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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Os Malefícios do Tabaco ou Os males do fumo peça de Anton Tchekhov




Arion Medeiros interpreta   NIOUKHINE. Direção de Ruben Rocha Filho, Moisés Monteiro de Melo Neto (Moisés Neto) e Guilherme Coelho. Montagem de 2015. Recife PE




         NIOUKHINE (de longas suíças, sem bigode, fato velho e coçado. Entra majestosamente, saúda e ajeita o colete). – Minhas senhoras e, de certo modo, meus senhores. (Alisa as suíças). Pediram a minha mulher que eu viesse aqui fazer uma conferência, para fins beneficientes, sobre um assunto qualquer. E por que não fazê-la? Se é preciso uma conferência, façamos então uma conferência; a mim é-me absolutamente indiferente. Bem... para dizer a verdade, eu não sou propriamente um professor, e nem sequer estou munido de qualquer título acadêmico ou científico: pois apesar disso, há trinta anos que ininterruptamente, e posso mesmo acrescentar que em detrimento da minha saúde e de outras coisas semelhantes, eu trabalho em assuntos de natureza estritamente científica. Dou tratos aos miolos quando, às vezes, - imaginem Vossas Excelências! – tenho de escrever artigos científicos ou... talvez muito pouco científicos, mas que, vá lá, têm um certo ar científico.

         Nestes últimos dias, precisamente, escrevi entre outros um artigo considerável sob o título «Dos efeitos maléficos de alguns insectos». Este artigo agradou muito às minhas filhas, sobretudo na parte que se relacionava com os percevejos.  Pois bem, eu, depois de o ter lido rasguei-o. De facto, por mais que eu dissesse e escrevesse, nem por isso se dispensaria o pó de piretro. Em nossa casa, por exemplo, há percevejos até no piano de cauda...
         Escolhi para tema da minha conferência de hoje, se assim lhe podemos chamar, o prejuízo que traz à humanidade o uso e abuso do tabaco. Quanto a mim, devo confessá-lo, sou um fumador inveterado. Mas a minha mulher ordenou-me que falasse hoje dos malefícios do tabaco, e não tenho por isso outro remédio senão obedecer-lhe. Já que é preciso falar de tabaco, falemos então de tabaco. Para mim é absolutamente indiferente; e eu convido Vossas Excelências, minhas senhoras e meus senhores, a escutar a minha conferência com toda a gravidade requerida para evitar qualquer sensaboria. E aquelas pessoas a quem mete medo uma conferência séria, digamos mesmo científica, têm inteira liberdade de não escutar... ou de sair. (Ajeita o colete).
         Peço, sobretudo, a atenção dos senhores doutores aqui presentes. Eles poderão encontrar na minha conferência numerosos ensinamentos úteis, porque o tabaco, à margem dos seus efeitos nocivos, é muito empregado em medicina.
         Assim, por exemplo, se metermos uma mosca dentro de uma tabaqueira, ela morre, aparentemente por desarranjo nervoso... O tabaco é, para falar corretamente, uma planta...
         Quando faço uma conferência pisco ordinariamente o olho direito, mas Vossas Excelências não façam caso: é efeito da emoção. Eu sou, duma maneira geral, um homem muito nervoso.
         O meu olho direito começou a piscar em 1889, a 13 de Setembro, exactamente no dia em que, por assim dizer, a minha mulher deu à luz a sua quarta filha, Bárbara... Todas as minhas filhas nasceram em dias 13. Mas de resto (tira e consulta o relógio) dado o pouco tempo de que dispomos, não nos afastemos do tema da nossa conferência.
         Devo em todo o caso dizer a Vossas Excelências que a minha mulher tem uma escola de música e um pensionato particular, ou, talvez mais exactamente, não é bem um pensionato, mas qualquer coisa no género. Aqui para nós, a minha mulher gosta de apregoar aos quatro ventos a sua miséria, mas a verdade é que ela conseguiu pôr uns dinheiros de lado – uns quarenta ou mesmo uns cinquenta mil rublos; eu, pessoalmente, é que não tenho um copek, nem sequer uma moeda furada. Mas deixemos isso...
         No pensionato de minha mulher sou eu o encarregado da administração. Faço as provisões, fiscalizo o pessoal, assento as despesas, tomo conta da escrita, mato os percevejos, passeio o cãozinho de minha mulher e dou caça aos ratos.
         Ontem à tarde, por exemplo, eu devia entregar à cozinheira farinha e manteiga, porque se tinha decidido fazer fritos. Pois muito bem! Imaginem Vossas Excelências que hoje, quando os fritos já estavam prontos, a minha mulher veio à cozinha anunciar que três pensionistas, estando doentes da garganta, não podiam comer fritos. Tinham-se feito, portanto, fritos a mais. Que destino lhes havíamos de dar? A minha mulher, primeiro, ordenou que os guardassem na dispensa, para o doa seguinte. Mas depois refletiu longamente e disse-me: «Coma você esses fritos, seu espantalho!».
         Quando não está de bom humor, a minha mulher chama-me espantalho, víbora, demônio... Demônio, eu? Calculem Vossas Excelências!... Em suma, ela está sempre de mau humor!
         Pois quanto aos tais fritos, não se pode bem dizer que os tenha comido, porque os devorei, de tal modo que ando sempre esfomeado! Ontem, por exemplo, a minha mulher não me deu de jantar... Disse-me assim: «A você, seu espantalho, não vale a pena alimentá-lo»!
         Entretanto (consulta novamente o relógio) falando disto e daquilo fomo-nos afastando um pouco do assunto... Vamos, pois, prosseguir, ainda que naturalmente, eu esteja convencido que Vossas Excelências haviam de gostar mais de ouvir uma romanza, ou uma sinfonia qualquer, ou uma área de ópera.
         (Trauteando). «Fremente indignação – Palpita meu coração...»
         (Falado). Não me lembro de onde isto é... Entre parêntesis, esqueci-me de dizer a Vossas Excelências que na escola de música de minha mulher, além das particularidades domésticas, eu tenho a meu cargo o ensino das matemáticas, da física, da química, da geografia, da história, do solfejo, da literatura, etc. Para as danças, o canto e o desenho a minha mulher ministra os rudimentos, embora seja eu, igualmente, quem ensina essas matérias. A nossa escola de música fica no Beco dos Cinco Cães, número 13. A razão da minha pouca sorte, não há dúvida, é habitarmos no número 13. As minhas filhas, como Vossas Excelências já sabem, nasceram todas em dias 13 e a nossa casa tem 13 janelas... Mas deixemos isso.
         Para quaisquer informações que Vossas Excelências pretendam, encontrarão sempre a minha mulher em casa, e o programa da escola, se alguém deseja conhecê-lo, está à venda no porteiro, ao preço de 30 copeks. (Tira do bolso algumas pequenas brochuras). E até se alguém está interessado, posso vender alguns a Vossas Excelências. São a 30 copeks o exemplar. (Pausa). Ninguém deseja? Então a 20!... (Outra pausa. Guardando os programas). É pena...
         Pois é verdade, a nossa casa tem o número 13. E nada me sai bem; envelheci, tornei-me estúpido... Assim, reparem Vossas Excelências, estou a fazer uma conferência, tenho um ar alegre, e contudo desejaria gritar de desespero e fugir, fugir, fosse lá para onde fosse!
         E como não tenho ninguém a quem contar as minhas mágoas, até chego a ter vontade de chorar...
         Já sei que me vão dizer: e então as suas filhas? Mas as minhas filhas, quando eu me lamento, não fazem outra coisa senão rir de mim!... A minha mulher tem sete filhas... Não, perdão, seis! Parece-me... (Emenda rapidamente). Sete, sete! A mais velha, Ana, tem 27 anos e a mais nova 17. Meus senhores, (olha receosamente em direcção dos bastidores) eu sou um desgraçado; tornei-me estúpido, nulo, insignificante mas no fundo tendes diante de vós o mais feliz dos pais. No fundo tem de ser assim e não posso falar doutra maneira. Se ao menos Vossas Excelências pudessem saber... Há trinta e três anos que vivo com a minha mulher... e... posso dizer que estes foram os melhores anos da minha vida..., ou, pelo menos, poderiam ter sido os melhores... Apesar de tudo, para falar verdade, esses anos passaram como um instante, um momento feliz – que os leve o diabo de uma vez para sempre!
         (Olhando os bastidores). Bom, parece-me que a minha mulher ainda não chegou. E como ela ainda cá não está, posso dizer tudo o que eu quiser. Tenho um medo horrível... um medo horrível quando ela olha para mim...
         Pois bem, eis o que às vezes eu digo a mim próprio: se as minhas filhas demoram tanto a casar-se, é porque são tímidas e os cavalheiros não reparam nelas. A minha mulher não quer dar serões, não convida ninguém para jantar; é muito avarenta, conflituosa e azeda; e é por isso que ninguém vai a nossa casa. Mas..., mas aqui para nós e muito em segredo... (Aproxima-se da boca de cena; em tom de confidência). Nos dias de grande festa, quem quiser ver as filhas de minha mulher, é em casa da tia Natália Semionovna; conhecem...: aquela Natália Semionovna que sofre de reumatismo e tem um vestido amarelo, salpicado de manchas pretas que parecem baratas... Em casa dela até se servem acepipes; e quando a minha mulher não está, sempre se bebe um bocadito... Também é verdade que o mais pequeno copo me embriaga; então sente-se o coração tão quente..., e ao mesmo tempo fica-se tão triste..., que nem sou capaz de vos explicar... A gente recorda-se, não se sabe porquê, do tempo em que era novo, e só apetece fugir não se sabe para onde... Ah, se Vossas Excelências soubessem como é forte este desejo! (Com paixão). Fugir! Deixar tudo sem olhar para trás! Mas fugir para onde? Não importa para onde..., desde que se deixe esta vida estúpida e banal, esta vida medíocre que fez de mim um deplorável pateta, um velho idiota e ridículo... Fugir desta mesquinha, malvada, malvada avarenta que me martiriza e tortura há trinta e três anos! Fugir da música, da cozinha, do dinheiro da minha mulher, de todas estas ninharias, de todas estas baixezas... E parar num campo, em qualquer parte, longe, muito longe!... E debaixo de um céu imenso ser como uma árvore, uma vara..., ser como um espantalho de pardais..., e ver, toda a noite, por cima de mim, a lua tranquila e clara... E esquecer, esquecer, esquecer... Oh! Como eu desejaria arrancar esta casaca velha e mesquinha, dentro da qual me casei há mais de trinta e três anos..., (tira violentamente a casaca) dentro da qual faço continuamente conferências para fins beneficentes. Toma! (Calca raivosamente a casaca aos pés). Toma! Toma!... Estou velho, sou pobre, sou tão ridículo, tão lamentável como este colete com as suas costas coçadas e luzidias... (Volta-se para mostrar as costas do colete). Mas não preciso de coisa nenhuma! Estou acima disto e sou mais puro do que tudo isto! Dantes, era jovem, inteligente, cursava a Universidade, sonhava... Julgava-me um homem! Agora só preciso de repouso...
         (Depois de ter olhado para os bastidores, torna a vestir rapidamente a casaca). A minha mulher já está lá dentro... Já chegou e está ali à minha espera. (Olha o relógio). E a hora já passou! Se ela perguntar alguma coisa, digam-lhe, por favor, digam-lhe que a conferência se realizou e que o espantalho – sou eu, o espantalho... – se portou convenientemente... (Olha para os bastidores e baixa a voz). Ela já está a olhar para aqui...
         (Endireitando-se e elevando a voz). E visto que o tabaco encerra o terrível veneno de que vos acabo de falar, não se deve fumar em caso nenhum e permito-me ter a esperança de que a minha conferência sobre os malefícios do tabaco possa, de certo modo, haver trazido a Vossas Excelências qualquer utilidade. Tenho dito. Dixi et animam levivi!
         (Saúda e afasta-se majestosamente)



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