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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Literatura em PERNAMBUCO a partir do o século XX


















por MOISÉS  MONTEIRO DE MELO









Índice

Hermilo Borba Filho............................................
Jomard Muniz de Britto...................................
Cesar Leal...........................................................
Raimundo Carrero................................................
A Geração 65........................................................
Lucila Nogueira....................................................
Marcus Accioly......................................................
Luzilá Gonçalves Ferreira....................................
Regina Vilaça.........................................................

Gilvan Lemos..........................................................

Ariano Suassuna.......................................................

Ascenso Ferreira........................................................
 Manuel Bandeira.............................................................
João Cabral de Melo Neto...............................................
Chico Science e outros poetas do Movimento Mangue
 (“A Cena Recifense dos anos 90”)...............................
Mauro Mota..................................................................
Carlos Pena Filho.........................................................
Giberto Freyre..............................................................
Joaquim Cardozo.........................................................
Nelson Rodrigues.........................................................
Osman Lins.................................................................





 






 


 












Hermilo Borba Filho
(Ensaio PUBLICADO NO DIÁRIO DO SENADO FEDERAL 23168
QUINTA-FEIRA 12 de JULHO DE 2007)

Um dos mais importantes intelectuais pernambucanos, o escritor e encenador Hermilo Borba Filho foi o criador do Teatro de Estudante de Pernambuco e do Teatro Popular do Nordeste.
Em 1932, na cidade de Palmares, interior de Pernambuco, ele começou como ponto, depois foi promovido a ator. Em 36, conheceu Samuel Campelo em Recife, diretor do grupo Gente Nossa. Engajou-se como técnico. As peças eram influenciadas pelo estilo francês e falavam dos costumes cariocas. O teatro de boulevar.
Em 1940 morre Campelo e Waldemar de Oliveira funda o TAP, Teatro de Amadores de Pernambuco. Hermilo traduz peças para a companhia. O estilo era o francês do início do século.
Na Semana da Arte Popular em Recife, em 1945, ao lado de Gilberto Freyre, Hermilo proferiu a Conferência “Teatro, Arte do Povo”, ali começava um novo projeto, um grupo ligado à redemocratização do Brasil, um teatro político.
Aquela era uma época de crise. Luca Cardoso Ayres desenhou os cenários da 1ª peça que foi apresentada em cima das mesas da Biblioteca da Faculdade de Direito. Houve até vaia, mas foi um mesmo, era o início. Representou-se de tudo, mas valorizou-se o autor nacional e principalmente o nordestino. Leva teatro ao povo. Já surgiu Ariano Suassuna.
Inspirada no grupo de teatro do espanhol Garcia Lorca foi construída uma barraca no Parque 13 de Maio (Recife) e montada a peça “Cantam as Harpas do Sião”, de Suassuna e outros. Apresentaram-se, com outros espetáculos, em hospitais, fábricas, presídios. Sófocles, Shakespeare, Ibsen, faziam parte do repertório.
Em 1952 Hermilo vai para São Paulo e o Teatro de Estudantes dá uma parada.
Hermilo escreveu as peças “João sem terra”, “A barca de ouro” e “Electra no Circo”, “Donzela Joana”, “Sobrados e mocambos” (baseada em Gilberto Freyre). Mas seu objetivo era ser diretor e romancista.
Sua primeira experiência foi dirigindo “Fruto proibido”, de Oduvaldo Viana.
Como jornalista foi crítico do jornal Última Hora e da revista Visão e teve acesso aos bastidores de companhias nacionais e internacionais. Dono de enorme biblioteca, teve que se desfazer dela por falta de dinheiro.
Lançou em São Paulo “O auto da compadecida”, com sucesso e dirigiu Sérgio Cardoso em o “Casamento Suspeitoso”, ambas de Suassuna. Adaptou “A Dama das Camélias”, para Dercy Gonçalves.
Voltou para Recife e fundou o Teatro Popular do Nordeste e o Teatro de Arena, com peças de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, dentre outros. Trabalhou ao lado de José Carlos Cavalcanti Borges, Gastão de Holanda, Aldomar Conrado, Leda Alves e Capiba.
Representou-se “A Mandrágora”, de Maquiavel, no Teatro do Parque, com 1200 lugares e somente seis espectadores!
Depois Hermilo Borba Filho começou a trabalhar com encenações na linha de Brecht, mesclando-o com bumba-meu-boi, pastoril e outros folguedos do nordeste. Embora Dias Gomes, Osman Lins. Enfrentou o semi-profissionalismo, atores tinham outras ocupações para ganhar dinheiro. Em 1971, Recife tinha cerca de um milhão de habitantes, ao 0,5% ia ao teatro. O preço não importava. Nem o operário nem o estudante, ninguém quase se interessava por isso, Hermilo tentou até divulgar em escolas.
Através do SESI e do SESC fizemos convênios, mas os operários, que trabalhavam o dia inteiro, estranhavam o ingresso gratuito e só queria saber de futebol. O que salvou o Teatro Popular do Nordeste (TPN) foi o auxílio do Serviço Nacional do Teatro (SNT).
Ao trabalhar com o pastoril, Hermilo viu quanta semelhança havia com este o teatro de Calderón de La Barca, do Século de Ouro Espanhol. Para ele, nosso pastoril veio de linha do auto sacramental e caiu no profano porque o público começou a gostar. Como na Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, que começou a abrir concessões para atrair mais público. O velho do pastoril é o diabo das farsas medievais. Aos puristas que diziam que o folclore estava se degradando ao evoluir, Hermilo Borba Filho respondia que não: “O brinquedo é do povo, o povo faz dele o que bem quiser. Não são os intelectuais os donos do brinquedo. Vi um mamulengo em Surubim (PE) em que um personagem carregava uma miniatura de garrafa de Coca-Cola nas costas. É direito dele misturar Cristo com bumba-meu-boi, o que é que tem? O animal acompanhou Cristo na manjedoura.”
Hoje são poucos os espetáculos populares que sobreviveram como o Fandango, que conta as epopéias marinhas portuguesas. Eu não agüento, aquilo dura a noite toda. Não há quem agüente”.
Hermilo preferia algo mais picante, como os personagens de comédia dell’ arte e os de Moliére, que lembram o Dr. Pinico do bumba-meu-boi, que vem ressuscitar o bicho. “A origem é erudita”, dizia Hermilo. Hemilo Borba Filho renovou o teatro brasileiro, seu desprezo por nossas raízes folclóricas, como o bumba-meu-boi e o mamulengo. Filho de ateu tratou a religiosidade com respeito: “tenho de limpar terrenos e afastar ao máximo todas as tentações. É através da carne, sobretudo da libidinagem, que o demônio nos acompanha. Vade retro, Satanas! Não se brinca com Deus. O que tenho feito é encher a minha alma de carne. Todo dia é dia de conversão. Nem catolicismo ainda é meu deleite e não amor. Ontem ouvi um suflar de asas terrível que me deixou em pânico. Seria um anjo? Pensei. Mas os anjos não causam pavor. E de repente, sem que nada me levasse a esta conclusão, pensei: ‘É o demônio. Ouvi o bater de suas asas de anjo caído”.
Muito se falou sobre a identificação de Hermilo Borba Filho com o romancista norte-americano Henry Miller, embora as circunstâncias exteriores e históricas de ambos sejam bem diversas, há pontos de convergência na obra dos dois. Hermilo era filho de senhor de engenho em decadência e inspirou-se no povo de Palmares, sua terra, para compor parte de sua obra.
Algo em comum entre os dois autores: a compulsão sexual, o erotismo, envolto em alegria e humor, natural, como comer e defecar: Voyeurismo, masturbação, sexos anal e oral, incesto, experiências sadomasoquistas e homossexuais. Ambos louvaram o sexo, lutaram pela destruição de preconceitos antigos. Usaram o “palavrão” e foram libertários.
O envolvimento de Hermilo Borba Filho com o Movimento de Cultura Popular (MCP) junto com Paulo Freire e sua simpatia pelo Partido Comunista e a Igreja Progressista, trouxeram-lhe algumas perseguições, do mesmo modo que Henry Miller teve que responder a alguns processos por pornografia, por exemplo.
Miller não expressava o coletivo em suas obras, Hermilo buscou exprimir solidariedade e aproximação com seu povo.
Hermilo Borba Filho nasceu em 8/ 7/ 1917 no Engenho Verde, município de Palmares, na Zona da Mata de Pernambuco, filho de Hermilo Borba Carvalho e Irinéia Portela. Em 35 escreveu “A Felicidade”, sua 1ª peça. Em 41 o primeiro conto: “As Pernas Daquela Moça”. Escreveu e dirige as peças “Parentes da ocasião” e “O Presidente da República” (1943), “Círculo Encantado”, “Vidas Cruzadas” e “Electra no Circo (1944), “João Sem Terra” (1947), “O Vento do Mundo”, “Cabra Cabriola” (1948), “A Barca de Ouro” (1949), “Os Bailarinos” e diálogos para o filme “O Canto do Mar”, de Alberto Cavalcanti (1951), “Três Cavalheiros a Rigor” (1953), “As Moscas” (1960), “O Bom Samaritano” (1965), “O Cabo Fanfarrão”, “A Donzela Joana” (1966).
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da UFPE (1950), publicou os romances “Caminho da Solidão” (1957), “Sol das Almas (1964), “A Porteira do Mundo” (da Tetralogia “Um Cavalheiro da Segunda Decadência” – 1967). Publicou ainda estudos, contos e novelas.
Morreu em 2/ 06/ 76, no Recife, ao lado do seu grande amor, a pesquisadora e atriz Leda Alves.por Moisés Neto






Jomard Muniz de Britto

Filho da pernambucana Maria Celeste  Amorim da Silva com o paraibano José Muniz de Britto, Jomard Muniz de Brito (um hipertropicalista) é híbrido de nascença.Aos 70 anos  tem produção regular. São estéticas múltiplas e controversas. Contradições do Homem Brasileiro, Do Modernismo à Bossa Nova  e Vanguarda e Retaguarda da Cultura Brasileira. Em 2007 lançou um livro de poemas (“O livro dos 3”) em conjunto com dois poetas baianos, Fernando da Rocha Peres e João Carlos Teixeira Gomes.
Professor universitário poeta, ator, diretor, escritor, crítico de cinema e de música, cineasta, este recifense nascido na rua Imperial, bairro de São José, em 1937, participou de vários movimentos artísticos durante as décadas de 1960, 70 e 80, nas estéticas pós-modernas. É um dos autores do Manifesto Tropicalista no Recife, junto com Aristides Guimarães e Celso Marconi, foi levado pelo escritor José Rafael de Menezes  a ser professor titular da UFPB  em 1964 – um dia após o Golpe Militar.
 Jomard escreveu onze livros, entre poemas, ensaios e críticas, produziu 33 filmes e vídeos em Super 8, foi grande amigo de Glauber Rocha e mantém estreitos contatos com Caetano Veloso e Gilberto Gil.  JMB gravou CD, está no MySpace e no Youtube. Distribui seus poemas como temas-problemas . Trabalha o conceito de  Pop filosofia.
 
 “O jogo das vanguardas é o jogo de méritos e de maldições. A palavra vanguarda é muito controvertida. Eu não tenho bandeira de vanguarda. Mas eu concordo com Jorge Mautner quando ele fala em hipertropicalismo. Eu talvez tenha essa máscara que grudou na minha cara, e eu gosto”.(JMB)

Jomard Muniz de Brito faz 70 anos. (Re)Vive os anos 70, com perdão do trocadilho. Para analisar a poeticidade numa obra, como a de JMB, que rompe fronteiras entre prosa e poesia e chegar à fonte de criação desta poiesis que cheia de contradições gerou contradicções (contradições do falar/escrever jomardiano), você deve olhar além do ser e não ser mergulhado na lógica dos paradoxos (um salto além da lógica binária).
A reflexão emotiva, presente já no seu primeiro livro permeado de rigorosas intuições. As situações-limite geraram as tensões e distensões criadoras. É obra permeada por filosofias da existência (existencialismo às avessas?). São ambigüidades dialogando com as tensões, a bricolagem, o pensamento selvagem, a crítica cultural, a crítica da cultura.
A poeticidade jomardiana é mensagem política/ideológica.  Jogo de interpenetrações. Fricção por detrás das palavras/ construções sintáticas. Abismo entre sentidos denotativo e conotativo. Democrática e dialética, esta palavra/ obra Poesia moderna? Satírica? Filosófica? Claro enigma?
Pouca gente se arrisca a classificar JMB. O imaginário e o simbólico são particularíssima experiência da invenção de uma narrativa pessoal (quem escreve um poema concebe a si mesmo, simultaneamente) O autor passeia pelo Tropicalismo, concretismo ou nada disso e exercita a expansão e a democratização da experiência literária .
 Esta difusão de formas poéticas de todos os níveis, do grande épico-satírico à busca de uma sonoridade. Do poema hipertexto cheio de links parodístico-histórico-filosóficos são marcas e podemos detectar seus efeitos na cultura local. Seus reflexos atrativos e repelentes.
A maneira de JMB representar em poeticidade a relação dos homens com o seu destino, com a vida, discute temas/ problemas fundamentais de uma sociedade. O convencional versus o experimental em Jomard, expõe a separação de um estado (ideal) de literatura, que sempre foi a incensada pela cultura e a literatura produzida de modo menos convencional (ruptura com a sintaxe, etc.) Observar nesta fricção os modos de religação entre o homem e o seu universo, entre os homens e o local da cultura (perdido), entre os homens e sua comunidade (Recife) leva-nos até a segunda metade dos anos 60 quando JMB começou a publicar em livros a necessidade de um espaço alternativo de onde se pudesse enunciar algum tipo de verdade que desse conta deste desamparo dos sujeitos modernos, e que se estenderia nos anos 70, 80 e 90 do século XX e início do século XXI.

O corpo desta poesia surge na esteira de transformações sociais e subjetivas, como expressão, no campo da arte, da reflexão como meio de acesso à verdade.
Suas relações solitárias de sujeito com a verdade, tentam responder através da dúvida sistemática, como os filósofos empiristas .
Podemos checar a vasta transformação da sociedade recifense de 1964 ao final do século na radicalização desta poeticidade
Mapear a obra poética jomardiana é enlaçar-se com as contradições e coincidências entre a história literária oficialesca e a construção simbólica de indivíduos particulares vivendo experiências particulares em épocas e lugares particulares.È querer decifrar/ compreender a falta de certezas universais e/ ou transcendentais numa poética que coloca o indivíduo como centro de suas próprias referências. Uma poeticidade impregnada de revoluções em enigmas contundentes.

A Academia está se empenhando em reflexões e conclusões possíveis  sobre este “escreviver”. Situando-o no conjunto de expectativas formadas a partir da literatura passada; colocando em ação mecanismos de identificação Quais são os fundamentos desta literatura? No que consiste? Como ela opera, que efeitos produz - e até que ponto precisamos enxergá-la, para não corrermos o risco de pensar o intelectual/ poeta recifense como uma categoria universal abstrata ?

JMB modifica radicalmente a poética local e oferece sua representação para figuras destacadas da massa. Os marginalizados aparecem em linguagem sincopada como reis, santos ou heróis, e além de pessoas comuns, se destacam da massa ganhando uma história de vida digna de ser relatada - a identificação do leitor funciona para simultaneamente, 1º. legitimar a experiência e, 2º autorizar a diferença, legitimando a experiência.
 Jomard autoriza a diferença: e busca a adesão dos seus leitores/ouvintes que por um motivo ou por outro não se ajustam perfeitamente, nem à velha ordem decadente nem à nova política.
Jogando entre os pólos, em contraposição às conveniências e aparências que regem o jogo social. Catando misteriosos detalhes secretos sabendo que os detalhes da vida só adquirem existência quando encontram palavras com que se expressar numa determinação literária de poeticidade os anseios, desejos, sofrimentos e gozos.
Sua literatura é campo de referências que se dirige ao sujeito/leitor a partir de um outro lugar, diferente do lugar- comum dos discursos de autoridade . É campo de experiência compartilhada de forte interpenetração imaginária, ao mesmo tempo em que interpela diretamente o indivíduo em seu isolamento.Ruptura, apóstrofe, apelo aos sujeitos mergulhados no vazio, na ausência de sentido, na ameaça de aniquilamento e de diluição das identidades. Como diz Claude Lévi Strauss nos ensaios "O feiticeiro e sua magia" e "A eficácia simbólica" - ao descrever como o xamã opera algumas curas, manipulando símbolos e inventando narrativas que forneçam ao doente ... "uma linguagem para exprimir estados informuláveis". Partindo da constatação de que "o informulável é a doença do pensamento", Strauss assim define a cura xamânica: "é necessário que, por uma colaboração entre a tradição coletiva e a invenção individual se elabore continuamente uma estrutura, isto é, um sistema de oposições e correlações que integre todos os elementos de uma situação em que feiticeiro, doente e público, representações e processos, encontrem seu lugar".

               É uma poeticidade atenta ao seu próprio destino e escolhas morais, e simultaneamente mais emancipada, relativamente mais livre para o escreviver.
Convocado a dar conta de sua própria experiência subjetiva, produzida no encontro tenso entre "vivências de diversidade e de ruptura" e outras tendências, JMB articula o seu caminho por entre as frágeis malhas da rede de informações que lhe chegam através de outros textos, (atentados poéticos!). Se não há nesta lira uma garantia de verdade, há pelo menos a busca de interlocutores no meio da incerteza.
É desta rede de interlocuções que provêm as vozes de Jomard: da relação com o semelhante, com o pequeno outro e sua condição de desamparo e de dúvida, que escreve para interrogar a falência dos enunciados de verdade.
Textos em que a dispersão e a fragmentação do eu encontram alguma unidade, e a vida, algum sentido e questionam a impossibilidade de se estabelecer qualquer certeza sobre o sentido da vida e do mundo. Cabe a esta poeticidade nomear nosso precário saber. E o que podemos saber sobre as coisas é apenas aquilo que propomos a respeito delas, denunciando que o Outro é obra nossa, incapaz de nos dar qualquer garantia sobre a verdade e sabendo que a significação de uma palavra é seu uso na linguagem contra  a tirania do Um.
Sem ocupar um lugar de autoridade e buscando a interlocução transformando poesia em divertimento buscando a legitimação simbólica sem a pretensão a fundar uma exceção perversa.




Uma qualquer Recife

Uma qualquer Recife cidade sitiada
é a escuta PSI,
a escritura psiu de seus arquitetos da mais sutil
urbanidade ao redor dos favores
da SANTA CASA DE MISERICÓRDIA.
Restauram apenas fachadas em cores vivas,
reinventando a cidade-cartão-postal-global
em sua dignidade tão degradante, sufocada,
turismo mimético do Pelourinho e advertências.
Uma cidade, além das dúvidas e suspeições,
é o conjunto de seus buracos. Imanentes e
galácticos. Cartesianos e dionisíacos.
Gilbertianos por todos os séculos.



 “O pensamento homogêneo, único, o politicamente correto, tudo isso vem do nosso capitalismo tardio e onipresente”, fala o homem que acumulou vários rótulos ao longo de sua existência: tropicalista, iconoclasta, agitador, maluco, marginal e até baiano. Tudo por causa de sua conhecida e íntima relação com figuras como Glauber Rocha e Caetano Veloso, entre outros.(Em entrevista ao Jornal do Commercio)

“Nós, ainda intelectuais, precisamos perder ou dispensar tanta arrogância de salão ou de televisão. Confiar menos na potência de cantos e cátedras. Suspender afãs de julgamento. Trapacear com as linguagens estabelecidas. Cultivar a ironia socrática nos aforismos nietzscheanos. Cortes epistemológicos arrebentando o núcleo das complexidades.” (Em entrevista a revista Trópico)

 “Amador, como um contra-burguês, tal diz Roland Barthes; e um amador, como um incompetente, tal diz o senso comum”, explica. “Comungo a anti-ambição de ser um cineasta profissional. Minha única atuação profissional foi lecionar” (Em entrevista a Folha de Pernambuco)

Depoimento de JMB: “As pessoas estão muito preocupadas com o mercado, com o sucesso e com a sobrevivência do mercado. Pra você entrar no mercado tem um jogo, se você tem um amigo numa grande editora, aí você vai ser editado, vai ser publicado. Se você mora no Rio e em São Paulo há mais possibilidades de se entrar no circuito nacional do que se morando aqui. Estas são relatividades, que é o relativismo, que é o cinismo total... se deve fazer a análise concreta de situações concretas.
Não se vive impunemente no Recife, em João Pessoa ou em Natal, você tem que assumir isso, o ônus disso, por covardia ou por qualquer coisa ou por medo de não fazer sucesso numa cidade maior. E depois tem mais uma coisa que eu não gosto: é de assumir uma máscara de seriedade (risos) Isso eu aprendi com Sartre. Pra você ser um intelectual, ou ser um poeta, ou ser uma pessoa que tem trânsito na academia, na sociedade letrada, tem que ter uma postura de seriedade, tem que estar enquadrado, que é uma hipocrisia, ter de fazer um jogo de cortesia e eu aprendi com o Tropicalismo a me lixar pra estas coisas.”


Trecho de carta de Glauber Rocha  para Jomard:   “o que vai por aí neste distante Pernambuco do Recife? como agüentas a província brutalizada, a lama do subdesenvolvimento, o feijão, o angu, as velhas lotações, as estradas sujas, as ruas esburacadas, as moças sonhadoramente ansiosas na longínqua maquillage, a brutalidade adolescente dos rapazes, os velhos latifundiários, o arrivismo, os jovens poetas sinceramente dispostos a tudo salvar?”[Glauber Rocha. Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997]

JMB, em entrevista a Carlos Adriano para a revista eletrônica Trópico, explicou a sua desconstrução geográfica, em prol de um Brasil não mais dividido entre Província e Metrópole: “João Pessoa de repente Rio de Janeiro. Olinda barbaramente Paulicéia. Natal absurdamente Londres desnorteada. Campina Grande desgovernada por Bráulio Tavares.”


“Jomard Muniz de Britto e seus Atentados Poéticos”
(Ensaio de Moisés Neto Publicado na  LeMangue)

Um atentado causa espanto,e quando se trata de poesia,ficamos “atentos” às combinações de palavras.E quando o poeta é o recifense Jomard, sabe-se que por aí vem bomba.
Pois bem,ele lançou seu  novo livro “Atentados Poéticos” (editora Bagaço.354 páginas,mais um caderno de bricolagens. R$ 25) onde mais uma vez mistura poesia e prosa(sua marca registrada),filosofia e vanguarda.
Um filme,um livro,uma aula os versos de JMB  são como ele mesmo,uma pessoa com os olhos no próximo momento.Sempre provocando, pinotando,alvoroçando,elegantemente.
Em “Atentados Poéticos” ,o tumulto emocional cria uma atmosfera de tensão empurrando o leitor freneticamente para o absurdo,para o limite entre consciente e inconsciente,realidade e releitura/ ficção poética,política e sexo: “Que quebrarei?/que mentiras devo sustentar?(...) sou outro Rimbaud ou qualquer Sancho Pança?” .Há no livro referências a amigos ,ídolos e desafetos,que aparecem na 1ª parte parafraseados,parodiados,apimentados.
O autor não dá muito valor à forma.Seu conteúdo  buliçoso é expresso com uma certa musicalidade  e vem munido de uma certa retórica de centro-esquerda.Sua impassibilidade faz-nos paradoxalmente ver a vida por tantos ângulos(inclusive o da dialética) sem que haja necessariamente compromisso com nenhum.Nas suas “bricolagens”, vemos o cineasta,que ele traz dentro de si,interrompido,no meio do jogo erótico-existencialista.
Ele passeia como num baile de máscaras entre o sujeito social,a situação histórica,o carnaval,a fome,a cidade,as letras.É um discurso cheio de disfarces e desmascaramentos ,como numa corda bamba entre o enigma e a obviedade.Não vai direto ao ponto:delicia-se em ficar zumbindo ao redor: “Trapacear com a língua/ essa trapaça salutar,esquiva/ este logro magnífico/ que permite ouvir a língua fora do poder (...)porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida,desviada”,diz,apossando-se de  Roland Barthes .
  Ser  ou não ser servo do transitório,do surreal,como ele mesmo se define,é uma dúvida que vai se imiscuindo por entre os textos inéditos e os requentados neste livro cheio de imanências e transdependências .São 4 partes:memórias roubadas(paráfrases,paródias,homenagens,citações) ,poeticidade em trânsito(crônicas), replicantes mitologias(que o perseguem e são perseguidas por ele) e caderno de bricolagens(uma homenagem ao poema-processo,desembocando em algo como o neon-processo,é o lado audiovisual de JMB,que por falta de grana está meio parado)
Da parte 3 ,destacamos “O Palhaço Degolado” (alusão/ paródia a um romance de Ariano Suassuna e ao Regionalismo aburguesado de Gilberto Freyre) ,que já foi texto de um super 8 do autor: “Muita fricção nas pedras e nas pedradas do Reino(...) sertanejos de ficção?/classe média ou/Derrame do populismo?(...)brasões familiares(...TUDO pode transformar-se em armorial(...)Sobrados e Mocambos,quem diria,armoriais”.
Eis a estética anárquico-poética aos modos da Tropicália, à Chacrinha (clown/ apresentador de programa de auditório).O que vemos são mitos arruinados, num texto onde lingüística  e fenômeno cultural se entrelaçam numa recusa à história totalista. JMB tanto se apega ao cotidiano,à vida,como também à Academia,quando recria Alan Lightman,escritor inglês,os irmãos Campos,Francisco Bandeira de Melo,Heráclito de Éfeso,que o persegue com os pré-socráticos,Ítalo Calvino,”por sua melancolia e humor”, João Denys,Luiz Costa Lima:”O real não é nem o que se põe diante de mim/ e exige uma linguagem que o torne/ transparente,/ nem tão pouco o que se embaralha/ em uma cadeia deslizante de significantes,/de promessas de sentido sempre autodestruídas./O real é isso e aquilo:desafios da MÌMESIS:/algo que está aí e algo que se constrói./ Imitação como invenção(...)transferência (...) interminabilidade/ do sentido(...)assim como há amores irremediáveis,/há pesadelos inesquecíveis./E leituras intermináveis como/ desafios do pensar pensante”. Outros autores que aparecem “recriados”, são: o escritor Mário Hélio(editor da revista “Continente”) “num recife de  joycelands sem confins(...)heliocêntricos(...)que  escondexpõe” crianças recém “fenascidas rancorais”.JMB apóia-se ainda no filósofo e fenomenólogo alemão Max Scheler,em Merceau-Ponty,filósofo francês,Norbert Elias,pensador alemão que fugiu do Nazismo para a Inglaterra,Peter Burke,historiador,Platão,Roberto Mota,antropólogo,Roger Chartier,Barthes e Simone Weil,filósofa místico-marxista que trabalhou como operária para sentir na pele esta barra.
O livro encera a 3ª parte,“Replicantes Mitologias”, com o poema “Oração (talvez) Pagã”(p-350) dedicado aos poetas de todas as  contemporaneidades :”ó poetas sempre desejantes:/rezem pelas meninas e meninos/das ruas,morros e alagados/porque eles não são/mangue boys(...)de um sonho de outra noite/de verão ou infernolento(...)arredores da /Casa Grande de Detenção/das culturas híbridas(...)Para todos os estudos culturais/o anárquico-super-construtivismo(...)berrem pelas neo-antropofagias/rezem e roguem(...)supliquem(...)poetas da idade mídia (...)por todos os pastiches(...)não tenham crenças em cosmogonias/cristais e crisantempos(...)gozem pelas infâmias(...) supliciem/não digam amém(...)encarem ou desmascarem/ a finitude do verbo orar”.
E começa o “Caderno de Bricolagens”(4ª parte do livro):Portinari,sensualidade,classicismo,romantismo,sexo,religião,a bunda de Rodrigo Pavanello,a morte,Carmen Miranda,um pênis e uma dama européia coberta de jóias e maquiada,o crânio de Yorick e muito mais,numa espécie de clipe gráfico, que não dá crédito aos originais.
E daí?
Jomard é o observador de uma cidade adormecida e quente,vibrando entre a apatia e o sobressalto,sem entender  o que há de bom (nuance de vício e refinamento da vida)sob a última luz da tarde:uma maçã no escuro-Recife.Provocante,assaltante,deglutindo,sufocando,sugando,pois não tem jugular de donzela.
Releituras, reis e palhaços degolados,sem dengos nem lamentos: pop filosofia,é isso?
“Eu ainda não vi o mundo.Mas,de uma coisa eu estou certo:ele não começa no Recife”,diz nosso filósofo-autor,revertendo Cícero Dias.




César Leal


“Minha Amante em Leipzig”(247 páginas.Editora Calibán.RJ,2002.R$ 25),primeiro romance do poeta cearense  César Leal,78 anos,tem um quê de almanaque literário e outro tanto de exaltação à verdadeira Literatura.
Conhecido  por seu formalismo, o autor lançou mão de um subtítulo , “Ensaios sobre as Artes,as Armas e o Amor”,para rechear sua narrativa com citações,umas bens conhecidas e outras meio estapafúrdias,sobre clássicos,entre os quais a Bíblia.Sua obsessão pela “Divina Comédia” de Dante,chega a ser irritante.
Não se pode falar propriamente de um  enredo,e sim de uma seqüência mais ou menos empolgante de ações, neste novo livro de César.
Um jovem estudante de direito,nosso narrador sem nome,vindo de Frankfurt,está em Leipzig para concluir se curso.Lá,torna-se amante de uma prussiana,a senhora von Hardenberg,inteligentíssima,mulher do seu orientador.
Mal amada pelo marido(que já tinha uma amante,a bela secretária cracoviana,Isolda),esta ruiva de 29 anos entrega-se lúbrica ao jovem estudante quase dez anos mais moço.Os encontros “literários” entre os dois ,seriam narrados pelo jovem, anos depois e encontrada alguns séculos adiante por...César Leal,que teria comprado (por 5 mil marcos) e “traduzido” o manuscrito  e o incinerado a  seguir.Um recurso digno de um poeta romântico,que não é bem a linha de Leal.Tudo isso com o intuito de nos dar uma ligeira sensação que se trata de um fato real.
A Alemanha foi berço primeiro do Romantismo que saiu dali às pressas para Paris e se espalhou  pelo mundo de forma contagiante na virada do século XVIII para o XIX  e nossa história se passa justamente na Alemanha pré –romântica,Goethe não é citado,seu “Werther” ainda não tinha vindo à luz.Leal não mede esforços em exaltar a Germânia,falando inclusive em suástica,superioridade racial e que nunca viu  um “ vira-lata  vencer Pastor Alemão”.
Alguns dizem que César é mais festejado no resto do Brasil do que em Pernambuco,seu lar.Mas a verdade que o criador do mestrado em literatura da UFPE,um dos mais respeitados do país,é muito querido e tem uma obra no mínimo notável.Quis agora aventurar-se pelos caminhos do romance(ensaístico),diz que tal trabalhão terminou por remoçá-lo e injetar em seu espírito juventude e altivez.Uma espécie de vitória da cultura sobre a natureza,ou pelo menos uma tentativa.
Ele lançou mão de conhecidas técnicas narrativas,é óbvio,mas dificilmente atingirá um leitor que não seja um estudioso das Letras.
Há excesso de informações e os personagens não têm profundidade alguma.São como prateleiras que guardam livros.Mesmo os dois amantes só transmitem alguma emoção no final da narrativa,quando  nosso “herói” narrador,num sonho,encontra-se com o espírito de sua amada no momento em que ela é arrebatada para os céus  por uma águia (cujas asas mediam 17 metros de envergadura de uma ponta a outra),”enquanto um relâmpago iluminou o espaço,e a nuvem balançou,como se fosse uma enorme montanha celeste,ou a própria lua a cair no oceano”.
César é um mestre em imagens poéticas e podemos saboreá-las ao longo desta narrativa.
No lançamento do livro em março de 2002,no então Espaço Cultural Bandepe (Recife),o autor queixava-se  dos erros da edição e sorria das passagens eróticas contidas no volume.Mas a narrativa lembra uma aula de literatura.O único eixo  que une os encontros sexuais da dupla central é  cérebro da prussiana a esparramar-se por todo lado,destruindo qualquer verossimilhança com seu tempo e sua idade.Dificilmente aos 29,uma mulher teria tamanho conhecimento,principalmente sendo tão bela  e atirada.O que imediatamente me faz pensar que sendo César um poeta,estaria querendo nos inserir em mais um jogo de metáforas .Esta “amante”,seria na verdade ou a Literatura,as “artes” ,ou quem sabe a cultura alemã,recoberta pelas carnes de uma prussiana.E sua morte,seria um início de uma vida “prática”,que o até então estudante/narrador,iniciaria (dali em diante).
São mais de 200 personagens (históricas e fictícias) numa colagem que às vezes força a barra em demasia:Jesus ,por exemplo,é mostrado como sendo descendente de alemão.Maria teria feito sexo com um soldado germânico voluntário,que serviu ao exército de Roma.O marido dela,José, é apontado,segundo uma vertente da narrativa,tipo “histórias populares  da Alemanha”,como “um carpinteiro impotente”.Os gregos e os ingleses segundo o texto,também descenderiam dos alemães(germânicos).
Todas essas informações são transmitidas pelos personagens ,na maior parte das vezes,enquanto estão fazendo sexo ,“a suprema arte concedida pelos deuses ao gênero humano(...)trepar com arte,uma das belas-artes que não deve ser exposta em museus(...) a paixão a arder em brasas nos abismos das nossas almas sem preconceitos éticos(...)um ato sexual vigoroso”.
Assim refere-se o narrador à sua relação com a mulher do seu professor/orientador.
“Os bastardos são formados de esperma abundante e forte”,diferentes dos “imbecis gerados numa cama insípida,por um casal cansado e aborrecido,fodendo sem prazer,durante um cochilo que geralmente anuncia um entediante despertar”.
O narrador tinha 19 anos ao iniciar as tais “aventuras”,que incluem uma animada conversa com ninguém menos que Jean Jacques Rousseau .
A religião católica é desancada pelo espírito luterano/calvinista.E o que vemos são personagens como Nassau e Padre Antônio Vieira a vislumbrar numa Olinda(!)holandesa,um Quinto Império(Nassau e seu plano imperialista).São conversas enquanto o narrador vagueia no “golfo” dos seios da amante,alcançando seus “mamilos eretos”,e devaneando sobre os tercetos de Dante.Alimentando-se bem,pois “os alimentos são a fonte da força espiritual (...)determinam também a força psíquica capaz de alterar o nosso humor,produzir grandes pensamentos,enriquecer a linguagem.A falta de alimento provoca tristeza”.
O narrador também é poeta e enxerta seus textos à narrativa,e também de outros autores como Nassau e Jorge de Albuquerque Coelho (1º governador de Pernambuco),aquele que cedeu seu cavalo a Dom Sebastião na última batalha do mítico rei.
Os capítulos são curtos e no meio de uma invejável erudição encontramos também frase s como: “rasga-me não penses em nada agora,empurra,mais...mais...mais!...Entra assim..Entra inteiro,estou go-zan-do,aperta-me, goza bem dentro!”,como diz a senhora von Hardenberg durante a cópula com seu jovem amante a discutir sobre gêneros literários.Tudo isso numa Alemanha,onde apesar do frio,voa um beija-flor,que busca arrancar néctar de um arranjo floral pintado num quadro na casa daquela senhora.









Raimundo Carrero



1.                      SOMBRA SEVERA:

   Publicado em 1986 (Editora José Olympio) , o romance traz o estilo de Carrero, este pernambucano da cidade de Salgueiro, .estampado por todas as páginas :
-  A ANGÚSTIA DIANTE DA INCOMUNICABILIDADE
-  O ESTRANHAMENTO DIANTE DO QUE É SIMPLES E COMUM
-  IMPOSSIBILIDADE DE AMAR COMPLETAMENTE
-  ÓDIO POR NÃO SER COMPREENDIDO
-  A QUESTÃO DA FÉ
-  AS ARBITRARIEDADES DO PODER
-  ABORDAGEM PSICOLÓGICA
-  O HOMEM DO CAMPO
-  A CIDADE PROBLEMATIZADA.
-  A  JUSTIÇA SOCIAL
-   
   Num dos seus livros encontramos a seguinte epígrafe: "Intuitivamente eu me agarro ao abismo" (Murilo Mendes). Existe um certo fascínio  na obra de Carrero em retratar a decadência humana em sua busca de esperança. A desgraça psíquica afeta os personagens, que movidos por seus fantasmas interiores, agem, às vezes,  como irracionais.
    Três personagens dominam a narrativa(3ª pessoa) de "Sombra Severa" :
  
     JUDAS -  Irmão mais moço de Abel. Prepara um caixão e pede que o irmão se finja de morto enquanto ele" despista"  seus perseguidores, na verdade Abel odeia o irmão e vai terminar por esfaqueá-lo, dizer que ele morreu num acidente, casar com a mulher que o irmão raptara( Dina).
     ABEL -  É perseguido pelos irmãos da mulher que ama.  Aceita fingir-se de morto no caixão. Enquanto isso Judas aproveita para violentar sua mulher  , dentro da capela, na fazenda JATI, de propriedade de ambos.
      DINA - Filha de Sara e Adão, irmã de Jordão( Carrero adora nomes bíblicos), Depois de casada com Judas, assume a identidade do seu amado assassinado, Abel, criando inclusive um clima de incesto.
A inveja e o fratricídio  permeiam esta versão da história de Caim e Abel. Judas é obscurecido pela sombra do irmão , Abel, o "bom", que não o deixará em paz nem depois de morto, já que reaparece na figura de Dina travestida. Merece destaque a fúria exposta pelo narrador quando descreve a morte do carneiro que Abel ganhara do padrinho  e Que Judas morrendo de inveja esfaqueia e queima o bicho.
Há algo de mórbido em Raimundo Carrero. Algo de "casmurro"  em vários de seus personagens. Quase não há diálogo, o discurso indireto apossa-se da trama conduzindo a juízos sobre :
DEUS - (página ll4)  "...era um ser incrível cercado de solidão- a solidão dos abandonados da sorte, dos miseráveis que estendem latas vazias pelas ruas, das mulheres que, enlouquecidas andam sujas pelas estradas. A solidão do esquecimento completo e absoluto".
AMOR - "  O amor é a inveja do outro: ama-se para roubar do outro a parte que lhe falta" (P- 56) .
No final, como numa imensa alegoria, um bando de cães famintos invadem a casa de Dina e Judas, ela os afasta. A seguir vem a metamorfose definitiva de Dina em Abel, de quem ela assume os trajes, o corte de cabelo e ...a identidade. Judas tranca-se no quarto e Dina (Abel?) encara a luz do sol.


2.A DUPLA FACE DO BARALHO

   Esta novela  de Carrero é ambientada em Santo Antônio do Salgueiro (Salgueiro, cidade pernambucana onde nasceu) , onde o Comissário  Felix Gurgel   vive  e narra , de forma sombria, a sua existência: "Estou aqui sentado na cadeira de balanço em frente à minha casa nesta cidade  Santo Antônio  do Salgueiro, esperando a morte chegar".
   Regenerar-se, refazer a vida (como Paulo Honório, de "São Bernardo", ou Bentinho de "Dom Casmurro", com quem Gurgel mantém semelhanças),  são as metas do narrador  que de carcereiro passou a comissário: "Quem  entrar aqui e disser que não apanhou, volta e apanha". Sentia-se alegre em ser da polícia e decidir a liberdade dos outros. Humilha jovens idealistas, inclusive um que no futuro seria prefeito e teria Gurgel como subalterno.
   Casos curiosos permeiam esta narrativa: Gurgel recebe um homem que traz a esposa amarrada pelo pescoço e pede "um atestado" , pois sabe que a mulher o traiu. Gurgel prende-a, e na hora de espancá-la, torna-se...seu amante! Convive com um enteado, Camilo, a quem trata como filho. Em seu sadismo mata barbaramente os pássaros do rapaz(símbolos da vida e harmonia plena).
   De esquerdista a cigano, Carrero usa uma linguagem simples. Seu mundo é de violência, de individualismo. Seus personagens trazem algo selvagem em suas relações sadomasoquistas.
    Esta novela foi escrita na época do fim da URSS e da queda do Muro  de Berlim. Carrero, em sonhos, previu a própria morte.


DADOS BIOGRÁFICOS: Nascido em 20 de dezembro de 1947, é jornalista, ficcionista, bastante supersticioso e temente a Deus. Começou a escrever ainda como aluno interno  no colégio Salesiano do Recife. Em seus escritos objetiva aprofundar temas eternos como "liberdade, igualdade e justiça".



3.O SENHOR DOS SONHOS (ROMANCE DE 1986)


                                    "O caminho da vida pode ser o da  liberdade, porém nos extraviamos"

                                O velho Domingos  de Oliveira Olímpio (protagonista) misto de melancólico e irônico, humilde sorridente, amante da vida e dos animais nunca reclamava de nada. Em Salgueiro, onde morava luta contra a miséria e a injustiça sacrifica-se pelos oprimidos.  Por causa de um porco que ia ser sacrificado, apanha de um sujeito forte: "Como é possível estar indiferente diante da dilaceração e da tortura?" . Alegoria sobre a maldade dos homens que têm o poder de fazer o que querem, enquanto os miseráveis são como "restos humanos que se amontoam em ossos, sangue, músculos e nervos, insistindo em viver."
   Na eleição para prefeito, Venâncio, irmão mais novo do então prefeito (Anselmo Cruz) representa a continuidade, e a oposição é o cego Tomé da farmácia. Anselmo não cuida bem dos velhos, enquanto Domingos , desafiando o poder, luta para construir um abrigo para velhos. É  +perseguido, tem a casa destruída, procura advogado, mas contra o Poder nada consegue. É acusado de instigar uma revolução e de ser comunista:" (...) o réu está construindo uma casa em desrespeito às leis municipais para provocar antipatia e reunir adeptos para a luta contra o poder constituído e contra a polícia" (P-79). Preso, após muita tortura , é solto  , volta para sua casa destruída.
   O cego Tomé aproveitou a confusão e vence as eleições e muda seu discurso popular.
   Domingos percebe que o cego Tomé era a continuação dos governos anteriores e decide continuar a peleja: "(...) fechou os olhos, entre os destroços, e confessou a si mesmo que a luta ia recomeçar."




A Geração 65


O termo Geração, principalmente no Brasil, é polêmico embora críticos e historiadores usem essa repartição em gerações com finalidade didática para sistematização dos estudos literários - históricos - estéticos. Geração 65 é um termo que agrega escritores reunidos originalmente em Jaboatão, Pernambuco, no ano de  1964. O termo foi cunhado por Tadeu Rocha em um breve artigo no jornal Diário de Pernambuco. A “Geração” é formada, dentre outros, por exemplo , Maximiano Campos, Alberto da Cunha Melo, Lucila Nogueira, Celina de Holanda, Jaci Bezerra, Marcus Accioly, Janice Japiassu, Ângelo Monteiro, José Rodrigues de Paiva, José Maria Rodrigues, Marco Pólo, José Rodrigues Paiva, Terêza Tenório, Sérgio Moacir de Albuquerque, Paulo Gustavo, Raimundo Carrero.Forma-se em plena ditadura militar e no auge da estética do concretismo, pelo qual ela não se deixou afetar muito.Houve boa recepção na mídia, foi marco de resistência.Seguem alguns depoimentos sobre a Geração 65: “enquanto trabalhadores intelectuais, éramos crentes, em primeiro lugar, em que concepções ideológicas, religiosas, políticas eram bem vindas, eram respeitadas e mesmo desejadas, mas eram secundárias à beleza e à verdade. e esse traço é talvez a principal razão do pluralismo político ideológico 'stricto sensu' de todos que integram a Geração”.(Roberto Aguiar).Não estávamos entre aqueles que ainda classificam os seres humanos em nobres e plebeus, prática e modo de pensar tão persistente neste Brasil tão oligárquico e pré-iluminista, principalmente entre os nordestinos ciosos de nomes de família. E é por isso, por sermos povo, que, na nossa arte, o povo nunca foi visto nem tratado como algo exótico, pitoresco e engraçado” (Sebastião Vila Nova).O fenômeno de surgimento da Geração 65, pelas mãos de César Leal, foi um paradoxo histórico de caráter democrático. No momento em que as oligarquias uniam-se aos militares para interromper todo um processo que visava a uma maior distribuição de renda no País, não foram os filhos dessas oligarquias os contemplados com espaço nos jornais e na UFPE. Mas o paradoxo é aparente. 64 não foi 68, quando a ditadura tirou a máscara e botou o capuz. O Brasil é muito grande e eles precisaram de quatro anos para sufocar, mesmo, o que havia de melhor na cultura brasileira”. (Alberto da Cunha Melo).
Quando o Grupo de Jaboatão — Alberto da Cunha Melo, Domingos Alexandre, Jaci Bezerra e José Luís de Almeida Melo — aportou nas páginas do Diário de Pernambuco (1966), sob a entusiástica tutela do grande poeta e crítico brasileiro César Leal, outros escritores já haviam merecido a acolhida do Mestre. Como na formação de uma onda que precisa de dois fluxos para se formar — o impulso de retorno e o de chegada — estes se somariam a um processo aglutinador contínuo de convivência e produção literária que desaguava também nas páginas mimeografadas das antologias de Elói Editor (1967). São essas publicações recebidas com incomum euforia, pela crítica pernambucana e pelo público em geral, que levariam o geógrafo e historiador Tadeu Rocha a registrar o aparecimento da " mais nova geração literária da metrópole do Nordeste", e a nomeou de Geração 65. O IMC presta também, nestas páginas, uma homenagem à sensibilidade desses intelectuais, somando a esse trio o exemplo maior de convivência fraterna, com todos da Geração 65,  que foi a grande poetisa pernambucana Celina de Holanda. Antônio Campos. As reuniões se davam em locais como o extinto Departamento de Extensão Cultural da UFPE, Fundação Joaquim Nabuco, Bar Savoy, Livro 7 e outros pontos da boemia e de efervescência ideológica – debatia-se a produção literária nacional e local e teciam-se críticas a estética sulista. César Leal, o líder natural, cujo marco inicial foi dado nas páginas do Diário de Pernambuco, com a publicação dos primeiros poemas em 1966. Destacamos aqui a obra de Alberto da Cunha Melo. (Jaboatão – PE, 1942 - 2007), poeta, editor, sociólogo, jornalista. Participou da geração 65 e foi um dos fundadores da Edição Pirata. BIBL.: Círculo Cósmico. 1966; Oração pelo poema. 1969 ; Noticiário. 1979 ; Yacala, 1999 .




Lucila Nogueira


(Ensaio publicado na REVISTA ENCONTRO (ano 17. Nº 17. 2001) do GABINETE PORTUGUÊS  de LEITURA em PERNAMBUCO e na Revista eletrônica  LeMangue)
                   

Lucila Nogueira nasceu no Rio de Janeiro em 30 de março de 1950. Pequena ainda,veio para o Recife,onde estudou e  formou-se em Direito.Cursou mestrados dessa ciência,como também o de Antropologia.Foi promotora pública e exerceu outros cargos ligados à sua profissão.Desde jovem dedicou-se às artes:piano,violão,acordeom e principalmente literatura,sua fonte de testemunho no mundo.
Em 1978 publicou o seu livro de estréia: Almenara pela Civilização Brasileira. Livro  cheio de  uma poesia em que o amor,a preocupação com o social e com os temas transcendentes do espírito,chegando a atingir o plano do metafísico,se aliam a um verso caudaloso e forte,de envolvente originalidade.A autora sonha,põe-se ao lado dos mais fracos e oprimidos e deslinda os mistérios do amor.É Lucila a consumir-se em poesia: “Eis-me aqui/sorvedouro estelar lúcido e breve.//Corrosiva alegria(...)barro aceso e convulso sob a neve(...)revolvida,torcida,esbraseada//labareda incessante que se atreve/mas que a abismos se sabe condenada” (em “Presença”).
Veio depois,pela mesma editora, o segundo livro: “Peito Aberto”(83)Um certo despojamento expressional e os acentuados aspectos formais,marcam esses “primeiros”  poemas que,também,deflagram um clima uma atitude de amor e revolta.Como no poema “Na Morte do Colega Pedro Jorge” :
“Sozinha agora as filhas acalenta/e ao pó tu já regressas sob o mármore./Tanta sabedoria inventa o mundo/-como escapar do mundo ninguém sabe.//Sozinha agora as filhas acalenta/e elas inda te esperam a cada tarde.../Só uma pena intimida os assassinos:/explicar tua ausência a essas meninas”.
Nesses poemas pressentimos a força poética  que Lucila alimentaria: “Atravessar o fogo ternamente/o corpo azul cercado pelas brasas/em cada poro o ferro incandescente/tendo no olhar a exaltação das águias //melhor que ser fantasma de si mesmo/besta na sombra,ombro recurvado /num desespero de albatroz vencido/por ambições terrenas e fugazes”.
“Desde o princípio o mundo era pequeno/e o caminho da escola muito grande/andava a pasta a farda e no recreio/sonhava raptada por ciganos//dançando na fogueira a saia em leque/a estrada o carro alegre  a caravana//desde o princípio o mar era sem termo/nas mãos as linhas soltas do destino/e no sapato escuro os remoinhos/acesos para sempre no meu sangue”(em  “Infância”).
“Meu pai morreu na tarde de um domingo(...)partiu da enfermaria sem saída(...)queimei todas as velas nessa morte(...)abrindo em minha carne uma outra sorte”.
Vieram seus outros livros: “A Dama de Alicante”.Neste livro Lucila dedicou-se à recriação mítica e simbólica de si mesma “associada à memória proustiana que emerge de poema e que entre passado e presente faz ressurgir a infância,o amor,o sonho,a vida diluídos em mescla de sombra e luz numa realidade (ou irrealidade) mágica.Fusão lírica de elementos díspares ,tom personalíssimo,sem autobiografismo,expondo sentimentos e emoções universalizando-os,sem ter que,necessariamente,os assinar como exclusividades suas.”,disse José Rodrigues Paiva em ensaio sobre o livro.

Sei me vestir de tola,se preciso/como essa antiga dama de Alicante/inda que ao fim só reste o que eu ensino/cama-de-gato que aprendi criança.//Sei me cobrir de frágil,de improviso/sob o furor de um cavaleiro andante/e as chaves da cidade conduzindo/pedir que permaneça por encanto.//Filtros de amor,doce paixão de abismo/navegaram meu olhar com esta dama/alegre que,misteriosamente/um dia suicidou-se em Alicante.”
Já em “Quasar”(87)Lucila nos dá o  a medida do nível já alcançado na construção de sua obra poética. “Equilíbrio na estrutura,adequação na linguagem ,tão rica de significados e sugestões.Ao dom de prever que, na antiguidade clássica,era atribuído aos poetas,acrescenta a autora,pelo milagre da integração cósmica,o dever de dar testemunho,antes que o fogo nuclear instale o caos”,disse Waldemar Lopes.
Formalmente bem construído,mas o que lhe dará o fermento da perenidade é essa dor humana,esse sonho traído,esse vôo alucinante.Em `Quasar´ é o destino do Homem que lhe ensombrece os olhos”,sugeriu Potyguar Mattos.
“Quasar” já foi chamado de “um longo poema ecológico”.
É a vez de “Livro do Desencanto”: o cotidiano como principal assunto,num tom instantâneo  e confidencial por meio de versos simples e diretos,algumas vezes irônicos e invariavelmente melancólicos.Construção lapidar do poema convergindo para o clímax no último verso,como ápice de vertiginosas obsessões: “O corpo é o caminho da virtude/e a loucura da alma faz sentido”; “as víboras só cruzam com as víboras/e os pássaros se entendem com os pássaros”; “no mundo tudo é palco e personagem/com máscara não há o que se discutir”; “faz de conta que o verso  é como um rio/apagando os insultos de tua face”.
Em “Imilce”,poema para quatro vozes: um discurso íntimo de uma família marcada historicamente pela grandeza,pela traição de que foi vítima o seu herói,figura maior da antiguidade,e pela  derrota que os atirou para o lixo da História depois de Aníbal ter derrotado Roma.
A mulher de Aníbal enlouquecida,a dramaticidade da paixão que os uniu. “A atualidade do drama de Imilce e Aníbal é garantida pela intemporalidade  dos sentimentos representados e, ainda, pela focalização ideológica(a sua luta é vista como um combate contra a hegemonia  imperial,a globalização romana,antepassado claro da  pax americana)”. Acentuou Francisco Soares(poeta,crítico e Professor de Literatura da Universidade de Évora.
No livro “Ilaiana” –Enigma de Elche, vemos a confirmação existencial e material de uma imagem  nominada em sonho.Durante o percurso concreto e geográfico dessa realidade sonhada vão emergindo a saudade mítica e o referencial histórico-onírico de uma arqueologia étnica de alma.É o sonho em sua estrutura metafórica,o enigma proposto.A Dama de Elche é um monumento.Numa visão nostálgica,uma noção utópica vai então sendo evocada em suas variantes de identidade cultural num périplo fantástico onde uma Deusa Feminina faz valer a sua voz imemorial,sua lei poética ecoada milenarmente. “Um livro de emblemas produzidos como antídoto ao estigma de  banalidade”,sugere a autora.
Em “Ainadamar”,publicado pela Oficina do Livro,Lucila levanta sua voz: “Ouro americano para as guerras/ o ouro americanos para as dívidas/ tantos anos de lutas e guerrilhas /e canhões e cabrestos e caudilhos//esta virgem de prata é insolente/ seu brilho é um ultraje ao povo índio/ tão puro e ingênuo na floresta/ assassinado no colonialismo”.
Nossa poeta dedicou-se também à tradução de poesia,tendo alguns volumes inéditos de poemas de Emily Dickinson,Paul Éluard,entre outros.
Descendente de portugueses e espanhóis,sua poesia bem encarna o sonho romântico do latino,a revolta e a esperança das raças do Novo Mundo.

Poemas são como castelos de areia  que alguns destroem/ constroem à beira-mar deste oceano chamado realidade.Em praias calculadas ou selvagens sob a égide de uma abóbada avermelhada,mistura de crepúsculo e aurora.Aos que lêem ou ouvem tais poemas ,resta a imaginação para recriá-los  nos próprios moldes,adaptando-os   de acordo com suas situações pessoais(ou coletivas).
A construção do “castelo” de Lucila Nogueira traz uma inegável influência mediterrânea.Suas mulheres são “despachadas”,atravessam barreiras e , poderíamos cruzar mais algumas fronteiras, dizer que as mulheres sugeridas por Lucila (em seus textos) lembram ancestrais Valkirias ,prisioneiras de um estranho destino.
Suas palavras são  ornamentais pedras de transparência multicor,sobre um metal antigo,ou um negro veludo de textura indefinível.
Poesia vem do grego  poíesis (ação de fazer,criar,alguma coisa).E é tema dos mais controversos nos estudos da literatura.Platão e Aristóteles bem o disseram.Quando tratamos então de separar poesia de prosa,o trabalho redobra,alucina:os domínios mesclam-se.

II

Em seu novo livro, “AMAYA”(102 páginas.Editora Bagaço,Recife), Lucila Nogueira quebrou dogmas mais uma vez.
Investindo numa linha intimista, investiga a alma humana e  os  mistérios femininos.
Na tentativa de redimensionar as palavras, a poeta tende a uma sintaxe  que lhe é peculiar.
Pontos,vírgulas e concordância vão se encaixando pouco a pouco no seu conceito de expressão poética. Atreve-se.
Sua subjetividade sobrepõe-se num xadrez  transcontinental que alterna cálculo e loucura.Iluminando.Plasmando.Catalisando essa fragmentada visão que temos da estrada terrestre rumo ao cosmo.
Se confrontarmos poesia e prosa neste novo livro de Lucila,e quisermos traçar parâmetros que aprisionem gêneros vamos nos deparar com o verso,que de  modo algum pertence só a poesia, e com o parágrafo,que  também não é exclusividade da prosa.(há verso sem poesia e  poesia sem verso).
O conteúdo:eis a chave das portas que  une prosa  e  verso. Na poesia de Lucila,o jogo de metáforas,exposto dramaticamente evidencia uma mulher cujas raízes estão fincadas em terreno ambíguo.
Sua complexidade é prato cheio para manuais literários.Os motivos histórico-geográficos  e  o lirismo intenso parecem encontrar o ponto de ebulição .Como  no poema “Canção das Torres do Oeste”: “Vi na Catoira /o teu drakkar/Tuas asas de viking(...) vai meu barco de vidro/ a te buscar/Inda te espero em Pontevedra”. Ou em  “Soída” (sim,seus títulos continuam enigmáticos): “Barco de couro /sobre as rias/um escudo de espelhos/sob o sol/ no oco do meu sonho/ sem palavras(...)Sonâmbula  nos lagos/e florestas/mordo a  casca da árvore fatal/ a última esperança /vem do mar/ saudade soledade/soída”. É verdade que  a extração do sentido e  o sentimento poético poderiam  ser mais simples aos olhos pernambucanos médios.Mas Lucila parece  não fazer concessões,propositalmente. Eis a esfinge poética  em desafio.

“eu ressurjo /do século catorze/tua praia/converto em precipício/Todos notam/que estamos diferentes/chamam paixão/ na terra a esse enigma/a minha língua/toca teu avesso/e sem prazer/o que fazer da vida?//um toque basta/e dá-se o arremesso/que pede mais e mais/todos os dias/todos notam/que estamos diferentes/basta uma nota/e muda a sinfonia//vem logo ao meu país/deixa os menires/é fácil  levitar/nos arrecifes( in  “Diougan”).  Se o leitor se aquieta quando  recebe uma das chaves para um enigma, “Os menires são homens/encantados/quem os deixou assim /ninguém traduz...”, Lucila logo propõe outros: “olha as pedras/em busca do  passado/dorme em furna galega/o rei Arthur//onde está minha mãe/pergunto às árvores/no bosque de eucaliptos/sem fim//cavalgo toda a noite /Zobiana/na esfera de cristal/ de Taliesin”  (in “Zobiana”).
Hermetismo?
Paradoxalmente em meio a indecifráveis,esfíngicas peças (poemas) encontramos um escritora simples:onde o emotivo-rítmico –conceptual,pulsando,entrega-se ao leitor.
A artilharia luciliana tem como alvo ,a lógica.E ,sob fogo cerrado,ou conduzindo avassaladora onda em tempestade,ela ,condutora de emoções,forja um hoje eterno,rompendo com as noções do ontem e do amanhã,princípio e fim.Busca incessante,narrativa convulsiva. “coração de poeta/pobrezinha/ brincando de casinha/a soluçar(...) vem me ver/porque não me cabe a vida/preciso/de tua praia a me guardar”(in “Não me cabe a vida”)..
Seus escritos permeiam-se num não-enredo.Clímax e anticlímax.Tecem a sua subjetividade poética.Sua aventura,poética.”A fada chora/anunciando a morte/e vive para sempre/sobre os montes/os outeiros os lagos/e riachos/a fada dorme/dentro do carvalho//eu a vejo/no cume do penhasco/no fluxo e refluxo /das marés/no cinturão/das ondas sobre o abismo/a fada / ao vento da manhã//vem vestida de verde/na neblina/vem vestida de verde/na neblina/vem vestida de verde /sobre a ria/vem vestida de verde/fantasia/e se esconde nos hórreos/da Galiza” (in “A fada chora”). A alquimia,fusão de elementos da natureza , está presente nas conjurações de Lucila.
Como contadora de histórias em AMAYA(41 poemas e 7 “contos poéticos”),ela usa a escrita como bisturi  para sangrar os limites entre autora e narradora.Suas concepções éticas vão criando a “nova máscara”.A imaginação  abrindo trilhas num imprevisível universo narrativo em lúdico esconde/revela.Disfarces de sentimentos que explodem desnudando mais ainda abismos ,escancarando-se em personas   que vão,aos trancos e barrancos desvendando a pseudo-realidade deste nosso mundo e,criando um novo mundo, paralelo e também abissal.Acrescentando-nos uma dimensão nova no olhar.
“Deito-me  entre os visigodos e te recordo cem anos antes na Porta de Toledo enquanto Recife ainda brilha em meu pescoço o reflexo da estrela de David.O cálice do século XII derramou vinho verde entre as coxas ocultas pela saia colada de veludo escuro que se confunde na camurça da sandália repicada de strass.Eu te dizia que sou dark e essa chuva no carvalho arrasta a sílaba excessiva para a lâmpada de vidro enquanto camélias iluminadas deslizam sobre o rio Neva e as altas aves do Aleph passam em revoada na curva do caminho excitadas pelo som da fada louca tocando violino.”
Como salientamos antes:estranha pontuação.Estranha sintaxe ,essa da nossa,dama de Alicante.
Esta nova dimensão que a poeta  instaura  nos permite confundir sujeito e objeto.
A estrutura da  sua obra calca-se  em incalculável gama de prismas:
“Porque naquele tempo o amor era como um príncipe bêbado e forçosamente hindu ele era como a voz rouca de Dioniso fazendo soar as teclas do piano austríaco abandonado na passarela vermelha de um carnaval de plumas na rua do Bom Jesus.
Saí pelo ancoradouro embriagada arrastando candelabros escarlates no rio de letreiros luminosos enquanto a chuva batia no bico duro daqueles seios ardendo sempre de tanto amor.Todos eram demais e não sabiam mas quando tu pegaste forte eu me surpreendi tímida e  até hoje estou fugindo  entre palmeiras entre as estradas líquidas do vinho e do néon.
Digo que continua urgente a ilusão deste momento acometido  de inenarráveis confissões.Utopia presa na cartilagem úmida,quando tua boca recobrir o seio seremos então,as duas outras  faces  de uma mesma única  possessão,como uma estória colada na outra enquanto se lambe o lacre da carta escrita na infância que uma água subitamente morna quase apagou.”
Estendamos nosso olhar sobre a obra de Lucila Nogueira, a que Recife,tórrida cidade do Brasil nordestino,abriga.Ela nos convida mais uma vez a novos pólos.Sejamos extremos junto com essa poeta-feiticeira.Juntemo-nos com ela: poeta ficcionando-se, querendo dominar –homem/ natureza/ tempo e história
Poderia ser uma poesia mais penetrável .porém a sibila invoca outros espíritos,que nos tomam de assalto.E,de certa forma,enfeitiçam leitores, como cristais energéticos.

                                                                      



                                   
Marcus Accioly
(Ensaio publicado na revista  LeMangue)


Poeta e professor de literatura,o pernambucano Marcus Accioly(que no ano 2000 assumiu a cadeira deixada por João Cabral de Melo Neto na Academia Pernambucana de Letras) lançou  é autor  do poema épico “Latinomérica”(Editora Topbooks.620 páginas.R$ 49).
Falar do gênero épico não é tarefa fácil.Epopéia vem do grego “épos”(verso)  + “poieô” (faço) e se refere à narrativa em forma de versos,de um fato grandioso e maravilhoso que interessa a um povo.É uma poesia objetiva,impessoal.Um narrador fala do passado(verbos no pretérito). “A Ilíada” e a “Odisséia”(ambos de Homero) são nossos maiores referenciais no gênero,e são seguidos de perto pela “Eneida (onde Virgílio narra os feitos romanos).Há também “Os Lusíadas”(Camões), “O Paraíso Perdido” ((Milton), “Orlando Furioso”(de Ludovico Ariosto,Itália) e ainda os árcades brasileiros “Caramuru” e  “O Uraguai”.
Uma coisa em comum : a questão do herói coletivo,como  em “Os Lusíadas” (o povo português).
Geralmente  um épico divide-se em cinco partes:proposição(tema e herói são apresentados),invocação(o poeta pede inspiração),dedicatória,narração e epílogo.
Accioly,59 anos,que podemos rotular de poeta da  geração 65, é autor de livros como:”Cancioneiro”(68), “Nordestinados”(71), “Xilografia” (74), e “Sísifo” (76),dentre outros, há muito vinha esboçando  uma epopéia  nos moldes de um  Homero nordestino do século XX.
São 34 anos de profissionalismo literário:13 publicações e 10 prêmios nacionais.Já foi comparado a Apollinaire e tido como poeta clássico por sua reinterpretação dos mitos do passado,pela crítica italiana Luciana Stegagno Picchio. E agora este lançamento:uma aventura problemática,se considerarmos que são rimas forçadas na tentativa de  glorificar uma terra dominada por estrangeiros: a América Latina,que aparece no texto através de um jogo  de trocadilhos e numa grandiloqüência ,digamos assim, tragicômica.
O  que percebemos através da leitura do longo poema, é  uma terra sonâmbula caminhando entre a infantilidade e a demência,guiada por heróis derrotados como Zumbi,Guevara e Tiradentes.
Marcus cita nomes como: Tatcher,Pinochet,Reagan que aparecem misturados com poetas e políticos que vão dos latinos aos africanos através das 590 páginas do texto(incluindo o apêndice) .O poema em si tem 535 páginas e termina com uma página preta onde em letras brancas lemos: “Bilhete aos surdos-mudos do poder/(a solidão do poder  x  o poder da solidão)/a serpente do sistema/presa à presa a presa  extrema/abocanha pela cauda/a cabeça da palavra//a palavra mais serpente/sente a goela no seu dente/que mortífero envenena/a cabeça/do sistema” (!)
O apêndice (30 partes) procura explicar a  feitura do poema,sob ângulos pré e pós colombianos e cabralinos.
Protesto?Insatisfação? O poema começa com uma carta”aos cegos do poder”(que anuncia o 3º milênio) e segue tropeçando entre neologismos(Latino+ Homérica=Latinomérica) e citações.
Curiosidade:não há nenhuma vírgula no poema,ao contrário dos parênteses que pululam.
Sim.Marcus valoriza nossa cultura,mas,dizer que o colonizador “castrou de nossa boca o sexo dos nossos idiomas primevos” ou que  “chupamos do sexo ou da boca do conquistador a nossa língua”,é uma licença poética forte.Sem contar o tom emocional(deslumbrado?) que permeia a narrativa com ares regionalistas.
Ao modo de Borges,Accioly parece dizer que “A América Latina é uma ficção”(o que não caberia numa epopéia) e a dele  (Accioly) só existe porque ele a escreveu deste modo.

                                                                  II

“A América precisa dos seus sons(...) perderam-se as vozes,quebraram-se os instrumentos.Ficou uma espécie de marulho inquietante(...) esses fragmento de voz”,sentencia o autor no apêndice do livro(“decifro-me ou devoro-me”) e cita Maiakovski: “hoje executarei meus versos /nas flautas de minhas próprias vértebras”.É o nordestino versejar universalizando-se,sentindo saudade de si mesmo num reverso baudelaireano de amor à última vista,tentando fugir da futilidade.Mergulhando numa saudade que retroage e expecta na esperança lírica que desloca o passado e o presente para o futuro.

III
Para justificar seu esforço épico,Accioly carrega nas frases feitas:”A memória é a arma branca do poeta e sua arma de fogo é a imaginação.Lembrar é fácil,difícil é esquecer,a  ´deslembrança` que é a América” (este navio-continente)
Motivos recorrente sem “Latinomérica”, a infância (da América) e a busca da identidade: o filho busca o pai,fracassando volta para a mãe (“à vagina por onde entrou seu pai”) que é então, pela segunda vez, violentada(“cópula com a terra”).
“Quando um mundo se vai e outro se esforça para nascer, é que surgem as epopéias”,disse o escritor Nikos Kazantzakis.Tentando o antilirismo para cantar nossas glórias e perdas coletivas neste lugar,onde “estar no presente é,de certa forma,continuar no passado”, Accioly,não transformou o neocolonialismo num pretexto para seu ato poético,mas cita Ginsberg ao chamar os EUA de “trapaceiros mercadores” cujos principais valores são  a mentira e a ambição por tecnologia,dinheiro e poder e que têm por princípio nunca reconhecer a própria derrota,como no Vietnã,por exemplo. O cerne desta criação  é a gigante América Latina atravancada entre oceanos de metáforas.E o autor sugere ao leitor uma leitura não-linear do seu poema,neste Brasil,onde boa parte da poesia virou prosa.Seria este canto poético mais bonito que a luta que nos resta? Seria possível misturar poema e luta de Box? O poeta tenta:Transforma os “cantos” da epopéia em “rounds” e espalha por eles seus versos decassílabos,oitava rima clássica camoniana (paradoxo para quem pede independência cultural ?).
“Que o canto(em vez do belo) possa ser o feio/ e o sujo(em vez do limpo) possa ser o canto/(possa o ouro ser fezes no seu veio)/possa o mal do poeta e a dor do santo/(possa ser o vazio em vez do cheio)/ remende o véu do ódio e rasgue o manto/ do amor(com as mesmas unhas) que ele possa/ ser o ouro amarelo que há na fossa// (que o amor que tu sentes pel´América /seja o ódio voltado aos seus tiranos)/ah se eu pudesse contra os reis da terra/ a saliva de sal dos oceanos”.
É história e cultura (do Canadá até a Terra do Fogo)engajando-se,mostrando o colonizador como “bárbaro  e bruto”,como se os povos americanos também não o fossem.Há idealização e dramaticidade excessiva em Marcus como houve no romântico  Castro Alves ao falar dos escravos.Há também trocadilhos infames e todo o poema às vezes titubeia entre  a alta arte e a apelação. Mas é uma voz poética que nos honra.Um grito,um clamor de agonia e êxtase.Foram 20 anos compondo este poema,11 dos quais sem nenhum título lançado.



                                                                                   

Luzilá Gonçalves Ferreira



 “Muito além do corpo” (87) e “Rios turvos” (94) são alguns dos romances da pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira, como pré-requisito para seu exame de vestibular 2003. Decisão acertada.
  A autora vem lutando pela divulgação das letras femininas, com um afã invejável, dirige inclusive um núcleo de estudos com esta temática na UFPE, onde leciona.
E é autora de outros romances, dentre os quais “A garça mal ferida” (93) e “Voltar a Palermo” (2002, tem como eixo narrativo a história de Maria, uma brasileira cinqüentona, que volta à Argentina, onde havia morado na época da ditadura militar. Na cabeça “recuerdos” sobre um motorista de táxi, Nino, sobre quem sabia quase nada, tivera com ele  uma relação-relâmpago). Luzilá explica que se inspirou levemente no filho de outro taxista, seu freguês. Que por um dia substituiu o pai, lá em Buenos Aires onde ela morava. E também cavou em si própria e daí retirou a personagem professora, que, metamorfoseada numa pessoa sedenta de amor e novidades que busca saciar-se através de uma velha fantasia amorosa.Aqui o texto de Luzilá, como sempre é extremamente poético. Ela tem uma intimidade total com a criação literária e uma visão particular sobre o “feitiço” das letras. Do mesmo modo que em “Muito além do corpo”, romance que ganhou o prêmio Nestlé em 88, temos uma personagem que ao questionar-se, reencontra-se numa nova forma de amar, que faz com que ela reflita sobre os intrincados caminhos da paixão. Em “Rios turvos” ela revirou a vida de Bento Teixeira, cristão-novo (autor de “Prosopopéia”, poema que marcou o início do Barroco na literatura nacional) e de sua mulher (um caso que terminou em tragédia), e em “Humana, demasiado humana” ela destrinchou/forjou a alma de Lou Andréas-Salomé (que foi amante de Rilke e Nietzsche) em “Voltar a Palermo” ela mostra uma fêmea em busca de si mesma e de um tempo que talvez seja reencontrado. Há passagens que  nos lembram Mauro Mota: “Abri a janela e de súbito Buenos Aires inteira foi minha, sua paisagem cinza e seus cheiros me penetraram, como nos penetra o cheiro da pessoa amada. Era uma mistura de odores vários, gasolina e óleo queimado, fumaça e poeira, mas igualmente perfume de flor, beleza a se esparramar ao longo da nueve de julho, que nome tinham aquelas árvores? Um dia eu soubera, quando ainda não havia deixado Buenos Aires e a cidade era como uma extensão do meu corpo”.

 MUITO ALÉM DO CORPO” e  RIOS TURVOS


  Muito além do corpo (prêmio Nestlé de Literatura Brasileira – 3º lugar, 1988, 79 páginas, editora: Scipione) é repleto de inventividade, dando menos valor ao ambiente e aos costumes, a autora aprofunda-se na dimensão existencial das personagens, no caráter psicológico e social. O livro se divide em quatro partes: Tu, Eu, Ele e Tu (Ele).
Há que se considerar também a poeticidade enxuta, uma “interferência lírica”, como ressaltou o mestre Adonias Filho, que “assegura por sua vez o acabamento ficcional em todas as suas exigências literárias”.
Luzilá vai “muito além do corpo”, até os limites da imaginação, do intimismo, buscar o reconhecimento do ser humano, como o francês Proust, em outra perspectiva, tentou no seu “Em busca do tempo perdido”.
É o horror e a surpresa refrescante de uma intelectual vendo chegar o (analisado previamente e idealizado) amor.
O romance começa com a narradora (1ª pessoa) descobrindo a ação do tempo no corpo do seu amado, “um pouco de ventre que me comoveu (...) o vinco na testa (...) então me fazia pequena e redonda, e o frio e a tristeza se dissolviam (...) a respiração dele me aquecia a nuca e o coração (...) eu amo este corpo, eu amo este homem (...) havia algo além daquele corpo, que o ultrapassava e lhe dava um sentido que tu mesmo ignoravas. E eu: apenas pressentia”.
Quem é esse “tu”, a que a narradora se refere? (p. 8) trata-se de uma referência a um terceiro, que pouco a pouco vai se revelando.
“Algo mais para que o contato com o corpo de um homem provocasse em mim aquela deliciosa desordem de vísceras e alma, e cada vez que tentara amar só de corpo, sempre restara o vazio no após (...) à sensação de solidão se mesclava uma leve náusea: que fazia junto de mim aquele corpo insuficiente?” (p. 8) “contigo nunca fora assim” (novamente a narradora aponta para um terceiro vértice).
“Homem e mulher, e cada um se espelhava no outro semelhante, cada corpo remetendo ao outro, companheiro”. (p. 9). “Um tácito acordo de espírito (...) macaíba em flor (...) terra molhada”.
No Capítulo II, a narradora apresenta sutilmente, e de modo sempre “enxuto”, seu amante, evitando uma noção demasiado romântica da vida. E temendo a felicidade como algo “pequeno-burguês”. Luzilá parece querer agradar ao júri que lhe deu o 3º lugar no concurso (Adonias Filho, Eduardo Portela, José J. Vieira, J. Garbublio e Álvaro Gomes), mas ela se supera na arte de escrever e resolve “começar do começo cronológico” (p. 13).
A narradora usa sempre o “tu”, em vez de você e salpica o texto com frases como “amar é sempre uma tomada de posição contra” (p. 15) ou “aquela parte de mim que por ti ardia” e “éramos seres de exceção” (p. 16). E finalmente o nome do amado: “Mário (...) não estou sabendo resolver tua ausência dentro de mim”. Um pouco intelectual não? E um toque de Clarice Lispector também permeia todo o texto como uma sombra: “tudo era pesado e misterioso (...) então não mais eras Tu e sim um Ele escorregadio” (p. 22).
Há um individualismo pressionando o relato amoroso: “Preciso me encontrar a sós comigo mesmo”, e o discurso do outro: “que tua figura não se interponha entre mim e o que posso viver às vezes”.
Então a narradora fala da paralisia do seu amado.
A 2ª parte do livro (“EU”) dialoga com Cecília Meireles: “também não sei em que espelho ficou perdida minha outra face (...) quem é essa que assim me fita?”, a narradora atribui ao astigmatismo não ter se visto assim antes (humor). “A gente deveria possuir vários nomes”, nova referência a poetas: Fernando Pessoa, Mário de Andrade: “Eu sou trezentos”. Há também existencialismo: “sou tantas (...) neste corpo que carrego há mais de quarenta anos”. E o toque feminino: “Mulher é coisa complexa (...) bicho monogâmico (...) agora seu maridinho chegou, meu amor” (p. 29). E retoma: “Quarenta anos foram precisos para chegar a isto, e, toneladas de alimento e amor e tanta literatura”, aqui uma nota autobiográfica: a menina-moça Luzilá funde-se com a quarentona narradora na paixão pelos livros: “a fala silenciosa dos que haviam partido tantos anos antes” (p. 31). E trabalha a metalinguagem, questionando-se sobre “o fazer” do livro. (p. 31).
Outro poeta é citado nesta 2ª parte: Drummond (p. 32): “Amor é privilégio dos maduros” e Romain Roland: “o cúmulo da dor confina com a libertação” (p.33)
Luzilá é poética. A narradora rememora a infância: episódio da declaração de guerra (Brasil x Alemanha) e medo do mundo acabar: “sentada na escuridão, eu chorei pelos lírios que nunca floresceriam (...) naquela noite eu aprendi a primeira lição sobre o limitado poder do amor” (p. 37)
Há também um toque de James Joyce, num discurso direto/indireto onde o fluxo de consciência transcorre como “as frutas que boiavam na água, caindo ploc ploc ploc” (p. 38)
E veio o episódio do bodinho (nome: em flor, enflor), que a narradora ganhou quando criança, e que a machucou quando cresceu, “amor às vezes maltrata” e que foi vendido para abate. “Todo o mundo vai ter que morrer um dia. E de repente o mundo todo virou uma coisa triste, uma prisão e ninguém podia sair de dentro dele” (p. 40)
Há uma certa confusão sobre “usina” (p. 40) e “engenho” (p. 43) na narrativa que mergulha de repente nas histórias paralelas ao núcleo central do romance. “Causos” da juventude da narradora nos típicos lugares do interior de Pernambuco.
Chegamos na última parte do livro: “Ele”, que começa assim: “Dia de São João”, íamos nos encontrar à noite (...) olharíamos balões no céu: (...) copinhos de canjica (...) ramos de ingá (...) lembrava uma paisagem de Post, e o céu estava azul. Fizeram fogueira”. (p. 53)
Há metáforas como “um silêncio equívoco esticava os fios do telefone, feito açúcar de alfenim”, que a narradora usa para introduzir o tema da separação do amado, naquela mesma noite de São João em que fora ao cinema e conhecera o outro: “em silêncio nos amamos por séculos (...) estranha foi a volta para ti, depois daquele encontro com ele” (p. 57) e a narradora conta ao amado como é bonito seu novo amor: “deve ser, teu rosto resplende”, responde ele (p. 59)
Vem a ruptura, que Luzilá trata poeticamente.
“O corpo é metáfora de nós, sinal evidente de algo mais profundo (...) meu existir efêmero e eterno” (p. 60)
E a narradora também é brega: “Te amei como ninguém te amou querida, de ti o menor gestor adorei” (citando “perfídia”) ao descrever o choque da separação e o bilhete, “não me procura, por favor, teu”, que o outro deixara. E vem um texto muito bonito sobre os amantes verdadeiros que se separam: “partiste e ficou em mim aquela parte de ti que só a mim pertencia e que está colada em mim, como uma segunda pele. Como fiquei em ti, e disso o sabias: que te indo, eu te acompanharia, menina acocorada e quietinha em algum lugar de ti, a te espiar, a te amar de longe, a te dar a certeza da impossível solidão, eu em ti, eu do teu corpo” (p. 61)
Luzilá repete as mesmas metáforas (p. 29 e 62): “transmudados em sombras esfumaçadas...”
A narradora se entrega a um jovem vinte anos mais jovem e ele diz: “amo suas rugas e seu cansaço”. E ela pensava: “envergonhava-me quase, de não poder lhe ofertar a pele de pêssego (...) seus dedos refaziam o caminho que o tempo abrira no canto dos meus olhos, no vinco da testa, ao lado dos meus lábios, as marcas de tanto sorriso, tanta dor, tanta vida” (p. 64)
Há um “deslumbramento”  subjacente: “eu voltava aos quinze anos e ele era o meu primeiro amor (...) o nosso amor era o perfume do amor”.
Luzilá é sereia e nos encanta com sua poesia.
Há também um toque daqueles romances típicos dos anos 70: um caleidoscópio psicodélico que numa página junta Freud (“machista”), Woody Allen (“genial”), Bethânia (um “sarro”), uma calabreza e mais dois chopinhos (p. 68)
Sobre o seu “segundo homem” no livro, a narradora compara: “Ele quase com a duração de um relâmpago, passou em minha vida, deixando-me encandeada” (p. 69), ou: “amor meteoro” (p. 70)
E o corpo termina só, “a inenarrável solidão dos seres sobre a terra” (p. 71). E “tu sob a terra, onde já não chegam cores, nem perfumes nem sons (p. 72)
O “tu” parece ser tanto o amante, quando o leitor de Luzilá: “Eu te amo, tu do outro lado” (p. 73)
“Tua mão buscou a minha. Aproximei minha face de ti,
– Queria teu perdão, falaste.
– Te amo, respondi” (p. 79).
Luzilá não precisa turvar águas para parecer profunda. Ela tem autenticidade verbal. Seu romance é como a ponta de um iceberg: faz-nos supor o que não se escreveu. O familiar nela torna-se fonte de estranhamento. Joga com o leitor, surpreende-o com pequenas armadilhas, busca sua cumplicidade ao mesmo tempo oferece fruição estética. Com ela mergulhamos num universo feminino poético essencial fascinante, insinuante, compacto, sugestivo.
Em “Muito além do corpo”, ela tece e destece, qual Penélope, as tramas de dois amores entrecruzados, às vezes meio neobarroca, na sua paixão por Bach, nas comparações entre as fontes da vida e a morte (p. 60) , no êxtase.
Criou um romance (novela?) moderno, cheio de impulso vital. Tentativa de conjurar passado e presente num texto sintético e denso, imagem a imagem, balançando entre o corpo e o espírito.
Luzilá, pernambucana que soube buscar no silêncio da palavra a força da linguagem.
A UPE (antiga FESP) está de parabéns ao escolher esta autora como básica para seu exame de admissão 2003.
Os Rios Turvos

“Do amor não vi senão breves enganos...” formadores dos Rios Turvos da minha vida.

“Um único amor amara ... vinte anos, dos trinta e sete de sua vida e só preocupações, invejas, sobressaltos. Um ciúme tão grande que melhor seria se não tivesse amado, mas viver sem amor ninguém pode, “é doce o mal que nos causa uma mulher.”
O romance Os Rios Turvos, narrado em 3a pessoa, lembra a função documental que teve a arte. Trata-se da vida do autor do poema épico Prosopopéia: O português Bento Teixeira, portanto uma biografia (do nosso primeiro poeta) que se mistura à ficção. O tema da obra nada mais é do que a trajetória amorosa do português Bento Teixeira com a brasileira natural do Espírito Santo Filipa Raposa, a grande paixão de sua vida e a responsável por seu destino trágico: a própria mulher o denuncia ao Tribunal do Santo Ofício acusando-o de judeu e mau cristão e ainda instiga outras pessoas a fazerem. Vai trair o marido por várias vezes, obrigando-o a morar em lugares diferentes da Paranambuco (Pernambuco) do início da colonização.
O apetite sexual da esposa era sabido de todos. Desde adolescente tinha uma malícia natural: Seduzia – com seus olhos belos e verdes até os padres nos confessionários. Bento via-se obrigado a constantes mudanças: Olinda, Igarassu, nas terras de João Paes no Cabo, freguesia de Santo Antônio. Neste último lugar, havia pouquíssimos homens, mas Filipa consegue trair o marido com o frei Duarte Pereira, vigário da freguesia de Santo Agostinho e único homem do lugar.
Ao chegar ao engenho de João Paes no Cabo, pensou que ia controlar a mulher, mas esta era mais esperta e dormira com o padre Duarte muitas vezes (mesmo já mãe de dois filhos) sem que o marido desconfiasse.
Uma das situações mais humilhantes para Bento foi quando a esposa o traiu com um mulato, crime repugnante na época.
Bento Teixeira era filho de pais humildes e cristãos-novos. Seria, portanto, um dos filhos desgarrados de David cuja família abandonou Portugal por conta da perseguição a judeus. Apesar da pobreza dos pais, Bento ao chegar ao Brasil, na Vila de Salvador na Bahia, foi ajudado pelo bispo Don Antônio Barreiras que lhe ensinou latim e o iniciou nas artes. Leu os gregos tais como Ovídio, Aristóteles. Conseguiu estudar no colégio da Companhia de Jesus e fazer algumas amizades que lhe foram úteis mais tarde como testemunhas contra as pressões da Santa Inquisição.
Sem pensar que era um gesto herético Bento traduziu, a pedido do sobrinho Antônio Teixeira, do latim para o português o livro DEUTERONÔMIO, livro da Torá, que Javeh ditara a Moisés – conforme afirmava sua mãe cristã-nova. Porém esta missão caberia apenas à Igreja. Leu livros que figuravam no Index e acabou, pelos colegas, sendo denunciado ao visitador, mas não foi logo preso. Tornou-se alvo predileto da Inquisição e de alguns padres por ele criticado.
Bento esteve um período no mosteiro de São Bento, para onde chega com carta de recomendação.
Ensina latim, aritmética e poesia para sobreviver. Revela-se fiel aos princípios da igreja para livrar-se da Inquisição, mas não deixa de criticá-la: “(...) almeja escravos para a lavoura.” p. 49 este seria o propósito da Igreja, pensava Bento.
Embora não fosse exímio escritor (às vezes criticado pela própria Filipa), Bento fazia sonetos e trovas. Escreveu um poema épico – PROSOPOPÉIA – à semelhança de Camões homenageando o governador da capitania de Pernambuco, Jerônimo de Albuquerque. Seus escritos, no entanto, não tinham a espontaneidade dos versos de Filipa.
A esposa gostava de ler à noite. Ficava com o marido. Liam Gil Vicente, Salomão, Camões, Ovídio, Catulo. Para a esposa, Bento mostrara seus escritos e a ela dizia de sua dificuldade para escrever, fato que não ocorria com Filipa. Às vezes a dificuldade de Bento era usada por Filipa para xingá-lo, outras vezes ela o ajudava.
Apesar de tudo que fizera Filipa Raposa (as traições constantes que levou Bento a assassiná-la) Bento – após a morte da esposa – sentia falta dela, afinal “era uma parte dele que morria. Ele que não soubera o que era amor. Não amou o pai – homem rude, austero, exigente; a mãe que o obrigou a ser judeu; nem mesmo aos dois filhos, cópias de Filipa, “a raposa atenuada em felinos.” Tudo seria diferente se ele não fosse um Pinto, um cristão-novo e ela não fosse uma Raposa, uma cristã-velha? Quem saberia dizer?
Quando matou Filipa, Bento confiou seus filhos a João Paes – dono das terras onde morou em Santo Agostinho. Escreve-lhe e lhe explica sobre tudo que fizera por causa da esposa. Foge para Olinda – o mosteiro de São Bento, onde ficaria (até que a Inquisição o pegasse) escondido.
Antes de morrer, ainda agonizando ao receber o golpe de faca de Bento, Filipa pediu que o marido pegasse em uma gaveta do quarto um maço de cartas – poemas que ela escrevera (ou os amantes escreveram para ela?). Durante a fuga para Olinda Bento os perde. Lê apenas alguns poemas, quase nada.
No mosteiro de São Bento, o poeta ganhou a inimizade de Frei Damião por desafiar o religioso nos seus argumentos espirituais e por denunciá-lo aos outros padres dizendo que o referido frei freqüentava a casa de mulheres casadas como Isabel Raposa e Ana Lins. Por tal feito compra um inimigo declarado.
Em 12 de agosto de 1595, recebeu ordem de prisão. Começam os julgamentos e Bento prepara documentos para sua defesa.
Em 22 de outubro de 1595, é mandado a Lisboa como acusado do Santo Ofício por praticar heresias, ter o sangue daqueles que mataram a Cristo.
Ao redigir os documentos, para se defender das acusações, exibe seu conhecimento. Usa citações eruditas, textos latinos. Quando interrogado pelos inquisidores, sempre se diz inocente, mas acaba cedendo às imposições do tribunal: reconhece sua culpa. Renega e abjura de suas ações e crenças visando à liberdade que não vem e Lisboa torna-se seu grande cárcere. Em julho de 1600 morre e um ano depois a Santa Inquisição concedeu licença para que se publicasse, em Lisboa, a primeira edição de Prosopopéia.
Bento morreu pensando na sua Filipa de olhos verdes e cabelo de fogo. A Filipa adolescente que lia com ele Ovídio, Gil Vicente, os poemas de amor de Salomão:
“Beije-me ele com os beijos de sua boca porque é melhor o seu amor do que a própria vida. Vive sem amor! se um deus me falasse assim, eu recusaria, tanto é doce o mal que nos causa uma mulher.” – Razão da sua vida e da sua morte. – E morre sorrindo como um pequeno judeu após ter feito sua oração. Morreu pensando no que poderia ter sido e não foi.
Observamos na obra Os Rios Turvos os intertextos que enfatizam, sobretudo, a temática do amor: Ovídio aparece tantas vezes como epígrafes dos capítulos, o Ovídio degustado por Bento e Filipa em seus serões; Camões de Sôbolos Rios, o Camões dos breves enganos: “Do amor não vi senão breves enganos”; o intertexto bíblico, na história dos judeus, na comparação de Bento a Jonas ‘a caminho de Nínive, o grande mar’ (p. 195), nas citações latinas; nos poemas encomiásticos (escritos por Bento) onde confessava o mistério de um Pai, um Filho e um Espírito Santo e por fim na Prosopopéia aquele longo poema que escrevera em Paranambuco, Pernambuco e os versos à maneira de Camões que lhe vinham sempre à mente:
“Cantem, poetas, o Poder Romano
Submetendo Nações ao jogo duro...” (p. 209)
Filipa Raposa, cristã-velha e Bento Teixeira, cristão-novo dois seres tão diferentes, unidos pelas águas dos Rios Turvos do amor, um amor que nem eles conseguiram perceber na sua inteireza ou até mesmo nas suas contradições.
Destacamos ainda nas brigas de Filipa com o marido (quando ela ao ler os textos dele percebia versos inteiros de outros poetas) uma preocupação com o fazer literário, os caminhos complicados da criação poética percebidos pelos protagonistas. Bento chega a discutir sobre a habilidade de Gil Vicente para compor os versos de Auto da Alma:
“Alma humana, formada / de nenhuma cousa feita.” (p. 23) “Eu e tu, Filipa para dizermos estas cousas, utilizamos todas estas frases (...) Gil Vicente o diz em sete vocábulos.” (p. 23)
Um relato dramático para falar da vida, do amor, do desejo, da inveja, das contradições, do poder da igreja, da morte, enfim, coisas da vida de um cristão-novo do século XVI brasileiro e sua mulher uma cristã-velha. Uma recriação que não esconde o aspecto social do primeiro século da formação do nosso país.



                                             Regina Vilaça

Conheci Regina na faculdade ,na década de 80,e nosso amor pela literatura nos uniu e manteve essa chama acesa através de mais de dez anos.Gostamos de viajar e de escrever. Somos professores.
Maria Regina de Fraga Vilaça nasceu no mesmo lugar que eu: na Conde da Boa Vista, principal avenida do Recife ,em 22  de  março de 56,sob o misterioso signo de Áries,como eu.Cursou Filosofia na UFPE.Em 77 foi para São Paulo e integrou a geração dos poetas que vendiam seus livros mimeografados.Participou do grupo teatral de Otto  Prado.Cursou Letras na USP e em 80 foi para a Europa. De 81 a 88 lecionou inglês em Angola,na Líbia e no Sudão. Voltou para o Recife em 88 e concluiu o curso de Letras.Em 92 volta A Líbia e em 94 fixa residência na Bélgica,onde leciona.
“Entre Julhos e Agostos”  é o nome do seu romance publicado em Pernambuco, pela editora Bagaço(1998),dedicado ao seu marido e seus dois filhos.
Regina tem delicadeza até na voz.Tem jeito de perfume francês:pequenas gotas de transcendência a envolvem.
Quanto ao romance,trata-se de uma narrativa estilhaçada por uma polifonia estranhamente harmônica.
Júlio,Augusto e Diana dividem a  vez de narrar.Ela ,uma garota que faz teatro(uma peça infantil, e ensaia “Calabar” de Chico Buarque e Ruy Guerra sob a direção de Fernando Peixoto)e trabalha num hotel em São Paulo(o Excelsior) .Júlio é um professor que contrai um vírus conhecido na época como a praga gay .Augusto é um aventureiro que divide o apartamento com os dois,vai trabalhar na Nigéria e engravida Diana durante as férias.
São personagens simples,seres humanos esmagados na suja São Paulo,onde o anonimato às vezes é uma bênção.
A autora conduz seu romance com rédeas curtas,ao modo de Oswald de Andrade no que se refere à  linguagem telegráfica que deixa quase sem fôlego o leitor mais sentimental.
“Júlio,Augusto, Agosto,três horas da madrugada,de nada,morta madrugada, de ilusões.
Sinto doer o corpo. O Utopia gostoso e quentinho- macarronada para três- o garçom sorriu,anotou(...)
-Quem paga? Eu não tenho um puto”
Assim começa a história deste “triângulo escaleno” (o de lados desiguais), os dois homossexuais e a garota interrompida.
O caleidoscópio vai logo expondo  bares e lugares da velha Sampa  no fim dos desbundados anos 70 .
Há vários tipos de letras compondo o livro,o que imediatamente conduz o leitor a “compartimentos”,escaninhos labirínticos  numa trama onde os diálogos são entrecortados por discursos interiores.
Entre o lirismo e a sensualidade brincalhona,a esperança vai se equilibrando trôpega,indecisa,delirante: “Vazia escuridão.Ouço águas.Não quero dormir mais,não quero. È preciso vigiar,esperar acordado,neste quarto vazio,nesta luz fraca(...)suor que não acaba,águas,meus olhos pesam,tenho que esperar,hão de me conceber,olhos abertos,espero(...)excito-me,acaricio o órgão tenso,desisto,volto-me,descubro a ponta de uma estrela pelas janela entreaberta e não consigo ver o céu”.  
São Paulo aparece como um  estegossauro” claricelispectoreano que engoliu o verde. Verde, que só será revelado novamente num relâmpago que ilumina os olhos de uma estátua do caçador de esmeraldas ,numa rua.
Pressentimos um pulsar intermitente . Entrelinhas compulsivas.Efervescência de bilhetes e bebedeiras.Somos espiões convidados pelos personagens que viveram a farra do fim da ditadura militar, o renascer da democracia,o processo de anistia, a abertura política do Brasil.Cacos dos anos de chumbo brasileiros.”Tudo policromático”
É uma viagem sacudida.
“Cortinas vermelhas semi-abertas por trás das samambaias derramadas”:as imagens,os filmes da época (“Se segura malandro”, “Amacord”, “1900” -em duas partes),as músicas (Bee Gees, Pink Floyd, Rick Wakeman),despertam saudades em quem viveu a virada para os anos 80.
O escritor Paulo Caldas refere-se ao livro de Regina  deste modo: “Desprezei as minúcias literárias e sofisticações da mesma ordem e concentrei as atenções  na concepção do tema, no desenvolvimento da trama e no envolvimento do leitor com o texto(...) o ritmo(...)cortes ágeis(...) a sensação de medo ante o desconhecido(...)toques de sensualidade ,longe dos apelos eróticos”.

Concordo com Paulo e acrescento que Regina teceu sua narrativa como uma colcha de retalhos de emoções ,um patchwork  pós-moderno: “música impregnando os poros doídos da paixão”.
É  a batalha cotidiana de quem está  começando  a lutar pela vida e tentando definir seu espaço na sociedade, no mundo: “beijavam-se,Deus não podia ser contra o Amor,tudo é tão natural(...) na penumbra trêmula...we are young and free”.
“-Olha,eu tenho uma boa notícia.Vou dar aulas de inglês e francês num curso novo que abriu”, diz Júlio.Augusto estava indo para a Nigéria com um contrato de um ano nas mãos.
Taco,colchões no chão,almofadas,samambaias,fogão de duas bocas,café solúvel: “Júlio dormia nu com a perna sobre Augusto”. Diana “maternalmente beija-os embriagada de vinho e ilusões”. É como se  a realidade fosse só um filme ao qual  assistimos sentados(...)de vez em quando emocionados,mas sempre pensando que no fim as luzes vão acender” .
Fala-se de revolução, a geração 70 no Brasil ansiava por isso. “A Revolução individual não muda nada” .Divididos  entre o positivismo e o esoterismo (“é preciso controlar o gozo dos sentidos.Sexo é ilusão e assumir o feminino e o masculino é iludir-se duplamente.Gozar a v8ida sexual é como sugar o próprio sangue”) os personagens vagam e vão parar tanto dentro da burocracia quanto nos banquetes do movimento Hare Krishna  ou em terreiros de macumba em Salvador. E saem pela Avenida Paulista, se embriagam no Bexiga suam no palco e num sexo abafado num Brasil agônico: “Mas que esperança? A Globo vive distribuindo fantasia, `Santos´ faz milagres em prêmios todos os domingos”.
“Diana entre mim e Augusto na cama desforrada(...)o seu perfume de alfazema,leve e pesado”: É como se fosse a Diana do pastoril profano- entre o cordões   azul e  encarnado.
Há momentos de “viagens”,como na página 70,quando Júlio encontra um “krishna” jovem,viril e feminino de “nádegas gordas e alvas,cabelos em caracóis,lábios grossos e sensuais,unhas pintadas,no meio das águas,sorrindo e convidando-o(...)mas Oxum emergia medonha,morta de ciúmes,bela e fria,afastando-o”.
Sempre o “triângulo escaleno” :dois juntos e um partindo.~Lados desiguais de um mesmo desenho.
Mesmo lançando mão,às vezes de uma linguagem “chula” ,Regina é refinada ao conduzir o leitor num passeio dantesco ,onde analisa as instituições sociais como família,igreja e política.
É sexo e amizade entre edifícios modernos,mansões neomouras, neocoloniais em decadência: “São Paulo não quer saber quem eu sou,nem o que faço(...)não nos cobra nada.Só o aluguel,o condomínio,o transporte,os sanduíches com coca-cola,cafezinhos corridos e motel”.
Há humor nas entrelinhas: “Será que existe o deus do café? Se existisse seria muito venerado aqui,assim como o deus da oportunidade”.
São capítulos-pílulas,como este:
“-Telegrama?!
-Chega no carnaval.
-Mas ele vinha antes.
-Passa pela Alemanha primeiro.”

E discursos radicais: “Abre as pernas, Brasil, quem serão os próximos a te foder?” ,numa referência aos militares entreguistas. É o carnaval em São Paulo: a escola de samba “Vai-vai saindo(...) e a maioria dos paulistas dançando sentados”.
As letras de Regina são como o cheiro do café misturando-se frustrado ao sabonete Alma de Flores,como os meses de julho e agosto ,quando ela vem ao Brasil dividir seu amor conosco.Ela fala da dor e do vazio,de amigos que se vão para nunca mais.Tenta compreender a solidão e assim compôs este romance como uma  pintura de estranhas manchas roxas pontuando a vida e a morte em aleluia profunda e magnética.
Não chore mais ,Diana”,  diz Júlio: precisamos de esperanças, “esperanças meu Deus de minha infância,Deus que me ensinaram a amar e a temer,é esse Deus onipotente e misericordioso que desejo agora,eu quero acreditar em milagres(...) queria que não tivesse chovido tanto.Meus olhos saltam a janela e adivinham a folhas novas,verde-claras,e descobrem as minúsculas flores brancas mal desabrochadas,e imaginam o cor-de-rosa”
É uma última carta, escrita num retiro espiritual de convento distante. Quanto ao filho de Diana e Augusto,Julio,que assumiu a criança como fruto do triângulo, que ele acha perfeito,diz: “Ensine-o a dançar.”

Gilvan Lemos



"O Anjo do Quarto Dia"


                         O romance “O ANJO DO QUARTO DIA” do escritor pernambucano de São

Bento do Una, Gilvan Lemos (Editora Globo.Porto Alegre.l98l) é composto de humor, ironia, psicologia. O ESTILO Gilvan Lemos é refinado com expressões bem trabalhadas .A narrativa é o que poderia se chamar de engajada, termo atualmente em desuso. O autor é especialista  em entreter o leitor com uma prosa que cativa por sua riqueza vocabular e sintaxe acadêmica , unindo tudo isso, paradoxalmente , à maneira simples que os habitantes do interior pernambucano têm no seu linguajar. Logrador ( nome fictício, no dicionário você encontra os significados : que engana, lugar de gado) é o nome da cidade onde os habitantes vivem à mercê de uma família(os Rezendes, cujo patriarca  se chama Orico Gonçalves Rezende, e seus filhos são : Josias- filho de Sara, Jesonias de Nice, e Jason de  Deolina. Nesta ordem. O último filho é o primeiro a ser tocado pelo anjo, na verdade o filho de uma artesã do povo, uma excluída: Ana , filha de pais ricos que por Ter engravidado de um negro teve seu bebê morto e assim enlouqueceu. Diziam que Ana tinha parte com o "Demo". Ela vive  num lugar afastado da cidade e, numa noite de chuva, recebe a visita de um homem misterioso que a engravida . Nasce um menino "bem feitinho", louro , de olhos azuis. Este menino ela esconde da população. O menino morre  jovem e se transforma numa espécie de "Anjo vingador".
 Depois do “toque”, quatro dias depois , Jason morreu. . Foi a primeira vítima da consciência( o anjo é reflexo dos que têm contato com ele).
A falta de escrúpulos dos políticos e a hipocrisia parecem ser os alvos favoritos do narrador deste “Anjo do Quarto Dia”.
Gilvan é impiedoso em expor o ridículo em suas diversas modalidades. Quer seja o da prostituta Piranha (que tinha este apelido dado por se pai ,pois quando era criança comia tudo e não deixava para ninguém) que tenta encarnar  a Madalena- arrependida, no caso que envolve  “um santo “ , neste caso de São Codó,  a prostituta chega a dizer comicamente  que a levassem aos  “leões”  ou à “fogueira” .
A narrativa expõe a fragilidade  do catolicismo e da igreja protestante diante da corrupção generalizada do poder político. Há um quê de ceticismo e fascínio entre a fé do povo: tanto no que se refere aos que vão à igreja protestante, cujo controle pertence a Orico ( trocadilho  com "o rico"- riqueza),que distribui comida, atraindo assim aquelas bocas famintas e miseráveis que estão, literalmente, morrendo de fome, e , por outro lado, os que vão à igreja católica , ligados à ignorância , um povo que só serve para ser massa de manobra , controlados por interesses escusos e mortais,  como os de  Orico, que de limpador de fossa passou a chefe político influente, e assim quer seus filhos e netos, nem que para isso tenha que cometer assassinatos, que recebem apoio da polícia, como foi o caso do assassinato de Amísio ,filho do juiz de Direito ,  Anísio, que termina se suicidando de desgosto quando vê seu filho Amísio (mistura de Anísio, pai, e Amélia, a mãe- típico de Pernambuco: misturar dois nomes num só)  morto a tiros dentro da própria casa, , enquanto  Orico, mandante do crime ,dava uma festa para os pais do intelectual (Amísio) que ousou denunciá-lo em pasquins “subversivos”, aqui Gilvan envereda na selva dos “anos de chumbo” brasileiros.
Amíso é o típico herói de esquerda , mas não escapa da crítica ferina que Gilvan  imprime na sua visão de mundo.
Amísio utilizara- se dos escritos de um poeta fracassado de  50 anos que vive às custas de sua tias, o poeta , romancista, jornalista Codó, que traumatizado com o fato de Amísio haver " surrupiado "seus escritos que expunham os vexames e fofocas de  Logrador, cai doente e morre na  cadeia virando assim estandarte da revolta popular,  logo abafada por Orico ,que além de alcoólatra é pedófilo, adora  menininhas de treze anos . Costuma violentá- las. A cidade é complacente com seu chefe.
 O outro intelectual,  personagem que não merece muito destaque  na narrativa, é Gonçalo  Guerreiro, “ a glória da cidade” , Amísio o detesta porque de poeta do povo, Gonçalo passou a compactuar com a família Rezende.
A última  das esposas de Orico,  é Deolina , aceita as vontades  do velho Orico,  que queria viver mais noventa anos pois seus filhos de tão fracos , parecem que foram “trocados no ninho” , pois não tinham sua força.   O anjo também aparece para Jesonias, segundo filho de Orico que morre no quarto dia.
Preocupado,  Orico manda prender todas as criancinhas  louras com sete anos de idade. Não adianta, pois o anjo aparece para o próprio  Orico e para  o seu primogênito, Josias  .
Orico morre e Josias termina de modo patético, temendo  a maldição , a gritar no quarto dia:  “ se eu amanhecer vivo distribuo minha riqueza com os pobres (...) se alguém me salvar da morte, hoje, faço desse alguém o homem mais rico do mundo, me guardem, me garantam, não deixem que eu morra hoje, distribuo minha riqueza, não deixem que eu morra hoje, não deixem que...”   .
 Estas são as últimas palavras da narrativa de l68 páginas. Dezenove capítulos


2 . “OS PARDAIS ESTÃO VOLTANDO”

Conversando com Gilvan, ele me contou como surgiu o título deste romance: Um tio seu tinha problemas com pardais na sua varanda e conseguiu afastá-los por algum tempo. Certo dia  o sobrinho visitando- o ia  responder  como era o título do livro que acabara de escrever, quando percebeu  a presença das aves  indesejáveis e  disse : "Olha tio, os pardais estão voltando". Sorriu consigo mesmo e o livro ganhara novo título.                                                                        
Neste romance de Gilvan  Lemos (Editora Guararapes. Recife , 1983) destacam-se os seguintes personagens :
FÁBIO MOREIRA - Escritor   da fictícia cidade de Bentuna  (Na verdade o romance analisa  São Bento do  Una, cidade do interior de Pernambuco, onde Gilvan nasceu). Tem seu romance editado, e reconhecido nacionalmente , enquanto sua vida pessoal desmorona com a morte do pai, um casamento infeliz, e uma falta de perspectivas, que o narrador insiste em dizer que as coisas do mundo  são estúpidas, a exploração dos miseráveis feita pela minoria rica.  Fábio funciona como eixo de uma narrativa perspicaz e audaciosa. Gilvan sugere paralelo entre sua carreira e a do  seu personagem de maneira magistral. Além de perder a mãe e o pai, torna-se avô. Tem a sensação de ter  “perdido” seu tempo. Apanhava do pai quando criança. Não conseguia se  “ajustar”. Admira o pai, acha-o com “cheiro de pai” (“muito macho”)- (pág. 139).
REGINA -  Esposa que Fábio preferiria morta, por não compreendê-lo. Acusa o marido de “ciúmes”, e só permanece com ele até,  o casamento da filha dos dois, Leninha , com quem vai morar e ser “avó”.
MAURO -  Bancário comedido que está em Bentuna para descobrir mais coisas sobre seu pai , Lucas  Prado, professor da  Universidade Rural morto nos anos da Ditadura militar. Mauro pensa em , talvez, escrever um livro sobre isto, já que não se relacionava tão bem com a mãe. Esta relação pai- mãe- filhos- netos é um campo fértil nestes dois romances de Gilvan. Verdadeiro ninho de cobras.
LENINHA-  É com este diminutivo que percorre toda a narrativa. O “gato de  Leninha”, o “casamento de Leninha”. O pai não vê muita graça nela. A filha de Fábio e Regina, pronto.
RITA -  Empregada atrevida de Fábio. As primeiras linhas , e as últimas, são citações aos seus perfumados lilases, que plantara, e estavam desabrochando. Cheia de piadinhas, confira na página 91 a maneira como ela trata o patrão, como se ele fosse um fraco.
BENÍCIO VIANA -  Um “caga na cueca” (atenção para a linguagem usada por Gilvan: isto acontece com Suassuna e com Raimundo Carrero, o uso de termos populares), fingiu-se estudante de Direito no Recife, morando numa pensão na rua da Imperatriz  e com prostitutas e farras demoradas. Desmascarado pelo pai enganado apanhou ali mesmo. Preste atenção: Era Benício que molhava o xerém com álcool , para embebedar e matar aqueles pássaros terríveis, símbolo da vilania , como eram os que trouxeram tais bichos para o Recife , são como símbolos dos “norte-americanos europeizados “ como bem fica explícito na página 121.
TIÃO - Motorista de “morcego”,  seu caminhão que suga dinheiro de tanto quebrar, é com este caminhão que  Tião, junto com Edeson, filho de um tal Zacarias, saquearam  Bentuna tirando dinheiro dos corruptos e entregando para a população, incitando-os à revolta.
SEU-JOÃOZINHO-  Fazendeiro que rouba incentivos fiscais. É assaltado por  Tião e pelo cabo Edeson, num trecho cômico do romance. Está ligado a figuras da repressão militar. É ridicularizado na narrativa.
EDESON-  Ex-cabo. Filho de um miserável trabalhador desamparado ao lado de sua companheira,que depois de ter trabalhado durante toda a vida, não tem direito  aposentadoria. Revoltado Edeson  saqueia , distribui o dinheiro com o povo, o pai não quer, e sai da narrativa assim . Já seus, pais, são presos, não agüentam a vergonha e morrem.

Ainda sobre  "Os Pardais Estão Voltando"A  ação de “Os pardais...” transcorre nos “Anos de chumbo” (O Estado golpista brasileiro pós-64). O narrador critica  a mediocridade da cidade interiorana de Bentuna.  Com seus típicos cidadãos conservadores e ignorantes, mesquinhos em seus hábitos e costumes: Época do presidente Castelo Branco (“abaixo Deus, ele”, diz um  dos  moradores ( P -34). O povo é acostumado : “ Não há quem lhes arranque da goela seca uma palavra de revolta” (P- 35).

A narrativa não- linear  em sua pulsação  irônica , marca o tédio crescente de Fábio ,suas indecisões e conflitos como escritor e como povo. O comunismo surge como pano de fundo( A famigerada Lei de Segurança Nacional) , e os brasileiros “ no maior dos apertos vem com gracinhas fazendo chacotas da própria desgraça” (P-86).  “Quem neste país não se ilude com carnaval, futebol e piadas, já arribou ou está preso” (P-87). Em Gilvan, a revolta está acima de “esquerdas” ou “ direitas” .
É  cômico ao falar da palidez de um gato. É irônico ao referir-se ao povo de Bentuna: “tudo buona família” (P-93), “não se sentia tanto a morte de uma batizada, com o céu garantido, situava-se  bem melhor do que na  Terra , neste vale de lágrimas contaminado” (P-94). Traça paralelos entre Bentuna e o Recife(P-95) : “esta mania de descobrir parecenças...”.
   São muitas as tramas ao redor de Fábio , o que aproxima    Os Pardais...” de uma novela com seus múltiplos personagens.  O Realismo Fantástico(ou  Mágico), espécie de literatura do absurdo recurso muito utilizado pelo colombiano  Gabriel Garcia Marquez, é criticado por Gilvan ferozmente como modismo (P -124).
   Uma das passagens mais pitorescas do romance  talvez seja o ritual que precede a primeira relação sexual de Fábio: o pai o examina num banho de açude e decide encaminhá-lo a uma prostituta (P-140).
   Outro trecho de destaque : o que diz respeito  PADRE ALBERTO, que é chamado pelo povo de  “homossexual comunista” por defender a justiça social e questionar  determinados valores. O padre é agredido com duas pancadas na cabeça, drogado com éter e colocado , nu, na cama de uma prostituta, desiste de Bentuna com a fé abalada.
   No capítulo l6, o primeiro parágrafo trata da mudança na paisagem depois de uma  “chuva boa”. Fábio é um homem perdido no meio das incertezas, incapaz de encontrar novo rumo” (P.l65) . “Hoje que me embaraço para realizar um romance, voar mais alto em sua realização(...)tenho saudade do tempo em que desejava ser um grande homem para escrever belos romances” (P-l67).
   Nas últimas linhas do romance (capítulo l7) , o discurso de Fábio confunde-se com o do narrador: “Quando os lilases  plantados por Rita perfumaram agressivamente a primeira noite do seu desabrochar...” (Rita sua empregada. É exatamente assim que começa “Os pardais...” , também). “Puxou do cigarro uma longa tragada. Olhou o que tinha escrito. Botaria uma vírgula depois de ´lilases`, outra depois de ´Rita`? Aquele ´desabrochar` também estava chato, muito chato. Riscou-o” .
   Assim encerra-se a narrativa : numa espécie de recomeço.




3. “Vingança de Desvalidos” (ensaio publicado na revista  LeMangue)


Lançado pela editora Nossa Livraria (Recife),o romance “Vingança de Desvalidos  do pernambucano Gilvan Lemos,vem carregado de significados.O mais importante deles é  a revolta que o autor exibe desde o rompimento com sua antiga editora, a Record, e  a ousadia  de enfrentar o conservadorismo ao  exibir uma narrativa repleta de explosões popularescas de personagens cujas falas tecem-se no vocabulário (e universo) do “baixo calão”. Mais uma vez o cenário é Pernambuco, especificamente  o Recife.
O personagem central, de origem humilde, é o advogado Jorge, menino de origem humilde, mimado pelos pais e abandonado pela mulher (Jane),que o considerava um bobo.
Os amigos de Jorge são “Os Três Lascados”, paródia aos três Mosqueteiros de Dumas:Noronha,Manuel e Cardoso. Desvalidos,como Jorge que é empregado de um advogado cheio de falcatruas nas ligações com Brasília,o Agnaldo,disposto a ser senador,presidente,governador de Pernambuco,qualquer coisa que queira,pois Agnaldo te poder em Brasília.
Manuel,o português,rouba senhoras na boca do caixa eletrônico.Uma delas,quando ele é preso,cheia de tesão,livra-o das grades e oferece-lhe casamento. Ele aceita,apesar de ter caso com Rita Cascuda,uma comerciante do Mercado de São José,uma negra pobretona gostosa.Noronha,sempre sem um tostão e Cardoso é um aposentado,vítima de FHC.
Os três lascados marcam ponto na Leiteria Cristal,no centro do Recife.
Agnaldo representa os ladrões de Brasília,colarinho branco,capazes de qualquer coisa,dispostos a qualquer fraude.
Honestidade é um jogo vulgar,que o(s) narrador(es) deste romance espicaçam num torneio verbal  onde, desespero,ironia,miséria,tédio,frustração e humor,entrelaçam-se inseparáveis.
A habilidade  de Gilvan ao conduzir diálogos,misturando-os ao discurso do narrador,é marcada por um niilismo impressionante,estonteante,aterrador,hilário.
Sua visão cáustica da vida e da realidade do nosso país é de tirar o fôlego.
“Há de chegar o tempo em que o homem terá vergonha de ser honesto”,sentencia Rui Barbosa (ridicularizado por Gilvan) na epígrafe dos “Desvalidos”.
“Galeguinhos” e mulatos,pobres e ricos,estrangeiros e brasileiros,nordestinos e sulistas:as dicotomias pululam numa espécie de maniqueísmo proposital que funciona como antídoto contra o sistema que oprime.
A miséria absoluta,relativa,abstrata,concreta.O não ter nada para comer e engolir capim.A hipocrisia das colunas sociais,o imperialismo,o sexo,o álcool,o Governo,tudo é alvo da metralhadora giratória do mestre de São Bento do Uma,que exibe seu vigor,sua ira e assim propõe sua vingança:através das letras,dos comentários ácidos,raciocínios letais,e,se pergunta sobre o pobre que aceita as injustiças,conformado: “viver para ele era aquilo?Nunca teria tido uma aspiração de vida?”
“Vingança de Desvalidos” é um romance que congela a era FHC em lâminas de desespero histérico,que se resolve às gargalhadas  e muxoxos diante do horror insolúvel.
São aposentados e ativos vendo seu padrão de vida despencar até os abismos,esgotos, de uma sociedade maluca ,guiada pelos Estados Unidos,que impregna nas pessoas a falta de iniciativa.Paralisa a revolta.Várias vezes  o romance faz crer que nunca uma revolta popular,uma revolução, daria,ou  deu,certo Brasil.
A questão familiar é estraçalhada pelo filho impotente,pelo casamento fracassado,tedioso,pelo sexo torturante.
Em vários momentos encontramos passagens escatológicas: “semeei de tártaro,purgante de cavalo,o bolo comemorativo e as taças de champanha disponíveis sobre a mesa.Antes disso avisei aos velhos: não comam bolo,nem bebam champanha.Pouco depois a desgraça estava feita,era gente graúda cagando e vomitando de fazer dó”.
Em outras partes: “o cacete naquelas alturas (...) meu pau soluçava úmido de ansiedade.Jane (mulher de Jorge) estertorava,serpenteava,molhava-me a cara com o suco de sua boceta (...)e um filho,Jane,que tal um filho?-Pra me deixar de briga quebrada,peitos de porca?(...) Pra fazer dele o que seu pai fez com você?(...) num país onde o presidente,ministros,senadores,deputados,vereadores e auxiliares,todos,roubam(...)o comendador Cheira Co e o desembargador Lambe Pica(...) Têca Bunduda, Margô Peituda  e Glory  Peidoreira, Artuzinho(ansiando por uma churumela grande e grossas para socar no traseiro),todos posando para os cronistas sociais(...) já viu algum empreendimento brasileiro que preste?(...)você não se revolta vendo tanta safadeza por aí,os mais ricos sempre botando nos mais pobres?(...) Monstros compondo-se e descompondo-se pelos caminhos tortos de suas vidas mesquinhas(...)cobras(...)bichos como confiar em gente rica?É tradição no Brasil governar contra o povo(...) políticos denunciados nada sofrem(...) o Brasil fodeu-se nos últimos anos.As dívidas externas e internas  tornaram-se absurdas(...) se eu pudesse botava uma bomba atômica no centro do Brasil,matava todo mundo,morria também,mas ao lado dos outros não me importava(...)só vence na vida quem for desonesto, vigarista”.
No meio disto tudo uma fábula: o empresário Ojac, anão com pênis enorme,que é pai de Djorge,cuja mãe teria “um bocetão do tamanho duma jaca aberta”,está entregando o Brasil para os Estados Unidos.Em troca Ojac vai crescer e ficar do tamanho de John Wayne.Só que  quando atinge tal tamanho, seu pênis encolhe  e fica do tamanho de uma castanha.Para conseguir o que quis ele privatizou as estatais entregando-as aos ianques.Ao voltar para o Brasil é pressionado pelos withoutlands e morre.
O Recife descrito por Gilvan é um lugar empestado por miseráveis.Reconhecemos uma cidade que apesar de completamente decadente ainda apresenta sinais de beleza,porém está agonizando num labirinto de hipocrisia crepuscular e triste.
Num Brasil  cujas vidas são guiadas pela TV “com suas  novelas sem fim(...)amores falsos,repetidos,copiados dos filmes classe b do cinema norte-americano,a prender o povo em casa,chateado mas escravo de suas tramas ridículas”.
O grito do autor é o mesmo que está preso nas nossas gargantas reprimidas.
“Me dê cinco que eu chupo seu pau”,diz uma garota de sete anos,a um dos personagens do romance,ilustrando a degradação a que chegamos.
“Tenho que roubar”,pensa outro e mais um acostuma-se com a masturbação atiçada pelo sabonete Phebo: “ainda tinha chance de vingar-se,embora apenas em pensamento”.
É um jogo de metáforas gritantes.Gilvan mandou os pudores burgueses para o inferno.
E  ataca:“pior que o sertão,só o sertanejo”. Índios? “Bestas dançando a dança do cachorro(...) da onça(...)do jacaré(...) da pomba mole”!
“Nunca devemos ter papas na língua,tampouco deixar de esculhambar este país.É mesmo uma avacalhação,dá preguiça,merece ser extinto do concerto universal”.
Joça e Alicinha,pais de Jorge ,são pessoas honestas  que por acaso são assassinadas por um miserável, vítima da  sociedade,o Regabofe.
Ojac,o pai de Djorge,é a nação brasileira:nascida em 1822,a “independência”,e morta em 1999,época em que foi escrito o romance,ou 2001,em que foi publicado.
A ironia continua: “pretendo fazer a Campanha de Incentivo à  Mortalidade Infantil(...) mulher pobre prenha?Leva-se ela à maternidade e lá mesmo os médicos dão fim ao feto ou ao  recém-nascido”.
O folclore também é alvo para Lemos:”pobre no Brasil adora lantejoulas e paetês(...)e tome bumba-meu-boi,chegança,pastoril,reisado,maracatu(...)um povo feio,maltratado,caricaturado de rei,rainha,princesa.Uns poetas,ditos populares pretensiosos como os diabos,exibindo-se na maior empáfia possível(...)pra mim,chega(...) Escracho o Brasil para ver se o povo desperta”.
Nada escapa aos olhos do autor.Tradição do cinema nacional?Chanchadas?”Ordinário e primário,sem pé nem cabeças,imitando canhestramente o que nos vinha de Hollywood.Todo ator brasileiro imitava um de Hollywood Oscarito fazia pena,copiando os cacoetes de Carlitos”.
O Brasil aparece como um personagem”desamparado,infeliz,buscando a proteção do pai,que se transforma num Deus inatingível.Eu,decrépito”.E  os tiros continuam:”São Paulo é para Pernambuco o que os Estados Unidos são para o Brasil(imperialista) (...) tenho nojo até dos hinos patrióticos,quando ouço,desligo o rádio.E canto tira Pirrita teu marido do fuá,ou aquela cantiga que dizia à meia-noite no calor da foda... É mais saudável”.
Não,Gilvan Lemos não está para meias-conversas.Está jogando duro. Se é para morrer,é melhor cair atirando.
“Judeu?Um povo que elege um Deus só para fazer o que não presta em nome Dele,ou com o Seu perdão”.
CPI do narcotráfico?É formada pelos mesmos que investem no mercado das drogas.
Academia Brasileira de Letras?É só subornar que até Jô Soares pode parar lá.
O presidente da república?”Só persegue funcionários públicos do baixo escalão,protege os graúdos”.
E os personagens terminam concluindo: “se Deus não der a dor a gente esquece Dele e não reza(...)vá,coma esta bruaca,já estou afolozado mesmo(...)são coisas da vida.Estamos sujeitos a tudo”.
Resta-nos a Vingança de Desvalidos,que somos.


4. “A Lenda dos Cem”


Todos os capítulos iniciam-se com sueltos (pequenos tópicos) tirados de uma suposta publicação intitulada “O pernambucano” seção “Há um século”.As referentes a 1946,49,56,59,63,64 e 70, foram adaptadas de tópicos constantes no livro “Aos Trancos e Barrancos- Como o Brasil Deu no que Deu”, de Darcy Ribeiro. Os outros (1922, por exemplo) o autor “inventou”.
No 1ª capítulo vemos 2 capangas de Meneses assassinando Joca Correia (na verdade João Panta, filho da índia Nacha e do comerciante protestante Mardônio(que era casado com Benvinda). O crime se dá na presença de Pedro Correia (Peto, que é salvo na ocasião pelo seu padrinho Brás, também assassino, capanga de Meneses, que vai encaminhar o menino para ser educado noutro lugar),filho da vítima e neto do cacique Olímpio Picha,avô de Nacha, da fictícia tribo dos Xacuris.Os dois capatazes são homossexuais.Assim como o é também o mandante do crime, Meneses,chefe oligárquico do interior de Pernambuco.
O tópico que abre o livro já fala de norte-americanos que seqüestram crianças brasileiras para usá-las como cobaias em experiências científicas em Nova York. Uma característica de Gilvan: ele é crítico feroz do imperialismo ianque, representado neste livro por Mr. Rodber (que é gay) e sua gangue.
O autor não se curva aos que cultuam somente a forma nem faz concessão aos que preferem o enredo.Se ele emociona e empolga em “A Lenda dos Cem” (ed. Civilização Brasileira. 285 páginas. SP 1995) e nos faz pensar num filme de faroeste caboclo nordestino “antropológico delirante” que narra  a saga de 3 gerações de uma tribo de índios pernambucanos, é porque expõe a violência, os crimes, o heroísmo  e a impunidade que grassam neste estado do Nordeste há tanto tempo, quer seja no interior ou em Recife.
A aculturação indígena, a guerrilha, a luta pelo poder, o delírio, a dramaticidade, a miséria, vão rodopiando num torvelinho bem urdido que é a escrita do mestre Gilvan.
A narrativa é não-linear a saga dos Xacuris é narrada desde 1922 (cem anos de “independência”) até os anos 70, com a tribo esfacelada.
A “lenda dos cem” a que se refere o título quem conta é Olímpio, o cacique decadente: num tempo antigo os brancos vieram  e selecionaram os cem jovens mais fortes e sadios dos Xacuris. Mataram o resto da tribo. Amarraram os cem ,como se fossem contas de um estranho rosário. Um escapou misteriosamente. Os índios foram suprir a mão de obra escrava que escasseou. Este que fugiu era protegido de Tupã. Voltou encantado e libertou os irmãos, reconduzindo-os ao lugar onde existira a tribo: arrasado e deserto. Num passe de mágica faz aparecer mulheres xacuris e uma plantação. Assim a tribo se recompõe. E é em nome desse Moquê que Olímpio lidera o que restou da tribo muito tempo depois e tenta enfrentar os americanos e o pessoal de Meneses que queriam as terras para seus negócios pessoais(minas e fábricas). As metralhadoras dos brancos vencem os Xacuris. Só escaparam Nacha, Antônio Panta (com quem ela se “casa”,já grávida de Mardônio), Pichá (que se junta ao bando de Lampião e Corisco e, já velho nos anos 60/70 vai participar de guerrilhas, onde morrerão Rodber e Meneses).
Gilvan separa os Xacuris em dois blocos: os que se embriagam e prostituem na cidade de Santana da Serra e os que ficam na aldeia: “Nacha se deslumbrara com as bolhas mutantes da gasosa,com receio até de desmanchá-las, embora sabendo que as ingerindo mais se deslumbraria” (p.18)
A narrativa constantemente se utiliza do discurso indireto livre sem pudores em relação a palavrões ou vícios de linguagem: “punhetinha”, “cacunda”, “inda, “sustança”, “muito olhuda, boca sangrosa”. Há também neologismos  como “somiticaria”(p.46) e “desvisível” (p.49)
Nacha é descrita como “casmurra” e tendo “olhos oblíquos”.
O autor é materialista, anticlerical e não perde um efeito cômico, mesmo quando o assunto é massacre indígena, ato sexual, desintegração da família, moralidade.Tudo explode em êxtase verbal crítico e recheado de humor negro que se misturam a “buchada” e carne de sol, casinhas de taipa,bodoque, juá, bacurau. Gilvan é classe média politizada: horroriza-se com o “jeitinho brasileiro” e o descreve com raiva e um certo cinismo. Clama por vingança e justiça.
Os Xacuris viviam no vale do Iurubá,banhavam-se no rio Añun (“maternalmente acolhedor,o líquido adaptável ao corpo, morno na superfície, friinho nas profundezas, um frio morno, misturado 2-p.42). Viviam em casinhas simples, uma igreja (padre depravado e ladrão, que aparecia raramente), uma escola que não funcionava. Consideravam-se “pobres”.A única cerimônia que os unia aos antepassados era o Torém (ritual). “O coco se aparentava às danças dos antigos Xacuris” (p. 43). A maioria era analfabeta e não tinham registro da terra que o imperador demarcara (p.39).Estranhavam a ambição dos brancos(p.44).
Cita tribos do sertão/agreste de Pernambuco: Pankararus (de Tacaratu); Tukás (Cabrobó); Kambiwás (Inajá); Xucurus (de Cimbres); Atikuns (de Floresta); Fulni-ôs (de Águas Belas). Espoliados, descaracterizados, roubados vergonhosamente(p.50).Eis a crítica.
Joça Correia (João Panta, que fugiu da mãe, Nacha, e do pai indígena,Antônio- na verdade era filho de branco,Mardônio) vai ser criminoso  e termina  como Édipo: assassina o próprio pai sem saber. Meneses manda matar Mardônio,já velho, porque ele queria investigar o massacre dos Xacuris). A vítima teve seu pênis (imenso) cortado e enfiado na boca.
Ao se relacionar com uma prostituta gerou Peto, o que no início viu este pai ser morto a pauladas como um cachorro e que se vinga matando Meneses no final da trama.
A vida de Peto: Brás o deixa com um casal que o repassa para um professor (Nobre,por cuja filha, Lurdinha, Peto vai nutrir uma paixão não correspondida) que tem uma escola decadente no Recife. Peto passa num concurso público para ser funcionário da Previdência Social, depois de enfrentar a miséria no centro do Recife. Presencia o golpe militar de 64 e testemunha as barbáries dos anos de chumbo. Volta a Santana da Serra para vingar a morte do pai. Encontra Nacha, (quando é seqüestrado por Pichá, que, velho, se transformou em guerrilheiro/assaltante).A velha índia vê no rosto de Peto algo de Mardônio, e algo do próprio filho (o louro JOCA, João Panta/Correia, sobrenome que, ela não sabe, ele adotou ao olhar tal objeto na casa de Meneses).
Inocentado do crime por artimanha de Pichá, Peto volta ao Recife como herói, que se  livrou do seqüestro, e casa-se com Geni, que ele não sabe, é sua prima,filha de Pichá.


-O ESTILO GILVAN LEMOS: Gilvan Lemos, autor de linguagem expressiva e vigorosa das mais possantes nos anos 60/80 do nosso insosso panorama intelectual brasileiro, é legítimo herdeiro da prosa  Regionalista da geração  de 30, revitalizando-a com sua contemporaneidade  e seu estilo .

Características:

· Espontaneidade nos diálogos.
· Segurança ao fixar ambientes e tipos.
· Cria climas densos, dramáticos, misteriosos.
· Critica a passividade do povo do interior diante da opressão.
· Não se preocupa muito com a chamada “cor local” , isto é descrição de paisagens, o que só é feito para integrá-las   ao lado da construção psicológica das personagens.
-  Zomba de "estrangeirismos”, e mesmo dos intelectuais do “sul”
-  Critica a esquerda e a direita num ceticismo que atinge  até o anticlericalismo.

Livros publicados:

NOTURNO SEM MÚSICA  - Romance , Ed. Nordeste, Recife /l956 . Prêmio Secretaria de Educação de Pernambuco.2ª edição pela  Ed. Bagaço, Recife 1996.

JUTAÍ MENINO - romance, Edições O Cruzeiro, Rio/ 1968. Prêmio Orlando Dantas, Diário de Notícias , Rio . Prêmio Olívio Montenegro UBE -PE . 2ª edição pela Ed. Bagaço , Recife / 1995.

EMISSÁRIOS DO DIABO  - romance, Ed. Civilização Brasileira , Rio/1968).Prêmio APL . 2ª edição, Editora 3, São Paulo / 1974 , incluído na coleção Literatura Brasileira Contemporânea. 3ª edição- Ed. Mercado Aberto, Porto Alegre /1987.

O DEFUNTO AVENTUREIRO   - Contos, Ed. Universitária, Recife/ 1974. Menção honrosa do Prêmio José Lins do Rego  , da Ed. José Olympio, Rio.

A NOITE DOS ABRAÇADOS   -  novelas , Ed. Globo , Porto Alegre/ 1975.

OS OLHOS DA TREVA  - romance, Ed. Civilização Brasileira, Rio/ 1975.. Menção honrosa  do Prêmio José Condé , Recife. 2ª edição - Círculo do Livro, São Paulo /1983.

OS QUE SE FORAM LUTANDO - contos   , Artenova , Rio/ 1976.

O ANJO DO QUARTO DIA  - romance, Ed. Globo, Porto Alegre/ 1976. Prêmio Érico Veríssimo. 2ª edição - Ed Globo, São Paulo/ 1981).

OS PARDAIS ESTÃO VOLTANDO - romance , Ed. Guararapes , Recife/ 1983.

MORTE AO INVASOR-  contos . Ed. Francisco Alves, Rio/1984.

A INOCENTE FACE DA VINGANÇA-  contos , Ed. Estação Liberdade, São Paulo/ 1991.

O MAR EXISTE-  novelas ( incluídas no livro acima).

ESPAÇO TERRESTRE-  romance, Ed.  Civilização Brasileira   , Rio 1993.

ENQUANTO O RIO DORME- novela, Ed . Bagaço , Recife/ 1993. (Uma das novelas de "A noite Dos Abraçados" ).

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES - romance, Ed. Bagaço, Recife/1994. 2ª edição, pela mesma editora, em 1998.

NEBLINAS E SERENOS- novelas , Ed. Bagaço, Recife 1994. ( duas novelas de "A Noite dos Abraçados"). 2ª edição 1995.

 A LENDA DOS CEM- romance, Ed Civilização Brasileira, rio/ 1995.

MORCEGO CEGO- romance, Ed. Record, Rio/1998.





Ariano Suassuna

“Eu vi a Morte, a moça Caetana,/ com o manto negro, rubro e amarelo./ Vi o inocente olhar, puro e perverso,/ e os dentes de Coral da desumana / Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel(...) Ela virá, a Mulher aflando as asas,/ com os dentes de cristal, feitos de brasas (...) só assim verei a coroa da Chama e Deus, meu Rei, / assentado em seu trono do Sertão”.
Ariano Suassuna (Sonetos: “A Moça Caetana” e “A Morte”)

Uma análise da obra teatral de Ariano Suassuna nos faz mergulhar nas nossas origens culturais. Num recuo positivo em direção às sucessivas fontes que nos fizeram quem somos hoje: misto de regional e universal.
Os primeiros colonizadores trouxeram para cá a cultura européia, transmitida oralmente. Assimilada pelos nordestinos, desenvolveram-se as influências ibéricas e mediterrâneas.
Uma das influências que Ariano sofreu foi a dos escritores Gil Vicente, português, e do espanhol Calderón, ambos homens de teatro na época das grandes descobertas. Suassuna pratica o entrecruzamento de textos, adaptando várias obras populares (do cordel ao teatro europeu) ao seu modo. Conserva a língua popular, mas, com grafia e correção gramatical eruditas. Prepara o espectador para uma moral conforme o cristianismo. É muito comum em suas peças a cena de um “juízo final”(juiz-acusador-defensor-réu).
Além de usar textos alheios, recriando-os, Ariano pratica a intertextualidade, refazendo cenas de suas peças(exemplo: “O auto da Compadecida”) e enxertando-os em outras (em “A pena e a lei”).
Suas fontes vão de Shakespeare até a Bíblia. A intertextualidade (“comunicação entre textos”) era prática comum desde a Idade Média. Ariano a mantém, utilizando o cordel, o bumba-meu-boi, o mamulengo e também mistura o popular ao erudito (Cervantes, Moliére), fazendo tudo às claras, muito bem explicado em prefácios, palestras e aulas.

PEÇAS PRINCIPAIS:
O AUTO DA COMPADECIDA (1955): Como sabemos, um “AUTO” é o teatro medieval de alegorias(pecado, virtude, etc.). Personagens como santos, demônios. É um teatro de construção simples ,ingenuidade na linguagem, caracterização exacerbada e intenção moralizante, podendo conter o cômico. Para escrever esta peça, Suassuna baseou-se em folhetos populares - primeiro e segundo atos baseiam-se em, respectivamente, “ O Enterro do Cachorro” e “A História do Cavalo que defecava dinheiro “, textos de Leandro Gomes. O terceiro ato é uma mistura de “O castigo da sabedoria”, de Anselmo Vieira e “A peleja da alma”, de Silvino Pirauá Lima. A invocação de João Grilo à Maria e o nome “Compadecida” também são inspirados em textos populares. João Grilo é o herói picaresco, passou fome e mente para ganhar o que quer, seu amigo Chicó também é mentiroso. A infidelidade da mulher do padeiro, a mesquinhez deste, o anticlericalismo e o cangaço são analisados por Suassuna num julgamento presidido por Maria, Jesus (negro) e atiçado por uma figura diabólica. No final, João Grilo volta à vida depois de morto.
A FARSA DA BOA PREGUIÇA (1955): Escrita em versos livres, tem trechos cantados. Cita a Bíblia e Camões, poeta da Renascença portuguesa. Cada ato tem uma certa independência um do outro (“O peru do cão coxo”, “A cabra do cão caolho” e “O rico avarento”). A inspiração de Suassuna desta vez recai sobre a arte do mamulengo, teatro de bonecos do Nordeste, com suas pancadarias e mestres, sua trama simples, como por exemplo, o patrão sempre é culpado. A história do diabo que quer levar uma mulher e um homem para o inferno. A exploração do homem pelo homem. A falta de caridade , a preguiça, a prova imposta à mulher, a vitória, seres celestiais disfarçados de pedintes e seres infernais oferecendo o pecado são temas que mais uma vez nos remetem à referida simplicidade medieval que apontamos no início deste estudo.
O CASAMENTO SUSPEITOSO (1957): É uma comédia de costumes. Trata do tema casamento por dinheiro. A ação se passa na casa da matriarca de uma família, dona Guida. Travestimentos, cenas de pancadaria e sátira aos membros da igreja e da justiça compõem esta peça. Cancão (figura tomada emprestada do bumba-meu-boi) é o empregado esperto e também faz lembrar alguns personagens das comédias de Molière (autor de comédias, francês).
O SANTO E A PORCA (1957), o casamento da filha de um avarento. O “santo “ em questão é Santo Antônio e a “porca” é um cofrinho, símbolo do acúmulo de dinheiro (tão protetor quanto o santo).
A PENA E A LEI (1959): Aqui Suassuna reaproveitou cenas de seus textos “Torturas de um Coração” e da “Compadecida”, numa encenação que vai do boneco irresponsável ao ser humano pleno diante de Deus (Benedito, Mateus, Cheiroso e Cheirosa intensificam o cômico). A peça diverte mas também analisa as questões sociais: trabalho na usina, reivindicações dos trabalhadores, companhias estrangeiras, fome, prostituição em cenas curtas e de muita movimentação. A preocupação com a moral está sempre presente e o trágico é diluído pelo cômico . São personagens estereotipados. Suassuna também se utiliza das cantorias nordestinas.

RESUMINDO: a comédia da antigüidade, o teatro religioso, a arte popular do Nordeste e seus folguedos são as salutares influências deste mestre das letras que é o paraibano Ariano Suassuna, Ex-aluno do Colégio Americano Batista do Recife (dos 10 aos 15 anos, uma fase de sua vida que sempre recorda com saudade), professor de Filosofia, foi secretário de cultura do governo Arraes e que também é autor de três romances: “Fernando e Isaura” (sobre um amor impossível”,), “Romance d´A pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e Volta” .(Ed. José Olympio. RJ. 1970), sobre um poeta que na década de 30 sonha em escrever um épico nordestino e acaba preso como comunista e “História d´O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: Ao sol da onça Caetana”, suas lembranças de infância e do pai, mescladas num sertão mítico.

Ariano é fundador do MOVIMENTO ARMORIAL , reafirmando no nordeste a influência ibérica, africana e indígena.
A musicalidade dos textos de Ariano é agreste. Sua poesia rebrilha à luz ardente do Nordeste.
“Não faço distinção entre a cultura popular e a erudita. A cultura brasileira, a cultura popular brasileira, não está ameaçada . Ela é resistente. Estão tentando matá-la, mas não conseguirão”, diz Ariano e nos convida ao deleite com pérolas do cancioneiro ibérico, a arquitetura africana, as cores da África, textos de José de Alencar, de Aluízio Azevedo. E é no Romanceiro popular que Ariano mais se inspira. Nas novelas de cavalaria, nos amores incríveis, nos heróis picarescos (zombeteiros) que permeiam as histórias que o povo conhece. Ele chega a usar um mesmo texto várias vezes como base para sua recriação. “A novela da Renascença é picaresca. O personagem principal é a Fome”. Emigra para o Brasil o herói pícaro ibérico, o astucioso que difere do opressor que é o lado ruim. Ao comentar o Brasil antes de Cabral, Ariano reafirma nossa cultura milenar: “Existia teatro indígena antes da chegada dos jesuítas. É absurdo centralizar a origem do teatro. O teatro japonês não nasceu na Grécia. Tem outra origem. O teatro indígena é um teatro de máscaras e excelentes figurinos e enredos fascinantes que envolvem sua religiosidade. Eu queria que um cineasta brasileiro fizesse com este tipo de teatro brasileiro o que o cineasta japonês Kurosawa fez com o antigo teatro japonês, o teatro Nô e com o Kabuki. Injustiça social não é base para a arte popular. Ela também não é primitiva. Os violeiros vêem televisão, os artistas populares transformam as informações universais em linguagem com temática local. Temos que fortalecer nossa cultura”. Para isso, Ariano usa seus conhecimentos de Filosofia, História e Literatura, trabalhando o belo de forma dialética, unindo-o ao cômico misturando o espírito intelectual com a esperança no homem, fundindo nossa herança barroca com um espírito neoclássico.

Análise do “Romance d´A Pedra do Reino” (1970): Ariano recheia seu livro “Romance d´ A Pedra do Reino” com humor malicioso e exibe sua perícia na selva das palavras. Mistura nobres e pobres num processo criativo ímpar. Os colonizadores do Brasil aparecem como bravos que tiveram coragem de matar para estabelecer novos rumos. Ariano traz para a narrativa suas experiências com o teatro e a poesia, brinca com a metalinguagem, expõe os “mistérios” da criação. O tema central do romance são as artimanhas de Quaderna e a trágica história dos seus antepassados na cidade de São José do Belmonte, interior de Pernambuco. Ariano, através da narração em primeira pessoa (Quaderna), descreve paisagens e situações alucinantes, reinventa a cronologia, adapta fatos históricos à sua ficção (a magia das grandes navegações, as cruzadas, os romances de cavalaria, as revoluções. Se Alencar foi exuberante mas não ousou exibir um herói picaresco, Ariano, com seu Regionalismo natural, busca as interseções entre o popular e o erudito, misturando a poética aristotélica com Romantismo e buscando o êxtase criativo num realismo que alguns intelectuais rotulam de mágico, fantástico. O encatatório, o mítico, o exótico vão delineando o espaço criativo que traça o painel do sonho de uma monarquia de esquerda, sonho que Ariano alimentou durante algum tempo. Obcecado em criar uma epopéia nordestina, o narrador torna-se cômico e o recurso Deus ex machina (sobrenatural) surge para resolver as inquietações da alma que perturbam a raça humana. Outro mito recorrente é o sebastianismo.
Podemos até arriscar em julgar o discurso de Ariano como um discurso maniqueísta que recusa a polifonia. Mestre na arte literária, ele criou um herói bufão numa espécie de circo fantasioso e hedonista em busca de um sentido, de dignidade, num emaranhado de “causos” alinhados por uma escrita competente que se utiliza do pictórico (xilogravuras) para reforçar seu discurso que, no fundo, transforma o interior de Pernambuco numa espécie de Camelot da caatinga, onde humor e malícia unem-se ao ingênuo, à lenda do cavaleiro que enfrenta as instituições (representadas no texto pelo Corregedor) e o imaginário supera o racional na reinvenção do passado histórico, através da alquimia verbal típica de Suassuna que rompe a linearidade, enxertando a todo instante várias tramas secundárias à narrativa central, numa colagem que redimensiona a obra em pequenos contos. O julgamento de Quaderna é a espinha dorsal do texto que vai buscar nos poetas populares (cordel e emboladores) suas referências. Depois de trair seus amigos covardes, Quaderna busca a imortalidade através da Literatura, quer ser fidalgo. Quer louvar sua estirpe. Tenta reiventar Homero, a sua Odisséia é através do Atlântico nordestino e sua Ilíada tem como palco o sertão, ali está a Onça Caetana (a morte, a vida, o amor, a nacionalidade). Seres fantásticos pululam ao lado de personagens estilizados numa narrativa explosiva recheada de situações absurdas.

Ascenso Ferreira

Pernambucano nascido em 1895 na cidade de Palmares, Ascenso Ferreira faleceu em Recife no ano de 1965.
Inicialmente preso aos moldes parnasianos, assumiu o modernismo em 1922 e em 1927 lançou seu livro de poemas “Catimbó”; em 1930 foi a vez de “Cana Caiana”. Em 1951, uma edição luxuosa contendo as duas obras citadas e um terceiro livro “Xenhenhém”, além de um disco com melodias para os poemas.
São poemas que pedem um público ouvinte, daí dizer- se que sua poesia é mais para ser recitada e ouvida do que impressa e lida.
Quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar seus poemas, não pode fazer idéia das virtualidades verbais nelas contidas, do movimento lírico que lhes imprime o autor. Assim, em ‘Sertão´, quando ele começa: ‘Sertão! - Jatobá ! / Sertão! - Cabrobó ! / - Ouricuri!´.
A palavra ‘sertão´ é pronunciada em voz de cabeça, como um prolongado grito de aboio, ao passo que ‘Jatobá´ e ‘Cabrobó´ caem pesadamente do peito, sinistramente escandidas (separadas), evocando desde logo a caatinga. E o resto vem vindo quase sussurrando, um recolhimento quase religioso (...), um sortilégio evocativo tanto pelo ritmo como pela musicalidade.
De repente, eis que o poeta abandona o verso livre, o vozeirão catastrófico e assume o tom dançarino, a cadência de quem vai pastoreando reses mansas: ‘Lá vem o vaqueiro, pelos atalhos, / Tangendo as reses para os currais / Blém... blém, cantam os chocalhos / Dos tristes bodes patriarcais.´
Esta passagem sem preparação do verso livre para os metrificados constituem a característica da forma tão pessoal de Ascenso.
‘É lamp ... é lamp ... é lamp ... / É Virgulino Lampião ... / E O urro do boi no alto da serra, / para os horizontes cada vez mais limpos, / tem algo de sinistro como as vozes / dos profetas anunciadores de desgraças ... / - O sol é vermelho como um tição! / - Sertão! / Sertão!´.
“Ver e sobretudo ouvir Ascenso, é viver intensamente no mundo dos mangues do Recife, do massapê e das caatingas, das cavalhadas, pastoris, maracatus, vaquejadas (...) Ascenso identificou- se com o homem do povo de sua terra mesmo quando este é o cangaceiro que a fatalidade mesológica (do meio onde vive) marcou com o estigma do crime”, afirmou o recifense Manuel Bandeira. O Sertão estava no sangue de Ascenso.
O poeta perdeu o pai aos 7 anos, numa cavalhada. Sua mãe, que fora abolicionista , foi sua única professora durante anos.
Dos sonetos e baladas, madrigais, até a poesia brincalhona, foi um passo. O “primeiro Ascenso” cismou com o Modernismo de São Paulo, mas aproximou-se de Mário de Andrade e, claro, de Manuel Bandeira.
Com Gilberto Freyre, Joaquim Inojosa e Joaquim Cardozo fundamentaram o Regionalismo Modernista em Recife.
Se o modernismo paulista aderia aos modelos franceses e italianos, o recifense aproveitou somente o verso livre, o humor, a linguagem coloquial, enfim, pouca coisa das vanguardas de além-mar.
“O freguês que não bebe não é bom cristão! / Peia nele, mestre Mateu!´ / E o coro canta em profusão: / `Se a aguardente era o diabo, pra que bebeu? / Se o copo era grande, pra que encheu!´ (...) Se a mulher era o diabo, pra que bebeu / essa jurema que é o beijo seu!“.
“Cana Caiana” é um frege que lembra música popular, embolada. Uma poesia “estranha e doce” de um poeta “legítimo”, como disse Luís da Câmara Cascudo, que relembra: Ascenso dava risadas de “acordar os defuntos de Santo Amaro” (cemitério de Recife).
“- Viva o arco-íris (...) Vamos pegá-lo (...) fugiu ... / a chuva fina tem carícias de morte ... / Fugiu ... / Para o sul? Para o norte / - Quem sabe! / Desapareceu ... / Além ... /Vida-Arco-íris também ...” (in “Arco-Íris “ do livro “Catimbó”).
Os engenhos de “fogo morto”, os maracatus, a sensualidade da mulher pernambucana, a culinária, a lua, o mar, o frevo, tudo isso mistura- se na poesia deste poeta de Palmares, cujo ritmo é contagiante.
“O sino bate, / o condutor apita o apito, / solta o trem de ferro um grito, / põe-se logo a caminhar... / - Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende / com vontade de chegar / Mergulham mocambos / nos mangues molhados, / moleques mulatos, / vêm vê-lo passar. / - Adeus, - Adeus / Mangueiras, coqueiros, cajueiros em flor, / Cajueiros com frutos / já bom de chupar ... / - Adeus, morena do cabelo cacheado! / (...) Mangabas maduras, / mamões amarelos (...) o Pai- das Mata! (...) a casa das Caiporas! (...) Meu deus! Já deixamos a praia tão longe ... / No entanto avistamos outro mar ... (...) Cana-caiana / Cana roxa / cana-fita/ todas boas de chupar” (in “Trem das Alagoas” de “Cana- Caiana”).


Manuel Bandeira

O livro “Estrela da Vida Inteira” é, na verdade, um conjunto de livros do poeta recifense, um dos mais ternos do Brasil, Manuel Carneiro de Sousa Bandeira(1886-1968). São eles: Cinza das Horas (1917): Nele podemos perceber que o poeta, vindo da tradição simbolista e parnasiana,mantém com ela profundos laços e caminha, paradoxalmente, para uma ruptura dessa tradição. “O que tu chamas tua paixão / É tão somente curiosidade. / E os teus desejos ferventes vão / Batendo as asas na irrealidade ... / Curiosidade sentimental / Do seu aroma,sua pele. / Sonhas um ventre de alvura tal, / Que escuro o linho fique ao pé dele(...) E acima disso, buscas saber / Os seus instintos, suas tendências... / Espiar-lhe na alma por conhecer / O que há sincero nas aparências.” (trecho de “Poemeto Irônico”)
Carnaval (1919): Muito bem recebido pela nova geração da época e por parte da crítica especializada. “É um livro sem unidade. Sob pretexto de que no carnaval todas as fantasias se permitem, admiti na coletânea uns fundos de gaveta, três ou quatro sonetos que não passam de pastiches parnasianos, e isto ao lado das alfinetadas dos `Sapos´”, disse o poeta. O poema “Os Sapos” é uma sátira ao parnasianismo e foi lido por Ronald de Carvalho durante a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922. O poema seria considerado uma espécie de hino nacional dos modernistas. Outro poema deste livro: ”Na velha torre quadrangular / Vivia a Virgem dos Devaneios ... / Tão alvos braços ... Tão lindos seios... / Tão alvos seios por afagar...” (em “Baladilha Arcaica”).
O Ritmo Dissoluto (1924): Neste livro Bandeira começa a explorar mais sistematicamente a simplicidade popular e um certo prosaísmo. É um livro,como o próprio poeta via, de “transição entre dois momentos de sua poesia”. “A doce tarde morre. E tão mansa / Ela esmorece, / Tão lentamente no céu de prece, / Que assim parece,toda repouso, / Como um suspiro de extinto gozo / De uma profunda, longa esperança / Que, enfim cumprida, morre, descansa ...” (em “Felicidade”).
Libertinagem (1930): Com a publicação deste livro,pode-se dizer que a poesia de Bandeira amadureceu definitivamente, no sentido de uma liberdade estética. Além disso, o poeta consolidou sua temática existencial e explorou com mais freqüência as cenas e imagens brasileiras. Poemas que se transformaram em clássicos: “Não Sei Dançar”, ”Pneumotórax”, ”Poética”, ”Evocação do Recife”, ”Poema tirado de uma Notícia de Jornal”, ”Teresa” e “Vou-me Embora para Pasárgada”.
“Uns tomam éter, outros cocaína. / Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. /Tenho todos os motivos menos um de ser triste. / Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...” (em “Não Sei Dançar”). “Recife / Não a Veneza americana / Não a Mauritstadt dos armadores das Índias Ocidentais (...) Mas o Recife sem história nem literatura / Recife sem mais nada / Recife da minha infância” (em “Evocação do Recife”).
Estrela da Manhã (1936): Bandeira tinha 50 anos quando, sem encontrar editor, publicou 50 exemplares na marra (papel doado e impressão custeada por subscritos). Alguns músicos interessaram-se por seus textos, como Jaime Ovall e Radamés Gnatali, entre outros. Em 1945, o poeta compôs as letras para uma série de canções, a pedido do maestro Villa-Lobos, que queria composições tipicamente brasileiras para serem cantadas em ocasiões festivas. Foram reunidas com o nome de Canções de Cordialidade (“Trem de Ferro”, ”Berimbau”, “Cantiga”, “Dona Janaína”, ”Irene no CÉU”, ” Na Ruia do Sabão”, “Macumba do Pai Zuzé”, “Boca de Forno”, “O Menino Doente” e “Dentro da Noite”, publicados em outras obras.
“As três mulheres do sabonete Araxá me invocam,me bouleversam,me hipnotizam. / Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde! / O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá! / Que outros, não eu, a pedra cortem / Para brutais vos adorarem, ”Ó brancaranas azedas, / Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata / Ou celestes africanas (...) Meu Deus, serão as três Marias? / A mais nua é doirada borboleta / Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra e nunca mais telefonava / Mas, se a terceira morresse ... Oh, então, nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim”. (em “Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá”)


“Modelo de uma poesia lírica a que se mistura IRONIA e mesmo o sarcasmo. A poesia evolui num certo sentido humorístico, num certo sensualismo (Canção das Duas Índias “Entre estas Índias de leste / E as Índias ocidentais / Meu Deus que distância enorme / (...) Sirtes sereias medéias / Púbis a não poder mais...” Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá, as mulheres que hipnotizam o poeta, as mulatas cor da lua, as celestes africanas, “as prostitutas, as declamadoras, as acrobaras ou as Três Marias?), um erotismo que parece não se concretizar, pois as mulheres, as duas índias são comparadas às inacessíveis praias – o humor amargo” à maneira dos ingleses Oscar Wilde e Lord Byron”.
O eu-poético começa procurando a estela da manhã “Eu quero a estrela da manhã” – O que seria afinal essa estrela? Abre-se aqui um campo de interpretações (texto aberto) – e termina encontrando apenas a estrela Vésper (o ocaso, o fim da tarde será o fim da vida? “Vésper em cuja ardência não havia a menor parcela de sensualidade”.  Quer a estrela-d’alva, a rainha do mar, quer apenas ser feliz e poder descansar. O eu-poético se sente só e sua busca parece resultar em nada” (...) gritava o seu nome três vezes / Dois grandes botões de rosa murcharam / e o meu anjo da guarda quedou-se de mãos postas no desejo insatisfeito de Deus.” A saída parece nunca existir, fato que se repete em Conto Cruel. O pai que sofria de UREMIA toma injeção de sedol, mas não consegue dormir e “Jesus-Cristinho” nem se incomoda com os apelos.
A amargura do eu-poético, a sua solidão deixa-se notar no poema Marinheiro Triste. Compara sua vida com a do marinheiro. O poeta é uma pessoa amargurada, de uma amargura “nobre e funda”, uma tristeza consciente (assim como a do poeta da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.) O destino do marinheiro, seu lugar seguro é o navio (“o feroz casco sujo amarrado ao cais” para onde volta mesmo sem saber se será feliz (deveria voltar bêbado?). Ao marinheiro restará no mínimo)  o horizonte imenso”, mas ao poeta nada restará. Talvez a morte. Morte que contempla em Momento num café ao olhar um esquife que passava.
No percurso da busca, o eu-poético faz reflexões sobre o beco. O beco que aprendeu a cantar num dístico (poema de dois versos).
A temática social (pouco freqüente nos textos do poeta) aparece também na prosa poética Tragédia brasileira e em Rondós dos Cavalinhos. Veja que o crime ou a tragédia brasileira – o assassinato de Maria Elvira – ocorreu na rua da Constituição (será que poderemos remeter aos crimes, assasinatos na época da ditadura?). Maria representa a gente do povo e Misael trabalha para o governo – Ministério da Fazenda. Metaforicamente ele é o Governo e ela é a prostituta (Bandeira tem admiração especial pelas prostituídas – por ser uma excluída?). Para José de Nicola, Misael, num gesto populista, comprou Maria Elvira (= povo) com algumas coisas (pseudo paternalismo), o mesmo que fez Getúlio Vargas antes de preparar o golpe de Estado (governo populista), comprou o povo a fim de garantir-se no poder. Vale destacar que quando o crime ocorreu, Maria Elvira morava na Rua da Constituição e Misael já era um sujeito, “privado de sentimentos e inteligência”. Na Constituição estariam algumas contradições?
Como esse poema foi escrito na década de ‘30 – a era Vargas – talvez a Tragédia Brasileira tenha uma ligação com o momento político que vivíamos.
Vale destacar que Bandeira mexeu com a estrutura da tragédia à maneira dos gregos pois os personagns pertencem a uma classe que não é dominante, ou seja, é gente do povo.
Já em Rondó dos Cavalinhos o poeta se mostra mais irônico, sarcástico ao falar (indiretamente) do Brasil político, um Brasil distante do elemento sensível: “O Brasil politicando, / Nossa! A poesia morrendo...”
A metrificação curta, o ritmo leve aparecem principalmente em Cantiga (pentassílabos – redondilha menor). O ritmo leve das brincadeiras infantis é exibo também com Boca de Forno (intertexto) e Trem de Ferro. Neste último, podemos perceber a língua errada do povo’, ‘língua certa do povo’, ou seja, o jeito de o brasileiro falar, como falamos, como somos. O recurso da polifonia a permitir a voz do outro no texto: “Oô... / Quando me prendero / no canaviá / Cada pé de cana / Era um oficiá / Oô ... / menina bonita / Do vestido verde / me dá tua boca / Pra matá minha sede / Oô ... / Vou mimbora voi mimbora / não gosto daqui / nasci no sertão / sou de Ouricuri / Oô ...”
Além dos temas desenvovidos por Bandeira (a família, a morte, a infância no Recife, o Rio Capibaribe) podemos destacar a preocupação do poeta com os outros: “os mendigos, os meninos carvoeiros, as prostitutas, os carregadores de feira-livre, as ‘pálidas crianças, tristes, asiladas, os meninos sem amor de mãe que viviam de caridade, em vestes tristes como mortalha. As Irenes pretas, os Joões gostosos, as flores muchas da vida a cobrar do eu-poético esperanças. Flores Murchas é um poema que funciona como um canto de solidariedade ao povo, um povo que também precisa da Estrela da Manhã.
Bandeira é ainda o poeta das lembranças: a infância, o Recife, Juiz de Fora e suas manhãs, suas “jabuticabeiras cansada de doçura, o cineminha namoriqueiro, o parque senhorial, os bondes dando sem pressa voltas vadias, o primeiro sorriso da doce província de Minas Gerais. O poeta em Declaração de Amor lembra o poeta Mauro Mota na busca do tempo na Farmácia, um tempo “tão de dentro deste Brasil”.

Lira dos Cinqüenta Anos (1940): Publicação de emergência, o primeiro convite que o poeta recebeu de uma casa editora. Bandeira candidatou-se à Academia Brasileira de Letras.“Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada /Ribeirão trepidante e de cada recosto / De montanha o metal rolou na cascalhada / Para o fausto d´El-Rei,para a glória do imposto / Que resta do esplendor de outrora? Quase nada: / Pedras...templos que são fantasmas do sol- posto.” (em “Ouro Preto”)
“Vi uma estrela tão alta, / Vi uma estrela tão fria! / Vi uma estrela luzindo / Na minha vida vazia / Era uma estrela tão alta! / Era uma estrela tão fria! / Era uma estrela sozinha/Luzindo no fim do dia” (em “A Estrela”)
“Lapa - Lapa do Desterro -, / Lapa que tanto pecais! / (Mas quando bate seis horas, / Na primeira voz dos sinos, / Como anunciava / A conceição de Maria, / Que graças angelicais!” (em Última Canção do Beco”) Belo Belo (1948): Esse título foi tirado de um poema da Lira dos Cinqüent´Anos. Numa edição posterior, de 1951, foram acrescentados alguns poemas. “Vamos viver no Nordeste, Anarina. / Deixarei aqui meus amigos, meus livros, minhas riquezas, minha vergonha / Deixarás aqui tua filha, tua avó, teu marido, teu amante. / Aqui faz muito calor. / No Nordeste faz calor também. / Mas lá tem brisa”. (em “Brisa”)
”Belo belo minha bela / Tenho tudo que não quero / Não tenho nada que quero / Não quero óculos nem tosse / Nem obrigação de voto (...) Belo belo / Mas basta de lero-lero / Vida noves fora zero” (em “Belo Belo”)
Mafuá do Malungo (1948): Publicado na Espanha por iniciativa de João Cabral de Melo Neto. Mafuá significa feira popular, malungo é um africanismo, significando companheiro. Nesse livro, Bandeira faz jogos com as primeiras letras das palavras, faz também sátiras políticas, brinca “à maneira de” outros poetas.”
“Olhei para ela com toda a força. / Disse que era boa. / Que ela era gostosa, / Que ela era bonita pra burro: / Não fez efeito (...) Virei pirata (...) Então banquei o sentimental (...) Escrevi cartinhas (... Perdi meu tempo: não fez efeito. / Meu Deus que mulher durinha! / Foi um buraco na minha vida. / Mas eu mato ela na cabeça: / Vou lhe mandar uma caixinha de Minorativas, / Pastilhas purgativas: / É impossível que não faça efeito!” (em “Dois Anúncios”: “ I - Rondó de efeito”)
Opus 10 (1952-1955) A expressão do título vem do universo da música. A palavra latina Opus indica genericamente obra, composição, e o número indica a posição de determinada peça num conjunto de composição do autor. Nomeando um livro seu a partir de uma expressão tomada no universo da música, Bandeira ressalta a importância da música e da musicalidade em sua obra.
“Como em turvas águas de enchente / Me sinto a meio submergido, / Entre destroços do presente / Dividido,subdividido, / Onde rola, enorme, o boi morto (...) Morto sem forma ou sentido / Ou significado. O que foi/Ninguém sabe.Agora é boi morto” (em “Boi Morto”) “Grilo toca aí um solo de flauta. / - De flauta? Você me acha com cara de flautista? / - A flauta é um belo instrumento. Não gosta? / -  Troppo dolce!” (em “O Grilo “).
Estrela da Tarde (1960) reeditado em 1963,com novos poemas. É a maturidade do poeta completo que Bandeira já é ao tempo deste livro,onde ele tanto retorna ao soneto tradicional (reinventado na sua poética),como se utiliza de recursos gráficos –talvez inspirados nas vanguardas contemporâneas-na montagem de poemas como “O Nome em Si”.
“Vejo mares tranqüilos, que repousam, / Atrás dos olhos das meninas sérias. /Alto e longe elas olham,mas não ousam / Olhar a quem as olha, e ficam sérias” (em “Variações Sérias em Forma de Soneto”).
Lira do Brigadeiro “Depois de tamanhas dores, / De tão duro cativeiro / às mãos dos interventores, / Que quer o Brasil inteiro? / - O Brigadeiro! (...) Brigadeiro da esperança, / Brigadeiro da lisura / Que há nele que tanto afiança / A sua candidatura? / - Alma pura! (...) Abaixo a politicalha! / Abaixo o politiqueiro! / Votemos em quem nos valha: / Que nos vale, brasileiro? / - O Brigadeiro! (...) O Brigadeiro é católico (...) Comunga, mas não comunga / Com os impostores ateus / E os ricos do Estado Novo: / Comunga só com o seu Deus / E com o povo! (...) - Não voto no militar; voto no homem escandaloso. / - Ué, compadre, quem é o homem escandaloso? / - O Brigadeiro (...) Não zunzuna / Nem não fala atoamente; / Será nosso presidente / Estava no seu destino / Desde que ele era tenente / Desde que ele era menino”
OUTROS POEMAS. “O SUPLICANTE - Padre Nosso, que estás no céu santificado seja o teu nome. Venha a nós o teu reino. Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. O pó nosso de cada dia nos dá hoje... / O SENHOR (interrompendo enternecidíssimo) - Toma lá,meu filho. Afinal tu és pó e em pó te converterás!” (em “Sonho de uma noite de coca”)
“Casa Grande & Senzala” / Grande livro que fala / Desta nossa leseira / Brasileira / Mas com aquele forte / Cheiro e sabor do Norte / - Dos engenhos de cana / (Massangana!) (...) Se nos brasis abunda / Jenipapo na bunda, / Se somos todos uns / Octoruns / Que importa? E lá é desgraça? / Essa história de raça, / Raças más,raças boas (...) É coisa que passou / Pois o mal do mestiço não está nisso. / Está em causas sociais, / De higiene e outras que tais: / Assim pensa,assim fala / Casa Grande &Senzala. / Livro que à ciência alia / A profunda poesia / Que o passado revoca / E nos toca / A alam de brasileiro, / Que o portuga femeeiro / Fez e o mau fado quis / Infeliz!”.




João Cabral de Melo Neto

 
Nascido em Recife, João Cabral (1920-1999) descende de senhores de engenho, onde passou a infância e recebeu grande influência. No Recife, jogou pelo time Santa Cruz. É primo de Gilberto Freyre e de Manuel Bandeira. Foi para o Rio de Janeiro em 1942 e em 45 ingressou na carreira diplomática. Seu primeiro livro Pedra do Sono foi publicado em Recife e é composto por poemas curtos em versos regulares e brancos. “Pedra” simboliza sua obsessão pela ordem e clareza. “Sono” é conotação para a poesia que o escritor quer transformar em objeto numa linguagem despretensiosa, coloquial, irônica. Há neste lançamento influência das vanguardas (surrealismo, cubismo, semana de 22,etc.), como detectamos no poema “Noturno”: “o mar soprava sinos/ os sinos secavam as flores/ as flores eram cabeças de santos/ minha memória cheia de palavras/ meus pensamentos procurando fantasmas/ meus pesadelos atrasados de muitas noites”. Em 45, publica O Engenheiro, poemas (“máquina de comover”) com projeto geométrico de construção, rigor. Dedica-o a Drummond e faz referências a Miró, Picasso, Mondrian. Além de metapoesia, há limpidez na linguagem, preocupação com a disposição gráfica das estrofes. Em 47, surge Psicologia da Composição (com “Fábula de Anfion” e “Antiode”). A “fábula” é poema narrativo onde o anti-herói livra-se da emoção. Anfion construiu ao som de sua lira, a muralha de Tebas. Em 1950: O Cão sem Plumas, escrito em Barcelona, denuncia a realidade nordestina também no poema “O Rio”(em 1ª pessoa,com técnica dos romanceiros ibéricos) onde o eu-lírico é o próprio rio. Engenhos, usinas, trem, afluentes, misturam-se na viagem do sertão ao mar. Morte e Vida Severina é de 1956: o narrador em primeira pessoa nos conta (em forma de auto de natal-pernambucano) sua trajetória de desilusão e desgraça do sertão pernambucano até o Recife. Sua condição severina (severa, vulgar) cujo único consolo é o nascimento de uma criança (que presencia no final do poema). Em Paisagem com Figuras (56), compara o norte da Espanha com a paisagem nordestina. Quaderna (60) é antilírico e composto por quartetos rimados. Dois Parlamentos (61) parodia a gratuidade e a recorrência da fala dos políticos institucionais, distanciados da realidade (“Congresso no Polígono das Secas” e “Festa na Casa Grande”). Em Serial (“Terceira Feira”), de 1961, encontramos poemas compostos em série, ultrapassando o lirismo e a musicalidade. Como característica: busca da forma, e lucidez severa da composição. Educação pela Pedra (66) é coletânea que expõe a “depuração” atingida pelo poeta num processo rigoroso e sistemático, comparável à resistência / consistência da pedra. Museu de Tudo (76) é composto por poemas que diferem da simetria habitual do autor (por isso seu rigor eliminou tais poemas dos livros anteriores). Escola das Facas (80) “poemas pernambucanos”, Cabral retoma a preferência pela simetria. Há notas memorialistas e a 1ª pessoa (sem despersonalização, eis a diferença). Em 82, publica Poesia Crítica, cujo tema é a criação poética. É o artista a refletir sobre a própria arte. Em 84 surge O Auto do Frade, um poema para vozes. Como Morte e Vida Severina, este também é para ser lido em voz alta. O tema é Frei Caneca, mentor da Confederação do Equador (movimento republicano em Pernambuco), executado em 1825, por ordem de Pedro I. O poema retoma o último dia do líder carmelita. O povo o vê caminhando para a morte:
“-Ei-lo que vem descendo a escada, degrau a degrau. Como vem calmo.
- Crê no mundo,e quis conserta-lo.
- E ainda crê, já condenado?
- Sabe que não o consertará.
- Mas que virão para imita-lo.” Em 85 e 87, respectivamente são publicados Agrestes e Crime na Calle Relator. Ficou o senso de medida e a expressão sem excessos ou derramamentos, a despoetização do poema que, longe da retórica, concentra a emoção dando à palavra espessura, concretude. Mais qualidade do que quantidade. Cada uma com o máximo de conotação possível. Emoção passando pelo crivo da precisão, humanitariamente: a presença do humor numa “concepção objectualista”. Um verso substantivo e despojado, que nos deu uma nova perspectiva do discurso lírico. Até hoje, a nos seguir, está o cão sem plumas (=pêlos) arrastando ainda detritos das casas grandes & senzalas. Prosaico, lírico, polirrítmico, severo e pícaro. Violentando o horizonte nordestino com sua forma dura. A palo seco: sem guitarra, sem mais nada. Só a lâmina da voz, sem tempero ou ajuda. Com sua chama nua sobre o fio de cobre. Ferro contra pedra. Ferro contra ferro. O rio como um cão vivo. “O que vive não entorpece / o que vive fere (...) viver é ir entre o que vive...” Ariano disse que João Cabral é parte da formação e manutenção da identidade nacional. Haroldo de Campos o considera um dos maiores poetas do Brasil. A Espanha e os EUA já o reverenciaram. Cabral resmunga: “Me considero um marginal na poesia luso-brasileira. Como foram Sousândrade e Augusto dos Anjos.” Nosso poeta resgatou o homem,como o Barroco resgatou Deus. Numa literatura que busca o “engajamento”. Em 1968, assumiu a cadeira deixada por Assis Chateaubriand na Academia Brasileira de Letras. Em 53, acusado de comunista, passou algum tempo afastado da carreira diplomática. Cabral negou a experiência de 22. Augusto de Campos disse que ele não tinha “antecedentes” (só “conseqüentes”). “A poesia concreta não depende de mim”, sentenciou Cabral do alto dos seus oito livros de poemas e dois autos dramáticos. Em prosa, lançou estudo sobre Juan Miró. “Plantas franzinas em ambiente de rapina”, foi como descreveu os camponeses da zona da mata pernambucana. O nordestino é marcado pela paisagem.






Chico Science e outros poetas do Movimento Mangue (“A Cena Recifense dos anos 90”)
                                                                                                                  
                                             


                   “Eu já me disse uma vez/ Minha jangada vai voar [...] Eu vou morar depois do mar/ Deixo saudade pra vocês [...] Num banho, a consciência se afogar de uma vez/De cor e cheiro as águas mudarão eu sei/ Mas estarei longe demais/ Eu vou morar do Mar pra lá”
                                                                      Jorge dü Peixe




                                               Quando o mundo começou a ficar conectado por transmissores, muita gente profetizou que as diferenças culturais estariam com seus dias contados.Hoje, depois de tantas décadas de aldeia global essas previsões não podem mais ser levadas a sério.Muitas diferenças já desapareceram, é claro.Mas novas diferenças, produtos da voracidade com que os povos do Terceiro Mundo incorporam a tecnologia ocidental, surgem todos os dias, modificando todas as fronteiras.A pobreza dos seus criadores não tem tanta importância: vale mais ter sua fome canalizada na direção da antropofagia cultural certa.Isso não quer dizer que vivemos num planeta de igual oportunidade para todos.O Brasil é um país de famintos.Um país que (como já disse Gilberto Gil) só reconhece raiz se for de mandioca.Um país que para saciar sua eterna fome, pode até misturar maracatu rural com heavy metal.Tudo isso com molho de caranguejo mutante.Do mais profundo mangue.

                                                                                                             Hermano Viana













I  - Fusão Cultural: um entre-lugar chamado Recife

Neste ensaio comentaremos algumas idéias do crítico indo-britânico Homi K. Bhabha, professor na Universidade de Chicago, expressas no livro “O Local da Cultura” (Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001), doravante citado como OLC, que trata das questões hibridismo cultural, pós-colonialismo e nação, pós-estruturalismo, semiótica, psicanálise, enfim: a questão cultural e suas “fronteiras”, da produção de signos, identidade hoje, tradição recebida versus produção de identidades minoritárias. Usando este texto como referência faremos então uma análise do fenômeno Chico Science, artista que deu nova feição à cultura pernambucana nos anos 90 do século passado ao criar, junto com outros artistas de Pernambuco, o chamado Movimento Mangue, também conhecido como Manguebeat ou Cena Recifense. Este movimento fundiu as tradições culturais com as inovações contemporâneas.
O pernambucano Francisco de Assis França, Chico Science (1966-1997), reativou a força cultural das minorias destituídas como o camelô, os emboladores, os batuqueiros, transformando sua arte no que Bhabha chamaria um “espaço de intervenção”, um entre-lugar, vivenciando as “fronteiras do presente”, rompendo a escuridão e a asfixia que Recife usava para matar as inovações culturais, tornando visível/audível o assassinato/esquecimento do que parecia estranho, ou ia de encontro à cultura tradicional, tanto a de raiz como a Acadêmica. O Movimento Mangue foi um projeto executado por jovens que popularizando a arte dos marginais escancarou as portas do mundo multicultural, rompeu tabus ao mesclar a luta social no Recife com um tempero ianque da cultura hip hop (grafite, break e rap), rock, literatura beatnik, soul e funk numa verdadeira antropofagia cultural. Um esquema novo e mais barulhento para o samba, uma pisada diferente para o maracatu, um mote novo para o repente.
 O Movimento Mangue foi contemporâneo da queda do muro de Berlim, do fim da União Soviética, da falência momentânea da política de esquerda e do novo processo de globalização do “inferno capitalista”, da ascensão de Fernando Henrique Cardoso ao poder e do boom do consumismo brasileiro. A inevitável explosão do CD e da mídia através da internet, sistema que os integrantes do Mangue usaram até a exaustão para executar e divulgar o seu trabalho, época em que chegaram ao Recife as lanchonetes da cadeia McDonald´s e os sinais da MTV. Tempo do governo de Miguel Arraes em Pernambuco e seu incentivo à cultura popular (assunto polêmico que mereceria um estudo à parte), tendo Ariano Suassuna como Secretário de Cultura e o escritor Raimundo Carrero como Presidente da Fundação do Patrimônio Histórico de Pernambuco (FUNDARPE).
Science é um exemplo típico de fusão de várias culturas e da busca de um entre-lugar para desenvolvê-las. Como DJ conheceu músicas de todo o mundo e soube extrair deste imenso caldeirão um material que, remixado aos ritmos como embolada, coco, samba de roda, frevo, maracatu, ciranda, caboclinhos, e tendo como inspiração os versos do cordel, repente ou mesmo aos pregões, linguagem utilizada pelos camelôs e por uma gama muito variada de recifenses de baixa renda, da periferia, se transformaria num ritmo e em textos inovadores, cheios de vigor despertando toda uma geração que teve sua expressão castrada durante os anos de chumbo da ditadura militar e pelo imperialismo interno promovido pelo eixo Rio- São Paulo que nunca foi muito generoso quando se trata de divulgar outra imagem do Nordeste que não seja comédia, folclore, cangaço e/ ou miséria. Science mistura algo dos movimentos punk e hip hop para uma nova visão destes estereótipos.
A proposta do Movimento Mangue não era a de ser um fenômeno “circunstancial” sem futuro: desde 1991 seus integrantes começaram a se estruturar em forma de pesquisa que ia desde a leitura dos livros do sociólogo Josué de Castro e passava pelas experiências psicodélicas dos anos 60, realidade virtual, física quântica, design, mídia, desenho animado, histórias em quadrinhos, televisão e cinema comercial (a assim chamada “midiotia”).
 Com o lançamento de um release/Manifesto, ao modo das famosas vanguardas européias, e mesmo as nacionais com raízes na Semana de 22, acelerou-se a ousada empreitada. O grupo Chico Science e Nação Zumbi, o CSNZ, assina então um contrato com a Sony Music e assume a linguagem dos excluídos sistematizado-a num clima que anunciava o final do milênio: “a gente não veio do nada [...] o som que nós fazemos é universal [...] percebi uma identidade entre o rap e a embolada [...] comecei a pegar velhos discos de maracatu e rapear em cima”, disse Science em entrevista ao jornal O Globo, em 31 de março de 1994 (in TELES, 1997).
 Science ganhou este apelido pelo fato de adorar fazer experiências com músicas e com a linguagem. Vejamos um pequeno exemplo destas “experiências” neste trecho numa letra de sua autoria, Da Lama ao Caos, do CD homônimo:

Posso sair daqui para me organizar/Posso sair daqui para me desorganizar/Da lama ao Caos/ Do caos à lama/um homem roubado nunca se engana/ O sol queimou a lama do rio/ eu vi um xié andando devagar/ vi um aratu pra lá e pra cá/ vi um caranguejo andando pro sul/ saiu do mangue e virou gabiru/ Oh Josué, eu nunca vi tamanha desgraça/Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça/ Peguei o balaio, fui na feira roubar tomate e cebola/ lá passando uma veia, pegou a minha cenoura/ai minha veia deixa a cenoura aqui/ Com a barriga vazia / não consigo dormir/ E com o bucho mais cheio comecei a pensar/ que eu me organizando posso desorganizar/ que eu desorganizando posso me organizar... (CSNZ, 1994)

Como podemos facilmente detectar a tessitura do discurso de Science, e assim será com outros poetas do Movimento Mangue, é calcada em palavras que fazem parte do cotidiano da população recifense de baixa renda que vive nesta região onde os rios se encontram com o mar (xié, aratu, caranguejo, balaio, feira, lama, gabiru, mangue como metáfora de diversidade). São pescadores, pequenos comerciantes, desempregados, e muitas vezes vivem de pequenos furtos. Daí expressões maliciosas e cheias de trocadilhos como “Uma véia pegou a minha cenoura/ai, minha véia, deixa a cenoura aqui”. Nota-se o humor na linguagem dúbia da “cenoura” e, é claro, a pronúncia e grafia de certas palavras procuram se aproximar do jeito de falar, e escrever, de uma boa parte da população do Recife. Há na letra acima uma referência à teoria do caos e ao sociólogo pernambucano Josué de Castro, do romance Homens e Caranguejos, lido avidamente por Chico. Josué soube como poucos traçar um perfil da pobreza em Recife. A política no Movimento Mangue se faz presente nas letras das bandas ligadas ao movimento como, por exemplo: Devotos, Faces do Subúrbio, Nação Zumbi, Mundo Livre s/a, Sheik Tosado, Mestre Ambrósio, Expresso 4 Oito, Paulo Francis Vai pro Céu, Matalanamão, Textículos de Mary, Dona Margarida Pereira e os Fulanos e outras. Racismo e outros horrores sociais foram cantados com força em letras pungentes ou denunciados em irônicos manifestos que expuseram a negação da liberdade, a expressão da nossa inferioridade forçada, os reflexos da violência. Analisemos alguns exemplos. A letra de Maracatu de Tiro Certeiro de Jorge du Peixe, incluída no CD Da Lama ao Caos

O sol é de aço, a bala escaldante/ tem gente que é como barro/ que ao toque de uma se quebra/outros não!/ ainda conseguem abrir os olhos/ e no outro dia assistir TV/ Mas comigo é certeiro meu irmão/ Não encosta em mim que hoje eu não tô pra conversa/ Seus olhos estão em brasa/ Fumaçando! [...] Não saca a arma não - a arma não?/ Já ouvi, calma!/ As balas não mais atendem ao gatilho, já não mais atendem. (CSNZ, 1994)

              Balas que não mais atendem ao gatilho, gente que se quebra e gente que sobrevive para assistir TV, a impaciência de quem não agüenta mais nem ser tocado, sob um sol causticante numa terra que parece não ter lei. Olhos em brasa e a emergência: “A arma não?”. A vida bandida do cotidiano recifense aparece assim transposta para o entre-lugar poético de uma cidade recriada e o maracatu em vez de um brinquedo transforma-se em ameaça de violência iminente, um tiro certeiro, mais alvoroço no caos. A violência é tema de várias letras dos mangueboys, como esta:

É um pássaro?É um avião? Não! Socorro!Fujam! Cada um por si, é um míssil desgovernado!/ Ele vem em nossa direção!-Cuidado! Ele foi fabricado no quartel  general da salvação.../Algo me alvejou. Ai, olha o sangueiro irmão (...) É bom rezar todo dia, fera.Para a gente não virar alvo de uma missão humanitária aliada/O incansável super-homem em sua nova versão/nos faz sentir saudade dos precários tempos do esquadrão...(MUNDO LIVRE, 2000)

Desta letra de Fred Zero Quatro e Goró, Super Homem Plus, destacamos a crítica às “missões humanitárias” da terra do “super-homem” (EUA). Fred é jornalista e ao lado de Renato L alicerçou a cena junto a Science. Sua poesia, quase sempre acompanhada por um cavaquinho, fala do Recife em forma de denúncia. Uma cidade explorada por forças capitalistas internacionais e por corruptos locais que sacrificam “nossa soberania num altar obscuro e tenebroso”. Em vez do humor picaresco, como o do Malungo Chico, aqui percebemos uma amarga ironia, como podemos perceber no trecho do Manifesto Partindo para o Ataque, incluído no encarte do CD Por Pouco:

Todos sairemos às ruas para exigir nosso direito à vida digna e à liberdade. Expulsaremos do poder os sanguessugas- clientes submissos das corporações, consórcios e instituições financeiras transnacionais- que em quase quatro décadas nada fizeram senão mentir, conspirar, hipotecar nosso suor para pagar dívidas imorais, ilegítimas, impagáveis; espoliando todo o nosso patrimônio e recursos naturais, sacrificando nossa soberania num altar obscuro e tenebroso- montado pelas grandes potências neo- imperialistas na forma de organizações e acordos draconianos de comércio internacional-, responsável por um criminoso e inconseqüente Arrastão Global (MUNDO LIVRE, 2000)

            “Dívidas imorais, ilegítimas, impagáveis”, o que Fred sugere parece ser uma moratória seguida de uma revolução contra os “neo-imperialistas” do “comércio internacional”. É um discurso que não deixa de ser panfletário, maniqueísta, porém no meio da estagnação em que se encontrava a lírica da música jovem local tornava-se interessante.
 
II- Um Corpo Coletivo

             A poesia de Chico é de um tipo mais conciliador que a de Fred:

Eu sou um caranguejo e estou de andada/só por sua causa, só por você /E quando estou contigo eu quero gostar/e quando estou um pouco mais junto eu quero te amar/e aí te deitar de lado como a flor que eu tinha na mão/ E a esqueci na escada só por esquecer [...] prometo meu amor vou me regenerar/ oh Risoflora! Não vou mais dar bobeira dentro de um caritó [...]e em vez de cair nas tuas mãos preferiria os teus braços/ e em meus braços te levarei como uma flor/pra minha maloca na beira do rio... (CSNZ,1994)

As palavras aqui também evitam o vocabulário do colonizador e se aproximam do discurso das classes menos favorecidas, buscando ali sua inspiração como é caso desta romântica composição de Science, “Risoflora”, onde o homem é identificado com o animal, o caranguejo, e a mulher com uma flor. Lembremo-nos que a cidade do Recife foi construída praticamente em cima do mangue e que Risophora Mangle é o nome científico de um determinado tipo de vegetação do manguezal. Poeta e musa podem ser metáfora do cidadão e da cidade-natureza. A maloca na beira do rio seria então o caramanchão onde o idílio pós-moderno se consumaria em alquimia e Recife ressurgiria transformada em Manguetown. Mas nem tudo nela é doçura e as núpcias do poeta com a cidade-mangue podem ser bruscamente interrompidas, pois a miséria se faz presente e exige uma postura, coloca o eu-lírico em xeque:

Porque no rio tem pato comendo lama [...] e a lama come mocambo e no mocambo tem molambo/e o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio dia/o carro passou por cima e o molambo ficou lá/molambo eu, molambo tu/é Macaxeira, Imbiribeira, Bom Pastor, Torreão, Ibura, Ipsep, Casa Amarela, Boa Viagem, Genipapo ,Bonifácio, Santo Amaro, Madalena, Boa Vistas, Dois Irmãos, é o Cais do Porto, é Caxangá, é Brasilit, Beberibe, CDU, Capibaribe  e o Centrão/ Rios, pontes e overdrives- impressionantes esculturas de lama/ mangue mangue, mangue (CSNZ, 1994)

Surgem nesta composição, de Zero Quatro e Science chamada Rios Pontes e Overdrives, vários nomes de bairros recifenses. Estes servem de cenário para o homem privado de recursos econômicos: o molambo. O homem do povo atropelado pela máquina: “o carro passou por cima e o molambo ficou lá”. O discurso em código: “Tem pato comendo lama”, tão comum entre facções que resistem a uma dominação que venha do exterior. Isto aponta para uma das características do movimento Mangue: a “brodagem” (termo que vem de “brother”, irmão, em inglês).
Em várias composições encontraremos palavras, ou expressões, que se fecham à leitura que as simplifiquem. Como em “Macô”:

 de bamba nada/ só queres barbada/ tu tá de terno amarelo porque tá fazendo sol/ olha que cara desarrumado/de chapéu torto/e óculos enfeitado/ é Zé Mane/ Macô/ de zambo nada  tu só quer mamata/tu só quer ficar na minha/porque eu tô de mão cheia [...] segura esta garrafa/o gargalo já tá feito/tais adivinhando cheia/ olha pra lá, vira a cara,  não dá bola/ pega uma ficha aí/ bota lá na radiola/ cadê Roger? (CSNZ,1996)

Esta letra chamada “Macô”, de Science e du Peixe, foi composta inicialmente na Soparia, antigo bar no Pina, bairro do Recife, cujo proprietário, Roger de Renor, era “brother”  do pessoal do Movimento Mangue. Neste bar havia uma radiola de ficha e Roger, durante o carnaval e outras festas, gostava de usar roupas num estilo bem próprio. O termo “Macô”, veio de Chico que olhando para uns garotos que fumavam maconha às escondidas imaginou que no futuro haveria tal droga vendida em um chip de computador e os camelôs do Recife, que têm o costume de simplificar as palavras reduzindo-as, a anunciariam assim: “Macô!”. Como vemos, os compositores do Movimento Mangue eram bem irreverentes.
Prestemos atenção agora a um pequeno texto de Chico, intitulado Monólogo ao Pé do Ouvido:

 Modernizar o passado/ É uma evolução musical/ Cadê as notas que estavam aqui?/ Não preciso delas! Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos/ o medo dá origem ao mal/ O homem coletivo sente necessidade de lutar/ O orgulho,/ a arrogância, a glória/ Enchem a imaginação de domínio/ São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade Viva Zapata!Viva Sandino! Antônio Conselheiro/ Todos os Panteras Negras/ Lampião sua imagem e semelhança/ Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia (CSNZ, 1994)

A música e as palavras estão unidas na mensagem de Science e seu projeto da Manguetown/ Nova Recife, destemida e brincalhona, antenada com o hip hop, com o rock, o punk, a cibernética e tendo dentro de si um passado com o qual podia alimentar sua luta naquele angustiante final de milênio e, principalmente, aberta às mudanças. Além das metáforas radicais (homem-caranguejo, homem-molambo) e anárquicas (“a minha cenoura”), como vimos anteriormente, surgem também louvações àqueles ícones revolucionários como Zapata e Sandino (México e Nicarágua), Panteras Negras (EUA) que se mesclam à mítica lembrança do Conselheiro e seu projeto (Canudos) e Lampião. As palavras orgulho, arrogância e glória aparecem nesta lírica de maneira intrigante, exploradas o mesmo contexto que busca estabelecer uma identidade grupal: Recife/ Mangue, um emolduramento ao mesmo tempo estético e histórico em face ao imperialismo e neocolonialismo (inevitáveis?). Os integrantes do Movimento Mangue não eram despolitizados, faziam constantemente alusão ao controle econômico e sócio-cultural exercido sobre Recife, porém tais práticas culturais oposicionistas, para subverter a ordem estabelecida pelo sistema, tinham que se mesclar ao que eles chamavam midiotia (produtos “idiotas” da indústria cultural local, nacional e global) para serem mais facilmente deglutidas, assimiladas. Promoveu-se então uma mistura de signos.
            Ao utilizarmos o estratagema da linguagem, da teoria, devemos evitar que esta se exceda na reafirmação do poder erudito, e esquecer que o Manguebeat foi antes de tudo um fenômeno poético multicultural e, até certo ponto, popular. Mesmo assim busquemos em Bhabha o referencial para esta parte do nosso estudo: “Não passará a linguagem da teoria de mais um estratagema da elite ocidental culturalmente privilegiada para produzir um discurso do Outro que reforça sua própria equação conhecimento-poder?” (OLC. p.45)
O Movimento Mangue traçou meio às cegas uma tática para a transformação social, um jogo de metáforas. Trata-se de um discurso caótico, matriz produtiva que define o social e o torna disponível à mudança, à troca discursiva, ao dissenso, à alteridade e outridade numa espécie de

negociação de instâncias contraditórias e antagônicas [...] contra uma visão primordial direita ou esquerda, progressista ou reacionária [...] numa ênfase à necessidade de heterogeneidade [...] a dupla inscrição do objetivo político não é a mera repetição de uma verdade geral sobre o discurso introduzido no campo político” (OLC.p.51-53)

 numa negociação nada piegas, onde os despossuídos usaram os meios (a mídia) das pessoas de posses e através da fantasia (o “homem- caranguejo”) fundiram jovens ricos e pobres, (in)felizmente como no futebol e num carnaval (bakhtiniano, no sentido da polifonia) transformando a relação entre o ator social (miserável) e a multidão (Recife) num processo coletivo catártico que combatia de certa forma a irracionalidade da ideologia.
Ao rever o fenômeno Mangue, observamos uma espécie de idealismo, de engajamento em relação à luta contra a dominação cultural, quer viesse de outros países ou mesmo do eixo Rio- São Paulo, imposta sob a forma de colonialismo interno. O trabalho dos integrantes do Manguebeat desembocou numa re-historização. Através da mistura desenvolveram uma nova construção discursiva da realidade social, que se realizou no Recife no campo das diferenças culturais, e não da diversidade cultural, pois culturas não poderiam ficar intocadas pela “intertextualidade de seus locais históricos, protegidas na utopia de uma memória mítica”. (OLC. p.63). Ao recriar seu lugar, unindo passado-presente e futuro e rompendo fronteiras, o Movimento Mangue encaixa-se na fundamentação proposta por Bhabha que num contexto distinto afirmou: “Nenhuma cultura é jamais unitária em si mesma, nem simplesmente dualista na relação do Eu com o Outro [...] todos pertencemos à cultura da humanidade” (OLC. p.65).


III – Brotos do Mangue

         Analisemos agora uma letra de Chico Science que se transformou num sucesso: A Cidade.

O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas/que cresceram com a força de pedreiros suicidas/cavaleiros circulam vigiando as pessoas/ não importa se são ruins nem importa se são boas/A cidade se apresenta centro das ambições/para mendigos ou ricos e outras armações[...]a cidade se encontra prostituída por aqueles que a usaram em busca de saída/ ilusora de pessoas de outros lugares / a cidade e sua fama vai além dos mares/no meio da esperteza internacional [...] sempre uns com mais e outros com menos/a cidade não pára, a cidade só cresce/ o de cima sobe e o de baixo desce/eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu/tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu/pra gente sair da lama e enfrentar os urubu/num dia de sol Recife acordou/com a mesma fedentina do dia anterior (CSNZ, 1994)

Recife é o palco destes brotos do Mangue.A Cidade como imensa escultura de lama. Mangue como símbolo de diversidade cultural. Caranguejo/ animal da água e da terra. O hibridismo se apresenta a cada signo proposto por Science e seus companheiros. O avesso e paradoxalmente reforço de um cartão postal. Avesso porque os habitantes são suicidas, vigiados num sistema onde quem é ruim é igual a quem é bom, pois tudo são “armações” numa cidade “ilusora”, “prostituída”, injusta, ameaçada por “urubus” e pela náusea provocada, dentre outras coisas pela “fedentina”. O reforço do cartão postal surge com o poeta recorrendo às suas raízes para compor seu experimento inovador: uma embolada, um maracatu que , como o sol que nasce, possa iluminar “as pedras evoluídas”, as construções da cidade.
A sociedade capitalista e as transformações experimentadas pelos integrantes do grupo Mangue desencadearam um processo histórico inédito de renascimento cultural, onde a produtividade, as relações sociais romperam com a fixidez, e isso refletiu numa gama de produtos culturais, influenciados pela nova tendência. No cinema tivemos filmes como O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas documentário sobre o músico Garnizé, do grupo Faces do Subúrbio, e sobre o “marginal” conhecido como Helinho (que seria assassinado na prisão pouco tempo depois do lançamento do filme). Outro longa-metragem produzido em Recife, e influenciado pela “estética Mangue”, foi O Baile Perfumado, direção de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, com trilha sonora de Chico Science, Fred Zero Quatro, Siba (do grupo Mestre Ambrósio), Lúcio Maia (do CSNZ) e Paulo Rafael, que teve enorme repercussão nacional, coisa que há muito tempo não acontecia no Nordeste. O leitmotiv do filme é uma visão inovadora da história do cangaceiro Lampião e da sua amada Maria Bonita que, no filme, aparecem indo ao cinema, consumindo produtos importados e dando festas. As imagens do filme seguem uma estética pouco convencional, misturando várias técnicas e serviu como referencial do novo cinema recifense. É reverenciada uma das últimas tomadas do filme que mostra Lampião triunfante sobre um canyon do rio São Francisco. Mais recentemente tivemos Amarelo Manga, com roteiro de Hilton Lacerda e direção de Cláudio Assis, um filme que mostra a saga de alguns desvalidos do Recife em ângulos e textos que lembram versos dos mangueboys. Um filme com trilha sonora de alguns componentes dos fundadores do Movimento Mangue: Lúcio Maia e Jorge du Peixe (da Nação Zumbi) e Fred Zeroquatro, que aparece tocando seu famoso cavaquinho num boteco do Pátio de Santa Cruz e mencionando Osama bin Laden, terrorista apontado como um dos responsáveis pelos atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA.
Podemos falar também da influência do Movimento Mangue na moda, nas criações de Eduardo Ferreira e outros estilistas. A propósito a indumentária de Chico Science, a do grupo que o acompanhava e de muitos outros integrantes do Mangue deve ser destacada: eram muitas vezes roupas e acessórios comprados em camelôs: óculos, anéis, colares, pulseiras, chapéus, sapatos, sandálias.
Na escultura e pintura podemos detectar a influência do Movimento Mangue nas obras de Evêncio Vasconcelos (“Mangue Building”) e Félix Farfan. Também na dança tivemos as coreografias de Sonaly Macedo e Mônica Lira, que foram descritas pela jornalista Ivana Moura do Diário de Pernambuco, em julho de 1998, da seguinte forma:

O crescimento de atitudes urbanas nas ruas do Recife, em sintonia com outros recantos jovens do planeta, do clima festivo de quem tem pressa de conquistar espaços, dos anseios que pulsam numa mudança vertiginosa de mentalidade. Postura contemporânea da urgência de viver o presente.Influenciada pelo Manguebeat, uma patola na terra e uma antena no ar, a nova gramática da dança é a cara de Pernambuco.A expressão é mais agressiva, em conexão com o bailado das ruas, usam techno, capoeira e caboclinho para construir sua estética.(in NETO, 2000, p. 81-82)

Na área de vídeo um dos destaques vai para o cineasta, e então crítico de cinema do Jornal do Commercio, Kleber Mendonça Filho, que na realização de Enjaulado reuniu boa parte da Cena Recifense na trilha sonora. No teatro duas peças poderiam ser citadas como “influenciadas”, de certa forma, pelo Movimento Mangue: O Príncipe das Marés, com figurino de Eduardo Ferreira e Pata Aqui, Pata Acolá, adaptação do livro de Edmilson Lima, feita por Sidney Cruz com direção de José Manuel.


IV- Manifestados

De acordo com uma pesquisa feita por um instituto norte-americano, Recife aparecia no final dos anos 80 como uma das piores metrópoles do mundo em qualidade de vida. Foi para reverter este quadro maldito que se ergueram os “caranguejos com cérebro”, como se nomeavam os líderes do Movimento Mangue, os jornalistas Fred Zero Quatro e Renato Lins, e, é claro, Science. Eis um trecho do Manifesto lançado e publicado no encarte do CD Da Lama ao Caos, que fora anteriormente distribuído como press release por eles e que é uma espécie de ápice das idéias que vinham desenvolvendo desde 1991:

 A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade maurícia passou a crescer desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição dos seus manguezais.Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de progresso, que elevou a cidade a posto de metrópole do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade. Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestasse no início dos anos 60. Nos últimos 30 anos a síndrome da estagnação aliada à permanência do mito da ´metrópole`, só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano[...] ao maior índice de desemprego do país [...]Um choque rápido, ou o Recife morre de infarto![...] O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade?Simples! Basta injetar um pouco da energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife... (CSNZ, 1994)

Detectamos aqui a preocupação com o meio ambiente degradado pelos séculos em nome de uma “cínica noção de progresso” que resultou numa “esclerose econômica” que deixou o Recife à beira de um “infarto” no início dos anos 90. Aí vem a ironia, típica da poesia de Fred: restava “deslobotomizar” a cidade, isto é reverter uma metafórica lobotomia praticada por aqueles que jogaram-na na “miséria”.
O Movimento Mangue, ou a “Cena”, surge então rompendo tratados e traindo ritos: “Gente como Ariano Suassuna” transformou a cultura popular em “peça de museu”, eis o tom da fala de Fred, que alfineta: “ninguém estava ouvindo os discos de Alceu Valença”. Isso foi dito depois da morte de Science:

 Em primeiro lugar o movimento Mangue nunca teve a proposta de derrubar qualquer um dos artistas que vieram antes de nós.Em 91 e 92, ninguém estava ouvindo os discos de Alceu Valença. Antes da gente, ninguém tinha ouvido falar em qualquer tipo de cena musical formada em Recife. A palavra cena era usada para se referir a outros locais como Londres, Jamaica [...] Antes a cultura popular era tratada apenas como material para estudo acadêmico, uma verdadeira peça de museu, por gente como Ariano Suassuna, que se comportava dessa forma bem antes de ter um cargo político [...] O Movimento Mangue foi mais como uma cooperativa, trouxe esta coisa de fugir do folclore de se cantar o tempo inteiro as ladeiras de Olinda.O lance do Mangue foi quebrar com os ripongas, romper os feudos armoriais, com esta coisa conservadora (Jornal do Commercio, 15/03/2000).

Apesar da relutância, Ariano, de certa forma, enquanto era secretário de Cultura de Pernambuco (1995/1998) autorizou a liberação de verbas para que os grupos do Movimento Mangue pudessem se articular melhor. É histórico seu encontro com Chico Science, quando afirmou dentre outras coisas que ele deveria se chamar Chico Ciência e não Science e que a mistura maracatu e música norte-americana desvalorizava/minimizava a importância do maracatu. O grupo de “ripongas” ao qual Fred se refere poderia incluir muitos outros que tentaram, em Recife, lançar uma tendência, como Geraldo Azevedo e o grupo Ave Sangria, nos anos 70. Fred os acusa de envelhecer sem se atualizar e completa seu discurso apontando os “feudos armoriais”, uma ironia, é óbvio, dirigida ao academicismo escritor paraibano criador do Movimento Armorial, de tentar transformar a cultura numa “peça de museu”. A representação do Recife que se exigia, ou se propunha, naquele momento teria que passar, quase que necessariamente, pela iconoclastia, pela mistura,  ruptura e negociação, para a qual o poeta performista–mor, Francisco de Assis França parecia estar bem preparado.

V- Um passeio no mundo livre

 Na letra de Cidadão do Mundo, Science exprime o estado de alerta em que vivem os menos favorecidos e injustiçados que só contam com a esperteza e com o próprio corpo para se defender:

A estrovenga girou/passou perto do meu pescoço/ corcoviei, corcoviei/ não sou nenhum besta seu moço/a cena parecia fria/ antes da festa começar/ mas logo a estrovenga surgia/ rolando veloz pelo ar/ eu pulei, eu pulei/ corri no coice macio/ só queria matar a fome /no canavial na beira do rio (CSNZ, 1996)

São os instintos básicos que precisam ser saciados. Os habitantes da cidade de Science vivenciam a emergência e riem quando podem enganar a morte, a fome a maldade. Em Etnia ressurge a questão do cidadão marginalizado que sai misturando tudo que pode para tentar se salvar. Isto provoca no poeta um texto que é um verdadeiro jogo de rimas e questionamentos sociais.

Somos todos juntos uma miscigenação/e não podemos fugir da nossa etnia Índios, brancos e mestiços/ Nada de errado em seus princípios [...] samba que sai da favela acabada /é hip hop na minha embolada/é o povo na arte/ é a arte no povo/ não é o povo na arte de quem faz arte/com o povo/ maracatu psicodélico [...] berimbau elétrico...(CSNZ, 1996)
Novamente a crítica aos acadêmicos e políticos que usam a arte do povo para atingir seus interesses particulares. Chico e o movimento Mangue se colocavam ao lado do povo numa nova perspectiva de expressão cultural que incluía uma revisão inclusive da produção cultural fruto da diáspora africana e sua mistura com a cultura européia e indígena nas Américas. O popular é reinventado: Um maracatu psicodélico e um berimbau elétrico e o samba indo de encontro com a embolada, o repente e seu afro-hispânico irmão, o rap do movimento hip hop. Propunha-se uma arregimentação de correntes de libertação pop em nome da revitalização das forças expressivas de uma cidade cujos canais de representação praticamente só eram usados para a repetição e a representação psíquica da realidade social apresentava mitos destruídos do narcisismo negro e da supremacia branca. Onde o preto escravo fora representado como sendo constituído pela inferioridade em relação ao branco descendente do senhor de engenho, onde o índio só aparecia como exótico folclore ou carnavalesco caboclinho num processo neurótico onde as diferenças eram mascaradas como homogêneas numa cidade à beira do caos, atolada na lama da passividade atávica.
No disco lançado pelo Mundo Livre Por Pouco, novamente o articulador da geração Mangue (Cena Recifense) Fred 04 fala da fronteira entre o México e os EUA: a “lei” e o “desejo” – de justiça social, de integração e da vontade de destruir esta visão imperialista do modelo colonizador que quer apresentar o “colonizado” como um imbecil degenerado e a colonização como uma reificação, indo de encontro ao que Bhabha chama de “metonímia da presença” (OLC.p. 135): a diferença entre usar a cultura norte-americana e ser americanizado. Vamos analisar outro trecho do manifesto Partindo para o ataque- Missão 4, escrito por Zero Quatro e publicado no encarte do CD Por Pouco:

Antes que nos joguem a todos em favelas, nos matem a mingua ou simplesmente nos trancafiem em presídios sob qualquer pretexto para camuflar as taxas de desemprego e exclusão, como fazem na América; antes que entreguem o que sobrou da Amazônia e dos mangues, ocuparemos nosso lugar, reconquistaremos o espaço que nos foi tomado pelas onipotentes tiranias privadas, graças a nossa própria secular omissão. Canalizaremos para as ruas toda a paixão e energia coletivas dos sambódromos e grandes estádios lotados nas ensurdecidas finais de campeonatos. Sem violência e sem rancor, mas com amor-próprio, alegria e autodeterminação.Esta será a nossa missão. (MUNDO LIVRE, 2000)

Parece que a alternativa para fugir da favelização seria o encarceramento do pobre que não tendo emprego entra na contravenção. Os excluídos do Recife seriam nisso igualados aos marginalizados norte-americanos. Sobre todos estes miseráveis e até por sobre os remediados brasileiros pairaria a ameaça da desterritorialização que adviria da tomada da Amazônia pelo capitalismo selvagem e a especulação como um todo, das “tiranias privadas” que se aproveitando da nossa “secular omissão” drogariam as massas com mais samba e futebol. A isso tudo os deserdados da Manguetown propunham a Não-violência, o não rancor, a valorização do amor-próprio, a alegria e a “autodeterminação”. Para alguns isto pode soar como conformismo e alienação, mas Science já declarara na sua letra Um Passeio no Mundo Livre:

Eu só quero andar pelas ruas de Peixinhos/ andar pelo Brasil/ ou em qualquer cidade do mundo/ sem ter ´sociedade´ [...] andar pelo mundo livre” (CSNZ, 1996)

             Destituído do poder econômico restava ao poeta a liberdade. Mais uma vez é citado o bairro popular de Peixinhos, parte da região metropolitana do Recife. Observamos a valorização de um lugar marginalizado pelas classes dominantes. Há também a idéia do eu-lírico vagando no espaço poético da cidade, o seu “mundo livre” onde a “sociedade”, que aparece citada entre aspas no original, nada mais seria do que um conceito a ser retrabalhado.

VI- O fetiche do Mangue: a catarse coletiva enquanto o mundo explode

Um ritmo meio misterioso embala a letra de Jorge du Peixe e Chico intitulada Corpo de Lama:

 Este corpo de lama que tu vê /é apenas a imagem que soul/ este corpo de lama que tu vê é apenas a imagem que é tu/que o sol não seque os pensamentos/mas a chuva mude sentimentos [...] eu caminho [...] ouvindo a música dos trovões [...] seu rosto parece com as minhas idéias” (CSNZ, 1996)

Novamente a metáfora da lama, fetiche do mangue, como constitutiva do sujeito como um todo orgânico que se movimenta na metrópole-mangue. A psicodelia acentuando a exacerbação dos sentidos, como faz a aguardente com os sentidos do bêbado, vai unindo pedaços da realidade, fragmentos de percepções diversas (“seu rosto parece com as minhas idéias”), e um tanto quanto abstratas, onde a realidade, assim recomposta, metamorfoseia-se em arte, em poesia (e música) pop. O eu-lírico, vitimado pela pobreza transcende e surrealiza o meio em que está inserido, como em outra letra na qual Science exalta a animalidade provocada, também, pela miséria, o zoomorfismo. É o que pressentimos nesta composição intitulada Manguetown, onde o autor desabafa numa espécie de catarse coletiva:

Estou enfiado na lama/ é um bairro sujo/onde os urubus tem casas/e eu não tenho asas [...] andando por entre os becos/andando em coletivos/ninguém foge ao cheiro sujo/da lama da Manguetown [...] à vida suja dos dias da Manguetown /Esta noite sairei/vou beber com meus amigos e com as asas que os urubus me deram/ ao dia/ voarei por toda a periferia...  (CSNZ, 1996).

Recife é a Manguetown onde o corpo de lama se movimenta, reinventando-se, metamorfoseando-se. Homem caranguejo/mutante, com as asas de urubu. Estranha imagem. Metáforas de um mundo duplo: caranguejo (terra/água) junta-se à imagem  de um a animal voador ligado à podridão. O sujeito da periferia, um excluído apropria-se da sua cidade, do seu lugar, reinventando-o. Ficção, misto de desenho animado, e história em quadrinhos, como já sugerimos. Esta composição ganhou vida num clipe com tendências psicodélicas dirigido por Gringo Cardia.
No primeiro CD do Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ), Da Lama ao Caos (1994), há no encarte uma “explicação” para o fenômeno dos “homens- caranguejos”: uma fábrica de cerveja foi construída sobre um mangue.A água extraída dali para a produção da bebida provocava nos consumidores uma estranha mutação. A idéia é de Hilton Lacerda e Hélder Aragão, que assinam os desenhos do encarte onde se encontra também o manifesto Caranguejos com cérebro ao qual já nos referimos anteriormente.
Há algo de dúbio no fetiche em que se transformou o movimento Mangue. Buscando respaldo nas idéias de Bhabha nós diríamos que “Ele imita as formas de autoridade ao mesmo tempo em que as desautoriza” (OLC.p.137). Há uma carnavalização: os habitantes da cidade são mostrados como atores de uma nova Cena tendo como teatro de guerra a Manguetown, a nova Recife. Revolta e indignação contra o velho sistema de injustiças sociais transmuta-se em obras de arte onde a criatividade suplanta o ódio e a inércia, superando-os em busca do novo que inspirasse e revolucionasse.
O Movimento Mangue não negava as diferenças do Outro: subvertia-as e através da polifonia redimensionava as questões ideológicas levando-as a extremos onde o picaresco exercia sua função de crítica e diversão. Está na letra de Chico, Enquanto o Mundo Explode:

A engenharia cai sobre as pedras/um curupira já tem seu tênis importado/não conseguimos acompanhar o motor d história/mas, somos batizados pelo batuque e/apreciamos a agricultura celeste/ enquanto o mundo explode/nós dormimos no silêncio do bairro/fechando os olhos e mordendo os lábios (CSNZ, 1996)

A(s) voz(es) recifense(s) aparecia(m) através de uma vívida concepção, uma forte crença, um poder de sentimento vivo questionando a autoridade cultural que queria naquele momento o holismo, a metonímia, a parte pelo todo e não o respeito às diferenças. Se a autoridade queria homogeneidade num momento em que o mundo se estilhaçava na internet e a globalização exigia novos rumos, os mangueboys apontavam para uma direção onde o local se ressaltasse e aí fosse introduzido o global, o transnacional.
A linguagem, esta monumental esfinge, propôs ao Recife o seu enigma e Chico resolveu o enigma da linguagem: o fato dela ser ao mesmo tempo interior e exterior ao sujeito falante e só poder ser manipulada quando furando as “zonas de controle ou de renúncia de recordação e de esquecimento, de forma ou de dependência, de exclusão ou participação”, como sugere Bhabha, citando Edward Said, ao referir-se à problemática da “hermenêutica da mundanidade” (OLC. p.210) ou como Julia Kristeva, que  definiu a nação como: “um poderoso repositório de saber cultural que apaga as lógicas racionalistas e progressistas da nação canônica” (OLC.p.216). Pois foi neste repositório, neste controle versus renúncia de recordação e esquecimento que se forjou a nova representação do sujeito recifense. O curupira com “tênis importado”, pés para trás e rosto para frente no “batismo do batuque” apreciando a “agricultura celeste enquanto o mundo explode”. No silêncio do bairro tramou-se a nova engenharia que colocaria novamente a cidade no mapa.
A discussão se dava dentro do Recife e ao mesmo tempo colocava a cidade como eixo de uma polêmica que envolvia um momento do planeta: a falência da antiga política de esquerda e o estremecimento do neoliberalismo. O entre-lugar que surge a partir daí, o entre-meio, o empowerment das minorias, a possibilidade de uma intervenção, o desafio aos conceitos “totalizadores”. Partindo desse lugar híbrido, Science sugeriria novas formas de sentidos e estratégias de identificação. O Recife que todos conheciam só apresentava modelos desgastados pela exploração do pobre e a humilhação dos que eram “diferentes”. O modelo como todo tinha que ser destruído e uma nova cidade imaginária, como uma espécie de Canudos virtual teria que ser erguida às pressas no meio daquela emergência de fim de milênio. Surge a Manguetown: saída da mais imunda lama, lama esta que também teria que se metamorfosear em medicinal rapidamente. Os habitantes não poderiam olhar para si mesmos como representantes do antigo regime, teriam que se perceber transmutados, daí a fantasia dos “homens-caranguejos”, criada pelos mangueboys. A “contaminação” que veio da ingestão das águas do mangue, da baba dos caranguejos, como sugere Hilton Lacerda e Hélder Aragão, no já citado encarte do CD Da Lama ao Caos. (CSNZ, 1994)
 Numa perspectiva pós-colonial, diríamos que o movimento Mangue foi uma ruptura com a sociologia do subdesenvolvimento/dependência e revisou as pedagogias nacionalistas/ nativistas “que estabelecem a relação do terceiro mundo com o primeiro em uma estrutura binária de oposição (OLC.p.241) “reconhecendo elementos transnacionais, mesmo que nessas nações não esteja a homogeneidade.
O movimento Mangue forjou o “homem-caranguejo” (Science) o sujeito “esclarecido” no confronto com a ética (honra/culpa) e a estética (pré-moderno e pós-moderno). Ressaltaram-se as “diferenças” e a linguagem da comunidade cultural recifense, precisava ser repensada: “o mangue” é/foi heterogêneo. Saindo da “esquerda” e buscando explorar outras “etnias”. Daí o rap, funk, dub, a cultura hip hop, misturarem-se à embolada nordestina, ao maracatu e outros ritmos pernambucanos. Era também a política de interferir na identidade e no antagonismo social.Subversão e revisão.
O caranguejo: metáfora que perverteu o seu contexto subjacente. O projeto Mangue seria como um terceiro elemento, uma espécie de filtro, entre o poeta e seu “interlocutor. Foi este “projeto”que tornou Chico, o “agente”, um representante de um   “efeito coletivo” na era do capitalismo tardio multinacional (das transformações globais do capital). O poeta Chico parece-nos buscar um novo significado para sua cidade na temporalidade nervosa do “transicional ou na emergente “provisoriedade daquele momento de transformação do globo, parecia querer incluir Recife em um projeto teórico que cindiria e duplicaria

 o discurso analítico no qual ele, artista, está incrustado, à medida que a narrativa de desenvolvimento deste capitalismo tardio se defronta com sua persona fragmentada pós-moderna [...] e os processos de diferença cultural que estavam inscritos no ‘entre-lugar’ (dissolução temporal que tece o texto global) tornaram possível a expressão do alcance global da cultura [...] a arquitetura do novo sujeito histórico que emerge nos próprios limites da representação para permitir uma representação situacional por parte do indivíduo daquela totalidade mais vasta e irrepresentável, que é o conjunto das estruturas da sociedade como um todo [...] entre-meio entre as exigências do passado e as necessidades ao presente [...] de modo que o futuro se tornaria (mais uma vez) uma questão aberta, em vez de ser especificado pela fixidez do passado,  permitindo às identidades marginalizadas ou minoritárias, um modo de agência performativa [...] e o olho de tormenta é nada menos do que o próprio sujeito-de-classe como sugere Bhabha referindo-se a um determinado tipo de posicionamento artístico (OLC.p.298-302).

Chico Science, poeta da periferia recifense, seria este “sujeito-classe” da periferia universal, apropriando-se do mundo através de um discurso que usava basicamente a linguagem popular: a dos excluídos da sua aldeia. Mesclando o hip-hop assim com a embolada, deu novo formato mostrou novos caminhos para o processo criativo do rap, cuja criação de letras, às vezes na base do improviso e falando sobre a questão das “diferenças”, não era novidade para os poetas repentistas do Nordeste que já fazem isso há muito tempo. Isto num momento em que a nova economia global

ainda não permitiu que suas classes se formassem de maneira estável e, muito menos que adquirissem uma verdadeira consciência de classe como analisou Frederic Jameson (in Bhabha p-302).

Servindo como avatar dos “novos tempos”, Science é exemplo de que a classe social de baixa renda, e, é claro, uma parcela dos outsiders recifenses, pelo menos teve o direito à expressão. Que rumos a sua poesia teria tomado se a morte não tivesse interrompido sua carreira no auge do sucesso em 1997 é o que nos perguntamos nesta parte do nosso estudo.


VII- Por uma questão de classe...

A nova ordem imposta pela globalização e pelo neoliberalismo capitalista de final de milênio empurrou nossos artistas para um processo onde tinham que ser incluídas as diversas formas de se repensar o Recife, na qual televisão rimasse talvez com solução e não só com alienação e repetição de modelos falidos da propaganda do Rio, São Paulo ou Hollywood. Onde o morro, a ladeira, o córrego, o beco, a polícia e o ladrão sejam questionados sobre coragem, dinheiro e bala, inocência e banditismo por pura maldade ou como “Questão de Classe”, nome desta letra de Chico:

Há um tempo atrás se falava de bandido/ há um tempo atrás se falava em solução/há um tempo atrás se falava em progresso/ Há um tempo atrás eu via televisão/ Galeguinho do Coque não tinha medo da perna Cabeluda/ Biu do Olho Verde fazia sexo com seu alicate/ Oi sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela/a polícia atrás deles e eles no rabo dela/acontece hoje acontecia no sertão/ quando um bando de macaco perseguia Lampião/ E o que ele falava hoje outros ainda falam/ ´Eu carrego comigo: coragem ,dinheiro e bala´ / em cada morro uma história diferente/que a polícia mata gente inocente/ e quem era inocente hoje já virou bandido/pra poder comer um pedaço  de pão todo fodido/banditismo por pura maldade/ banditismo por necessidade/banditismo por uma questão de classe! (CSNZ, 1994)

Novamente temos o espaço geográfico redimensionado (urbano/ rural. Favela/sertão) e a situação da injustiça social sendo questionada na poesia de Science. Seu discurso inclui nomes de marginais famosos como Biu do Olho Verde, Galeguinho do Coque, Lampião e até uma lenda urbana recifense: a perna Cabeluda. Todas as informações são colocadas como fragmentos em um caleidoscópio onde se reorganizam formando novas imagens de uma sociedade que lembra a colcha de retalhos, sugerida como definição para a (agonizante?) cultura pós-moderna que marcou o final do século vinte. Fazia-se urgente uma renegociação das diferenças e das fronteiras entre o local e o global, as margens e o centro. A questão da pluralidade demográfica precisava ser revista/revisitada.
A questão cultural no Recife em sua ansiedade insolúvel, fronteiriça, híbrida em articular seus problemas de identificação em uma temporalidade estranha, disjuntiva que parecia ser ao mesmo tempo, o tempo do “deslocamento cultural” e o espaço de intraduzível”, deparou-se com um marco indubitável: o poeta Francisco de Assis França, o Chico Science, cujo discurso tratava de visualizar uma tentativa de consciência de classe.

Os colonizados se recusam a aceitar ser membros de uma sociedade civil de súditos; conseqüentemente, eles criam um território cultural marcado pelas distinções do material e do espiritual do externo e do interno (OLC.  p.316 - 317).

Era preciso então demonstrar solidariedade entre as etnias e entre as diferenças como um todo que de certa forma confluiam para o ponto de encontro da história no processo de identificação, nas negociações da política cultural e o Recife identificou-se com a mordacidade, o exagero caricatural, a mistura de embolador e camelô, colagem pós-moderna de Science, espécie de hiato entre o passado e o futuro. O Manguebeat tornou-se conhecido mundialmente e ele, o malungo, como ele gostava de ser chamado, distraído passeando pela sua Manguetown parecia um personagem picaresco de Mário de Andrade, de Manuel Antônio de Almeida, de Ariano Suassuna (!), Molière, Cervantes, Gil Vicente. Todos sabiam que só existe uma maneira de demonstrar felicidade repentina: rir!
                   De certa forma Chico usou o humor e a mordacidade para contestar a miséria do cotidiano dos pobres no Recife.Fez da sua cidade um entre-lugar. Exibiu a problemática das injustiças sociais  e do progresso tecnológico e multicultural num Brasil que estava de pernas para o ar como num Grand Guinol. Foi de si mesma que a sociedade recifense riu.De sua identificação com as mazelas do malungo.Daí uma purificação através do ídolo, dessa espécie de super-herói questionável em que se transformou Chico Science. O cotidiano foi assim redimensionado com a consciência prévia de que problemas não morrem com belas palavras. Era preciso ter bala na arma e coragem de atirar. O Movimento Mangue foi como um sudário a expor certas coisas que, como num jogo de cabra-cega, a sociedade prefere ocultar sob o tapete e se deixar guiar por uma realidade manipulada por oráculos enlouquecidos, como a televisão, por exemplo.
               Science representou o papel de “malungo” (africanismo que significa “companheiro”) esperto tentando vender a idéia de que a tristeza é para a sabedoria o mesmo que o riso é para a ignorância.O falar recifense em seus erros e acertos, o exagero, a utilização das tradições na demolição das fronteiras culturais, a brincadeira e a crítica foram suas oferendas a esta deusa tirânica que é a sociedade brasileira, ainda tão ligada a um cotidiano determinista onde o poeta buscou justificar-se enquanto outridade, existindo em sua diferença num labirinto de referências onde o horrível foi tragado pelo hilariante, e esta hilaridade construiu e desconstruiu o Recife numa obra de arte multicultural.
                 Sonhos não vencem guerras. O Movimento Mangue venceu porque foi à luta, impôs-se enquanto linguagem, como fenômeno que hoje serve de referência, de espelho, de um determinado modo de viver em Recife. Algumas sementes das árvores dos manguezais podem flutuar no mar ou no rio por muito tempo e florescer noutro lugar, entendemos que a semente desta Cena ainda produzirá muitos brotos.


Chico Science encontra Josué de Castro:

Recife sob o signo do homem-caranguejo

                                                                                                           


Citado nas letras de Science e em depoimentos que o poeta registrou na mídia, o cientista e professor Josué de Castro, recifense morto em 1973, é o autor do romance Homens e Caranguejos (1966) o qual foi lido por Chico com avidez enquanto formulava o conceito mangue. Este romance descreve o cotidiano de uma comunidade erguida num manguezal do bairro de Afogados, Recife na primeira metade do século XX. São pescadores de caranguejos, pessoas que tiram do mangue seu sustento. Suas casas construídas com o massapé, madeira e palha do local e sua principal alimentação os caranguejos, até as crianças eram criadas tomando mingau feito com o caldo (o “leite da lama”) destes bichos que “fervilhavam” nas margens do Capibaribe.

Seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos. Seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homem e meio bichos [...] parados como os caranguejos na beira da água ou caminhando para trás como caminham os caranguejos [...] habitantes dos mangues [...] dificilmente conseguiriam sair do ciclo do caranguejo, a não ser soltando para a morte e, assim, afundando-se para sempre dentro da lama [...] essa fossa pantanosa onde aguarda o Recife (CASTRO: 2001, p. 10-11).

A visão de Josué é ao mesmo tempo perturbadora e dinâmica. Expõe a fome de um povo que ao mesmo tempo brinca com o bumba-meu-boi, o pastoril, o maracatu e outros folguedos (p. 113) planejam uma revolução que tome a cidade das mãos dos ricos poderosos e dos políticos, mostrados como hipócritas e ladrões. O mangue aparece antropomorfizado:

agarrando-se com unhas e dentes (...) gamas fincadas profundamente no lado [...] cabeleira verde [...] braços numa amorosa promiscuidade [...] luta constante com o mar como se fossem trapos de ocupação” (ibid. p. 12).

Este clima de mangue vivo onde o vegetal, mineral e animal se confundem influenciou profundamente as concepções de Chico e Fred 04. O próprio manifesto “Caranguejos com cérebro” é calcado neste tema, este ninho de lama que Josué comenta: “onde brota o maravilhoso ciclo do caranguejo” e onde

O bumba-meu-boi era apenas um pesadelo de faminto sonhando com boi-fantasma, que cresce diante dos seus olhos compridos, mas cujas carnes desaparecem de baixo das apalpeladas das suas mãos... (ibid. p. 21).

A representação do Recife nesta obra influência de João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardozo e Ascenso Ferreira. Ele descreve o cotidiano daqueles que migraram de sertão e da zona da mata para o Recife e aqui se misturaram aos miseráveis da metrópole.
São balaieiros carregando frutas e verduras, que vivem entre mosquitos e urubus, rostos magros, morenos, olhos negros e profundos, na Comunidade de Aldeia Teimosa onde alguns sonham com a revolução do proletariado. Lembremo-nos que quase 40 anos depois, em 2003, 54,9% da população do Recife ainda morava em favelas segundo o Jornal do Commercio (GÓIS, Ancelmo.“Recife-Favela”, Jornal do Commercio.Cad. 1, pág. 2, 29.09.03) –. Segundo pesquisa do Ibam / Banco Mundial.
Corrosiva e às vezes sarcástica, a ironia do autor mistura-se ao lirismo de um final onde o menino João Paulo integra-se repentinamente à luta armada e desaparece no meio do combate à beira do mangue, às margens do Capibaribe, em seu desejo de libertação no meio daquele cheiro frio de lama podre, de terra morta em decomposição. E o narrador conclui:

 São heróis de um mundo à parte. São membros de uma mesma família, de uma mesma nação, de uma mesma classe: a dos heróis do mangue (ibid. p. 43).

A palavra “nação” e este senso de comunidade com espírito revolucionário deve ter incendiado as idéias de Chico e seu ideal de representação do Recife. Muitos pescadores de caranguejos no romance cobriam-se de lama com a finalidade de fugir dos mosquitos. No clipe da música “Maracatu atômico” Chico e a Nação Zumbi aparecem cobertos de lama, como numa alusão aos pescadores do mangue. Ouso de neologismos também serviria de inspiração a Science, por exemplo: verbo “jiboiar”, ao se referir a capacidade da jibóia de engolir “um homem inteiro” e passar um mês digerindo-o (p. 61). Chico cria o verbo (neologismo) “urubuservar” na introdução de “Maracatu de tiro certeiro”, na parceria com Jorge du Peixe (CSNZ, 1994). Outro ponto em comum seria a zoomorfização: homens e bichos se confundem na narrativa de forma implacável. Science vai resgatar isto também em sua obra, só que forma menor naturalista e mais caricata. Os mocambos, descritos por Josué, aparecem também na lira scienciana como símbolo da moradia, do pobre no Recife.
Enquanto Josué opta por uma visão pessimista, o trabalho de Science, é, de certa forma, quixotesco. Os monstros contra os quais investe suas armas são produtos tanto da realidade quanto da sua mente e na sua obra encontramos o ser metamorfoseado. Se os heróis de Josué são frustrados, os de Science celebram a vitória sígnica:

A façanha de ser prova: consiste não em triunfar realmente – é por isso que a vitória não importa no fundo -, mas em transformar a realidade em signos. Em signo de que os signos da linguagem são realmente conforme às próprias coisas [...] o poeta é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentes subterrâneos das coisas” (FOUCAULT: 2002, p. 64-67).

O mangueboy Chico e as personagens do lugar-mangue recriado por Josué parecem se articular num mesmo contexto de realidade mágica e desgraçada. Ambos tateiam em busca de saída e de fazer a linguagem romper seu parentesco com a realidade opressora e terminam criando uma alegoria, instaurando um pensamento novo. E assim surge uma reviravolta cultural na cidade do Recife, marca-se um estilo, uma época, um período, uma ruptura, uma descentralização, um deslocamento. Algo que rompesse estruturas arcaicas. Hoje analisamos o Mangue já com um certo distanciamento daquele período, mas é possível detectar onde deu-se a ruptura e quais as suas possibilidades. Vejamos o que Foucault argumentou sobre esta questão da divisão da cultura em períodos:

Pretende-se demarcar um período? Tem-se porém o direito de estabelecer, em dois pontos do tempo rupturas simétricas, para fazer aparecer entre elas um sistema contínuo e unitário? A partir de que, então, ele se constituiria e a partir de que, em seguida, se desvaneceria e se deslocaria? [...] que quer dizer inaugurar um pensamento novo? [...] uma cultura deixa de pensar  como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo [...] o problema que se formula é o das relações do pensamento com a cultura. (ibid., p. 69).

A ruptura que podemos observar nos estudos de Josué aponta para a desigualdade econômica como responsável pelo fenômeno social da fome numa época em que se acreditava que ela resultava do acelerado crescimento populacional desproporcional ao aumento dos recursos naturais, já Science e outros poetas do Manguebeat lutavam por romper com os feudos culturais que estagnavam Recife com seus discursos reacionários. Josué foi deportado pela ditadura nos anos 60, mas seu legado serviu de base para os mangueboys que sedimentaram sua luta e unindo estas idéias à música e à poesia no início dos anos 90. Letras como “Rios, pontes e overdrives”, “Antene-se”, “Da lama ao caos”, “Risoflora”, “Manguetown”, “Corpo de lama” e outras são exemplos do que estamos afirmando. Elas se aproximariam o que Foucault questionou como sendo “ruptura”, inauguraram o “pensamento novo” e buscaram novas relações entre o pensamento e a cultura.
A cultura popular foi sacudida pela nova Cena. O governo logo percebeu que seria conveniente apoiar os mangueboys. Inicia-se a fase das negociações. O antigo regime parece querer cooptar a nova revolução, mesmo olhando-a meio de banda. E Science inicia negociações com Ariano Suassuna, dialoga com Alceu Valença. Nos moldes do antropólogo Renato Ortiz a tradição e modernidade mesclam-se no Brasil, país onde a ruptura nunca se realiza plenamente nem deixa de ser tentada, como aconteceu nos anos 60 com a Tropicália e o Cinema Novo.

A movimentação política, mesmo quando identificada como populista, impregnava o ar, impedindo que os atores sociais percebessem que sob os seus pés se construía uma tradição moderna (ORTIZ: 2001, P. 110).

Como ressaltamos antes, o Mangue, em plenos anos 90, ainda ressaltava ícones como cangaceiros e reforçava mitos como o do nordestino ser um tipo desengonçado, mas não é uma poesia, nem uma música, que expresse conformismo, ou que demonstre uma unidimensionalidade das consciências. É uma postura construtiva que surge no auge do poder da indústria cultural sobre as massas, o final do século XX. Fala de conflitos e exige a luta dos desfavorecidos numa sociedade que pode ser vista sob diversos ângulos. A ação é considerada na poesia do mangue como foco central na orientação dos comportamentos, estimula-se a realização das vontades e a retomada do espaço público.

Uma posição mais extremada é certamente a de Adorno, quando descreve a sociedade de massa, como um espaço onde praticamente não existem mais conflitos, uma vez, que a luta de classes deixa de existir e a própria possibilidade de alienação se torna impossível. Sociedade marcada pela unidimensionalidade das consciências, o que reforça a integração da ordem social e elimina a expressão dos antagonismos (ibid. p. 150).

O Mangue carrega consigo a idéia de libertação que não se vincula a uma classe específica, embora o universo poético centre-se nos pobres, mas na mente de todos. Propõe a transformação da própria concepção do que é cultura, justamente numa época de mudança de parâmetros na economia global com o fim da Guerra Fria.
Marcada pelos estigmas da contracultura a poesia de Science exibe o ridículo e o êxtase do ser e anda na corda bamba entre o racional e o irracional. Como entender essa discrepância? Minha tese é de que Science propôs a redefinição desses e outros conceitos. Sua arma, como Barthes tanto sugeriu como sendo a melhor para se revolucionar, foi a linguagem. E Chico usou a língua do povo do Recife. Como Josué foi buscar nas camadas de baixa renda da população da cidade o motivo da estagnação dessa metrópole-lama.




                                                          II

De algum modo, a representação do Recife uma obra de Science comprovou o primado do significante sobre o significado, da significação sobre a representação, da semiose sobre a mimese. Não se buscava a realidade e sim autonomia da língua em relação à realidade, o signo em fragmentada relação com o seu objeto, como se o referente não existisse fora da linguagem e dependesse da interpretação. Detectamos função poética colocando em evidência o lado palpável dos signos e tornando evidente que o poeta selecionou e combinou de modo particular e especial as palavras para daí obter um ritmo, que lhe era intuitivo. Chico escutou muitos tipos de música e tinha aptidão nata para trabalhar a linguagem de forma musical. Por ter tido contato com comunidades de baixa renda como as de Peixinhos, Rio Doce, Ilha do Maruim e outras do Grande Recife, ele absorveu o linguajar, a sonoridade e aproveitou-se da psicodelia para ressaltar o inusitado das imagens. Recife perdia o peso do ser, se esvaziava e se enchia tornando-se diferente a cada verso como se existisse no mundo numa hora estranha onde ontem, hoje e amanhã se confundiam.
No trabalho poético com o signo lingüístico, o significante Recife é substituído às vezes por “Manguetown” como num rompimento de um contrato e a celebração do novo signo como meio de superar ou resolver uma dificuldade. A esperança é camuflada pelo gozo de ser expresso na exploração máxima da sonoridade das vogais, alongando-as e interpretando as palavras como se houvesse uma exclamação após cada uma delas. O senso de espetáculo e/ou festa parecem impregnar cada uma das composições. Um atrevido arrebatamento é posto em ação. O “real” da vida ou o que seria o “referencial” transformado em linguagem torna-se aventura festejada.
Ao comentar os textos de Barthes e Mallarmé, o professor Antoine Compagnon comenta algo que em muito se assemelha com o nosso estudo sobre Science:

Barthes cita, em nota, Mallarmé para justificar essa exclusão da referência e esse primado da linguagem, porque é exatamente a linguagem, tornado-se, por sua vez, a protagonista dessa festa um pouco misteriosa, que se substitui ao real, como se fosse necessário, ainda assim, um real. E na verdade, salvo se conduzirmos toda a linguagem a onomatopéias, em que sentido ela pode copiar? Tudo que a linguagem pode imitar é a linguagem: isso parece evidente (COMPAGNON: 2001, p. 101).

Poesia e realidade transformadas em produtos comerciais onde o que parecia imitado não eram os habitantes do Recife, mas a ação deles, o modo como eles se expressam. Muito mais o artefato sonoro-poético produzido pelo “imitador” (Chico) do que o objeto imitado, o homem pobre e a cidade estigmatizada. No arranjo que o poeta faz não importava mais se sua interpretação era fruto do engajamento ou da alienação. A natureza, o lugar, a poesia, a cultura e a ideologia parecem de tal forma estar amalgamados, que, olhar o que aconteceu no Recife de Chico Science faz-nos muito mais pensar no que poderia ter acontecido. O absurdo poeta-caranguejo era persuasivo ao desconstruir antigos conceitos de representação da cidade ou da “terra dos altos coqueiros / de beleza soberba estendal”, da “nova Roma, de bravos guerreiros / Pernambuco / imortal, imortal” como está na letra do livro de Pernambuco, cujo autor é Oscar Brandão da Rocha.
Por isso não abordamos Science com uma aparelhagem estruturalista: optamos pelos estudos culturais, por analisar a postura do poeta diante de um contexto que lhe era adverso e como ele reverteu esta situação através da blague, do humor afrociberdélico numa particular interpretação daquele momento, o final do segundo milênio, os anos 90 na Manguetown, provocando nova ilusão ao substituir a realidade pela sua representação.
São paradoxais as relações da poesia de Chico com o Recife: não podem ser definidas nem como miméticas nem como antimiméticas. A cidade recriada parecia com a anterior depois de teatral metamorfose. Seria impossível, neste caso, eliminar totalmente a referência, mas a urbe aparece como alucinação, ficção, ilusão poética como num show de mágica: “sumiu”, “voltou” mas não é a mesma: é um truque. Havia relações, agenciamentos, mas era o Recife como se fosse outra cidade e o habitante transforma-se em turista acidental ou espectador de si mesmo, ouvinte da própria história que parecia só existir por estar sendo recontada daquele modo. Eis o valor heurístico, o valor da arte de inventar: a representação scienciana surge como ápice de um século que em Recife foi marcado pela procura da própria identidade (Regionalismo e o Movimento Armorial do paraibano Suassuna que se desenvolveu nesta metrópole), um projeto controverso e cheio de perspectivas numa era onde a cibernética popularizou-se.

Com a digitalização e seus efeitos de onipresença e onividência (graças à ubiqüidade do sujeito nas redes telemáticas), ser e estar não são verbos que possam mais se colar semanticamente, (como na língua inglesa). A identidade desenraiza-se, libera-se de suas contenções físicas localizáveis num espaço determinado e aceita possibilidades inéditas de heterogeneização ou mesmo de fragmentação [...] a consciência do sujeito assim como as relações intersubjetivas não podem deixar de ser afetadas [...]Os corpos tornam-se vulneráveis à irradiação viral dos signos, e as identidades podem ser produzidas como um bem de mercado, ou então como qualquer figuração delirante na realidade sintética do ciberespaço (SODRÉ, 1996. p. 178-179).

E a “figuração delirante” na obra de Chico envolve as tradições e a literatura locais misturando-as, como viemos afirmando, com a tecnologia nos anos 90, que atingira as massas de forma avassaladora e a internet que ajudou a estabelecer novos parâmetros na mídia. Os mangueboys puderam contar já com estes recursos que se encaixavam com a proposta da cidade reinventada, agora virtual e pronta para ser despachada para qualquer lugar do mundo onde houvesse acesso à rede. Colaram o que viam com o que ouviram dizer:

Este corpo de lama que tu vê

é apenas a imagem que sone
este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que é tu
[...] eu caminho como aquele grupo de caranguejos
ouvindo, a música dos trovões
[...] há muitos meninos correndo em mangues distantes
[...] essa rua de longe que tu vê
esse mangue de longe que tu vê
é apenas a imagem que é tu
(CSNZ, 1996)

Nesta letra de Science chamada “Corpo de lama”, além da liberdade gramatical a liberdade de interpretar os signos como se fossem almas ou até ritmos musicais (a imagem que “soul” – “alma” em inglês e um “ritmo” de música). A “música dos trovões”, que os caranguejos escutam é uma referência ao romance de Josué de Castro Homens e Caranguejos, no qual, aproveitando-se que os caranguejos ficavam desnorteados em dia de tempestade com trovões, os homens forjavam barulhos para simular esta situação e capturá-los assim. O “Corpo de lama” também é referência aos pescadores do mangue, metonímia de determinada população miserável da Manguetown que agora parece sem o cheiro na mídia. Com o mangue e seu aparato tecnológico a cibernética se instala na cultura recifense definitivamente: Recife caiu na rede, comunhão entre homem e máquina. A transmissão de um indivíduo de um lugar para o outro deixa de ser uma hipótese.

Tanto a proteína (humana) como o metal (máquina) seriam transcendidos pela realidade de informação, suscetível de transmissão eletrônica [...] a mutação se daria pelo acoplamento do corpo humano a dispositivos maquinais [...] montagem de personalidades combináveis [...] ritmo [...] a identidade viabiliza-se como um jogo de signos realizados por imagens, que circulam aceleradamente, de forma contagiante, à maneira de um processo viral [...] simulacros que se incorporam aos sujeitos, criando outro tipo de relação com o mundo físico. (SODRÉ, 1996, p. 173-174).

O “contágio”, ao qual se refere Sodré, era justamente a proposta do mangue. Do mesmo modo que os habitantes/consumidores da Manguetown se transformaram em caranguejos ao beber cerveja feita com água do mangue, com baba de caranguejo, transformando-se em seres mutantes. A contaminação sígnica:

O indivíduo atribui-se o nome que deseja e pode neste mesmo ato inventar e viver uma identidade alternativa [...] superação da realidade corporal primitiva [...] que no fundo seria pura desordem e falta de razão [...] multifacetado, o sujeito, que se define como suporte permanente de traços acidentais, depara com a sedução imagística e assiste à relativização da permanência pela mobilidade veloz das máscaras, das variadas posições de indivíduos-atos, inerentes à pessoa [...] é tentador buscar na ficção científica inspirações utópicas [...] de mutações psíquicas e corporais” (SODRÉ, 1996. P. 175-177).




Mauro Mota

Mauro Ramos da Mota e Albuquerque nasceu em 1911, no Recife, com raízes em Nazaré da Mata (norte da região canavieira de PE). Em 1970, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Viveu muito tempo nas feiras, nas ruas com gente do povo, com os senhores de engenho da região. (a vida regulando-se pela safra da cana, festas, procissões e feriados cívicos). Estudou no Recife (Colégio Salesiano). Formou-se em Direito (1937), mas dedicou-se ao jornalismo. Estreou em livro em 1952 com Elegias, temática do autor. Com esse livro conquistou o “Prêmio Olavo Bilac” da Academia Brasileira de Letras. Foi prestigiado pela crítica como grande poeta, principalmente como lírico de grande potencial
verbal e extraordinária imagística. Mauro produziu também em prosa crônica, folclore, estudos de sociologia regional e geografia sempre usando um discurso claro, nítido e elegante apesar do apóio científico. Mauro conseguiu misturar poesia e ciência sem comprometer a exposição objetiva. Foi professor, Diretor do Diário de Pernambuco, Diretor-Executivo do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (1956/1970). Foi membro da Academia Brasileira de
Letras e da Academia Pernambucana de Letras. Tem poemas traduzidos em inglês, francês, italianoe castelhano.
As Elegias de Mota denunciam o melhor do poeta. Ele se descobre pela dor e, atravésdela, revela sua riqueza melódica. Usou da forma clássica e do ritmo interior. O seu canto de desalento concentrou-se em imagens e ritmos de um grande poeta. “Dor a sua que não roda como o moinho sentimental de Casimiro de Abreu, mas que se expande em música de um Schumann, no mais fungente recordar do amor desfeito”. (José Lins do Rego in Diário de Pernambuco,
Recife, 29 de janeiro de 1953).
As lembranças são muitas. Coisas e pessoas cercam o poeta e a relação dele com elas nunca é neutra. A poesia possibilitou ao poeta Mauro Mota o reviver em outra dimensão, um tempo e um espaço. O que aconteceu é chamado pelo poeta. Na prosa as coisas fluem de modo
mais trivial, mas o senso poético o domina. Mota é o poeta de cotidianos suburbanos, o tradicionalista que se soma ao regionalista.
Cantou a mulher amada que, praticamente, viu morrer em seus braços, bela e jovem, em elegias clássicas. Cantou as tecelãs humildes, subúrbios humildes, cotidianos brasileiramente humildes.
Identificou-se profundamente com as raízes mais raízes da vida de sua cidade, de sua província, de sua região, de seu país. Isto tudo em palavras poéticas distantes das convencionais ou poemáticas.
Os doces, pacatos, tranqüilos subúrbios de cidades provincianas, mas especificamente do Recife: “Recife rica de subúrbios franciscanamente simples e naturais,” “brasileiras casas de porta-e-janela ou de pequenos chalés”. Os subúrbios revividos com melancolia:


Rua Real da Torre
Ó Rua Real da torre,
que mistérios ocultais
nos chalés mal-assombrados
que aos fantasmas alugais?
Nos cemitérios e sítios?
nas casas de telha vã?
nos crepúsculos pousados
nas copas dos flamboyants?
Um cheiro de moça noiva
chega dos velhso jardins.
ressurgem tranças com ramos
de resedás e jasmins.
Os vizinhos nas calçadas
logo depois do jantar.
Cadeiras de lona se abrem
para as almas conversar.

O passado é ativado, iluminado pelo sol da atenção e se faz presente na poesia.
A casa (espaço) para Mauro Mota é o núcleo central das recordações, ponto de partida para uma poética de adesão ao espaço e ao tempo. Pela recordação o eu-poético toda o que há de mais profundo na casa. Esta é o “abrigo”, “proteção”, “ninho de lembranças”, “integração dos pensamentos e sonhos”: continuação do colo materno, algo vivo no poeta:

Mudança
“Não ficaram na mudança nem o pé de sabugueiro
e o cheiro dos cajás, os passos da mãe no corredor,
a noite, o medo do papa-figo, as sombras na parede.
A casa inverte a missão domiciliar, sai da rua.
A casa agora mora no antigo habitante.”
Ao falar da casa o poeta a reconstrói intelectualmente e emocionalmente. Ele a refaz. Não é a mesma em que viveu, mas a que sente. A casa, as vozes, os chalés...

A casa
“Debruço-me de fora
onde havia a janela.
Nuvem ou caixa extinta?
Lá estou como eu era.
Que pássaro imigrante
pousa na cumeeira?
Que neblina umedece
as paredes aéreas?
Quem me chama ou me leva
quando o espaço transponho?
só o verde das heras
sobre as vozes e o sonho.”
Os Inquilinos
“Nos quartos da casa
moram os fantasmas
dos avós
inquilinos, mais
que a gente, têm medo
de ficar sós.”
A gaveta
“Torço a chave.
Geme
a gaveta.
Remos na fotografia
o passeio de canoa
no domingo fluvial.
O soneto do estudante,
a certidão, a receita,
o anel sem dedo.
Luciana na caixa verde,
batem nos dentes de leite
os bombons pelo Natal.

O livro dos endereços
(Para onde, agora?)
O telegrama chama.
Torço a chave.
Geme a gaveta.
(O aperto de mão da luva sem mão)”
Lembrança
Tua lembrança chega esta noite
depois de percorrer longos caminhos do espaço
rompidos pelas músicas da distância.
Sinto a alma toda aberta, pura, branca, horizontal,
tua lembrança pousando
suave e leve
como o azul cai do céu na superfície estática das águas.
Como uma sombra de criança num jardim.
Como uma réstia de luar desce da clarabóia e pousa no rosto pálido de uma moça doente.
Ceia
“Revemos a família antiga em volta
desses cacos de louça do quintal.”
Cheiros
“O cheiro dos jasmins, do cajueiro, da alfazema,
da cozinha (café torrado, charque assada)
o cheiro da Lindalva,
(banho de chuveiro, sabonete)
do peixe frito na esquina do Colégio,
da loção do cabeleireiro José Mateus,
do extrato no lenço do almofadinha Jonas Garcia”.
A casa, os sobrados, os chalés, as ruas são relicários do passado que abrigam e conservam o que o tempo destruiu. Mesmo assim, esses espaços preservam sua fidelidade ao vivido, morada dos fantasmas, dos que se foram: Os jardins e o cheiro de moça noiva de outrora...
Um transeunte noturno fechando a janela do oitão...

Rua morta
“Longa rua distante de subúrbio,
velha e comprida rua não violada pelos prefeitos,
passo sobre ti suavemente neste fim de tarde de domingo.
Sinto-te o coração pulando oculto sob as areias.
O sangue circula na copa imensa dos flamboyants.
Tropeço nos passos perdidos há muito nestes areais,
Onde as pedras não vieram ainda sepultá-los.
Passos de homens que jamais voltarão.
Ó velhos chalés de 1830,
eterniza-se entre as paredes o eco das vozes de invisíveis habitantes.
Mãos de sombras femininas abrem de leve janelas do oitão.
Há um cheiro de jasmins e resedás
que não vem dos jardins abandonados,
mas dos cabelos dos fantasmas das moças de outrora”.

É na casa extinta que o poeta encontra com ele mesmo. Neste espaço onde ela existiu, ele se coloca à janela não mais existente. Se tudo foi demolido, resta ao poeta olhar de fora para dentro. E o poeta se revê na casa:

“Debruço-me de fora
onde havia janela
nuvem ou casa extinta?
Lá estou como eu era.”

A casa destruída... O poeta e as lembranças, o receptáculo de imagens e de tempo. A casa muitas vezes “personificada” pelo poeta.
O poeta, pela poesia, refaz a casa dos avós num diálogo com ele mesmo. A voz da saudade. A voz que ativa um momento histórico e também social, voz cheia de emoção:

Doçura Nazarena
“Vinha dos bangüês a doçura dos ares,
pregões de cocada, alfenim, caramelo.
Doçura de mel de engenho com farinha,
das aulas de catecismo, do canto das moças no coro
das novenas, da flauta de Targino.


Doçura do piano de Celina, tocando valsas vienenses e
valsas de Alfredo Gama,
das tardes de domingo.
Doçura do Xarope Peitoral Nazareno,
“infalível na cura das tosses rebeldes
e da tuberculose pulmonar.”


Soneto muito Passadista

Na Ponte da Madalena
Que lembrança ficou para mim do sobrado
da madalena? (vai passando o rio atrás)
Na frente, o jasmineiro e, no oitão, carregado,
o pé de fruta-pão e de sombras cordiais.
Na cumeeira Luís de Camões instalado.
O avô de fraque, a avó entre os jacarandás
da sala, na varanda, ou querendo, ao seu lado o neto,
de qualquer peraltice capaz.
Desta inclusive de mexer nas coisas mortas
as valsas de subúrbio, o oratório, a novena.
Que lembrança ficou do sobrado onde havia
Teresa? Neco, prenda o cachorro e abre as portas,
porque me chamam, nesta noite, à Madalena,
o jasmineiro em flor e o piano da tia.

Os sobrados recifenses, - paisagem que encontrou os viajantes e artistas – o cais, o banho no Capibaribe (naquele tempo, o rio não era depósito de detritos!), a água transparente do Capibaribe. O poeta funde o momento atual com o distante. Relembra as pessoas e os objetos (móveis) familiares que por sua vez parecem ter alma, vida:

Penteado
Vertical a asa ereta aberta em leque,
era uma grande borboleta preta
presa, a marrafa no cocó da avó.


O poeta olha as coisas com olhar desinteressado e as coisas respondem preenchendo a imaginação do poeta. O mundo dele parece começar junto das coisas. O mais simples objeto pode abrir para o poeta um mundo: a escova, a parta, o vidro de dentifrício, o espelho (“Quem bate do outro lado / dessa porta? Quem chama? / Que substância mora / no cristal e no estanho?”), os sapatos (“Pendentes os dois cordéis / como dois nervos expostos / que se enxertam nos meus pés, / não os levo, eles me levam (...) são barcos nas poças d’água, / esquifes dos pés defuntos...”), o guarda-chuva, a cesta, os balões, enfim as palavras- dispostas num microcosmo – sugerem mais do que descrevem.

“Cadeiras e sofás, consolo e jarra:
camas e bules, redes e bacias, o guarda-louça,
tetéias, mesa, aparador, fruteira,
a cesta de costura, o papagaio,
a cafeteira, o cromo da parede,
o jogo de gamão, as urupemas,
o álbum, o espelho, o candeeiro belga.”

Enumeração, palavras seqüenciadas que ganham sentido unidas à intenção do poeta.
São um convite à imaginação, ao sonho, à viagem a um passado que poderia também ser o passado do leitor. O poeta coloca “cadeiras” e quanta coisa esse objeto evoca “sinhazinhas conversando, senhores gordos discutindo a safra da cana-de-açúcar e a política do presidente da província...” Restos de corpos (que ali sentaram) desaparecidos. Lembranças de escravas a limparem essas cadeiras, ou outros móveis. A cadeira da avó, a cadeira das visitas... (quantas associações podemos fazer!) A vida provinciana, uma história, uma época, o dia-a-dia que
o mundo da cana-de-açúcar pôde proporcionar.
Os objetos do passado não estão mortos, são fontes de evocações, apoderam-se do espírito do poeta.
A memória, a saudade também aparece num jogo contrastante entre a voz fria do leiloeiro e a voz do poeta entre parênteses no poema LEILÃO.
“– Quanto dão? Quando dão?
– Quem dá mais?, grita mais o leiloeiro.
– Esta bengala de castão de ouro!
(Onde anda sem levá-la o dono antigo?)
– Esta arca colonial!
(Falam dedicatórias de retratos,  falam cartas de amor, a voz trancada).
– Esta mobília de jacarandá!
(As visitas na sala, o pai, a mãe, a irmã, a avó cochila no sofá.)

– Este faqueiro de prata!
(Cruzados os talheres, as mãos cruzadas.)
– Esta cômoda do século XIX!
(Soluçam as gavetas; dentro delas, cheiro de roupa branca e de alecrim).
– Esta louça azul de Macau!
(A fumaça (da sopa?) na terrina.
Na borda (asa quebrada) desta xícara
os vestígios dos lábios da menina.
Quem tira as rosas que a moça bota
nos jarros de opaline do consolo?
E a moça fresca dentro deste espelho
do toucador do quarto de dormir?
– Quem dá mais? Grita mais o leiloeiro.
Bate o martelo, bate aqui, dói longe.

O leiloeiro faz parte do mundo concreto, grita, é vendido. O poeta fala baixo, evoca um espaço que existiu... O leiloeiro está preocupado só com o valor material; o poeta com o valor simbólico dos objetos e com as pessoas, antigos donos. A indiferença do leiloeiro contrasta com a dor do poeta e esse passado só é vencedor porque o poeta o eternizou em poema. Para Mota as coisas sentem (tristeza, solidão, alegria, compaixão, raiva, inquietude): “A fonte
canta”, “o vento grita”, “O cacto chora”, “o candelabro faz acrobacias”, “a trepadeira vem à janela, pensa.”
O poeta questiona ainda o fim do homem, seu futuro caminho, o para onde do ser e das coisas:

O galo e o catavento
“(...) O cata-vento gira, e o galo mudo, esculpido em folha, só no aéreo
poleiro, também gira, gira, gira.
Ventos catados pelo cata-vento
tentam levá-lo. O galo, todavia,
não vai. (Come as rações da ventania).
Estica, às vezes, o pescoço de aço
– para onde? Cego e preso, pelo espaço
O que procura?”
“O livro dos endereços
Para onde agora?” (A gaveta)
“Afinal, para onde fui
o dia nos levaria?” (Litania do Amanhecer)


“Adeus, meus amigos, parto
sem saber para que porto.” (A partida)
O poeta em “Diálogo com Carlos Pena Filho” conversa com o morto num tom quase prosaico. A morte é vista por Mauro Mota sempre de forma diferente:
“– Carlos, foste há um ano?
– Nem me lembre!
Nesse julho de chuva não me fui.
Estou. Meu calendário, é de setembro
da mesa do “Savoy”: Caio, Zé, Rui.
(...)
– Carlos, de que mais?
– Da lagoa do carro
– E o sangue e a tua
ida (para onde?) que hoje um ano faz?
– O remo é azul, azul é o passaporte
Vejo-me. Hoje me vi. Navego. Pára
a canoa no Cais de Santa - Rita.
– Quem morre no Recife engana a morte.
Se criei, no azul, os meus azuis, foi para
esta cidade que me ressuscita.”
O poeta conversa com o morto, rejeita a idéia de obedecer a convenções ante a morte (choro, rezas, velas...)
Das coisas simples o poeta traz um passado feliz:
Doce, Doçura
Cana cana canavial engenho
Cabaço de caldo, cabaço de mulata.
A aula de Dona Alice,
– Mel, plural meles
– Eu melo, tu melas, ela mela.
A coleguinha Marta Melo,
melado de tinta, melado de giz,
cavalo melado, mel com farinha,
melífluo, melifluidade.


Diálogo das Grandezas do Brasil: A galinha precursora da química industrial na colônia:
“A qual acaso voando com os pés cheios de barro úmido se pôs sobre uma forma cheia de açúcar, e naquela parte onde ficou estampada a pegada se fez todo o círculo branco donde se veio a entardecer o segredo e virtude que tinha o barro para embranquecer, e se pôs em uso.”
(...)
A avó, de noite, Salve Rainha:
Bendito o fruto do vosso ventre, ó clemente, ó piedosa, ó doce”...
Doce docíssima dulcíssima Dulce.
Rolete de cana caiana na festa da igreja e na estação do trem tabuleiro de alfenim (...)
castanha de caju confeitada (...) pão doce da padaria de Seu Odilon, os bombons da venda de Toinho Vieira.
Doce doçura, longe doce.

Toda chave da poética de Mauro Mota parece ser o TEMPO: A água, a chuva, o rio, o tempo na farmácia. Tempo passagem que ele aceita naturalmente, raros são os momentos de desespero.

Calendário
Hoje será ontem
amanhã e amanhã
menos seremos.
Tempo da Farmácia
As cores nos boiões, calomelanos,
o jacaré das rolhas, elixires,
os chás, o peixe da “Emulsão de Scott”,
dietas, língua de fora, Chernoviz,
o xarope da tosse, a queda, o galo,
o braço na tipóia, a camomila,
a letra do Doutor, frascos e rótulos,
o medo de injeções e bisturis.
O banco das conversas, as pastilhas
de malva e de hortelã, o mel de abelha,
a cobra na garrafa, o almofariz.

O termômetro, a febre dos meninos,
o tempo sem remédio na farmácia
as doenças da infância, a cicatriz.

O tempo foge e o poeta gostaria de vê-lo eternizado. Nele estão os amigos, a amada morta, a família:

“O piano do sobrado de azulejo
e a moça tocando a valsa do mês de maio,
a mãe, a esposa, as rosas
na jarra azul abrindo
os ponteiros
como uma pinça
extraindo
as horas felizes do relógio da sala,
não se foram sós, foram levando a tua vida fugitiva”.
A chuva, a água, o rio sugerem a passagem do tempo. A visão do rio nas cheias carregando baronesas e bichos mortos. Como ser poeta no Recife sem falar no rio? (Bandeira, Joaquim Cardozo, João Cabral).

Chuva de Vento
“(...)
(As biqueiras da infância, as lavadeiras
correm, tiram as roupas do varal,
relinchos do cavalo na campina,
tangerinas e banhos no quintal,
potes gorgolejando, tanajuras,
os gansos, a lagoa, o milharal).
De onde vem essa
chuva trazida
na ventania?
Que rosas fez abrir?
Que cabelos molhou?
Estendo-lhe a mão: a chuva fria.”
Os elementos da natureza são simbólicos, testemunham o passado. O homem é um
eterno viajante, viajante até de si próprio (Itinerário).


O Companheiro
Quero deixar-me longe. Separar-me
de mim. Abandonar-me. Ser-me estranho.
Parto, mas, onde chego, me reencontro.
Despeço-me de novo e me acompanho.
A Viagem
Esse vaivém, essa
viagem, sem pousada,
que, apenas começa,
tem de ser terminada;
que, apenas termina,
continua por onde
o menino transita
do menino para o homem,
por onde o homem póstumo
em sua casa entra
cinzento. (Chega e volta
quando a Amada o afugenta.)
Itinerante
Vou em busca do ter-ido
Desapareço no espaço
Fico de novo perdido.
Procuro-me, e não me acho.


O Poeta do Social
Mauro Mota, ao falar das pessoas, mostrou simpatia por personagens à margem davida, os humildes:

A Construção
“(...)
Vem vindo José Maria,
o amarelinho de São Bento
do Uma, sem genealogia.
Vem montado no jumento
saiu da escola (não tinha livros nem fardamento.
Aprendeu a ler sozinho.)
Oh, que infância sem infância,
essa de José Maria!
(...)
Vem vindo José Maria
vem de São Bento do Uma,
vestido de roupa cáqui
e de botinas reiúnas.
Puxa ainda o seu jumento,
Remexe nos caçuás.
Carrega barro e madeira
para a construção que faz
com alicerces na poesia
dos desesperos rurais.”


Em louvor de uma estenodatilógrafa

No papel-lâmina, deslizam
estenógrafos sinais,
os semoventes bacilos
das doenças oficiais.
Corre o carro, gira o rolo,
as teclas batem, baquetas
de marimbas sobre a escala
das folhas tamanho ofício,
voz do Estado nas primeiras,
eco nas segundas vias,
da máquina saindo cheias
de cicatrizes e veias

Sangue no papel carbono
coagula-se nas cópias
das palavras esmagadas,
migrantes da fita nova.
Nos dedos, há a nostalgia
do piano e a contradição
ver, no teclado, a oficina
de frases frias e pão.

O protesto social vem carregado de emoção em A tecelã. É uma adolescente que partindo
para o trabalho deixa:

“Chorando na esteira”
seu “filho de mãe solteira”,
levando consigo a marmita,
“contendo a mesma ração
do meio de todo dia
a carne-seca e o feijão.”

E ao descrever o trabalho da operária, assemelha-o ao próprio trabalho:
“os fios dos teus cabelos
entrelaças nesses fios
e outros fios dolorosos
dos nervos de fibra longa
(...)
A multidão dos tecidos
Exige-te esse tributo.
Para te nem sobra ao menos
Um pano preto de luto.”

Os animais nos poemas de Mauro Mota não aparecem por acaso. Eles refletem o universo infantil do poeta: (O pássaro por exemplo é visto como o animal que elabora seu próprio caminho, rompe as distâncias infinitas.

Elegia nº 6
Irrevelada angústia da última hora:
tantas frases de amor não foram ditas,
e silenciosamente foste embora
para as grandes distâncias infinitas.
Pássaro ou anjo que distante mora,
inquietas asas pelo céu agitas.
Voltas e pousas suavemente agora
dentro das minhas solidões aflitas.

Voltas, e eu fico em dúvida se pousas,
tal a ternura com que vens e a calma,
tão leve como o espírito das coisas.
Chegas, após vencer longos caminhos,
com a pureza que vive só na alma
das rosas virgens e dos passarinhos.
O boi de barro é também o boi real e “outro boi”, não apenas o que fica na estante. Ele é também um boi telúrico. Ele é também coisa e “as coisas só existem em função do olhar do homem exercido sobre elas”. O boi na simbologia medieval significa paciência, resignação, espírito de sacrifício.

É um boi verde vidrado
acuado em cima da estante.
É um boi desenterrado
telúrico e ruminante.
Quem o desenterrou foi
Abelardo em Tracunhaém
No barro da beira-rio
estava escondido o boi
desgarrado do rebanho.
Feito do gado anterior,
de estrume e de capim seco,
é este boi ruminador.
(...)
comeu do pasto e foi pasto,
misturou-se com o chão
para nascer no roçado,
oculto na plantação,
dando marradas no vento
da várzea pernambucana,
esse boi de chifres doces,
chifres de cana-caiana.
Toca o chocalho. O mugido
do boi de barro enche a sala
(Cresce a grama no tapete).
Pego no boi ele racha.

O poeta falou ainda do galo (O Galo e o Catavento), do touro (Slide Chileno), da potranca (A Potranca), da ovelha (Pastoral), das andorinhas (As Andorinhas), do cão (O cão); falou das frutas: jaca (Jaqueira), dos cajus (Natureza viva e morta de cajus).
A poética de Mauro Mota é de adesão a um tempo e a um espaço, canto de amor às suas raízes, sua primitividade que ele eterniza no poema.
“O cotidiano, o flagrante do dia-a-dia, o fragmento emotivo, colhidos por Mauro ganham força poética sem perda daquela simplicidade chão. O poeta desrealiza o trivial (aparente) para fazê-lo poesia”, diz Ivan Cavalcanti Proença.

O lápis sobre a mesa
estático.
O sono mineral,
o sonho oblongo.
O lápis sobre a mesa,
o olho no bico.
O papel branco,
a solidão.
O lápis sobre a mesa
estático,
o sonho oblongo
da mão.
(O Lápis)
Mauro Mota é um jeito de sentir “coisas, gente, bichos, paisagem, tempo”, enfim as lembranças de toda uma vida, conseqüência do mexer nas coisas mortas (os sobrados, as mobílias, os acontecimentos religiosos) como também fez Carlos Drummond de Andrade.
Mota pertenceu à juventude vanguardista. Em seus primeiros poemas observam-se versos livres, linguagem coloquial, linguajar e informação regionalistas e o poema piada. Prosaicos, refletem a cor local.
Publica suas Elegias em 1952. Talvez a morte da esposa tenha ativado sua veia lírica. Mesmo aqui continua a empregar o verso livre regionalista do modernismo de 22. dos 36 poemas que compõem as Elegias 16 são sonetos (influencia da geração de 45). O tema das Elegias é a morte e o passado.

Elegia nº 8
As mãos leves que amei. As mãos, beijei-as
nas alvas conchas e nos dedos finos,
nas unhas e nas transparentes veias.
Mãos, pássaros voando nos violinos.

Abertas sempre sobre os pequeninos,
mãos de gestos de amor e perdão cheias.
Mãos feitas para construir destinos
no céu, no mar, nas tépidas areias.
As mãos que amei em todos os instantes.
A carícia das mãos que iam colhê-las
eram as rosas que colhiam antes.
Se parecem dormir não as despertes.
As mãos que amei, que desespero vê-las
Cruzadas, frias, lânguidas, inertes!

Além das Elegias (1952), Mota publicou “Epitáfios” (59), “O galo e o catavento (62) e “Canto Ao Meio” (64). Em crônica: “Capitão de fandango (59). Estudos/ensaios: “Roteiro do Cariri” (52), “São José do Nordeste” (52), “Paisagem das secas” (58), “Geografia Literária”(61), “Imagem do Nordeste” (61) e “Estrela de Pedra: Delmiro Gouveia, civilizador de terras, águas e gentes” (61).
Mauro Mota faleceu no Recife a 22 de novembro de 1984.





Carlos Pena Filho

No ponto onde o mar se
extingue e as areias se levantam
cavaram seus alicerces
na surda sombra da terra
e levantaram seus muros.
Depois armaram seus flancos:
trinta bandeiras azuis
plantadas no litoral.
Hoje, serena flutua,
metade roubada ao mar,
metade à imaginação,
pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa.
(Carlos Pena Filho)
Carlos Souto Pena Filho nasceu no Recife, em 17 de maio de 1929. Fez seus primeiros estudos em Portugal; formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Recife. Em 1947, publicou seu primeiro poema, Marinha, no Diario de Pernambuco. Seu primeiro livro, Tempo de Busca, reunindo poemas e sonetos, data de 1952. Três anos depois, viria o segundo, A Vertigem Lúcida, premiado pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Pernambuco. Memórias do Boi Sarapião, um longo poema, foi publicado em forma de livro, em 1957, com projeto gráfico e desenhos de Aloísio Magalhães. Em 1959, lançou o Livro Geral, reunindo sua obra poética, com o qual ganhou o Prêmio de Poesia do Instituto Nacional do Livro (INL). Compositor, fez músicas em parceria com Capiba ( A Mesma Rosa Amarela; Claro Amor; Pobre Coração e Manhã de Tecelã) e com outros autores. Morreu em conseqüência de desastre de carro, no Bairro de São José, no Recife, em 1 de julho de 1960. Seu último poema, Soneto Oco, havia sido publicado, dias antes (26 de junho), no Jornal do Commercio.
 
 
Para Fazer um Soneto
 
Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere um instante ocasional
neste curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial
 
Ai, adote uma atitude avara
se você preferir a cor local
não use mais que o sol da sua cara
e um pedaço de fundo de quintal
 
Se não procure o cinza e esta vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse
antes, deixe levá-lo a correnteza
 
Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza
ponha tudo de lado e então comece.
 
 
Os poemas do seu Livro Geral, são os mais conhecidos do poeta. Na poesia urbana misturam-se desempenho poético e consciência estética (no início praticou um lirismo clássico). Quanto à sintaxe, ao léxico, fonética , o seu estilo sofreu poucas mudanças no curto intervalo de tempo em que escreveu sua obra. Em esparsos momentos notamos ruptura com formas tradicionais. É adepto do soneto. Alguns estudiosos apontam  a “multiplicidade diccional do autor” em sua relação à estética da Geração 45 e o “ponto de inflexão onde essa dicção se individualiza”, quando ele vai ao encontro das formas populares.
 





Giberto Freyre

"DONA SINHÁ E O FILHO PADRE"(NOVELA-1964) .

   Gilberto de Mello Freyre nasceu e morreu no Recife (1900-1987). Estudou na infância com franceses e ingleses e no Colégio Americano Batista, Recife. Formou- se em Ciências e Letras. Especializou- se em Ciências Políticas e Sociais nos EUA . Cursou Mestrado e Doutorado na Universidade  de Colúmbia. Em 1926 lança  com outros intelectuais nordestinos o "Manifesto Regionalista", onde defende os valores desta região e em 1933 ficou famoso com a publicação de "Casa Grande & Senzala ", uma análise da formação da formação do povo brasileiro(nordeste). Pelos títulos dos seus livros, temos uma idéia do caráter de sua obra:

"Guia prático, histórico e sentimental do Recife"(34),"Sobrados e mocambos"(36), "Nordeste"(37), "Conferências na Europa" (38), "Açúcar: algumas receitas de bolos e doces dos engenhos do nordeste" e "Olinda: 2º guia prático , histórico e sentimental da cidade brasileira" ilustrado por Manuel Bandeira (39), "Um engenheiro francês no Brasil" e " O mundo que o português criou" (40), "Região e tradição", ilust. Cícero Dias (41),"Ingleses"(42)
"Problemas brasileiros de antropologia"(43), "Perfil de Euclydes e outros perfis" (44) , "Sociologia: introdução ao estudo dos seus princípios"(45), "Interpretação do Brasil"(47)"Assombrações do Recife velho"(55) , ""Arte, ciência e trópico"(62), "O escravo nos  anúncios de jornais brasileiros do século XIX "(63), "Recife , sim! Recife, não!" (67), "Brasil, Brasis, Brasília" (68), "Nós e a Europa germânica"( 71), "Alhos e bugalhos" (78), "Heróis e vilões no romance brasileiro" (79), "Gilberto poeta: algumas confissões" e "Poesia reunida"(80), "Ferro  e civilizações"(88) e outros , dentre os quais  a novela "Dona Sinhá e o Filho Padre" de 1964.
   Gilberto queria chamá-la de seminovela . O livro ganhou nova edição em 2000 pela Ediouro Publicações do Rio de Janeiro(254 páginas) e foi selecionado pela Universidade de Pernambuco, para o exame de seleção de entrada(vestibular 2001). Ele se pergunta: "Afinal o que estou escrevendo é ensaio ou romance? Dissertação ou novela?"(Página 63). É o que chamamos metanarrativa (o narrador   questiona-se)
   Vejam: Novela é uma narrativa curta, próxima da realidade. Surgiu no início do século XX a antinovela , espécie de abstracionismo  literário, sem personagens ou trama. Na década de  setenta Clarice Lispector publicou "Água Viva", nesta linha. Já o que Gilberto propõe é algo semelhante ao cubismo (estilhaçar a realidade).
   Dickens, Thomas Mann, Tolstoi, Proust e Melville, são alguns escritores que inspiraram Freyre a misturar realidade histórica  com subjetivismo, como fez Defoe na Inglaterra do século XVIII com ""Jornada do Ano da Peste" e "História da Peste". Mas o mestre de Apipucos(local de sua residência-Recife)  apoia-se até em manuais técnicos e científicos da polícia moderna: "São técnicas que aplicadas à pesquisa histórica e sociológica, podem podem resultar em descobertas decisivas, à base de indícios que supram  os documentos completos". Daí os experimentos freyrianos como "Casa Grande & Senzala (de 1933) e  este "Dona Sinhá" , que de certa forma, analisa a formação de padres no nordeste.
   Já o ultra-realismo que Gilberto esboça ( ao modo de Raul Pompéia de "O Ateneu") ou o seu neo-naturalismo ( que é como Ariano Suassuna chama o regionalismo modernista do tipo praticado José Lins do Rego  de "Fogo Morto") nos fazem lembrar a  deliciosa prosa de Guimarães Rosa, que tentou como ninguém esboçar/reconstituir o caráter psicológico da personalidade brasileira.
   Se procurarmos o enredo de "Dona Sinhá e o Filho Padre" , ou buscarmos profundidade na criação dos seus personagens , nos depararemos com uma trama frágil, com personagens superficiais . Cubisticamente: os personagens são como "coisas/ pedaços" que formam um painel da formação da sociedade recifense na segunda metade do século passado.
   O tom de saudosa evocação do Largo de São José(Recife), dos carnavais, dos vultos históricos como Nabuco e Dom Vital é filtrada por uma ótica que beira a irreverência.
   O cheiro de munguzá , tradicional nas manhãs de Domingo daquela época, os pescadores, a praia, a Casa de Banhos sobre os arrecifes, um passeio  de jangada nas águas "tanto azuis, quantos verdes do litoral pernambucano", quando O Recife  visto do alto- mar parecia "pequeno como uma cidadezinha de presépio" (pág-89).
   Este livro é uma "aventura inovadora", uma "noveleta" , até certo ponto picaresca pelo tom "brincalhão " do narrador. Por exemplo ao falar das fezes dos franceses , diz serem das mais podres que apareceram no nordeste. Comenta o tamanho do pênis de Nabuco, descreve alguém caricaturando Dom Vital num desfile do carnaval de 89, trata o personagem principal (José Maria) como se fosse uma "Sinhazinha" ,  caricaturando- o até na hora da morte.
   Se fosse um cordel um bom título seria :"A estória de Dona Sinhá e seu Filho Padre e o Seu Amigo Afrancesado" .Cujos personagens são:

SINHÁ-  Uma "Iaiá loura "com "remoto sangue ameríndio" . Afrancesada, estudou no tradicional Colégio de São José, das irmãs Dorotéias , interna, no Recife. A sala dela lembra um teatro de arena  e o bairro onde mora , São José, parece "uma aldeia simples e modorrenta, cenário de teatro pobre". É mãe de José Maria, fez promessa que se ele escapasse de uma diarréia, quase fatal, tornaria- se padre. Da  tradicional família Wanderley.
JOSÉ MARIA- No colégio foi brilhante, menos nas "contas". Estudou para ser padre seguindo a promessa da mãe, morreu tísico antes de ordenar-se. Sentiu amor platônico por Paulo que o defendia na escola. Sem Paulo, J.M. teria se tornado um pederasta passivo, talvez. Foi muito mimado em casa pela mãe viúva, que o tinha como um santo: "um meninozinho- Deus" (p-98), e pelas negras que o paparicavam demais. Fascina- se quando ouve falar em Iemanjá.
INÁCIA- Negra de confiança da casa de Dona Sinhá.
JOÃO GASPAR- Irmão e Sinhá. Tenta fazer de José Maria , um macho , para que ele assuma a fazenda Olindeta, engenho da família, já que apesar de mulherengo, Gaspar não tem filhos.
O NARRADOR- Apesar  de não ter nome, é apenas "parente dos Wanderleys", (talvez seja o próprio Freyre) . Sua maneira de narrar é personalizada, coloca-se como participante dos acontecimentos , servindo de interlocutor em diversas partes da novela.
PAULO TAVARES- Médico . Nutriu uma espécie  de amor  por José Maria, durante a adolescência de ambos. Descobriu nele "uma graça diferente" das que encontrara nas "mulheres de várias  cores com quem tivera relações de cama ou de esteira , sofá ou rede" e que encontrou  também nas pinturas da igreja(baseada na arte grega, tornada mística pelo catolicismo- anjos e santos representados muito jovens.
TAVARES- Pai de Paulo . Criava pássaros e fazia gaiolas por lazer. Negociava com açúcar. Ficas triste quando o filho vai estudar medicina na Europa.
TEREZA- Mãe de Paulo . Já está viúva quando o filho volta formado.
DOM VITAL- Bispo capuchinho , politizado, enfrentou a maçonaria em Recife, não se curvou ao imperador, foi preso. Sua história é narradas em várias páginas do livro. O "amarelinho" do interior de Pernambuco, que sofreu num mosteiro na França e fez-se "macho". É comparado com José Maria, frutos da formação de padres.
LUZIA- negra verdureira no Recife.
CHICO CANÁRIO- Branco, marido de Luzia , prezava mais a liberdade do que o dinheiro. Vendia pássaros ao pai de Paulo . Tratava bem de animais e era requisitado para curá- los. Foi na casa dele que Paulo viu Joaquim Nabuco a primeira vez.
NABUCO- Abolicionista. Mesmo caso de Dom Vital. Não é personagem da novela, porém várias páginas lhe são dedicadas.
    O livro é dedicado a Jorge Amado e a Guimarães Rosa: "Novelistas  esplendidamente completos, cada uma a seu modo", sentencia  o mestre.
   O narrador diz que vai escrever a vida de um "santo ignorado"(p-24): "Eu estava  mergulhado numa aventura psíquica talvez única(...)uma espécie de sessão de espiritismo"(25). Entre uma canjica de São João, e o filhós do carnaval, o sarapatel, o peixe cozido bem temperado, a feijoada, o molho de pimenta, ficamos sabendo  que o namoro de Gilberto Freyre com a ficção não é platônico, porém a história é "senhora absoluta" de suas letras.
   José Maria é analisado pela ótica naturalista , onde sexo e perversão se confundem. Mas, para nosso "filho padre"  , Jesus "se  tornaria o seu Deus e o seu homem únicos. A Igreja tem dessas vitórias sobre a própria natureza." (32).
   O livro analisa a família Wanderley(fracassados, difamadores, admiradores de mulatas e detratores de mulatos, retardados no pensar em sua maior parte). O narrador desabafa: " Sou um indivíduo deformado pela preocupação sociológica com as coisas históricas" (38).
   "Apaixonar- se por uma senhora com idade de ser sua avó" , Oswald de Andrade é mencionado quando Paulo pede Dona Sinhá em casamento, ele vê nela traços do finado José Maria (ela recusa e pede que ele reze pelos dois).
   A narrativa rompe com a linearidade e ora vemos um José Maria criança(cometendo o "pecado africano. Feitiço. Mandinga" com a sua "tetéia"- a masturbação) , ora adolescente sentindo perigo  e "um toque de amor ou não sei o que de sexo"(63) no beijo na boca que levou de Paulo, ora  homem (jamais freqüentaria, como o tio Gaspar, a Rua do Fogo, local de prostitutas. Vai para o Seminário em Olinda).
   "O filho de Dona Sinhá morreu semivirgem(...) ele não era um lúbrico acanalhado (...) um pederasta passivo que servisse de mulher aos ativos" (142). Vemos aqui um pouco do Naturalismo e do escritor pernambucano Nelson Rodrigues e seu jogo de perversões.

1889 marca o final da narrativa. Os desfiles de carnaval no Recife onde "gente de cor pulava ,        saltava e cantava" com seu "resto de alegria africana" (183) ao lado da burguesia: "A República e a Abolição já não empolgavam os brasileiros (...) Os de Pernambuco mostravam- se desorientados".
   Há passagens inesquecíveis e poéticas nesta novela : Como jovens  num barco ao luar fazendo serenata para as mocinhas nas varandas dos sobrados na Ponte D´Uchoa (Recife).
   O último depoimento que o narrador apresenta é o de Frei Rosário: As palavras finais de José Maria, no leito de morte: "Iemanjá"..."Mãe"... e baixinho: "Paulo".
   "Depois  de beijado pela última vez por Dona Sinhá esboçou uma espécie de procura de outra boca que beijasse na própria boca(...)de um violeta pálido(...) beijos sem nenhum gosto de carne. Pelo que Frei Rosário levou aos lábios de José Maria seu crucifixo de capuchinho . Beijando-o morreu José Maria, com Dona Sinhá do lado (236) e partiu" agora em busca da mãe para ele eterna" (A Mãe de Jesus?) (p-237).
   Assim o narrador conclui sua "novela".
  




Joaquim Cardozo

Tarde no Recife”

Da ponte Maurício e a cidade
Fachada verde do Café Máxime,
Cais do Abacaxi. Gameleiras

Da torre do Telégrafo Ótico
A voz colorida das bandeiras anuncia
Que vapores entraram no horizonte.

Tanta gente apressada, tanta mulher bonita;
A tagarelice dos bondes e dos automóveis.
Algazarra. Seis horas. Os sinos.

Recife romântico dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos
                                                       fidalgos holandeses,
Que  assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas,
Que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as
                                         costas do Pacífico;
Recife  romântico dos crepúsculos das pontes
E da beleza católica do rio

                                       .............................



  CARACTERÍSTICAS:
   * Domínio das formas poéticas
   * Modernidade nas criações
   * Grave e solitário ("lento e longo", disse João Cabral de Melo Neto)
   * Descreve o Recife histórica e poeticamente
   * No início sofreu influência parnaso- simbolista
   * Influência do Expressionismo  (exagero) alemão do politizado Brecht.
   Preocupação com as contradições do fenômeno urbano( participou como engenheiro  na construção de Brasília e testemunhou a euforia da Era JK ): "Homens de todas as fadigas/ magoados rostos doloridos".
   Recusa o otimismo ingênuo, descrê das soluções nacionalistas desconfia do nosso  potencial moderno em relação bem-estar do homem . O progresso é devastador. O urbano é abismo, melancolia.
   Expõe jogo de interesses do capitalismo (colonialismo/indústria) , escreve sobre proletários.
   Faz referência a um tempo "saído da memória" , recuperado pela construção da linguagem. "Feliz Dezembro! /Profusão de verdes novos/(...)  como vai florido este verão!/Sombra de nuvem corre pela estrada/(...) Vejo o subúrbios tranquiilos(...) e fico a pensar e sentir(...) desejo de lembrar coisa esquecida".
   Saudosismo evita o caos.
   Escreve peças teatrais abordando o folclore pernambucano.
   Cardozo fala da "terra do mangue", sem "ufanismos" , nem pieguismos :"A terra do mangue é preta e morna /mas (...)tem olhos e vê(...)olha os automóveis que correm no asfalto(...)/ Não há  motivos, Margarida, para  teus receios./ Olha através da porta do teu mocambo à sombra da noite/imóvel/sob a perpétua luz das estrelas frias e impassíveis/ A terra do mangue está dormindo."
COMENTÁRIO: O eu-lírico se harmoniza com a terra do mangue e dramaticamente observa o progresso:"os automóveis que correm no asfalto". É uma forma  de dar à "poesia regionalista" novo rumo. "Recife pontes e canais (...)/ torres da tradição, desvairadas, aflitas/ apontam para o abismo negro-azul das estrelas...". "Ó minha triste e materna e noturna cidade/   reflete minha alma rude e amargurada". Sobre Olinda o poeta também exalta a antiguidade , a luta, as igrejas.
   Versos livres.
   Tom profético.
   Personificação(da cidade-Recife, de seres inorgânicos. Usa técnica  Surrealista: "A voz das bandeiras anuncia(...)/ tanta mulher apressada(...) a tagarelice dos bondes e dos automóveis, um camelô gritando:- Alerta! /  Algazarra. Seis  horas. Os sinos ./ Recife românticos de crepúsculos das pontes /Dos longos  crepúsculos que assistiram a passagem dos fidalgos holandeses ,/que assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas ,/ Que assistirão mais tarde à  passagem dos aviões para as costas do Pacífico. / Recife romântico dos crepúsculos das pontes/e da beleza católica do rio." . É o imaginário pernambucano,  presente/passado/futuro, testemunha dos tempos como o poeta o é, no clímax do caos moderno, em linguagem clara e equilibrada(quase matemática).
   Jogo: Física  X  Metafísica: "O trem se desprende da história/(...) O trem atravessa rompendo a barreira do som/ Tudo agora é silêncio (ruído branco? ) / Não corre mais, nem voa: nem vacila, nem flutua"  (Cardozo em "VISÃO DO ÚLTIMO TREM SUBINDO AO CÉU" ).

O CAPATAZ DE SALEMA (Teatro)


Joaquim Cardoso é antes de tudo um poeta. Foi engenheiro por acaso. Esta peça escrita em verso é permaneado de um poético surreal encantatório discurso. Quase todos os versos tem sete sílabas (brancos). São 3 personagens: O tal “capataz” (pescador?), Luzia (moradora de caiçara) e a avó/madrinha dela, Sinhá Ricarda (espécie de coro/fantasma). O mar é sugerido como personagem, ou como efeito fundamental para a encenação, o que exigiria recursos sonoros sofisticados.
A trama é simples João, o “capataz”, chegue na casa de taipa coberta de palha e zinco, de frente para o mar. É tarde da noite e Luzia e a avó doente já se recolheram. Ele vem saber, mais uma vez, por que a moça o rejeitou. Ela diz que é terra, e ele é mar. Dois elementos que se encontram, mas não podem se unir.
A linguagem é barroco – regionalista. A estrutura poética cria imagem fascinantes. Algo aqui mas lembre Garcia Lorca (poeta-dramaturgo espanhol). Não se pode dizer que o texto tem boa carpintaria teatral. Predominam as metáforas para homem;mar e mulher/ terra. Céu, morte, noite, amanhecer.
“Vim de mares distantes (...) tentar a última vez (...) num pedido derradeiro implorar / que me digas a razão / Por que... me repeles”, diz João que em imagens neo-barrocas se inflama: “Em busca da luz polar; / De tuas graças morenas”.
Joaquim, que ajudou Niemeyer a construir Brasília, aqui parece arquiteto de um sonho. Sua policia metafísica nos sugere o impossível dentro dos limites do real: água, areia, ressaca, bonança, morro, nuvem.
A 2ª vez que João viu Maria foi num dia de procissão em Recife. Vestido de renda e galão, cravos no peito e “uma rosa em cada mão. Há chavões como “acavalo alazão” chamado “Ideal”, ou “fazer cortesia; num dia de carnaval”.
Assim ele se define “sou capataz/ fiscal de pesca no mar/ saber que sou capataz/ De Salema. Lá naquela / Praia do norte, possuo / Também pequeno estaleiro / De bancos a vela/ E, mesmo... / nasci em terras de mangue, / onde se abraçam as marés, / em cujas águas brinquei / muitos siris apanhei”. Vemos aqui o mangue, o duplo doce / salgado. “andei por todas as praias / Dessa costa do nordeste; / Guardei todos os costumes / de nossa gente”. Sim, Joaquim descreve, aqui e acolá, nossos “costumes”: comidas, etc.
Mas, Luzia não quer o amor dele: “Sou terra escura e constante/ És o mar independente. Ora, poderíamos buscar aqui o jogo Luzia (luz) e Salema (sal) – misturado antes com água, depois solificado).
A mulher que recebe no seio, humilde, “tudo que o mar rejeita. A avó/madrinha, Sinhá Ricarda, avisa: “cuidado! Que o mar derrama... / cuidado! Que o mar rasteja.
Numa de suas lembranças Luzia conta que teve boneca de louça na infância, que, quebrada em laços, num delírio foi levada por “canarinhos”, ao que o capataz, de modo enigmático, retruca: “É bem possível que à morte/ não só os vivos estejam ; sujeitos”. Metafísico, não? Poético.
Os chavões são inevitáveis: “Mulher sabe dar. Dar/ Vida e, portanto também / morte. Porém, como a terra. / Ela precisa de muito / Que em si própria não tem” (aqui ela fala de uma seca que veio do “alto sertão”, ao que o capataz / João retruca: “aqui tenho o que te falta: / é o meu amor verdadeiro. / Mais fiel que o meu veleiro. / Velejando em maré alta”. Ao que ela rebate: “minha terra tem marés / marés que são de águas vivas”, e a avó: “Toda mulher é uma várzea / onde um canavial cresceu (...) minha safra se perdeu”. A avó perdeu, viu morrer todos os seus filhos. Ela teve pressárgios como jangadas voando à noite, cruzando com a luz do farol. Ela própria que morre no final da peça, é tida pela neta como um farol.
João ainda promete a Luzia que se ela se casar com ele: “Todos os dias trarei / o peixe melhor que encontrar” (camorins, Ciobas, garajubas, cavalas, “pernas de moça”. E “se Casares comigo/  tua será minha lancha (...) a minha rede de arrasto”. Mas ela recusa: “Gosto de ficar soiznha / De nunca ser pressentida / De nunca ser contemplada / no que em mim há de mim mesmo”. Há um pouco da solidão mística cardoziana, poética, aqui. Algo de mestre.” E me julgo encarcerada / Por meu corpo me sentindo / A um outro corpo algemada / Casar é louco ideal / É no querer de ser um / Somente alguém se obter/ Que ainda é duplo e desigual / – Ilusão de achar comum / O que é contrário e irreal”. Logo aqui Cardozo busca a musicalidade no seu Simbolismo. Mais parece letra de música! E o enamorado (mar) responde à sua amada (terra) “Do que te disse que não, / Não sabes dizer que sim”. Se despede dizendo que é forte e vai levando a lembrança da roupa dela cheirando a malva-rosa e alecrim e vai levando a certeza: há de ouvir falar de mim / E verás na noite azul / A estrela negra anoitando / A minha sorte ruim”.
Quando ele parte a avó morre e Luzia depois de cobri-la numa espécie de transe poético / profético entre os últimos versos do texto teatral: “Como terra que sou (...) eu mesmo quem te encerra;/ Quem te cobre para o fim / Morte-mãe. Morte-avó de mim/ De mim, terra e mulher/ nem de terra nem de mar serás / Nem de vento hás de ter véu./ Madrinha! Serás um farol/ Um farol em torno do qual / Jangadas verás passar / Voando. Voando para além... / E este farol de tão breve / Não dá para guiar navios (...) Mas será o bastante / Para servir de coivara / Na minha roça perdida / Em terra inútil e cansada / Nela somente deixando / Marca de terra queimada!.
Então a avó seria o elemento que faltava aqui. O mar (água), a terra, ar (vento) e ela... o fogo! (a coivara). Completada a alquimia cardoziana, Luzia sai em busca do seu destino. Há então a sugestão de um canto e de um coro: “Vento que sempre ouvi cantar / Vento alento da terra / Canto pranto da terra que morre / Estendida aos pés do mar (...) ainda te ouvirei / Quando enfim tu descrever / Chovendo água de chuva / No mar onde estarei / Vento terral / Vento Luzia!
É surreal, é poético: as chamas envolvem o cadáver de Sinhá Ricarda.






Nelson Rodrigues

"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”, disse o pernambucano Nelson Rodrigues que nasceu da cidade do Recife - PE, em 23 de agosto de 1912, quinto filho dos catorze e tem como uma obra onde a morte aparece punindo o sexo ou o sexo punindo a morte e faleceu na manhã do dia 21 de dezembro de 1980, um domingo. No fim da tarde daquele dia ele faria treze pontos na loteria esportiva, num "bolo" com seu irmão Augusto e alguns amigos de "O Globo". Em 1926 o expulsaram do Colégio Batista, da Tijuca, quando ele estava no segundo ano do ginásio, por rebeldia. O pai dele, em 1924, denunciou que os usineiros pernambucanos haviam dado um colar caríssimo à esposa do então presidente Epitácio Pessoa. Foi preso no Rio de Janeiro e o jornal que ele dirigia, o Correio da Manhã, foi fechado pelo governo por oito meses. Nelson iniciou como repórter de polícia, aos treze anos. Aos catorze anos, Nelson fez pela primeira vez com uma prostituta para dentro de um quarto. Voltou muitas vezes. Sempre triste, em 1928 ele vem ao Recife, a família tentava livrá-lo da depressão em que se encontrava, apaixonado por algumas atrizes. Em 1929 viu seu irmão ser assassinado no jornal, por uma mulher que queria matar o pai deles por denunciar-lhe a separação conjugal. A assassina foi absolvida.
Nelson casou-se com Elza, cuja mãe,  era uma siciliana, daí algo de pernambucano e italiano nesta obra. casou-se no civil, e comemorou tomando café com leite e torrada numa lanchonete. Voltaram para o trabalho no Globo e deram expediente normal. em 09 de dezembro de 1942, A mulher sem pecado foi produzida pela "Comédia Brasileira", direção Rodolfo Mayer, foi à cena no Teatro Carlos Gomes, Rio de Janeiro. Foram só duas semanas e não teve sucesso de público. Em 1943 Nelson escreveu uma segunda peça teatral: Vestido de Noiva, referencial até hoje para a dramaturgia brasileira. Ele escreveu também as novelas Suzana Flag e Meu destino é pecar. Anjo Negro e Dorotéia são duas de suas outras peças. Senhora dos afogados, Perdoa-me por me traíres, Viúva porém honesta, Álbum, de família, Os sete gatinhos, Beijo no asfalto, Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, Toda nudez será castigada, Anti-Nelson Rodrigues,A serpente, estão dentre as várias peças de Nelson que marcaram a cultura brasileira. Escreveu sobre futebol também.
Entre 1959 e 1960, muitos leitores acompanharam a história de Engraçadinha e sua família em "Asfalto Selvagem". Foram publicados dois livros, intitulados "Engraçadinha — seus amores e seus pecados dos doze aos dezoito" e "Engraçadinha — depois dos trinta”. Ele escreveu também algumas novelas para a TV: A morte sem espelho e Sonho de Amor", em 1964. É autor do romance O Casamento (livro cheio das “depravações” rodriguenas, como o incesto e orgias).
Nelson é autor da peça Boca de Ouro que tem como enredo as peripécias de um bicheiro do Rio de Janeiro, zona norte, que foi colocado, logo que nasceu, numa pia do banheiro de uma gafieira, largado pela mãe, prostituta, a quem nunca conheceu. Relativamente rico, quando adulto, na contravenção e malícia, mandou arrancar os próprios dentes, substituindo-os por uma dentadura de ouro.
Este anti-herói rodrigueano " quer esquecer o cruel nascimento, aqui Nelson joga com elementos da sua tragédia: os arquétipos, fundindo e confundindo, objetividade e subjetividade extrema.
Muito já se falou da representação do subúrbio, na obra deste autor: a simbologia, a psicológica com que o autor o retrata. Rodrigues trabalha com a ruptura com a linearidade do tempo cronológico, “encavalando” cenas, alternando-as de modo a expor sua teoria sobre o brasileiro, ou melhor, o que é ser humano. São mulheres histéricas, homens com idéias reacionárias e/ ou incendiárias.
Neste texto teatral, o “Boca” representa todos os homens, e ao mesmo tempo o “Outro”, aquele em que todo ser humano se espelha.
Logo na primeira cena, no dentista, quando ele ordenou que o doutor arrancasse seus dentes e encomendou a tal dentadura de ouro (de onde virá o seu nome), vemos que se trata de uma reificação, de um projeto humano, levada às raias da obsessão e da loucura. Ele quer dominar, ser poderoso e desmascarar a hipocrisia humana. 
Assassino, ladrão, torturado, maníaco, crudelíssimo, busca a invulnerabilidade, diz que tem “corpo fechado”, aos outros personagens como à dona Guigui. Os personagens, Agenor (marido dela), o repórter, o locutor de rádio, as três grã-finas, Celeste, Leleco (este marido desta e assassinado, depois de se mostrar canalha também, pela própria mulher), são respaldo e reflexo do berço/ pia de gafieira, onde quem o pariu, abriu a torneira e o batizou. Jogado mundo hostil, em vez de medo, prefere encarnar a violência e diz superar o papel que lhe foi dado enquanto bebê rejeitado (marca terrível para a sociedade em que está).
Seu poder furioso fantasia até com útero da mãe promíscua, vítima e algoz, como quase todos os personagens que reforçam o que o nosso anti-herói representa, na sua revolta homicida.
Depois de morto, roubaram-lhe a dentadura. Uma curiosidade sobre o Boca de Ouro: tem a ver com as Igrejas Católica e Ortodoxa: "Boca de Ouro", mais conhecido por João Crisótomo, além de santo, ainda acumula o título de doutor da igreja. Parece que viveu cem anos (307 - 407 A.D.) e, durante todos esses anos. falou tanto, pronunciou tanto sermão, tinha uma retórica tão torrencial que, ao seu nome João, acrescentaram-lhe Crisóstomo, cujo significado em grego é "Boca de Ouro".. Foi anti-semita e enquanto bispo de Antioquia, pronunciou "Oito Homilias contra os judeus" para instrução e reformação moral da cidade, segundo ele, nominalmente cristã.
Frases de Nelson Rodrigues:

-
Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhores que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém.
- O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: — o da imaturidade.

- A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem.

- O brasileiro não está preparado para ser "o maior do mundo" em coisa nenhuma. Ser "o maior do mundo" em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade.

- Há na aeromoça a nostalgia de quem vai morrer cedo. Reparem como vê as coisas com a doçura de um último olhar.

- Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de "ilustre", de "insigne", de "formidável", qualquer borra-botas.

- Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível.


- Assim como há uma rua Voluntários da Pátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamente, rua Traidores da Pátria.

- Está se deteriorando a bondade brasileira. De quinze em quinze minutos, aumenta o desgaste da nossa delicadeza.

- O boteco é ressoante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele.

- A mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades.

- O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: — um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.

- Outro dia ouvi um pai dizer, radiante: — "Eu vi pílulas anticoncepcionais na bolsa da minha filha de doze anos!". Estava satisfeito, com o olho rútilo. Veja você que paspalhão!
- Chegou às redações a notícia da minha morte. E os bons colegas trataram de fazer a notícia. Se é verdade o que de mim disseram os necrológios, com a generosa abundância de todos os necrológios, sou de fato um bom sujeito.

- Em nosso século, o "grande homem" pode ser, ao mesmo tempo, uma boa besta.

- O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.

- Toda mulher bonita leva em si, como uma lesão da alma, o ressentimento. É uma ressentida contra si mesma.

- Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.


UMA TRAGÉDIA CARIOCA EM 3 ATOS

Já “O Beijo no Asfalto” Nelson Rodrigues começa apresentando o perfil do delegado Cunha que deu um chute na barriga de uma grávida e matou o feto. É ele quem vai logo a seguir se envolver com um simulacro de escândalo que envolve um inocente (Anadir, marido da Selminha e cunhado de Dália) que teria beijado, sob o olhar do sogro, outro homem, vítima de atropelamento de ônibus, que morreu no asfalto.
A partir deste plot, Nelson esbanja seu linguajar que titubeia entre o puritano e o cafajeste.
O jornalista armado manipula a mídia e negocia com a polícia. Nelson, como jornalista, sabia como estas coisas aconteciam. Fernando Torres, marido de Fernanda Montenegro para quem o texto foi escrito em 1961, fez mudanças na peça, que permaneceram. A sintaxe / a pontuação do texto é extremamente teatral. Alguns termos / situações podem até parecer datados, mas o que temos é um gosto pela vida que passa pelo existencialismo santreano (coisificante) e atinge o folhetim sangrento e sensual.
O repórter amado (!) vampiriza o beijo que testemunhou e convida o delegado para o pacto de sangue que venderá mais jornais: “Homem beijando homem”.
Aprígio é o sogro que no final, saberemos, é apaixonado pelo genro. Amor não declarado.
Nelson, antes, permeia as falas com marcas líricas, como “Dália (cunhada de Arandir) entra. Adolescente cuja graça leve parece esconder uma alma profunda). O texto tem falas como “mas papai, olha. Hoje eu fiz ensopadinho de abóbora. A criada está de folga e eu fui pra cozinha, papai!”, diz Seminha. O diminutivo do nome já é propositalmente provocante: “Desde o meu namoro o senhor nunca chamou Arandir (marido dela) pelo nome”. Ela tem um ano de casada e faz sexo com o marido quase todo dia. Diz que está grávida e não acredita que o marido seja homossexual. O autor nos sugere que tudo pode ser verdade num pesadelo que lembra “o processo”, de Kajka. O pai diz que um ano é pouco para se conhecer alguém: “pouquíssimo”, ao que ela retruca “confio mais em Arandir (que nome!) do que em mim mesma”, que fala! O pai envenena: “Digamos que seu marido não fosse como você pensa” e ela olha para a irmã e retruca” Dália disse que se eu............. ela se casaria com o Arandir”. A irmã se “defende” (logo ela que vai querer se “entregar” ao cunhado que já a vira nua, no final, “Eu estava brincando, papai!”
Arandir é descrito como “uma figura jovem, de uma sofrida simpatia que faz pensar num coração atormentado e puro”. Entre a polícia, imprensa e o sofro “pervertido”, ele sucumbe. (Termina assassinado por este de forma dramática;cômica, tragicômica). O delegado pergunta: “É casado e não usa nada no dedo, por quê?”, “caiu no ralo do banheiro”, ele responde “se aparecesse uma mulher boa, nua, qual seria a tua reação? (silêncio).
Arandir, que beijou na boca a vítima do atropelamento na Praça da Bandeira, Rio de Janeiro (onde quase todas as obras do recifense Nelson transcorrem), diz que foi culpa do motorista. Mas todas querem o escândalo do tal “beijo”.
Nelson é mórbido, Dália fala do casamento da irmã: “No teu casamento eu pensei tanto na morte da mamãe”,  cunhado a tinha como um anjo, mas ele tinha desejo carnal por ele. Há algo em Arandir que nos lembra Blanche da peça “Um bonde chamado desejo” (T. William): “Vi um rapaz (...) ele perdeu o equilíbrio (...) atropelado não grita (...) me abaixei, peguei a cabeça dele e...”. A teia em torno deste trabalhador sensível o envolve e sufoca. Ele não tem saída: a vizinha fofoqueira, os colegas de repartição, o preconceito, a dubiedade, a mentira, tudo o arrasta para o desespero e frustração: “Toda a cidade estava ali e viu quando eu...”.
A vizinha, D. Matilde é uma espécie de coco, representa o juízo do povo: “Não foi o primeiro beijo nem foi a primeira vez!”.
“O sujeito caiu de braços, rente ao meio-fio. Teu marido foi lá e virou o rapaz. E deu o beijo na boca”, diz Aprígio, o sogro.
Selminha passa pelo vexame de ter de ficar nua e sofrer “abuso” num pseudo-interrogatório, o marido foge. A viúva da vítima atropelada, uma adultera é pressionada pelo repórter a mentir e dizer que Arandir já tomou banho com o marido dela. A cilada está armada e a vítima, Arandir, sucumbi, é abatida num quarto de hotel por uma sociedade preconceituosa (hipócrita) manipuladora dos fatos,  tendenciosa e cruel com os fracos, que finge seguir a ideologia cristã, mas é brutal e selvagem.
Selminha sente nojo do beijo do marido depois de tudo que aconteceu: “A senhora nunca ouviu falar em gilete?” (referência ao bissexualismo). Ela grita: “Seus indecentes!” Ao que o delegado Cunha retruca: “Olha que ..... lhe quebro os cornos!” e o repórter, Amado, diz: “Tira a roupa! Fica nua. Tira tudo!”
“O senhor não gosta de Selminha como pai. Gosta como homem”, diz Dália. Insinuações assim são comuns em Nelson. A espiral se afunila e as humilhações se acumulam. A razão e a loucura, verdade e mentira se confundem: “Querem que eu duvide de mim mesmo!”, repete Arandir: “Eu não beijaria a boca de um homem que não estivesse morrendo”(...) É lindo. Eles não entendem. Lindo beijar quem está morrendo! Eu não me arrependo!”
A cunhada na última cena diz que apesar da irmã não querer mais o beijo de Arandir, ela o quer. E ele: “Você é uma criança. Eu amo Selminha. Eu ia pedir a Selminha para morrer comigo. Mas ela não veio”. E Dália: “Eu morreria”. Ela acredita que Arandir tinha um caso com o morto, ele a expulsa do quartinho de hotel onde foi se esconder.
O pai (Aprígio) dela chega, ela foge. O sogro entra, confessa a paixão pelo genro, acusa-o de ser amante do atropelado e o mata: “eu jurei a mim mesmo que só diria teu nome ao teu cadáver (...) O meu ódio é amor” atira: “Arandir! Arandir! Arandir!” (cai a luz, em resistência, sobre o cadáver de Arandir. Trevas).




Osman Lins

O pernambucano Osman Lins é herdeiro da chamada tradição flaubertiana (perfeição e cálculo do texto). Foram 13 anos de exercício até chegar aos contos de “Os gestos” (1957). São 6 contos (solidão é a temática principal) escolhidos por Nitrini e  mais nove anos (1966) para Nove, novena - outra transformação na sua escrita. (mais 6 contos nesta seleção de Sandra Nitrini.
Osman no início era mais convencional, mas não exatamente nos moldes do regionalismo de 30 – só se fosse como a raiz machadiana de Graciliano– sondagem interior. Prefere o ético e o épico na lapidação do texto. Seus personagens são excluídos, como em Clarice (Geração 45): instantâneos do cotidiano (fisionomia interna) – incomunicabilidade drumondiana. Poeta, ensaísta, dramaturgo, romancista dedicado à perfeição, longe das repetições, Osman tem escrita elegante e competente. Nove, Novena” pode ser entendido como ruptura não apenas dentro da obra de Osman Lins, mas na literatura brasileira contemporânea sua leitura dá prazer pois é literatura trabalhada e texto bem urdido. Não deveria ser sinônimo de hermetismo, mas de atrativo à leitura. Os livros de  Osman podem parecer estranhos. Em suas  narrativas há ruptura  com a linearidade . Ele chega ao ponto de sugerir que o leitor escolha como vai ler. Ser leitor deste escritor nos faz um co-autores, a perseguir pistas, montar quebra-cabeças.

Vamos fazer breves comentários sobre os contos selecionados pela professora Sandra Nitrini:

Características do texto de Osman:
·                          As ambientações são concebidas a partir do interior dos personagens – às vezes em contraste com eles.
·                          Frases curtas, palavras exatas- técnica e estilos peculiares
·                          Do mesmo modo de Machado de Assis: Osman não obscurece as realidades próximas, mas não é explicita a contextualização de época.
·                          Arte “Antimimética” estabelece-se definitivamente nestes contos. O narrador em discurso direto-indireto, a metalinguagem, as ressonâncias de outras expressões (símbolos, às vezes) artísticas: teatro, pintura, cinema, ou mesmo de outros gênero, literário) como  poesia.


Contos de Osman Lins – Seleção de Sandra Nitrini

1.                      Os Gestos (1957)
  “Minhas palavras morreram, só nos gestos sobrevivem. Afogarei minhas lembranças, não voltarei a escrever uma frase”, afirma o protagonista de Os Gestos, André na angústia de assistir a tudo e não poder falar nada. Trata-se do horror de perceber que se está sem voz, solitário, enclausurado, ele não poderia mais falar com as filhas Lise e Mariana nem com a mulher ou com o visitante Rodolfo.
Seus gestos nem sempre são compreendidos e o leitor chega à apreensão de outros personagens
A esposa é sempre fria, vigilante, com ar de enfado, vestida de escuro e o visitante Rodolfo sempre com roupa branca a lembrar um marinheiro. A “alva roupa de linho e o ar de vida que desprendia”. Seu rosto tinha maçãs salientes, o semblante puro, sem malícias.
        À filha Lise – sempre atenciosa, dedicada para com o pai , André – contrapõe-se Mariana – adolescente , “cega” para tudo que não fosse sua própria beleza, petulante.
  Impossibilitado de falar, com movimentos reduzidos a gestos André assiste a tudo: A paisagem exterior do céu nublado, os pássaros esvoaçantes, a paisagem da infância, os veleiros alvíssimos, libertos no mar (tempo da juventude que o vento se encarrega de afastar) – Tudo consumado no tempo presente com a mudez. Ele olha a filha mais velha – Lise – e percebe os traços do tempo: os anos definiram traços, mas não apagaram os restos de infância na boca, nos olhos. A delicadeza da filha e a aspereza do pai devido à mudez. Reflete também sobre o outro ser que se desprende da filha Mariana – a transição da infância para a adolescência “O rosto era belo e se renovava, como um ser adormecido (...) ela cruzava um limite: quando se afastasse, os últimos gestos da infância estariam mortos.” O momento único parece inexprimível, porém “os gestos de hoje talvez não sejam menos expressivos que minhas palavras de antes”. A vida dos seus lhe parece mais sentida agora.
A chuva traz motivações para imaginar, viajar ao passado, resgatar a juventude.  O ritmo da chuva marca o fluir do tempo e a intensificação e distensão da angústia de André.

2. Reencontro
  
  Trata-se de um reencontro casual entre o narrador e Zilda num vagão de um trem. Zilda a grande amiga de infância. Revê-la foi também reviver o passado: “Frágil e alto muro dividia nossos quintais (...) eu sonhando, contando histórias, declamando versos, inventando projetos; ela escutando”. A oposição marcada na infância se faz notar. Tudo que o narrador diz Zilda contesta. Agora adultos, era o desencontro afetivo. O universo da incomunicabilidade se faz notar. As lembranças não têm igual valor para os personagens. Zilda quase nada sente “Somos de temperamentos díspares (...) essas evocações não têm igual valor para nós.” Ele lembra tudo; ela, quase nada.  A separação, com o passar do tempo, dói mais no narrador do que em Zilda. 

3. A Partida

  Uma biografia literária. Por quê?  Com a morte da mãe (pouco depois de dar à luz ao vitoriense Osman Lins), Lins ficou aos cuidados da avó paterna – Joana Carolina – e da tia (parte de pai) Laura. Como sua vida se confunde com sua obra, a velha do conto A Partida faz referência (direta) à Joana Carolina.   O espaço onde se desenvolve a narrativa é Vitória de Santo Antão, local onde passou boa parte da infância e início da adolescência aos cuidados da dessa avó. Mulher de modos rígidos, mas muito amor para dar.
O narrador decide sair do interior e morar na cidade porque não agüentava mais os cuidados da avó, o fato de ser o querido, vigiado. Ela era “intoleravelmente boa e amorosa e justa”, afirma o narrador. Deixá-la era cortar o cordão umbilical e um mundo novo encontrar, mundo necessário.  A avó o ajuda a arrumar a mala e fica organizando tudo até tarde (hábito de fazer arrumações tardias). O narrador vai dormir e a avó vai verificar se não lhe falta nada. Ele demora muito a pegar no sono, nasce uma alegria dolorosa, mas adormece. De madrugada a velha ainda vem vê-lo e chora a dor da perda, cena insuportável para o narrador que meio acordado vê tudo e não se mexe: “Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver – pensei (...) Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz”.
   O narrador prepara-se – de madrugada – para partir, hesita em falar com a avó, mas o faz. Anda cabisbaixo pela casa “à procura de objetos imaginários” . Não quis abraçar a avó, ele a beija apenas e toca-lhe a cabeça. Olha para a mesa estava posta para dois e a “toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários.”   Eis o neto à procura de um ambiente libertário. Opõe-se à avó, que a ele se dedicou com afetividade exagerada e opressora. A casa, os objetos, o abrir e fechar das janelas, os ruídos provocados pelo arrastar dos chinelos da avó. Tudo sintetiza a atmosfera emocionante. Objetos carregados de história de vida, de afetividade. Tudo a fazer a memória do menino-adolescente.

4.Cadeira de Balanço

   A frieza do marido, o comportamento autoritário, as reações mecânicas de quem acredita ser o provedor financeiro da casa, tudo. Nunca enxergou a esposa Júlia Mariana como uma mulher, ou melhor, uma pessoa carente de afetos, de atenção. Para Augusto caberia à esposa manter tudo organizado, servi-lo em tudo. E o fato de a esposa estar grávida não importava, aliás a gravidez só o tornou mais distante da mulher: “Mais tarde, se não encontrasse no arame (as camisas), Augusto ficaria aborrecido e haveria de perguntar-lhe o que andara a fazer a tarde inteira” “(...) E já bastava o afastamento dele, que aumentava sempre, desde que a cintura dos vestidos...”.  Júlia Mariana temia perder o marido. Às vezes desejava morrer para que ele sentisse remorsos. Mas sabia que o marido logo a substituiria por outra e, assim, submete-se à frieza dos gestos, às exigências do marido. O retrato da mulher submissa, destinada às tarefas domésticas dos anos 50.
Mulher ociosa!?... O que estaria fazendo a tarde inteira enquanto ele trabalhava?
·  Eles quase não se falam, só gestos que põem em relevo o exigir e o aceitar. Ao sentar na cadeira de Augusto, balançar-se de leve, sentia-se tão bem e esquecia as coisas tristes surgidas com a convivência. Nem se via mais ao espelho. As manchas no rosto, o ventre enorme, as pernas inchadas a martirizá-la. Mas entende não merece isso porque não cumpriu o seu papel de esposa. Chorava, pensara nos serviços que não agüentara fazer, nas obrigações não cumpridas, nas exigências e frieza do marido que, ao chegar, lhe toca o ombro – sinal de que Júlia Mariana deveria deixar a cadeira de balanço, cumprir as obrigações e deixá-lo descansar: “Júlia Mariana se ergueu com esforço e ele ocupou o lugar” após o ritual da chegada. Ela: medrosa, sensível, oprimida submete-se ao marido metódico, indiferente e dominador. Confirma-se a frieza dos gestos em oposição ao objeto-símbolo do acalanto, do afeto, do repouso que deveria ser “A cadeira de Balanço”.  A cadeira contraditoriamente é símbolo do autoritarismo de Augusto e não do repouso desejado por Júlia.  Júlia não traz em si o menor movimento de revolta, acata a imagem da função social do marido. Ela é alvo de desprezo, indiciado pelos gestos rotineiros de Augusto, o majestoso que nem sequer a olha.

5. O Vitral

  Nesse conto Osman acentua a idéia do contraste mais uma vez. Matilde, mulher sonhadora, de meia idade, ingênua e infantilizada convive com Antônio, seu marido, homem seguro e realista.
   No convívio direto com os parceiros, o toque do desencontro. Matilde tenta concentrar em um fato (com o marido) o júbilo perdido. Sonha em aprender no vitral a “alegria” dos 20 anos de casamento, “um retrato ameno e primaveril”.   O marido indiferente alegra a existência de tantos retratos e agora eles já tão velhos. Matilde lembrava a infância (Tempo da Memória): a espera da alegria e o medo de a não obter. As alegrias apenas sonhadoras.  Matilde tira a foto com o marido. Ela fica exultante na “insubstancial riqueza daqueles minutos”. “Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito”, mas o marido Antônio continuava circunspecto, alheio à alegria da esposa. A alegria dela era, portanto, solitária, “da qual Antônio para sempre estaria ausente.”
     Para Antônio nada pode reter o mínimo de alegria. “Nenhum vitral retém a claridade”.  Matilde aperta o braço do marido e um “júbilo angustioso jorrava do seu íntimo” e compreende a impossibilidade de capturar esse momento, mas sabia que o vivera: “Eu o vivi. Eu o estou vivendo” e a luz a invadiria como a um vitral. Uma alegria solitária no fluir do tempo, na manhã do 20º aniversário de casamento.


6. Elegíada

  André (protagonista da narrativa) vivencia o problema do idoso na moderna sociedade industrializada.   A constatação da perda, da solidão. A consciência do estar velho, o “duro silêncio que o envolve e o imobiliza”, a lembrança de alguém que partiu e deixou suas marcas muito vivas. A dor da velhice, a solidão.   Eis o pungente e lírico “diálogo – monológico” da personagem que assume a voz narrativa. O velho conversa mentalmente com sua mulher morta, durante o velório, confinado na mais pura expressão do discurso interiorizado, no qual se entrelaçam rememorações (tempo da memória) valorizadoras das miudezas do cotidiano vivido com sua parceira e queixas e constatações do descaso com que é e será tratado pelos filhos e netos: “Meus filhos agora acham que os superiores são eles; que devem governar-me (...) é um modo de mostrar que me amam”.
 Também os netos, “não me querem como eu desejava”. Estes “quase nunca eu os levo a passeio, (...) não consigo unir-me a eles”. Muitas vezes os netos trocam segredos, falam uma língua diferente do avô e não o levam a sério, “troçam de mim”.   O avô é visto não com consideração, mas como ser infantilizado, incapaz, sujeito a monitoramento e ordens.   A perda da esposa e também a perda de alguém com quem compartilhar as memórias. É não ter com quem falar as coisas triviais.
   Osman Lins – com o tema da velhice – introduz o mundo sensível, a realidade concreta. Destaca o contraste entre o universo interior do personagem e o espaço externo. Desnuda o estado emocional e afetivo do protagonista André. Cria uma tensão que implica postura reflexiva e não mera constatação. Um gesto simples da mulher, mas observado e sentido pelo marido, o desejo de prolongar a lembrança do outro. Uma dor vasta, desalentada, profunda de um velho sem a sua “metade”.
    Em todos os contos de Os Gestos há um fio condutor quer plano dos elementos da narrativa (relação entre personagens, espaço, tempo e ponto de vista) quer no plano do discurso, caracterizado por frases curtas, palavras precisas, o captar profundo da condição humana.



Nove Novena (1966)


1. Os Confundidos

Buscas, perseguição, inquietações, num  girar e voltar sempre ao mesmo ponto: um texto na forma de diálogo conflituoso.
Um casal, o antagonismo verbal:
    Estou cansada. Quase meia-noite
     Continuo de férias, posso acordar tarde.
     Mas eu, não. Afinal que importa? Suporto bem uma noite sem sono. Tenho passado outras.
     É uma alusão a mim?
     Talvez.”

A narrativa às vezes nos confunde. Quem é ele? Quem é ela? O desentendimento entre os confundidos se faz notar logo no início da narrativa. A briga se desenvolve em um curto espaço de tempo: É uma relação baseada na desconfiança. O marido relata o desenrolar do ataque de ciúme doentio ao se encontrar só em casa, enquanto a mulher trabalhava. “De repente, vejo-me sozinho. E recomeço...”
   Há uma mistura de revolta, loucura e lucidez. A mulher reage às desconfianças do marido e em meio à briga emerge, reflexões sobre “quem eu sou?” (perda de identidade), o amor, a monotonia da vida, a impossibilidade de se conhecer o outro.
O marido reflete: “A solidão, para mim, era o mesmo que um rival.”  A mulher não agüenta ter somente poucos instantes de tranqüilidade: “Somos. Como dois corpos enterrados juntos, roídos pela terra, os ossos misturados. Não sei mais quem sou.” “Isso não é amor. Não se perde a identidade no amor.”  Para ela o amor deveria ser o reencontro da identidade perdida. Tudo, ao contrário, é terror, aflição e desamparo. Perdeu o ânimo, a força, a voz. Também não sabe mais quem é, face a tantas desavenças.
  O marido confessa seus ataques de ciúme. Suas perseguições, inquietações. Tudo que enfraquece a relação amorosa. O ciúme só aumentou o distanciamento entre marido e mulher. A confusão, a instabilidade amorosa acabou enfraquecendo a mulher que já nem sabe quem é mais.
  Todo o percurso do ataque do marido é relatado e fragiliza a esposa que não aceita a desconfiança e então diz: “Por que não suspeitar (dela) quando estou presente? Pode estar aqui, comigo, nua e pensando noutro homem.”
 O marido prefere não aceitar essa hipótese. Ele pensa nas semanas que passaram bem. Todos os mal-entendidos resolvido. Os anos todos que lutou para consolidar tudo, o ciúme arrasta-o. O casal já não sabe mais quem é: “É novamente o silêncio, espesso, amortecedor, palha e serragem entre objetos de louça.”
 Estão confusos, angustiados, a relação fragmentada: “Estarei envenenado? Estaremos então envenenados?”
 A mulher passa a viver o mesmo drama do marido, no estar entre a lucidez e a loucura: “pode ser que também eu esteja (envenenada) (...) se não sei mais quem sou.” Mas o dia, a rotina os chamam: “ – É mais de meia-noite”. Eis o voltar sempre ao mesmo ponto e nada se resolve.
   “Um de nós levantou-se, ou irá ainda levantar-se, entreabrir a cortina, olhar a noite. o rumor dos veículos, continuando, ascenderá – ascendeu? – das avenidas girando na sala (...) as estrelas vibrando, parecendo abaladas pelo rumor da cidade que não dorme. Estamos de mãos dadas, qual destas mãos arde? Olhemos a parede vazia.” 
  Neste trecho a seqüência temporal subverte a lei da cronologia. O tempo é colocado como indefinido. Não se sabe também se é o homem ou a mulher que fala. Dos objetos da sala é feito um inventário e ressaltam-se detalhes. Das ações humanas destacam-se as fragilidades.
   As fragilidades das condições humanas, as dissonâncias nos relacionamentos pessoais, no espaço doméstico e na estrutura social.    

2. CONTO BARROCO OU UNIDADE TRIPATIDA

Consiste na missão de um homem que é encarregado de matar um certo José Gervásio, sem saber o motivo.Ele entra em contato com uma mulher com quem José  teve um filho e pede que lhe mostre a vítima. Ela aponta-lhe a vítima .O assassino mantém um relacionamento sexual e afetivo com a delatora e se despede dela em 3 versões
   Ele é procurado pelo pai da vítima, por ela ou ainda pela negra também em 3 módulos diferentes. objetivo – fazer o rapaz desistir do crime

O ASSASSINATO é consumado em 3 versões
 

1ª versão – A NEGRA MORRE
2ªversão – UM HOMEM MORRE
3ª versão – O PAI MORRE

o núcleo histórico espalha-se por 5 segmentos: cada segmento focaliza um momento preciso da história, como se fosse um quadro (configuração também de um retábulo)
2ª módulo: na igreja de congonhas
1ª variante: - a mulher (negra)  aponta José Gervásio subindo a ladeira.
2ª variante: durante um enterro em Ouro Preto.a negra toma o braço de um homem
3ª variante: junto ao chafariz da igreja   em Tiradentes: a negra mostra José Gervásio ao assassino. O ex-amante da negra  (José Gervásio) é apontado em 3 situações e cidades diferentes (Congonhas, Ouro preto, Tiradentes)
Há uma multiplicidade de estórias a partir do núcleo central da ação do assassino. Ele cumpre ordens do patrão sem saber o porquê. O tema é o absurdo da condição humana. Os personagens são indicados por substantivos – perdem a identidade civil
- o assassino     - a negra        - o pai. Só  a vítima é designada pelo nome José Gervásio. O  texto privilegia nas suas 3 versões : o ambiente onde se desenrola a traição e  o momento que antecede a traição. Devemos levar em consideração o aspecto pictórico do texto) bem como a disposição  geométrica das figuras . O enterro nas ruas de ouro preto. coberto de fitas roxas, que ondulam ao vento frio da tarde, o atáude sombrio e prateado, sobre a ladeira de pedras, entre as portas fechadas, balcões, telhados velhos.”
Há o tom insólito, enigmático, opaco, chama a atenção do texto sobre si mesmo, a leitura decifradora de partes do texto desloca o tema do crime para o final do texto.Osman com trechos insólitos trava ou retarda a transparência de segmentos narrativos lineares.



3.PASTORAL


Baltasar é um adolescente que carrega o peso de ser filho de uma mulher que abandonou o marido por outro homem. Hostilizado pelo pai, pelos irmãos, exceto por Balduíno Gaudério, e por Joaquim, um parente afastado. Ele  vive sufocado no ambiente familiar, exclusivamente masculino. só o padrinho lhe dá atenção.
A narrativa é composta por 20 parágrafos. Cada parágrafo corresponde a um quadro. a justaposição dos quadros (sucessão do 20 parágrafos) configura um retábulo. Há descontinuidade sintagmática, entretanto a seqüência cronológica se faz notar pela evolução do fio narrativo e pela presença de motivos remissivos a cenas anteriores. O final de cada parágrafo coincide com um corte.

- no 7ª e 8ª quadros, ocorre a cena de fuga da mãe de Baltasar (únicos parágrafos que se encadeiam sem ruptura).
- o 7ª parágrafo – termina com a fala do padrinho, através de um discurso indireto livre, sobre a mãe de Baltasar
. Nesse parágrafo (7ª), desencadeia-se o programa narrativo de Baltasar.
OBS.: a figura da égua canária representa o preenchimento de um espaço afetivo vazio (o nome canária traz em si a idéia de liberdade) e a idéia de liberdade
Baltasar recebe canária do padrinho constitui a base sobre a qual se funda a narrativa. A seqüência de enunciados narrativos aparece no conflito de Baltasar com os cavalos destinados a desvirginarem canária
a narrativa como um todo – são 20 módulos truncados que minimizam o teor dramático de pastoral, além de valorizar sua instância discursiva. A castração do cavalo, feita por Baltasar significa a 1ª manifestação concreta de desafio – por parte de Baltasar – à família. Ele luta pela preservação do objeto do seu desejo (=  a égua canária). O ato da castração em si ocupa um trecho relativamente curto, num contexto  dominado por enunciado descritivos, com uma linguagem poética, fundada no jogo de cores e na utilização de comparações e metáforas.

4.O PÁSSARO TRANSPARENTE

 O conto “O pássaro transparente” as nove fases da vida da personagem (da infância à fase adulta): fracasso de um homem que se submete à família ao casar com uma mulher escolhida pelo pai (Eudóxia). Aqui o monólogo interior une-se ao narrador em 3ª pessoa. O homem reencontra uma pintora (amiga de adolescência) e detecta nos seus quadros um pássaro transparente que lhe chama atenção. O foco narrativo parece ser o esqueleto do tal pássaro. E o conto joga com os elementos externo e interno: com o discurso direto/ indireto livre.


5.RETÁBULO DE SANTA JOANA CAROLINA


O conto é calcado em  DOZE MISTÉRIOS  que correspondem, por exemplo, aos signos do Zodíaco. Este princípio de organização do retábulo, através da qual se amplia a história de uma mulher que vive em Pernambuco, insere a narrativa no “TEMPO MÍTICO – CIRCULAR” das constelações celestes, religando-a a dimensões cósmicas. As doze horas seriam eternas e, paradoxalmente, efêmeras.

No PRIMEIRO MISTÉRIO  temos o nascimento de Joana Carolina como ornamento a representação do espaço astronômico do Universo e ela é inserida numa dimensão cósmica. Ela  nasce no 7ª signo do zodíaco – Balança: Equilíbrio entre o mundo Solar e a manifestação planetária e representaria  a igualdade universal, justiça, equilíbrio pessoal e social.  Também marcada por incessante busca de HARMONIA com os homens e com a natureza, luta contra a sociedade hostil.

No SEGUNDO MISTÉRIO  figuram a CASA e a CIDADE. Estes espaços estão carregados de SIMBOLOGIA CÓSMICA que marca a vida INDIVIDUAL e COLETIVA.A casa e a cidade bem como o 1ª mistério são regidos pela INVISÍVEL BALANÇA. A casa impede que o homem se perca na vastidão da Terra, graças à proteção das paredes externas e do teto. A cidade (agrupamento de casas) CONSTRÓI o AQUI. A CASA e a CIDADE exprimem uma SIMBOLOGIA  que entra no circuito dos ORNAMENTOS CÓSMICOS da narrativa e serve de contraponto ao espaço CEMITÉRIO (Nesse espaço de morte, se dá o EVENTO FOCALIZADO NO QUADRO Joana Carolina no início de sua adolescência tinha 2prazeres:ACOMPANHAR ENTERRO DE CRIANÇA e BRINCAR COM ESCORPIÕES).
       SIMBOLOGIA: O movimento da VIDA e da MORTE está nas entranhas dos COSMOS, no jogo dos espaços  dos ornatos e do corpo da narrativa. A MORTE DA CRIANÇA NO INÍCIO DA VIDA enfatiza a dicotomia VIDA X MORTE. O ESCORPIÃO é animal negro que foge da LUZ. Sugere a evocação dos tormentos e dramas da vida até o ABISMO DO ABSURDO, DO NADA e da MORTE. JOANA CAROLINA AO CONTRÁRIO DO PRESIDENTE DA IRMANDADE DAS ALMAS e de sua mãe, convive harmonicamente com os escorpiões (que EVOCAM A TRAJETÓRIA PENOSA DE JOANA CAROLINA. CONOTA TAMBÉM  A SUA RELAÇÃO SOLITÁRIA COM O COSMOS).

   No TERCEIRO MISTÉRIO há o INTERCÂMBIO entre O ESPAÇO TERRESTRE (PRAÇA) e o DIVINO (TEMPLO). OS MOTIVOS DO 3ª ORNAMENTO – A PRAÇA e o TEMPLO REMETEM  A LUGARES DE ENCONTRO DO HOMENS ENTRE SI E DOS HOMENS COM A TRANSCENDÊNCIA. A COMUNICAÇÃO COM DEUS SE dá pelo espaço (TEMPLO) e pela IMAGEM DOS FOCOS DE ARTIFÍCIO, LANÇADOS PARA O ALTO, NA DIREÇÃO DAS TORRES. BEM COMO PELO ESPAÇO HORIZONTAL DA PRAÇA. Aqui SE DÁ o encontro de JOANA CAROLINA com JERÔNIMO JOSÉ (futuro marido). Numa procissão (cerimônia religiosa em praça pública). O espaço do Sagrado (PROCISSÃO) e do  Profano (PRAÇA) prenuncia a união carnal e transcendente.

No QUARTO MISTÉRIO temos a representação sensível do manto invisível da terra. Seqüência de metáforas, ornamentos que remetem ao AR. (um dos 4 elementos da natureza). Figuras espalhadas na parte superior do quadro evocam as diferentes funções desempenhadas pelo AR.
 O eixo central do 4ª MISTÉRIO é a morte de Maria da Glória e a doença de Álvaro e Nô, filhos de Joana Carolina (DOENÇA – MORTE – DETERIORIZÇÃO – ANIQUILAMENTO DA VIDA)

No QUINTO MISTÉRIO entendemos a ÁGUA como outro dos 4 elementos da NATUREZA considerada PASSIVA e FÊMEA – em oposição ao ar (ativo, masculino) – constitui o NÚCLEO TEMÁTICO DO 5ª ornamento (coincide com o SIGNO DE AQUÁRIO). O DISCURSO DESSE ORNAMENTO GIRA EM TORNO DA NATUREZA AMBÍGUA, MISTERIOSA e INAPREENSÍVEL DA ÁGUA. TEMÁTICA DA ESSÊNCIA INATINGÍVEL da água indica não só A PERSONALIDADE FUGIDIA DO MARIDO DE JOANA CAROLINA (homem de gestos inesperados) bem como as SURPRESAS que a vida (imprevisível) apronta para JOANA CAROLINA e sua FAMÍLIA (desde dificuldades econômicas até a morte de JERÔNIMO JOSÉ)

No SEXTO MISTÉRIO penetramos àas atividades de caça e pesca (sexto ornamento) marcadas pela VIOLÊNCIA DO HOMEM, que vara e dilacera os animais da terra e do mar para atender à sua necessidade de sobrevivência. MAS, MESMO ASSIM, o homem sucumbe à ação devoradora da MORTE. A VIOLÊNCIA E O ANIQUILAMENTO, inscritos na ordem da natureza, encontram suas ressonâncias significativas na esfera social da MICRONARRATIVA do SEXTO MISTÉRIO. O OBJETO CENTRAL DO 6ª MISTÉRIO consiste nas ameaças e dificuldades de ordem moral e social infligidas a Joana Carolina pelo filho do dono da fazenda de Serra Grande, onde ela trabalhava. Joana Carolina Não se torna objeto de “caça e pesca” do filho do dono da fazenda. Não se torna “presa” dele. O filho do fazendeiro sucumbe à ação silenciosa de Joana Carolina. Joana transforma o filho do dono da fazenda.TIVE-LHE ÓDIO, DURANTE ALGUNS ANOS. COM O TEMPO, O ÓDIO FOI PASSANDO, VEIO UMA
ESPÉCIE DE ENLEVO, TALVEZ DE GRATIDÃO. ACABEI ACHANDO QUE JOANA CAROLINA FOI MINHA TRANSCENDÊNCIA...”(p.105)

No SÉTIMO MISTÉRIO, O SÉTIMO ORNAMENTO centra-se na atividade do FIAR, TECER e COSER, iniciando uma fase mais recente da civilização humana e remetendo a todo o ato criador do homem. Micronarrativa emitida por Laura, filha de Joana Carolina. Fala da vida adversa de Joana durante 7 anos, 7 meses e 7 dias em Serra Grande. Laura prenuncia um mundo mais tranqüilo com a mudança para o Engenho de Queimadas. Joana faz toalhas de crochê para vender na cidade. É também tecedeira e fiandeira. Joana MANTÉM-SE FIEL ao espírito de SOLIDARIEDADE  com os homens e a Natureza

   No OITAVO MISTÉRIOO o mundo agrícola (ligado á cultura da cana-de-açúcar) no qual vivem Joana Carolina e sua família – Indica mais um CICLO DA CIVILIZAÇÃO HUMANA em que a subsistência do homem dependia do trabalho da terra. A cultura canavieira e os engenhos. Joana vive no meio agrícola e sofre (como os trabalhadores da terra e dos engenhos) as violências e as explorações – FRUTO DE UMA SOCIEDADE DISTORCIDA. EVOCAM-SE AS IMAGENS DA TERRA, DOS INSTRUMENTOS, DAS PESSOAS, DOS ANIMAIS. AS CONDIÇÕES CLIMÁTICAS desfavoráveis da Região Nordeste e as relações SOCIAIS (hierárquicas e opressivas), bem caracterizadas de uma sociedade latifundiária: O FILHO DO SENHOR DO ENGENHO DE SERRA GRANDE impõem condição para emprestar ou alugar o carro de bois (esse carro transportará  o corpo de Totônia) ele quer que Joana Carolina ceda ao seu desejo obsessivo e se entregue a ele.

No O NONO MISTÉRIO, o nono ornamento celebra o poder cosmogônico da palavra. Alude ao signo de GÊMEOS sob o qual se desenrola a micronarrativa desse mistério. Joana Carolina transforma em amigos e guardiões os perseguidos de Miguel e Cristina e cria uma situação favorável ao casamento dos dois jovens. O signo de GÊMEOS simboliza a POLARIDADE SEXUAL (o prenúncio da relação amorosa entre Miguel e Cristina)

No DÉCIMO MISTÉRIO: “AS CALOTAS POLARES, AS ÁREAS TEMPERADAS E O ARO EQUATORIAL, EXALANDO AINDA O BAFO DAS BIGORNAS. CONTINENTES E ILHAS...”.  As imagens, evocadas pelas palavras que compõem o Décimo ornamento, remetem à terra, outro elemento básico da natureza. Faz-se alusão ao SIGNO de CÂNCER através da referência ao Outono. Esse ornamento prenuncia a velhice de Joana Carolina – que já se encontra no outono de sua vida. O caranguejo, ANIMAL QUE REPRESENTA O SIGNO de câncer – é utilizado metaforicamente na descrição do fenômeno da velhice (em geral). Mais uma vez Osman vai se valer de símbolos na narrativa, para caracterizar personagens e situações. Olhem este que abre o próximo parágrafo:
 A velhice é feito um caranguejo, não envelhecemos por igual. Ela vai estendendo, dentro   de nós, suas patas. Às vezes, começa pela espinha, outra pelas pernas, outra pela cabeça. Em mim, começou pelos sonhos: dei para sonhar, quase todas as noites, com as pessoas de antanho. (Em Joana, esse caranguejo estendeu de uma vez as suas patas. Atacou-lhe os rins e o rosto...)”

   No DÉCIMO – PRIMEIRO MISTÉRIO: O ornamento do DÉCIMO- PRIMEIRO MISTÉRIO encerra o ciclo dos quatro elementos da natureza. Apresenta sob a forma de ADVINHA. O FOGO, embora este simbolize a vida, conota com ênfase a MORTE. “O que é que é? Leão de invisíveis dentes, de dente é feito e morde pela juba..”. O FOGO “devora tudo” nada recusando a seus molares caninos e incisivos.” . Ornamento: O LEÃO – IMAGEM QUE SIMBOLIZA VIDA E MORTE.  Vemos a  extrema-unção de Joana Carolina.E nós deitamos na  rede de relações semânticas entre o ornamento e a micronarrativa se que se teceu pela morte e pelo tema do Fogo que conota LUZ, CHAMA, VIDA e AMOR. Joana Carolina mesmo na hora da morte apresenta uma aura que a diferencia de todos os outros seres humanos e a MITIFICA: a morte não a apaga Joana Carolina continua sendo uma chama.

O DÉCIMO- SEGUNDO MISTÉRIO está centrado no enterro de Joana Carolina. O ornamento tem por motivo principal o CEMITÉRIO. A micronarrativa é enunciada pela VOZ COLETIVA. O ornamento está embutido ao longo do discurso e indicado por cores como VERDE – BRANCO e CINZA que colorem o melhor vestido com o qual Joana é enterrada (“MADRESSILVAS BRANCAS e FOLHAGENS SOBRE FUNDO CINZA”). Este mistério celebra com um TOM ÉPICO A COMUNHÃO DE JOANA CAROLINA com os homens e a natureza (INTEGRAÇÃO COM O UNIVERSO).
 A INTEGRAÇÃO É REITERADA NUMA LINGUAGEM POÉTICA e SE DÁ:
 

POR UMA VOZ COLETIVA
PELA ENUMERAÇÃO DE SUBSTANTIVOS PRÓPRIOS NO PLURAL que sugerem a união entre os homens do povo. O uso de símbolos gráficos carregados de sentidos extr-lingüísticos (observe):
TODA HUMANIDADE PARECE ACOMPANHAR JOANA CAROLINA AO CEMITÉRIO:

  (Áureos e Maria, Benedito e Neuza, Chicos e Ofélias, Dalvas e Pedros, Elzas e Quintinos)”

   Enumeração de nomes e sobrenomes remetem à natureza e ao cosmos.

- A 1ª enumeração dos nomes dos acompanhantes do enterro de Joana Carolina contém, em uma LINGUAGEM CIFRADA, A REFERÊNCIA AOS 4 PONTOS CARDEAIS E AO SIGNO DE VIRGEM:

 

EVANGELISTAS             - MONTES – ARCOS de MARCOS e NORTE
QUE EVOCARAM           - LUCAS de SUL
AS 4 DIREÇÕES DO         - MESATEUS de MATEUS
ESPAÇO CÓSMICO        - ESTE e JOÃO ORESTES DE JOÃO e OESTE


Acompanhantes do Séqüito – Fúnebre (remetem a elementos da natureza e acidentes geográficos: LAGOS- RIBEIROS – ROCHAS – PEDREIRAS – MONTES – SERRAS ). OS NOMES DE ALGUNS MORTOS (remetem às diferentes espécies de madeiras utilizadas para fazer caixões) e os CEDROS e CARVALHOS, NOGUEIRAS e OLIVEIRAS, JACARANDÁS e LOUREIROS. Com os elementos da natureza – animais, plantas, árvores, flores e campos – Joana se dissolverá na terra.






Ivana Moura revê Osman Lins

por Moisés Neto



Ivana Moura, jornalista e crítica teatral do Diário de Pernambuco desde 1989, lançou o livro Osman Lins: o Matemático da Prosa, pela coleção Malungo (Recife: FCCR, 2003. 114 p.).  obra na qual Osman reaparece para seus contemporâneos. Ela define seu trabalho como “um livro que se vale da memória afetiva de várias pessoas”. Ela teve pouco mais de dois meses para elaborá-lo.
O livro, mais informativo do que crítico, é dividido em cinco partes: na primeira, “Tempo de Plantar”, a autora aborda a infância e adolescência de Lins em Vitória (PE): “Eu queria deixar minha casa, minha avó (...) estava farto de ser vigiado, contemplado, querido” (p17). Sua mãe morreu quinze dias depois do seu nascimento. Houve complicações no parto. Não sobrou nenhuma foto dela. Ele não teve festinhas de aniversário, destaca Ivana, que em certas partes do seu texto usa táticas de investigação psicológica, mas ao modo tradicional do jornalismo: com distanciamento.  Osman foi criado entregue a si mesmo. Uma figura que a autora destaca é a do tio, Antônio Figueiredo: tocava violão, contava história, fazia repente... “era profeta”, fazia “garrafadas”, está representado em O Fiel e a Pedra, na figura de Bernardo Vieira de Cedro( p 30). Sobre seus modos podemos anotar: “Osman era refinado a ponto de calçar os sapatos na hora de almoçar” (p 31).
Na segunda parte, “Arma Literária”, Ivana ressalta o depoimento do escritor pernambucano Gilvan Lemos: “O leitor brasileiro tem preguiça de pensar e gosta de ler coisas bem fáceis, bem claras. A literatura de Osman apresenta certa dificuldade, porque ele usa muitos signos, muitas coisas inventadas. Então por isso, ele talvez não tenha adquirido popularidade” (p 35).   “Atuamos numa sociedade em que o conjunto é hostil ou indiferente ao nosso trabalho”, disse Osman, que queria ternura, reconhecimento.
A perspicácia da Moura está, dentre outras coisas, na concatenação das idéias e numa escrita ágil e implacável. É rápida no gatilho ao selecionar depoimentos e segue uma ordem interior que rompe com a linearidade e esmiúça detalhes que assim vão se tornando imprescindíveis. Por exemplo: quando relembra que certa vez o avião em que Osman viajava ia caindo e ele não pensou na família nem nos amigos, somente isso: “Este avião não pode cair, porque eu ainda não terminei meu livro!”. E aqui a autora ressalta: a literatura “estava acima dele mesmo” (p 40).
 Na terceira parte, “O Teatro de Osman Lins”, a autora dá relevo a opinião de Lins sobre a própria dramaturgia: “Escrevo para teatro como escrevo poesia, isto é, sem considerar-me rigorosamente um dramaturgo ou um poeta” (p 48).E sobre como os outros viam suas peças Ivana exibe o depoimento de Pedro Bloch, sobre Lisbela: “Teatro normal, compreensível, humano, cheio de verdade e beleza (...) Nordeste com simplicidade adorável de sua gente, costumes regionais pitorescos, linguajar curioso”(p 45). Como o livro é menos crítico e mais expositivo, o texto ensina para neófitos que antes de escrever Lisbela, Osman escrevera O Vale do Sol, Os Animais Enjaulados e O Cão do Segundo Livro. Em 1963 é encenada A Idade dos Homens. Entre 1969 e 1970 há outras peças como Mistérios das Figuras de Barro, Auto do Salão do Automóvel e Romance dos Três Soldados de Herodes (peças em um ato).Inclui depoimentos “inéditos” como o de  José Pimentel, encenador em Recife, que dirigiu o “Auto do Salão...” e o autor não gostou. Ivana entrevistou Pimentel que também reclamou da tentativa de “intromissão” de Osman, na sua direção (p 72).
Na penúltima parte do livro, “Sagração da Palavra”, mais curiosidades: a autora revela que Osman torcia pelo Clube Náutico Capibaribe, do Recife, e decepcionou-se a ponto de nunca mais torcer por time nenhum; nem pela seleção brasileira. Comenta também a separação no primeiro casamento que gerou suas três filhas. A separação é atribuída ao fato da primeira mulher não incentivá-lo como escritor. Osman também dizia que sua obra reflete em parte “revolta dos filhos contra seus pais (...) e representa metafísica e método” (p 81).
Na quinta e última parte, “Cerimônia do Adeus”, Ivana Moura reproduz o depoimento de uma filha de Osman, Ângela: “papai morreu de câncer”, ele voltou em sonho e avisou a filha que ela devia se tratar do mesmo mal. Ela salvou-se assim. Já pesquisadora Leda Alves, viúva de Hermilo Borba Filho, escritor amigo de Osman, declara para Ivana que: “Osman passava muito tempo lendo e se dilacerando com uma palavra” (p 86). Osman morreu no dia do aniversário de Hermilo.
E La Moura conclui seu texto citando Marcel Proust: Só há uma maneira do artista servir à sua pátria: sendo essencialmente artista”. E o que passa nesta obra é que Osman assumiu esta postura.



O Fiel e a Pedra
Romance do pernambucano Osman Lins


O fiel e a pedra foi publicado no Rio de Janeiro e premiado pela União Brasileira de Escritores. Como ocorreu com os livros de Osman Lins publicados anteriormente, esse romance foi muito bem recebido pela crítica, sensibilizada pelo fato de o autor desbravar caminho próprio na tradição do romance regionalista do nordeste, afastando-se do recurso ao pitoresco, à cor local, ao folclore e à sensualidade e realizando-se no registro do romance ético e épico. Com O fiel e a pedra Osman Lins mostrou-se capaz de rivalizar com os melhores escritores da geração anterior.
O ano de 1961 é um marco na biografia de Osman Lins, no sentido de que o solo de seu trabalho literário, intelectual e cultural que vinha sendo semeado e regado pacientemente e a duras penas dá frutos viçosos, não só pelo reconhecimento de suas qualidades, mas também por atingir público mais amplo.
A partir de então, o ficcionista não precisará mais se submeter a concursos, embora, como dramaturgo, Osman Lins venha a ser ainda agraciado com prêmios (em 1965, dois lhe são conferidos : Anchieta, da Comissão Estadual de Teatro, de São Paulo, pela peça Guerra do cansa-cavalo, que seria publicada dois anos depois e que, em 1971, inauguraria o Teatro Municipal de Santo André); Narizinho, também , da Comissão Estadual de Teatro, pela peça infantil Capa Verde e o Natal .
Referindo-se a O fiel e a pedra, Osman Lins diz que este romance corresponde a uma “plataforma de chegada e de saída”, encerrando uma fase de sua ficção em termos tradicionais. Essa mesma expressão pode ser aplicada para o ano de 1961, a partir de uma visão global de sua biografia.
Meu pai, descendente de senhores cujas terras, dizem, iam do Cabo de Santo Agostinho até bem perto do Rio Real, na fronteira das Alagoas, tinha uma pequena alfaiataria. Alfaiate é uma bonita profissão. Quase toda profissão manual é muito bonita. Só que, em geral, dá menos dinheiro que a de senhor de engenho. Esse homem desposou uma mulher que não cheguei a conhecer e que veio ao mundo, parece, com único encargo de ser a minha mãe. Cumprida essa tarefa, morreu, um ano depois de casada. Coisa estúpida. Sempre achei que isso me dava uma espécie de responsabilidade. Morreu aquela garota para que eu nascesse. Não podia fazer de minha vida uma trouxa, um papel servido, jogá-la por aí. Nunca vi um retrato seu _ ela não gostava de fotografias, embora conste que fosse bonita. Parece que o fato me marcou, O tema aparece em O Fiel e a Pedra, em Nove, Novena (na história "Perdidos e Achados") e o herói de Avalovara anda pelo mundo feito um doido, buscando o que não perdeu.
A solidão e a estreiteza dos meus primeiros anos, atenuados pelas presenças de Laura, irmã de meu pai (que é, transfigurada, a Teresa de O Fiel e a Pedra), e da minha avó paterna, Joana Carolina, cuja vida agreste e, por assim dizer, simbólica, narrei em outro livro, foram ainda compensadas pela presença de um homem como não houve muitos no mundo: Antônio Figueiredo. Para quem não o conheceu, isto é apenas um nome. Para mim, é tudo o que pode sonhar o coração de um menino. Lá está ele, transformado, também em O Fiel e a Pedra, com o nome de Bernardo Vieira Cedro, vivendo aventuras muito semelhantes a algumas que enfrentou realmente. Vivia contando histórias. Foi ele o meu primeiro livro, meu iniciador na arte de narrar, assim como a velha Totônia foi a primeira influência literária do José Lins do Rego.
 O Fiel e a Pedra começou como novela e depois virou um romance. Como e quando você determina o gênero? Poderia definir o que é o conto, a novela e o romance? É razoável persistir o gênero literário na literatura contemporânea?

   Devemos conceder maior amplitude à pergunta que leva a essa controvertida questão de gêneros, indagando, por exemplo, o que se entende por ficção. Que devemos entender por ficção? Acho ser a fixação, através da palavra escrita, e com ênfase na aparência das coisas, pelo autor decompostas e reorganizadas, de uma visão pessoal do mundo, não raro absurda e quase sempre insólita, que no entanto se confunde, sob a pressão do gênio do escritor, com o universo onde todos habitamos. A designação do gênero me parece acadêmica, não importa. E as existentes nem sempre satisfazem. Designei os trabalhos de Nove, Novena, por exemplo, como narrativas.

   Parece que a sua obra está dividida em duas fases: a primeira, até O Fiel e a Pedra, e a segunda, iniciando com Nove, Novena, onde a estrutura, a arquitetura do romance, passaria a ser sua preocupação primordial. Você concorda?

   O sentido não é esse. Há uma coisa engraçada. A trajetória verdadeira de um indivíduo, de um artista, de um escritor, quando é exercida superficialmente, se esclarece à primeira vista. O autor dá uma direção declarada ao que ele faz, e essa direção é oferecida facilmente aos contempladores. Quando essa atividade é exercida de maneira mais profunda, ela pode provocar uma compreensão exatamente inversa.

    O Fiel e a Pedra representa o ponto para o qual converge tudo o que fiz antes e o ponto de onde parte o que vim a fazer depois. É uma plataforma de chegada e de saída, mas num terreno bem mais amplo que apenas o estrutural. Trata-se da travessia, como escritor e como homem de um limite ficcional e político. Meus livros anteriores a Nove, Novena realmente estão mais distantes dos outros no tratamento e na visão geral das coisas. Acontece, porem, que Nove, Novena, em absoluto, não os nega. Ao contrário, através daqueles livros, daquela plataforma, caminhei para Nove, Novena e para as obras que o sucederam, acompanhando minha própria trajetória no mundo, minhas buscas, minhas conquistas. Podemos ver, por exemplo, que em O Visitante o mundo exterior quase não existia, enquanto que em Nove, Novena quase só existe o mundo exterior. É uma contradição? Não. Caminhei da interiorização de O Visitante, através de O Fiel e a Pedra, para a exteriorização, a plasticidade de Nove, Novena. E é natural que assim fosse. Só com a maturidade adquire o ficcionista a coragem para olhar de face o mundo exterior, as coisas materiais, o concreto. Escrito, quando eu chegava aos quarenta anos, Nove, Novena exprime de um modo claro o momento dessa conquista, a travessia daquele limiar. Em O FieI e a Pedra temos um problema de afirmação pessoal (um homem de classe média enfrentando um senhor de terras).





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