesões podiam desafiar o contágio. O mundo externo que cuidasse de si mesmo. Nesse meio-tempo era tolice atormentar-se ou pensar nisso. O príncipe havia providenciado toda a espécie de divertimentos. Havia bufões, improvisadores, dançarinos, músicos, beleza, vinho. Lá dentro, tudo isso mais segurança. Lá fora, a “Morte Rubra”.
Lá pelo final do quinto ou sexto mês de reclusão, enquanto a peste grassava mais furiosamente lá fora, o príncipe Próspero brindou os mil amigos com um magnífico baile de máscaras.
Que voluptuosa cena a daquela mascarada! Mas antes descrevamos os salões em que ela se desenrolava. Era uma série imperial de sete salões. Em muitos palácios, porém, esses salões formam uma perspectiva longa e reta, quando as portas se abrem até se encostarem nas paredes de ambos os lados, de tal modo que a vista de toda essa sucessão é quase desimpedida. Ali, a situação era muito diferente, como se devia esperar da paixão do príncipe pelo fantástico. Os salões estavam dispostos de maneira tão irregular que os olhos só podiam abarcar pouco mais de cada um por vez. Havia um desvio abrupto a cada vinte ou trinta metros e, a cada desvio, um efeito novo. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica dava para um corredor fechado que acompanhava as curvas do salão. A cor dos vitrais dessas janelas variava de acordo com a tonalidade dominante na decoração do salão para o qual se abriam. O da extremidade leste, por exemplo, era azul – e de um azul intenso eram suas janelas. No segundo salão os ornamentos e tapeçarias, assim como as vidraças, eram cor de púrpura. O Terceiro era inteiramente verde, e verdes também os caixilhos das janelas. O quarto estava mobiliado e iluminado com cor alaranjada. O quinto era branco, e o sexto, roxo. O sétimo salão estava todo coberto por tapeçarias de veludo negro, que pendiam do teto e pelas paredes, caindo em pesadas dobras sobre um tapete do mesmo material e tonalidade. Apenas nesse salão, porém, a cor das janelas deixava de corresponder à das decorações. As vidraças, ali, eram rubras – de uma violenta cor de sangue.


Ora, em nenhum dos sete salões havia qualquer lâmpada ou candelabro, em meio à profusão de ornamentos de ouro espalhados por todos os cantos ou dependurados do teto. Nenhuma lâmpada ou vela iluminava o interior da seqüência de salões. Mas nos corredores que circundavam a suíte havia, diante de cada janela, um pesado tripé com um braseiro, que projetava seus raios pelos vitrais coloridos e, assim, iluminava brilhantemente a sala, produzindo grande número de efeitos vistosos e fantásticos. Mas no salão oeste, ou negro, o efeito do clarão de luz que jorrava sobre as cortinas escuras através das vidraças da cor do sangue era desagradável ao extremo e produzia uma expressão tão desvairada no semblante dos que entravam que poucos no grupo sentiam ousadia bastante para ali penetrar.
Era também nesse apartamento que se achava, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo oscilava de um lado para o outro com um bater surdo, pesado, monótono; quando o ponteiro dos minutos completava o circuito do mostrador e o relógio ia dar as horas, de seus pulmões de bronze brotava um som claro, alto, grave e extremamente musical, mas em tom tão enfático e peculiar que, ao final de cada hora, os músicos da orquestra se viam obrigados a interromper momentaneamente a apresentação para escutar-lhe o som; com isso os dançarinos forçosamente tinham de parar as evoluções da valsa e, por um breve instante, todo o alegre grupo mostrava-se perturbado; enquanto ainda soavam os carrilhões do relógio, observava-se que os mais frívolos empalideciam e os mais velhos e serenos passavam a mão pela teste, como se estivessem num confuso devaneio ou meditação. Mas, assim que os ecos desapareciam interiormente, risinhos levianos logo se riam do próprio nervosismo e insensatez e, em sussurros, diziam uns aos outros que o próximo soar de horas não produziria neles a mesma emoção; mas, após um lapso de sessenta minutos (que abrangem três mil e seiscentos segundos do tempo que voa), quando o relógio dava novamente as horas, acontecia a mesma perturbação e idênticos tremores e gestos de meditação de antes.
Apesar disso tudo, que festa alegre e magnífica! Os gostos do príncipe eram estranhos. Sabia combinar cores e efeitos. Menosprezando a mera decoração da moda, seus arranjos mostravam-se ousados e veementes, e suas idéias brilhavam com um esplendor bárbaro. Alguns podiam considerá-lo louco, sendo desmentidos por seus seguidores. Mas era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para convencer-se disso.
Para essa grande festa, ele próprio dirigiu, em grande parte, a ornamentação cambiante dos sete salões, e foi seu próprio gosto que inspirou as fantasias dos foliões. Claro que eram grotescas. Havia muito brilho, resplendor, malícia e fantasia – muito daquilo que foi visto depois no Hernani. Havia figuras fantásticas com membros e adornos que não combinavam. Havia caprichos delirantes como se tivessem sido modelados por um louco. Havia muito de beleza, muito de libertinagem e de extravagância, algo de terrível e um tanto daquilo que poderia despertar repulsa. De um ao outro, pelos sete salões, desfilava majestosamente, na verdade, uma multidão de sonhos. E eles – os sonhos – giravam sem parar, assumindo a cor de cada salão e fazendo com que a impetuosa música da orquestra parecesse o eco de seus passos. Daí a pouco soa o relógio de ébano colocado no salão de veludo. Então, por um momento, tudo se imobiliza e é tudo silêncio, menos a voz do relógio. Os sonhos se congelam como estão. Mas os ecos das batidas extinguem-se – duraram apenas um instante – e risos levianos, mal reprimidos, flutuam atrás dos ecos, à medida que vão morrendo. E logo a música cresce de novo, e os sonhos revivem e rodopiam mais alegremente que nunca, assumindo as cores das muitas janelas multicoloridas, através das quais fluem os raios luminosos dos tripés. Ao salão que fica a mais oeste de todos os sete, porém, nenhum dos mascarados se aventura agora; pois a noite está se aproximando do fim: ali flui uma luz mais vermelha pelos vitrais cor de sangue e o negror das cortinas escuras apavora; para aquele que pousa o pé no tapete negro, do relógio de ébano ali perto chega um clangor ensurdecido mais solene e enfático que aquele que atinge os ouvidos dos que se entregam às alegrias nos salões mais afastados.
Mas nesses outros salões cheios de gente batia febril o coração da vida. E o festim continuou em remoinhos até que, afinal, começou a soar meia-noite no relógio. Então a música cessou, como contei, as evoluções dos dançarinos se aquietaram, e, como antes, tudo ficou intranqüilamente imobilizado. Mas agora iriam ser doze as badaladas do relógio; e desse modo mais pensamentos talvez tenham se infiltrado, por mais tempo, nas meditações dos mais pensativos, entre aqueles que se divertiam. E assim também aconteceu, talvez, que, antes de os últimos ecos da última badalada terem mergulhado inteiramente no silêncio, muitos indivíduos na multidão puderam perceber a presença de uma figura mascarada que antes não chamara a atenção de ninguém. E, ao se espalhar em sussurros o rumor dessa nova presença, elevou-se aos poucos de todo o grupo um zumbido ou murmúrio que expressava a reprovação e surpresa – e, finalmente, terror, horror e repulsa.
Numa reunião de fantasmas como esta que pintei, pode-se muito bem supor que nenhuma aparência comum poderia causar tal sensação. Na verdade, a liberdade da mascarada dessa noite era praticamente ilimitada; mas a figura em questão ultrapassava o próprio Herodes, indo além dos limites até do indefinido decoro do príncipe. Existem cordas, nos corações dos mais indiferentes, que não podem ser tocadas sem emoção. Até para os totalmente insensíveis, para quem a vida e morte são alvo de igual gracejo, existem assuntos com os quais não se pode brincar. Na verdade, todo o grupo parecia agora sentir profundamente que na fantasia e no rosto do estranho não existia graça nem decoro. A figura era alta e esquálida, envolta do pés a cabeça em vestes mortuárias. A máscara que escondia o rosto procurava assemelhar-se de tal forma com a expressão enrijecida de um cadáver que até mesmo o exame mais atento teria dificuldade em descobrir o engano. Tudo isso poderia ter sido tolerado, e até aprovado, pelos loucos participantes da festa, se o mascarado não tivesse ousado encarnar o tipo da Morte Rubra. Seu vestuário estava borrifado de sangue, e sua alta testa, assim como o restante do rosto, salpicada com o horror rubro.
Quando os olhos do príncipe Próspero pousaram nessa imagem espectral (que andava entre os convivas com movimentos lentos e solenes, como se quisesse manter-se à altura do papel), todos perceberam que ele foi assaltado por um forte estremecimento de terror ou repulsa, num primeiro momento, mas logo o seu semblante tornou-se vermelho de raiva.
– Quem ousa…? perguntou com voz rouca aos convivas que estavam perto – quem ousa nos insultar com essa caçoada blasfema? Peguem esse homem e tirem sua máscara, para sabermos quem será enforcado no alto dos muros, ao amanhecer!
O príncipe Próspero estava na sala leste, ou azul, ao dizer essas palavras. Elas ressoaram pelos sete salões, altas e claras, pois o príncipe era um homem ousado e robusto e a música se calara com um sinal de sua mão.
O príncipe achava-se no salão azul com um grupo de pálidos convivas ao seu lado. Assim que falou, houve um ligeiro movimento dessas pessoas na direção do intruso, que, naquele momento, estava bem ao alcance das mãos, e agora, com passos decididos e firmes, se aproximava do homem que tinha falado. Mas por causa de um certo temor sem nome, que a louca arrogância do mascarado havia inspirado em toda a multidão, não houve ninguém que estendesse a mão para detê-lo; de forma que, desimpedido , passou a um metro do príncipe e, enquanto a vasta multidão, como por um único impulso, se retraía do centro das salas para as paredes, ele continuou seu caminho sem deter-se, no mesmo passo solene e medido que o distinguira desde o inicio, passando do salão azul para o púrpura, do púrpura para o verde, do verde para o alaranjado, e desse ainda para o branco, e daí para o roxo, antes que se fizesse qualquer movimento decisivo para detê-lo. Foi então que o príncipe Próspero, louco de raiva e vergonha por sua momentânea covardia, correu apressadamente pelos seis salões, sem que ninguém o seguisse por causa do terror mortal que tomara conta de todos. Segurando bem alto um punhal desembainhado, aproximou-se, impetuosamente, até cerca de um metro do vulto que se afastava, quando este, ao atingir a extremidade do salão de veludo, virou-se subitamente e enfrentou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo e o punhal caiu cintilando no tapete negro, sobre o qual, no instante seguinte, tombou prostrado de morte o príncipe Próspero. Então, reunindo a coragem selvagem do desespero, um bando de convivas lançou-se imediatamente no apartamento negro e, agarrando o mascarado, cuja alta figura permanecia ereta e imóvel à sombra do relógio de ébano, soltou um grito de pavor indescritível, ao descobrir que, sob a mortalha e a máscara cadavérica, que agarravam com tamanha violência e grosseria, não havia qualquer forma palpável.
E então reconheceu-se a presença da Morte Rubra. Viera como um ladrão na noite. E um a um foram caindo os foliões pelas salas orvalhadas de sangue, e cada um morreu na mesma posição de desespero em que tombou ao chão. E a vida do relógio de ébano dissolveu-se junto com a vida do último dos dissolutos. E as chamas dos braseiros extinguiram-se. E o domínio ilimitado das Trevas, da Podridão e da Morte Rubra estendeu-se sobre tudo.


segunda-feira, 16 de março de 2020

INSTAPOESIA (pesquisa dos meus alunos)


Instapoesia: uma literatura que marca presença

Espalho o meu amor (em poesia ou não) nas redes sociais, também. Uno-me assim a um movimento crescente de poetas, que cravaram seu espaço no online com textos curtos, compartilháveis e fáceis de se relacionar, e acabaram refletidos com muito sucesso na literatura tradicional. Pela força no Instagram, os escritores acabaram apelidados de instapoetas. Nomes como João Doederlein, Ryane Leão, Lucão e Zack Magiezi exploram de forma engenhosa temas como amor, decepção, saudade e autoestima, literatura em si... a maioria com caráter motivacional, bebendo de fontes filosóficas e do velho formato dos provérbios, enquanto ainda se arriscam na tendência metalinguística – que fala sobre a própria poesia e a arte de escrever. Estas centenas de milhares de poetas do Instagram migraram para o papel e, rapidamente, chegaram à lista de best-sellers. Na comparação entre os meses de janeiro a agosto de 2017 com o mesmo período de 2018, os livros de poesia nacionais cresceram em venda 107%*, fenômeno diretamente causado pelos autores virtuais. Destaca-se na lista a obra Textos Cruéis Demais para Serem Lidos Rapidamente, do perfil no Instagram de mesmo nome, atualmente o livro de ficção nacional mais vendido do país neste ano. Gosto da indiana, naturalizada no Canadá, Rupi Kaur. Autora de Outros Jeitos de Usar a Boca e O Que o Sol Faz com as Flores, publicados no Brasil pela editora Planeta, em 2017 e 2018, respectivamente, os títulos somam 275.000 exemplares comercializados por aqui até o momento. No mundo, já ultrapassam a marca do milhão. Por exemplo uso aqui um amor literário: “Porque há o direito ao grito. Então eu grito”. A frase de Clarice Lispector é um dos motores de Igor Pires da Silva, 23 anos, idealizador do perfil Textos Cruéis Demais. “Eu escrevo melhor do que eu falo. Tenho dislexia. Então escrever poesia é o jeito que eu encontrei de gritar no mundo”, diz Igor. O rapaz natural de Guarulhos, São Paulo, que hoje estuda comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), começou a escrever ainda na infância. Mas foi ao enfrentar uma depressão que a poesia ganhou a função de ferramenta de sobrevivência. Durante um trajeto de ônibus voltando da faculdade, em 2016, a frase “textos cruéis demais para serem lidos rapidamente” surgiu em sua mente. Na época, ele já escrevia poesia com outras quatro amigas, grupo que se conheceu através da rede online Tumblr.



A página nasceu primeiramente no Facebook antes de chegar adaptada, com textos menores em imagens quadradas, ao Instagram. A visibilidade aumentou quando celebridades começaram a compartilhar os poemas do grupo, caso de Marília Mendonça, que alavancou em 20.000 seguidores a página em menos de 24 horas.
A força na internet atiçou o desejo de Igor de migrar para o papel. Ele jogou o sonho de escrever um livro no Facebook, esperando o retorno de alguma casa editorial. “Na época não deu em nada. Mandei e-mails para editoras e recebi muitos nãos”, conta. Ele já tinha desistido da ideia quando chegou o decisivo e-mail da Globo Livros, perguntando se ainda tinha interesse em publicar. A aposta da editora deu certo. Em 10 meses nas lojas, o livro conta com mais de 200.000 exemplares vendidos, e se mantém há 36 semanas na lista de mais vendidos da Veja. O sucesso foi tanto que Igor, que escreveu sozinho o primeiro, agora prepara um segundo, com a colaboração das colegas de grupo, as autoras Maria Luiza Moreira, 21, e Letícia Loureiro, 21, e a designer Gabriela Barreira, 23 anos.
O diferencial do próximo livro, previsto para o ano que vem, é a parceria com as amigas. “Serão três partes, uma de cura, outra de amor e outra de perdão. Com três pessoas olhando para os temas”, conta. Igor afirma que o coletivo, que já teve outra formação, opta por não assinar os poemas por um motivo simples. “A palavra tem mais peso que a assinatura. Não quero ser maior que a poesia”, diz. “Não fazemos poesia em troca de likes. O propósito é falar de assuntos que tocam o leitor.”
João Doederleindeclarou:  ‘A poesia me ensinou a ver o lado bom da vida.Também conhecido como @akapoeta, autor conquistou celebridades, fashionistas e leitores de livrarias com o sucesso no Instagram. Quem usa as redes sociais com frequência provavelmente já tropeçou na série Ressignificados, assinada pelo brasiliense João Doederlein, 22 anos, também conhecido pelo apelido virtual @akapoeta. A imagem traz no topo uma palavra e abaixo seu significado, como em um dicionário, mas com um texto explicativo poético, formado por frases curtas. Criado em 2016, o formato consagrou Doederlein na internet.“O Ressignificados nasceu por causa de sentimentos de amor que tive por uma garota na época”, conta.
A série saiu do virtual para estampar uma coleção de camisetas, em uma parceria do poeta com uma marca de roupas, e ganhar a lista de mais vendidos de VEJA com O Livro dos Ressignificados (Paralela), título que soma 85.000 exemplares vendidos, um ano após o lançamento.
Estudante de publicidade e propaganda na Universidade de Brasília, Doederlein escreve desde os 11 anos em blogs, e antes da poesia apostou em crônicas e contos. No Facebook, ele ainda mantém uma página desta época, a Contos Mal Contados, onde ele publicava histórias de “heróis mal-encarados e dragões injustiçados”. “Gosto de expressar o outro lado da moeda”, diz.
A habilidade de ponderar é parte da essência do escritor, que, aos 16 anos, sofreu uma crise de ansiedade, e, durante o processo de recuperação, percebeu o impacto que seus textos tinham em pessoas com diferentes dores. “A poesia me ensinou a ver o lado bom da vida. Fiquei mais positivo”, conta. Sobre seu papel em meio aos ânimos exaltados dos usuários das redes, ele mantém o cerne de suas ideias. “Alguém tem que contrabalancear as coisas. Ninguém aguenta passar o tempo inteiro com sentimentos tensos e pesados”, diz. “A orelha do meu segundo livro, Coração-Granada (lançado em julho deste ano), diz: ‘esse livro é um banho quente depois de um dia de trabalho’. Quero ser o banho quente com meus textos. Participar da calmaria, para as pessoas recuperarem a energia e os sentimentos através da arte.”
Ryane Leão: ‘A Rupi Kaur abriu o caminho para mim’. Autora do perfil ‘Onde Jazz Meu Coração’ navega com destreza pela atual onda do empoderamento feminino nas redes – e na lista de best-sellers. Aos 19 anos, Ryane Leão deixou Cuiabá, sua cidade natal, e se mudou para São Paulo para fazer faculdade na Universidade de São Paulo (USP), onde começou estudando moda, antes de mudar para letras. A metrópole se tornou cenário para a poesia da aspirante a escritora, que passou a colar pelos muros seus versos em cartazes, tipo lambe-lambes. Hoje, aos 29 anos, Ryane é a feliz autora de um best-seller de poesia, o Tudo Nela Brilha e Queima (Planeta), foi destaque na Bienal do Livro e da Festa Literária de Paraty (Flip) este ano, e comanda a escola de inglês Odara, voltada para mulheres negras.
As conquistas foram alcançadas ao longo de dez anos com muitos percalços. “A mudança para São Paulo foi bem difícil. Trabalhei de tudo para pagar o aluguel, fui recepcionista, garçonete, dei aulas de inglês”, conta. “Eu escrevia por hobby. Demorou muito para a poesia ser algo rentável para mim.”
Entre o lambe-lambe e os textos em blog, Ryane chegou às redes sociais com o perfil Onde Jazz Meu Coração, em que publica textos sobre autoafirmação, relacionamentos e empoderamento feminino. As temáticas lembram as da indiana Rupi Kaur, fenômeno do gênero. Foi com o sucesso da autora que Ryane conseguiu publicar seu primeiro livro. “A editora estava procurando alguém parecida. Entraram em contato comigo pelo Instagram depois que uma amiga me indicou”, conta. Com quase 20.000 exemplares vendidos em menos de um ano, a autora já prepara um segundo título para 2019.
“A Rupi Kaur abriu o caminho para mim. Acho um presente a comparação. Ela é incrível”, diz. “A literatura ainda é muito branca e elitista. Aí surge uma poeta imigrante, mulher, de cor, e vira best-seller. A Rupi abriu as portas para mim e para outras mulheres.”
A principal semelhança de Rupi e Ryane reside principalmente na missão de falar sobre assuntos que a literatura tende a ocultar ou romantizar. “Não é fácil ter amor próprio e autoestima. Não somos inabaláveis. Falamos de relações abusivas, de racismo, machismo, mas não ficamos na dor pela dor. A ideia é mostrar que passamos por tudo isso, mas podemos sobreviver.”
A identificação de outras mulheres e da força dos movimentos feministas nas redes ajudou Ryane a crescer no meio virtual, com o amplo compartilhamento de seus textos. Ela percebe a onda e navega nela com tranquilidade. “Quero aproveitar esse momento de mais mulheres falando e publicando. Chegou ao fim o medo de contar nossas histórias.”
Zack Magiezi: ‘Faço poesia simples, para que ela seja democrática’ Autor viralizou na internet com série de poemas ‘Notas sobre Ela’ e conquistou seguidores pelo estilo romântico de tom nostálgico. Quando decidiu criar um perfil no Instagram, Zack Magiezi, 35 anos, que já angariava seguidores com a página Estranheirismo no Facebook, entendeu que precisava aliar sua poesia à uma identidade visual. “Na essência, o Instagram é uma rede de fotos e não de textos”, analisa. Como trabalha sozinho e não sabia usar programas de edição de imagem, ele resolveu uma antiga dívida com um amigo que havia comprado dele um violão. O amigo quitou o débito com uma velha máquina de datilografia. “Comecei a datilografar e fotografar o texto. Chamou a atenção o estilo antigo num ambiente digital”, conta. A troca foi acertada. Segundo Zack, até hoje o amigo não aprendeu a tocar violão. “Já a máquina, me serviu bastante”, diz rindo o poeta que soma quase 1 milhão de seguidores na rede e três livros publicados, que somam mais de 60.000 exemplares vendidos. O perfil online se consolidou com uma série de pílulas literárias batizadas de Notas sobre Ela. “Eram pequenos fragmentos na tentativa de retratar o feminino”, diz. Ousado, o autor não se acomodou na ideia que lhe deu fama, e continuou a experimentar formatos e o uso da língua portuguesa. Em tom confessional, os textos de Zack falam de perda, amor e o medo da finitude. “Passei por alguns términos de histórias que não foram bem finalizadas. Elas terminaram bem, mas eu não sabia lidar com o fim. Não sabia para onde ir, o que fazer”, conta.
Sendo um dos mais seguidos entre os instapoetas brasileiros, Zack analisa que os autores do movimento são jovens, todos experimentando, em busca da própria voz. “O que gosto do meu perfil é a linguagem. Faço poesia simples, para que ela seja democrática e chegue em mais pessoas”, diz. A facilidade da linguagem, contudo, não significa para ele que os textos sejam sem profundidade. “É uma rede social de superfícies, por isso é legal ter ali algo de dentro dos indivíduos.”Apesar da forte presença nas redes sociais, Zack passa longe de ser um entusiasta da internet. “As pessoas querem conhecer as outras baseadas apenas nas redes sociais e isso não funciona”, avalia, antes de dizer que quer se firmar na literatura para não depender apenas da internet para sobreviver. “Se o Zuckerberg puxar a tomada, o que eu vou fazer? Por isso quero me consolidar como escritor.” O ex-coordenador administrativo de um colégio em Minas Gerais se dedica exclusivamente à literatura desde 2016, quando lançou seu primeiro livro, Estranherismo (Bertrand Brasil). Ele prepara agora um novo título, com pequenos textos em prosa. “O livro é uma plataforma que te permite mais. É diferente o tempo de uma pessoa que senta para ler um livro e quem passa o olho por uma timeline. O livro ainda é melhor que um celular.”
Lucão: ‘Não dependo da dor para escrever’. Ex-redator publicitário faz sucesso na internet com versos curtos e temas leves, enquanto na literatura aposta pela primeira vez em um romance

“Eu e você não rima. Rimos”. Textos curtos costurados com jogos de palavras e aliados a temáticas românticas e bem-humoradas se tornaram a característica da poesia de Lucas Cândido Brandão, ou Lucão para os íntimos – e também para seus mais de 400.000 seguidores. “A experiência que me levou a escrever foi ler. Fui atraído pela poesia e pela liberdade de formatos”, conta o autor de 33 anos. Ao contrário de boa parte dos colegas instapoetas, não foi uma perda ou uma dor que o fez começar a rabiscar versos ainda na adolescência. “Minha vida foi ótima, recebi muito amor e quero falar sobre isso”, conta. “Eu brinco que não dependo da dor para escrever. Se eu tivesse que sofrer para criar viveria numa armadilha. Tem que tomar cuidado. Para escrever bem tem que fazer terapia antes”, diz o autor filho de uma psicóloga.
Lucão começou a divulgar seus textos aos 19 anos, antes da onda das redes sociais, quando os blogs eram o endereço virtual do momento. Foi natural a transição para o Facebook e Instagram, em 2014, quando misturou os primeiros versos com fotos em seus perfis. A paixão pela escrita o levou a cursar publicidade e propaganda e trabalhar, em seguida, como redator publicitário. Até que, também em 2014, recebeu por e-mail da Saraiva o primeiro convite para publicar um livro. “Quis deixar o emprego para me dedicar ao trabalho de escritor, mas tive medo. Quando veio o convite para o segundo livro, tomei coragem”, conta o autor que há dois anos se dedica à escrita.Seu primeiro livro, É Cada Coisa que Escrevo Só pra Dizer que Te Amo, levou para o papel o estilo “instagramável”. “São versos curtos, poesia breve, livro fotogênico para as pessoas tirarem fotos e compartilharem nas redes”, conta. O segundo, Telegramas, é um trabalho mais íntimo, com poemas maiores. Juntos, os dois títulos publicados pela Benvirá, selo da Saraiva, somam mais de 30.000 exemplares vendidos. Em seguida, Lucão decidiu publicar um livro independente. Foi daí que nasceu Dois Avessos, feito em parceria com o amigo também poeta Fabio Maca. “Foi uma nova fase da minha escrita, com poemas mais longos e profundos”, conta. A evolução dos textos culminou em seu mais recente trabalho na literatura: o romance Amores ao Sol (Planeta). A trama, uma ficção inspirada numa história real, narra a história de um homem em busca de uma mulher que ele conheceu no caminho de Santiago de Compostela. “Aconteceu algo parecido. Encontrei em Compostela um brasileiro que tinha conhecido uma argentina. Ele estava um pouco apaixonado por ela, mas se desencontraram. Depois não o vi mais e fiquei sem saber o fim da história.” Lucão decidiu criar o fim desconhecido da trama. “Eu não pensava em escrever romance, sou poeta. Mas essa história apareceu na minha frente.” Para os próximos passos, ele já pensa em um novo livro de poemas e esboça outro de crônicas. “Sou escritor e quero experimentar estilos na escrita.”
São jovens que se tornaram conhecidos nas redes sociais, desafiam a velha ideia de que poesia não vende e se tornam objeto de estudo de acadêmicos

No meio do caminho de Carlos Drummond de Andrade tinha o Instagram. O poeta mineiro, talvez o mais celebrado do século XX, já não lidera a lista de livros mais vendidos de poesia nacional. Segundo a empresa de pesquisa de mercado GfK, Claro Enigma, que ocupou a primeira posição do ranking entre janeiro e agosto de 2017 – em grande parte, provavelmente, porque estava na lista de leituras obrigatórias da Fuvest, o vestibular da Universidade de São Paulo (USP) –, não repetiu o feito no mesmo período deste ano. Agora, o posto é do grupo Textos Cruéis Demais (TCD), liderado pelo jovem Igor Pires da Silva. Já o segundo lugar da lista, que no ano passado era do poeta marginal Paulo Leminski, hoje é de João Doederlein, o @akapoeta.
Foi Leminski quem chacoalhou o mercado editorial em 2013, quando seu Toda Poesia (Companhia das Letras) desafiou a velha história de que poesia não vende no Brasil, tornando-se um best-seller. Essa máxima continua a ser colocada em xeque, agora com os instapoetas, que puxaram o crescimento do gênero neste ano e ocupam cinco das dez posições do ranking de livros de poesia mais vendidos (confira a lista ao final da reportagem). “É sempre uma surpresa quando um livro de poesia vende, ainda mais entre o público jovem”, diz a editora Veronica Gonzalez, do selo Globo Alt, que lançou Textos Cruéis Demais para Serem Lidos Rapidamente em novembro do ano passado. “Achávamos que seria um livro que iria bem, mas não nessa magnitude.”
O sucesso comercial era esperado pelo selo Paralela, do Grupo Companhia das Letras, quando aceitou publicar O Livro dos Ressignificados, de João Doederlein. Bruno Porto, editor do título, lembra que o selo tem obtido resultados comerciais e de repercussão bastante favoráveis ao trabalhar com influenciadores digitais, como a youtuber Kéfera Buchmann. “A gente tinha visto que dava bastante certo lançar livros desse pessoal, porque eles mesmos divulgavam nas redes sociais deles. O projeto do João era bom e a Rupi Kaur já tinha aberto o caminho para autores como ele”, afirma.
Outros dois autores, esses brasileiros, contribuíram para que o mercado passasse a prestar atenção no que vinha sendo publicado na internet. Pedro Gabriel é uma constante na lista de best-sellers desde que lançou Eu Me Chamo Antônio, em 2013, pela Intrínseca. De lá para cá, foram mais dois livros e um total de aproximadamente 240.000 exemplares vendidos. Já Clarice Freire, da mesma editora, conta com cerca de 85.000 exemplares vendidos de Pó de Lua (2014) e Pó de Lua nas Noites em Claro (2016).
Pedro Gabriel, que conquistou as redes ao postar mensagens e frases escritas em guardanapos, acredita que pode ter sido um precursor dos instapoetas. “Ajudei a colocar algumas pedras nesse caminho. Mostrei que uma grande editora poderia se interessar pelo trabalho que faço e que era possível fazer poesia em português e viver disso”, diz. “Você pode participar de oficinas, feiras, tudo o que faz parte da cadeia do livro. Eu vivo do que eu ganho fazendo o que eu gosto. Nunca achei que um pedaço de guardanapo que todo mundo joga fora poderia trazer o meu alimento.”
Muita gente achou que com a internet as poesias seriam esquecidas. Mas daí surgiram pela timeline a arte de colocar os sentimentos em formas de palavras, dando destaque aos que chamamos hoje de Instapoetas (Instapoets). E assim, passamos a consumir um pouco mais de literatura e receber gentileza em nossos feeds.
O que antes ficava apenas no papel foi parar no Instagram. Os versos hoje se espalham pelo mundo todo e muitos desses artistas fazem tanto sucesso que lançam até livros. Os temas ganham mais notoriedade ainda quando falam sobre o amor, a violência, relacionamentos, autoconhecimento, feminismo, saudade, o cotidiano, entre outros assuntos comuns – tanto para mim quanto para você.
Em tempos difíceis, a poesia se faz necessária. Os textos curtos, rápidos, diretos e servem como doses instantâneas de reflexão, inspiração. Muitos até parecem confissão. Listamos aqui alguns desses Instapoetas que são incríveis para seguir e para você apreciar, caso ainda não conheça. Confira:

RUPI KAUR
Rupi Kaur é uma poeta indiana que mora no Canadá. O sucesso de sua obra se deve principalmente pela delicadeza da autora. Seus poemas são francos e diretos, falam aquilo que muitas vezes não conseguimos exprimir. A maioria deles são relacionados a temas íntimos das mulheres, como relacionamentos, abusos, decepções, amores, cura, autoestima e feminilidade. Rupi tem seus livros traduzidos para o português e ficou na lista dos mais vendidos durante muitas semanas.

RYANE LEÃO
Ryane Leão escreve poesias sobre “mulheres infinitas” (como ela mesmo diz). Professora e ativista, Ryane também espalha suas palavras em lambe-lambes e recita seus poemas em saraus e slams. Seu livro “Tudo nela brilha e queima” (Editora Planeta) traz histórias pra inspirar outras mulheres a contarem as delas. A poeta também possui uma uma escola chamada Black to Black. Lá, ensina inglês para mulheres negras com foco em cultura afro e feminismo negro.
 JOÃO DOEDERLEIN
João Doederlein explora novos significados e definições para as palavras além do dicionário. O seu “O Livro dos Ressignificados” (2017) foi lançado pela editora Paralela. Além disso, João também cria poesias que exploram temas como amor, saudade, ansiedades da vida moderna e as dificuldades da vida adulta.

ZACK MAGIEZI
O publicitário Zack Magiezi ficou bastante famoso pela rede com a sua série “Notas sobre ela”. Mas, o poeta também compartilha poemas curtos datilografados, que exploram principalmente temas relacionados a outros sentimentos. Zack é autor dos livros “Estranherismo” (2016) e, claro, “Notas sobre ela” (2017), ambos publicados pela Bertrand Brasil.
VERENA SMIT
Verena Smit tem o poder de transformar palavras dando novos significados à elas através de trocadilhos poéticos. Verena nasceu em São Paulo, é artista visual, formada em cinema e em fotografia. Ela já participou de exposições em Nova York, Lisboa e São Paulo e já lançou o livro “Eu Você” pela Editora Paralela.

SAULO PESSATO
Saulo Pessato intercala textos curtos com vídeos em que declama versos próprios. Autor de “Poesia Reclamada no Jardim das Borboletas” (2016), Saulo também lançou o livro “Verso entre Virilhas” (2018), pela Editora Laranja Original. Saulo costuma dizer que é intérprete de lirismos e que nem sempre sua poesia é bonitinha. Seus temas são variados.
Para seguir: 
GERMANA ZANETTINI 
A jornalista, tradutora e poeta Germana Zanettini criou a série “Poesia na Pele”, na qual explora e usa o próprio corpo para expressar seus versos. Germana também é autora de “Eletrocardiodrama” (2017), livro lançado pela Editora Laranja Original. “A série ‘Poesia na Pele’ foi um trabalho experimental, mas que rendeu bastante exposição e ajudou a me assumir como poeta, revelando partes de mim a que ninguém tinha acesso – meu corpo e meus escritos. É mais uma forma de sentir e de transmitir sensações”, comenta.
EULÍRICAS
Para ela, tudo pode ser lido. A poesia existe em todas as coisas, por isso a vontade de publicá-las também em objetos, lugares e momentos. Estamos falando de Camila Lordelo, a mente e o coração por trás do projeto eulíricas, que tem como objetivo, espalhar palavras e amor através da “poesia nas coisas”. Camila dá vida para poemas e sensíveis peças como colares, fotos, porta joias, pratos, quadros e outras ‘coisas’ que sua imaginação encontrar. 

AMANDA LOVELACE
A americana Amanda Lovelace sempre gostou de histórias de contos de fadas. Ao crescer, foi natural se formar em literatura inglesa e se especializar em sociologia. Porém, as histórias de contos de fadas foram transformadas em poemas curtos e contam sobre momentos de abuso, perda, inspiração, autoaceitação, amor-próprio, relacionamentos, sobretudo sobre a possibilidade de escrevermos nossos próprios finais felizes. Amanda compartilha linguagem direta, em forma de poesia, e temática contemporânea. No Brasil, a Editora Leya lançou dois de seus livros com os títulos de “A princesa salva a si mesma neste livro” e “A bruxa não vai para a fogueira neste livro”.
LUCÃO
O publicitário Lucas Candão é quem está por trás de bonitos poemas que falam sobre amor, autoconhecimento e saudade. Lucão é escritor de dois livros, “Telegrama” e “É Cada Coisa Que Escrevo Pra Dizer Que Te Amo”, lançado em 2015. Fundo branco e letra de mão são a marca registrada da prosa do autor carioca – e a felicidade dos seguidores e fãs no Instagram – que sempre reconhecem seus versos quando ele publica algo novo.

Que é amplamente lida, não há dúvida. Mas será que a “instapoesia” estimula a leitura também de outros autores? Miguel Braga Vieira, professor de literatura brasileira da Universidade Estadual de Londrina (UEL), acredita que os poetas das redes sociais, como outros best-sellers, podem ter esse papel de fazer despertar o interesse do público por outras leituras. “Uma pessoa não vai se tornar leitora com Os Sertões, e sim a partir de autores que chamam mais atenção”, diz. “Um número maior de pessoas está lendo e não tem problema algum em ser poesia no Instagram, mas o legal é que eles possam passar a ler outras coisas também”, diz.
Assim como outros livros que caem no gosto popular – ou qualquer obra escrita, na verdade – os títulos dos instapoetas não são regulares: há alguns com reflexões mais e também menos aprofundadas, cuidado e conhecimento maior ou menor da linguagem. No entanto, o meio inicial de propagação do trabalho destes jovens escritores pode ser um fator decisivo na criação e temática dos poemas, algo que os diferencia dos artistas ditos tradicionais. Para o professor da UEL, pode haver certa preocupação por parte deles de agradar seu público por antecedência, respondendo a anseios de seus leitores. “São escritores que estão em busca de aumentar sua circulação. Se for pensar em arte, ela não abre tanto a mão em busca de aceitação imediata, de curtidas e seguidores”, diz Vieira, que não enxerga nessa característica algo necessariamente negativo. “Não há nada que impeça isso, e vejo o movimento com bons olhos, é um estímulo da poesia.”
A aceitação e assimilação dos best-sellers por parte da academia é ainda um tema controverso – e que varia a cada profissional do meio e cada universidade. Mas já há ao menos um indício de que os estudiosos da literatura estão prestando atenção no fenômeno dos instapoetas. A doutoranda Layse Barnabé de Moraes, da UEL, se debruça atualmente a uma tese que parte do livro Outros Jeitos de Usar a Boca, de Rupi Kaur, para analisar o movimento recente formado também por outras escritoras que usam a poesia como meio de cura. “Ela toca em assuntos muito básicos, da vivência feminina, que não são nada delicados e sensíveis, a maneira como geralmente se lida com a literatura feita por mulheres. Ela fala de temas como abuso, o pai imigrante, ser uma mulher indiana”, afirma Layse.
O projeto ainda deve levar alguns dos poemas das escritoras, que incluem também a americana Nayyirah Waheed e a canadense Key Ballah, a mulheres em situação de vulnerabilidade – presas, que estão em asilos, órfãs e que sofreram violência sexual ou doméstica, por exemplo. A ideia da estudante é ouvir essas histórias e apresentar os poemas das autoras, propondo um ambiente de troca de vivências.


Sobre Albert Camus e seu livro "A Peste" (reprodução)

 Quando o prêmio Nobel de Literatura de 1957 foi concedido ao escritor francês Albert Camus, ele já era considerado um dos autores mais significativos e representativos de seu tempo. Isso apesar da pouca idade. Camus recebeu o prêmio aos quarenta e quatro anos, e, depois do poeta inglês Rudyard Kipling - que o conquistou aos quarenta e dois anos -, era o mais jovem detentor do Nobel de literatura. Mas a idade pouco tinha a ver com a importância que Camus assumira gradativamente no panorama da cultura francesa. Como já acontecera outras vezes, o prêmio não foi concedido exclusivamente ao romancista, mas também ao pensador, ao homem preocupado com as angústias do século, o absurdo e o desespero que determinam o ato de existir, e decididamente envolvido na luta diária que tornava possível a esperança. Esperança que ele exerceu, com maior ou menor intensidade, por quarenta e sete anos, quando a morte o surpreendeu, a cem quilômetros de Paris. Uma câmara de ar estourada e o choque contra uma árvore. Muitos se lembraram do que Camus pensava sobre a existência do homem e seu destino no universo, sem um sentido, tendo apenas o absurdo para explicá-la. A frança ficou de luto pelo desaparecimento de uma de suas consciências mais honestas, como destacou André Malraux, também escritor e então ministro da Cultura: ”Há mais de vinte anos a obra de Albert Camus era inseparável da obsessão da justiça”. Há mais de vinte anos. . . Nascido em 1913, em Mondovi, departamento de Constantine, na Argélia, território francês que lutava por sua independência, filho de um operário, Camus teve uma infância difícil, entre duas culturas que seriam sempre cada vez mais antagônicas. 







Sua formação é francesa, seu compromisso é com os homens: ”Sou, antes de tudo, solidário do homem comum. Amanhã o mundo poderá romper-se em pedaços. Há uma lição de verdade nessa ameaça que paira sobre nossas cabeças”. Mecânico, professor primário, empregado no comércio, Camus publicaria seu primeiro livro em 1937, e no ano seguinte ingressaria no jornalismo, duas grandes paixões. Atuando em Paris, abandonou o jornal em que trabalhava por uma cama maior, a resistência à barbárie que ocupava parte da França. Participante ativo da luta contra os alemães, não desdenhava de sua obra literária. A ”Envers et endroit”, ”Núpcias” e ”O verão” - os dois últimos publicados pelo Círculo do Livro - seguiam-se ”O estrangeiro” também publicado pelo Círculo - e ”O mito de Sísifo”, além das peças ”Lê malentendu” e ”Calígula”. O jovem escritor expunha com uma lucidez dolorosa a precariedade da condição humana, ainda que em ”O mito de Sísifo” propusesse: ”É preciso imaginar Sísifo feliz”. Depois da libertação, com apenas trinta anos, ele se tornou o jornalista mais lido da França. Nas páginas do jornal ”Combat”, lutava para que não fossem esquecidas as lições da guerra, a indiferença. As lições foram esquecidas, Camus abandonou o jornalismo. ”A peste” data dessa época, 1947, e reporta-se à experiência que ele desejava presente na consciência dos franceses. Uma epidemia assola uma cidade, como a ocupação nazista assolara a França. A epidemia cessa - a ocupação termina -, e a apatia que cercava a vontade humana diante do elemento estranho volta a imperar. O livro foi um grande sucesso de livraria e se tornou uma obra clássica. Porém, ”A peste” seria também um passo decisivo no rompimento com o existencialista Jean-Paul Sartre, de quem Camus se aproximara. Como seria ”O homem revoltado”. Ele preconizava a revolta individual e libertária, enquanto Sartre colocava o existencialismo a serviço do marxismo, Camus estava só e preparava as últimas obras: ”Lê Minotaure ou La malte d’Oran” (1954), ”O exílio e o reino” e ”A queda” (1956), esta última também publicada pelo Círculo. A lição para o futuro permanece aquela que proferiu no Brasil, em 1949, numa frase: ”Não poderemos ficar alheios e distraídos. Nem o momento comporta atitudes de indiferença. Não durmamos, pois, que a paz será uma realidade, ela que, agora, não passa de uma promessa”. A Peste Os curiosos acontecimentos que são o objeto desta crónica ocorreram em 194..., .em Oran. Segundo a opinião geral, estavam deslocados, já que saíam um pouco do comum. À primeira vista, Oran é, na verdade, uma cidade comum e não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina. A própria cidade, vamos admiti-lo, é feia. com seu aspecto tranqüilo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas, nem o sussurro de folhas. Em resumo: um lugar neutro. Apenas no céu se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelas cestas de flores que os pequenos vendedores trazem dos subúrbios: é uma primavera que se vende nos mercados. Durante o verão, o sol incendeia as casas muito secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então, só é possível viver à sombra das persianas fechadas. No outono, pelo contrário, é um dilúvio de lama. Os dias bonitos só chegam no inverno. Uma forma cómoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Quer dizer que as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessam-se principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, conforme sua própria expressão, em fazer negócios. Naturalmente, apreciam prazeres simples, gostam das mulheres, de cinema e de banhos de mar. Muito sensatamente, porém, reservam os prazeres para os domingos e os sábados à noite, procurando, nos outros dias da semana, ganhar muito dinheiro. À tarde, quando saem dos escritórios, reúnem-se a uma hora fixa nos cafés, passeiam na mesma avenida ou instalam-se nas suas varandas. Os desejos dos mais velhos não vão além das associações de boulomanes’, os banquetes das amicales e os ambientes em que se aposta alto no jogo de cartas. Dirão sem dúvida que nada disso é característico de nossa cidade e que, em suma, todos os nossos contemporâneos são assim. Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por perder nas cartas, no café e em tagarelices o tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes modifica a vida. Simplesmente, houve a suspeita, o que já significa algo. Oran, pelo contrário, é uma cidade aparentemente sem suspeitas, quer dizer, uma cidade inteiramente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois. Isso tampouco é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber. O que é mais original na nossa cidade é a dificuldade que se pode ter para morrer. Dificuldade, aliás, não é o termo exato: seria mais certo falar em desconforto. Nunca é agradável ficar doente, mas há cidades e países que nos amparam na doença e onde podemos, de certo modo, nos entregar. O doente precisa de carinho, gosta de se apoiar em alguma coisa. É bastante natural. Em Oran, porém, os excessos do clima, a importância dos negócios que se tratam, a insignificância do cenário, a rapidez do crepúsculo e a qualidade dos prazeres, tudo exige boa saúde. Lá o doente fica muito só. O que dizer então daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes crepitantes de calor, enquanto, no mesmo minuto, toda uma população, ao telefone ou nos cafés, fala de letras de câmbio, de conhecimentos ou de descontos? Compreenderão o que há de desconfortável na morte, mesmo moderna, quando ela chega assim, num lugar seco. 1 Neologismo que designa os entusiastas de jogo muito popular na frança. (N. do T.) 2 Nome das associações formadas por membros do ensino, etc. (N. do T.) Essas poucas indicações dão talvez uma ideia suficiente da nossa cidade. Aliás, é necessário não exagerar. O importante era ressaltar o aspecto banal da cidade e da vida. Mas os dias transcorrem sem dificuldades, desde que se tenham criado hábitos. A partir do momento em que nossa cidade favorece justamente os hábitos, pode-se dizer que tudo vai bem. Sob este aspecto, sem dúvida, a vida não é muito emocionante. Pelo menos, desconhece-se a desordem. E a nossa população franca, simpática e ativa sempre despertou no viajante uma estima considerável. Esta cidade sem pitoresco, sem vegetação e sem alma acaba parecendo repousante, e afinal adormece-se nela. Mas é justo acrescentar que está enxertada numa paisagem sem igual, no meio de um planalto nu, rodeada de colinas luminosas, diante de uma baía de desenho perfeito. Pode-se apenas lamentar que tenha sido construída de costas para essa baía e que, portanto, seja impossível ver o mar. É sempre preciso ir procurá-lo. Agora, podemos admitir sem dificuldade que nada podia fazer prever aos nossos cidadãos os incidentes que se produziram na primavera desse ano e que foram, como compreendemos depois, os primeiros sinais dos acontecimentos graves cuja crónica nos propusemos fazer aqui. Esses fatos parecerão a alguns perfeitamente naturais e a outros, pelo contrário, inverossímeis. Mas, afinal, um cronista não pode levar em conta essas contradições. Sua tarefa é apenas dizer: ”Isso aconteceu”, quando sabe que isso, na verdade, aconteceu; que isso interessou à vida de todo um povo, e que, portanto, há milhares de testemunhas que irão avaliar nos seus corações a verdade do que ele conta. Aliás, o narrador, que se revelará no momento oportuno, não disporia de meios para lançar- se num empreendimento desse gênero se o acaso não o tivesse posto em condições de recolher um certo número de depoimentos e se a força das circunstâncias não o tivesse envolvido em tudo o que pretende relatar. É isso que o autoriza a agir como historiador. É claro que um historiador, mesmo que não passe de um amador, tem sempre documentos. O narrador desta história tem, portanto, os seus: em primeiro lugar, o seu testemunho; em seguida, o dos outros, já que, pelo seu papel, foi levado a recolher as confidências de todas as personagens desta crônica; e, finalmente, os textos que acabaram caindo em suas mãos. Pretende servir-se deles quando lhe parecer útil e utilizá-los como lhe aprouver. Propõe-se ainda. .. Mas é talvez tempo de abandonar os comentários e as precauções de linguagem para passar ao assunto em si. O relato dos primeiros dias exige certa minúcia. Na manhã do dia 16 de abril, o Dr. Bernard Rieux saiu do consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. No momento, afastou o bicho sem prestar atenção e desceu a escada. Ao chegar à rua, porém, veio-lhe a ideia de que esse rato não estava no lugar devido e voltou para avisar o porteiro. Diante da reação do velho Michel sentiu melhor o que sua descoberta tinha de insólito. A presença desse rato morto parecera-lhe apenas estranha, enquanto para o porteiro constituía um escândalo. A posição deste último era aliás categórica: não havia ratos na casa. Por mais que o médico lhe garantisse que havia um no patamar do primeiro andar, provavelmente morto, a convicção de Michel permanecia firme. Não havia ratos na casa, e era necessário que tivessem trazido este de fora. Em resumo, tratava-se de uma brincadeira. Nessa mesma noite, Bernard Rieux, de pé no corredor do prédio, procurava as chaves antes de subir para sua casa, quando viu surgir, do fundo obscuro do corredor, um rato enorme, de passo incerto e pêlo molhado. O animal parou, pareceu procurar o equilíbrio, correu em direção ao médico, parou de novo, deu uma cambalhota com um pequeno guincho e parou, por fim, lançando sangue pela boca entreaberta. O médico contemplou-o por um momento e subiu. Não era no rato que ele pensava. Aquele sangue fazia-o voltar à sua preocupação. Sua mulher, doente há um ano, devia partir no dia seguinte para uma temporada na montanha. Foi encontrá-la deitada no quarto, como lhe pedira que fizesse. Assim, preparava-se para o cansaço da viagem. Sorria. - Sinto-me muito bem - dizia. O médico olhou o rosto voltado para ele, à luz da lâmpada de cabeceira. Para Rieux, aos trinta anos e a despeito das marcas da doença, esse rosto era sempre o da mocidade devido talvez ao sorriso que dominava todo o resto. - Veja se consegue dormir -• disse. - A enfermeira vem às onze horas, e eu vou levá-las até o trem do meio-dia. Beijou uma testa ligeiramente úmida. O sorriso acompanhou-o até a porta. No dia seguinte, 17 de abril, às oito horas, o porteiro deteve o médico e acusou gracej adores de mau gosto de haverem posto três ratos mortos no meio do corredor. Deviam 10 tê-los apanhado com grandes ratoeiras, pois estavam cheios de sangue. O porteiro ficara algum tempo à porta, segurando os ratos pelas patas, esperando que os culpados se traíssem por algum sarcasmo. Mas nada acontecera. - Ah - dizia Michel -, esses eu acabo apanhando. Intrigado, Rieux decidiu começar sua: visitas pelos bairros exteriores onde moravam os clientes mais pobres. A coleta do lixo era feita muito mais tarde no local, e o automóvel, que corria ao longo das ruas retas e poeirentas do bairro, roçava os caixotes de detritos deixados à beira da calçada. Numa rua que percorria assim, o médico contou uma dúzia de ratos jogados sobre restos de legumes e trapos sujos. Encontrou o primeiro doente na cama, num quarto que dava para a rua e que servia ao mesmo tempo de quarto e de sala de jantar. Era um velho espanhol de rosto duro e vincado. Tinha à frente, sobre a coberta, duas marmitas cheias de ervilhas. No momento em que o médico entrou, o doente, meio erguido no leito, inclinava-se para trás numa tentativa de recuperar seu fôlego penoso de velho asmático. A mulher trouxe uma bacia. - Hem, doutor - disse ele durante a injeção -, eles estão saindo, já viu? - É verdade - confirmou a mulher; - o vizinho apanhou três. O velho esfregava as mãos. - Começam a sair, vêem-se em todas as latas de lixo. É a fome. Rieux não teve dificuldade em constatar, em seguida, que todo o bairro falava dos ratos. Acabadas as visitas, voltou para casa. - Há um telegrama para o senhor lá em cima informou Michel. O médico perguntou-lhe se tinha visto novos ratos. - Ah, não - disse o porteiro. - É que estou tomando conta, compreende, e esses safados não se atrevem. O telegrama avisava Rieux da chegada de sua mãe no dia seguinte. Vinha ocupar-se da casa do filho durante a ausência da doente. Quando o médico entrou em casa, a enfermeira já estava lá. Rieux viu a mulher de pé, como de costume, já pintada. - Está bem - disse -, muito bem. Momentos depois, na estação, instalava-a no carro-leito. Ela percorreu com o olhar o compartimento. 11 - É caro demais para nós, não é verdade? - É preciso - respondeu Rieux. - Que história de ratos é essa? - Não sei. É estranho, mas vai passar. Depois, disse-lhe muito rapidamente que lhe pedia perdão, que devia ter olhado por ela e que se descuidara muito. Ela sacudia a cabeça, como para lhe dizer que se calasse. Mas Rieux acrescentou: - Tudo correrá melhor quando voltar. Vamos recomeçar. - Sim - concordou ela, com os olhos brilhantes -, vamos recomeçar. Um instante depois, voltava-lhe as costas e olhava pela vidraça. Na plataforma, as pessoas apressavam-se aos empurrões. O guincho da locomotiva chegava até eles. O médico chamou a mulher pelo nome e quando ela se voltou, viu que o rosto estava coberto de lágrimas. - Não - disse ele, carinhosamente. Sob as lágrimas, voltou o sorriso, um pouco crispado. Ela respirou profundamente. - Vá embora, tudo correrá bem. Rieux abraçou-a e, na plataforma, nada via agora a não ser o seu sorriso. - Cuide-se, por favor - pediu. Mas ela não podia ouvi-lo. Perto da saída, Rieux encontrou o Sr. Othon, o juiz de instrução, que trazia pela mão o filho pequeno. O médico perguntou-lhe se ia viajar. Othon, alto e escuro, que parecia, em parte, o que se chamava outrora um homem de sociedade e, em parte, um coveiro, respondeu com uma voz amável, mas breve: - Estou à espera da Sra. Othon, que foi apresentar seus respeitos à minha família. A locomotiva apitou. - Os ratos. . . - disse o juiz. Rieux teve um movimento na direção do trem, mas voltou-se para a saída. - Sim, não é nada. Tudo o que guardou desse momento foi a passagem de um empregado que levava debaixo do braço um caixote cheio de ratos mortos. Na tarde do mesmo dia, Rieux, no início de suas consultas, atendeu um rapaz que lhe disseram ser jornalista e que já viera de manhã. Chamava-se Raymond Rambert.  Baixo de estatura, ombros largos, rosto decidido, olhos claros e inteligentes, Rambert vestia roupa esporte e parecia à vontade na vida. Foi direto ao assunto. Fazia uma pesquisa para um grande jornal de Paris sobre as condições de vida dos árabes e queria informações sobre o seu estado sanitário. Rieux informou-o de que esse estado não era bom, mas quis saber, antes de ir mais longe, se o jornalista podia dizer a verdade. - Certamente - disse o outro. - Quero dizei, pode fazer a condenação total? - Total, não, devo dizê-lo. Mas creio que essa condenação não teria fundamento. com delicadeza, Rieux disse que na verdade semelhante condenação não teria fundamento, mas que, ao fazer essa pergunta, procurava apenas saber se o testemunho de Rambert podia ou não ser feito sem reservas. - Só admito os testemunhos sem reservas. Não estou, pois, disposto a apoiar o seu com as minhas informações. - É a linguagem de Saint-Just - disse o jornalista, sorrindo. Sem elevar a voz, Rieux disse que não sabia nada disso, mas que era a linguagem de um homem cansado do mundo em que vivia, mas que amava, contudo, seus semelhantes e estava decidido a recusar, de sua parte, a injustiça das concessões. Rambert, com o pescoço enterrado nos ombros, olhava para o médico. - Creio que o compreendo - disse por fim, levantando-se. O médico acompanhou-o à porta. - Agradeço-lhe por aceitar as coisas assim. Rambert pareceu impaciente. - Sim, compreendo, perdoe-me o incómodo. O médico apertou-lhe a mão e informou-o de que haveria uma curiosa reportagem a fazer sobre a quantidade de ratos mortos que se encontravam na cidade nesse momento. - Ah! - exclamou Rambert. - Isso me interessa. As cinco horas, ao sair para novas visitas, o médico encontrou na escada um homem ainda novo, de silhueta pesada, de rosto maciço e cansado, riscado por sobrancelhas espessas. Tinha-o encontrado algumas vezes em casa dos bailarinos espanhóis que moravam no último andar de seu prédio. Jean Tarrou fumava com empenho um cigarro e contemplava as últimas convulsões de um rato que morria num 13 degrau, a seus pés. Levantou para o médico um olhar calmo e um pouco fixo nos olhos cinzentos e acrescentou que aquela aparição de ratos era uma coisa bastante curiosa. - É verdade - respondeu Rieux -, mas acaba por tornar-se irritante. - Num sentido, doutor, só num sentido. Nunca vimos nada de semelhante, eis tudo, mas eu acho isso interessante, sim, positivamente interessante. - Tarrou passou a mão pelos cabelos, para atirá-los para trás, olhou de novo para o rato agora imóvel e depois sorriu para Rieux. - Mas, afinal, doutor, isso é sobretudo com o porteiro. De fato, o médico encontrou o porteiro em frente à casa, encostado à parede, perto da entrada, com uma expressão de cansaço no rosto habitualmente congestionado. - Bem sei - disse o velho Michel a Rieux, que lhe comunicava a nova descoberta.

terça-feira, 3 de março de 2020

No portal da literatura afro-brasileira: Literafro

Francisco Solano Trindade nasceu em 24 de julho de 1908, no bairro de São José, em Recife-PE, filho do sapateiro Manoel Abílio e da doméstica Emerenciana Quituteira. A miscigenação está presente nas origens étnicas do autor: neto de negro e branca, pelo lado paterno; e negro e índia, do lado materno. Estudou no Liceu de Artes e Ofícios da capital pernambucana, tendo concluído o equivalente ao ensino médio atual.
Desde cedo, estabeleceu contato com a cultura popular e o folclore, levado pelas mãos do pai que, nos dias de folga, dançava Pastoril e Bumba-meu-boi nas ruas do Recife. O carnaval, suas figuras, o maracatu, e o frevo fascinavam o menino. A pedido da mãe, analfabeta, lia novelas, literatura de cordel e poesia romântica, que ambos apreciavam. Já adulto, o autor se casa em 1935 com Maria Margarida – terapeuta ocupacional e coreógrafa – com quem teve quatro filhos.

Escultura representando o escritor Solano Trindade, Pátio de São Pedro, Recife

(foto: Moisés Monteiro de Melo Neto)


A década de 1930 é marcada em todo o mundo pela ascensão do nazismo e do fascismo, que iriam controlar quase toda a Europa a partir da deflagração da Segunda Guerra Mundial, em 1939. A polarização ideológica entre direita e esquerda contamina as discussões sobre arte e literatura. E a noção mítica de "raça superior", oriunda cientificismo do século XIX, impulsiona fortemente a discriminação racial existente no Brasil desde a colonização. O autoritarismo segregador defendido pelo discurso nazi-fascista se espalha pelo país a partir da crescente pregação do Partido Integralista, dirigido pelo também escritor Plínio Salgado.
Em contrapartida, dá-se o fortalecimento na Imprensa Negra e a criação da Frente Negra Brasileira, que também se organiza em forma de partido político e fortalece a resistência dos afrodescendentes em sua luta pela obtenção da cidadania plena, a começar pelo direito à Educação, passados pouco mais de 40 anos de vigência da Lei Áurea.
Nesse período, Solano Trindade participa em Recife do I Congresso Afro-brasileiro, organizado por Gilberto Freyre, que reúne dezenas de intelectuais voltados para a discussão da contribuição cultural da diáspora africana em nosso país. Participa também do II Congresso Afro-brasileiro, realizado posteriormente em Salvador.
Em 1936, entusiasmado com os movimentos em prol da consciência negra, que se espalhavam nas principais cidades do país, funda a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileira, juntamente com o poeta Ascenso Ferreira, o pintor Barros e o escritor José Vicente Lima. Esse órgão tinha como objetivo, dentre outros, promover a pesquisa da afrodescendência na cultura e na história, buscar a expressão afro-brasileira na literatura e nas artes em geral, além de promover a divulgação de intelectuais e artistas negros. Em seu documento de fundação, o Centro de Cultura Afro-brasileira proclama: “não faremos lutas de raças, porém ensinaremos aos irmãos negros que não há raça superior, nem inferior, e o que faz distinguir uns dos outros é o desenvolvimento cultural. São anseios legítimos a que ninguém de boa fé poderá recusar cooperação.” (Apud FARIA, in: TRINDADE, 1981, p. 15).
Ainda em 1936, estréia na literatura com a publicação de Poemas negros. Editada em Recife, a coletânea de Solano Trindade polemiza com o livro homônimo do também nordestino Jorge de Lima, lançado no mesmo ano e trazendo a público o discutido poema "Nêga Fulô".
Na década seguinte, depois de passar por Belo Horizonte e Porto Alegre, fixa residência no Rio de Janeiro, onde se integra aos círculos literários e culturais e trava conhecimento com outros artistas afrodescendentes. Em 1944, lança seu segundo livro, Poemas d’uma vida simples, que obteve boa repercussão junto à crítica da época. Amante devotado das formas populares de representação, o poeta assiste à criação do  TEN – Teatro Experimental do Negro – fundado em 1944 por Abdias Nascimento. 
Em 1950, Solano Trindade funda em Caxias, na Baixada Fluminense,  ao lado da esposa, Margarida Trindade, e do sociólogo Edison Carneiro, o Teatro Popular Brasileiro, que contava com um elenco formado por domésticas, operários e estudantes e tinha como projeto estético-ideológico "pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forna de arte." Ainda na década de 1950, os espetáculos de canto e dança apresentados pelo TPB foram levados a vários países da Europa.
Em 1958, lança seu terceiro livro, Seis tempos de poesia, publicado em São Paulo.
A partir dos anos 1960, o poeta passa a residir em Embu, nas cercanias de São Paulo. Ato contínuo, deflagra grande movimentação artística e cultural na cidade. Espetáculos sucedem-se, atraindo público da capital e estimulando o desenvolvimento da pintura e do artesanato locais. A pequena Embu transforma-se mais tarde em “Embu das Artes” e vira atração turística.
Em 1961, sai o quarto livro, Cantares ao meu povo, cujos originais haviam sido enviados a Roger Bastide, um dos primeiros estudiosos da poesia afro-brasileira, que se encanta com os poemas.
Doente e cansado, Solano Trindade deixa Embu para residir em São Paulo. Termina seus dias pobre e esquecido numa clínica no Rio de Janeiro, onde faleceu em 1974, vítima de pneumonia.
Referências
FARIA, Àlvaro Alves de. Poesia simples como a vida. In: TRINDADE, Solano. Cantares ano meu povo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
TRINDADE, Raquel. Dados biográficos. In: TRINDADE, Solano. O poeta do povo. São Paulo: Cantos e Prantos Editora, 1999.


PUBLICAÇÕES
Obra individual
Poemas negros. Recife: Edição do autor, 1936.
Poemas d´uma vida simples. Rio de Janeiro, 1944.
Seis tempos de poesia. São Paulo: A. Melo, 1958.
Cantares ao meu povo. São Paulo: Editora Fulgor, 1961.
Edições Póstumas
Cantares ao meu povo. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.
Tem gente com fome e outros poemas. Rio de Janeiro: Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro,1988.
Solano Trindade: o poeta do povo. Organização de Raquel Trindade. São Paulo: Cantos e Prantos Editora,1999.
Poemas antológicos de Solano Trindade. Seleção, organização e prefácio de Zenir Campos Reis. São Paulo: Nova Alexandria, 2006.
Canto negro. Apresentação de Zenir Campos Reis. São Paulo: Nova Alexandria, 2006.
Antologias
Poesia negra brasileira: antologia. Organização de Zilá Bernd. Porto Alegre: AGE : IEL : IGEL, 1992.
A razão da chama: antologia de poetas negros brasileiros.  Organização de Oswaldo de Camargo. São Paulo: GRD, 1986.
O negro escrito. Organização de Oswaldo de Camargo. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1987.
O negro em versos: antologia da poesia negra brasileira. Organização de Luiz Carlos Santos, Maria Galas e Ulisses Tavares. São Paulo: Moderna, 2005.
Antologia de poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. Organização de Zilá Bernd. Belo Horizonte: Mazza edioções, 2011.
Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Organização de Eduardo de Assis Duarte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol. 1, Precursores.


TEXTOS


CRÍTICA

FONTES DE CONSULTA
BERND, Zilá (Org.). Poesia negra brasileira: antologia. Porto Alegre: AGE: IEL: IGEL, 1992.
BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. 183-186.
ALMEIDA E SILVA, Denivaldo. M. M. A escrita negra de Solano Trindade: movimentos de resistência e modos de identidade da consciência poética. 2013. 135 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifica Universidade Católica. São Paulo, 2013.
FARIA, Álvaro Alves de. A poesia simples como a vida. In: TRINDADE, Solano. Cantares ao meu povo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.
GREGÓRIO, Maria do Carmo. Solano Trindade o poeta das artes do povo. Rio de Janeiro: CEAP, 2009.
LIMA, Vicente. Os poemas negros de Solano Trindade. Recife: Casa da Cultura Afro-brasileira, 1940.
MACHADO, Serafina Ferreira. Literatura como movimento humanizador: o projeto poético de Solano Trindade. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2006.
MARTINS, Leda Maria. Solano Trindade. In: DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol. 1, Precursores..
SANTOS, Suely Maria Bispo Dos. A importância da obra de Solano Trindade no panorama da literatura brasileira: uma reflexão sobre o processo de seleção e exclusão canônicos. 2012. 147 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012.
SANTOS, Oluemi Aparecido Dos. Nas sendas da revolução: a poesia de Agostinho Neto e Solano Trindade. 2009. 168 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
SOUZA, Elio Ferreira de. Memória, construção de identidades e utopia em Canto dos Palmares, de Solano Trindade. In: FERREIRA, E.; MENDES, A. M. (Org.). Literatura afrodescendente: memória e construção de identidades. São Paulo: Quilombhoje, 2011, p. 61-74.
SOUZA, Elio Ferreira de. Poesia Negra das Américas: Solano Trindade e Langston Hughes. 2006. 371 f. Tese (Doutorado) – UFPE, Recife, 2006.
SOUZA, Elio Ferreira de. Poesia Negra: Solano Trindade e Langston Hughes. Curitiba: Appris Editora, 2017.
SOUZA, Florentina. Solano Trindade e a produção literária afro-brasileira. In: JÚNIOR, Robert Daibert; PEREIRA, Edimilson de Almeida (Orgs.). No berço da noite: religião e arte em encenações de subjetividades afrodescendentes. Juiz de Fora: MAMM Ed., 2012.
TRINDADE, Raquel. Dados biográficos. In: TRINDADE, Solano. Cantares ao meu povo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.


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