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domingo, 22 de setembro de 2019

Conto de Marilene Felinto


Conto de Marilene Felinto
(parte de coletânea a ser lançada em março de 2020)

Agora esta tua morte, esse trauma... Teu livro me olha de lá de cima da minha escrivaninha, teu nome ressaltando nas letras brancas. É que me trouxeram livros teus que eu não conhecia. Tua obra. É que me trouxeram inclusive tuas filhas, tua mulher... a mim, que não as conhecia!
Tuas filhas brincam no gramado da minha casa. Como assim? Como é que eu faço? Você não me disse... não me avisou. Nada. Tuas filhas brincam, e meu cachorro pula e salta com elas...
Ora, nosso desencontro virou reencontro! Mas apenas com partes de você, com o melhor da tua reprodução: teus gestos, teu nariz, tua testa, teu sorriso no sorriso de tuas filhas, na cara delas. Teu legado, teu deixado.
Meu cachorro salta e as meninas riem... tudo em cores, em tempo real. Estivesse você aqui, como nos velhos tempos, e soltaríamos um comentário qualquer daqueles nossos, um julgamento, sobre os cachorros, por exemplo, daquelas falas que não serviam para muita coisa, senão somente para que ríssemos depois:
– Que existência imbecil desses animais, hein?! Tão bonitos, esses bichos de estimação, mas não sabem de nada! Quanta imbecilidade! Que vida! Ó!
Um comentário qualquer desses, do lugar da nossa arrogância inútil. Em seguida riríamos, feito adolescentes sem compromisso. E essas nossas risadas ecoam ainda, essa nossa impertinência juvenil paira no ar como se fosse ontem. Fantasmas nossos. Teu fantasma.
– Vamos fazer uma coisa bem doida? – Você propunha, risonho, como se dizia na letra da música. – Topa? Uma coisa bem ilegal, o que você acha? – E nós então gargalhávamos, adolescentes sem propósito.
Mas agora, com esta tua morte, fico eu aqui, mais precocemente velho, mais precocemente feio, mais precocemente à beira da morte. Qualquer dia desses, embarco eu também... de um acidente, de uma explosão orgânica, um escorrer de sangue, uma palpitação, um estertor, de uma dor, de um súbito qualquer. Não é assim que é?
Faço de conta que é você aqui, tuas filhas, tua mulher falando em você! Que coisa. Isso é alguma brincadeira? Ou foi uma daquelas tuas curiosidades científicas, uma especulação? (Alguém precisava ter lembrado a você que “Linha mortal” era apenas um filme... Era somente ficção. Ou você levou aquilo a sério?). Sei lá de você! Todos os personagens do filme voltaram, que eu me lembre. Só você, no tempo real, não voltou.
Desconheço tua dor, não estive... Não vi o soro, o engulho, o vômito, a morfina, os eletrodos... a linha mortal, não vi. Mas conheço o desamparo: o teu, o meu, o das meninas.
Tuas filhas brincam exuberantes no gramado da minha casa – mas eu, de mãos atadas, ainda assim cuido para que elas não corram perigo!
Ora, como é que eu faço?
Tua mulher veio de visita... e fuma aqui ao meu lado... e tudo é fumaça, neblina, nuvem... Por acaso isso não passa de um filme de cinema? Diga que sim, por favor! Para que eu então me localize, entenda, realize a tua morte para além desta névoa: pois esta tua morte, se tivesse uma cor, seria vermelho absurdo, de tanto que ofusca, de tanto que ofende a minha vista!
Tuas filhas pulam e riem vivazes, brincam de faz-de-conta no gramado da minha casa. É inverno, e uma sequência de estações está por vir, uma sequência de fatos, de folhas caídas, de flores, de frutos, de eventos de vida. Mas o que fazer? As meninas gesticulam incrivelmente como você, fazem caras e bocas como as tuas! O que fazer com isso?
– Vamos ser sozinhos juntos, que amigos servem para isso mesmo. – Você disse (citando também a letra da música), num pacto, numa promessa de partilha da solidão inexorável.
– Sim – respondi –, e vamos vivendo essas nossas vidas simpatéticas! – E você gargalhou muito. – Lembra disso? “Simpatéticas”! Boa, muito boa! – você exclamou. E a tua gargalhada ecoa aqui ainda, fantasmagórica.
Será que te encontro dia desses em algum lugar para além? Não terei cerimônia, entendeu? Direi tudo o que tiver de dizer. Descontarei todos os dias de ausência – tua e minha. E vê se me trata de igual para igual, está certo? Que eu não estou aqui para fazer as pazes com você. Não. Seria hipocrisia numa hora dessas, da tua morte. Isso é apenas nosso acerto de contas. É entre você e eu, e nada mais. Nosso acerto, de homem para homem. Pode ser, sim, que você queira me estapear: quis muitas vezes, não? E eu também, não se engane não!
Será que te encontro dias desses? Para onde? Pois quando a gente se reencontrar, fica combinado que um vai dar um soco na cara do outro... Ou somente um sopapo dos bons, quem sabe – terminando por se abraçar como velhos amigos, como dois personagens de D. H. Lawrence em luta corporal.
É inverno. E você se foi justo em agosto, o mês de que eu menos gosto (“mês do desgosto”, sim... e pouco importa se você condenava o ditado, a crendice supersticiosa, o clichê). E pensar que você se foi depois da chamada virada de todo um século! Justo depois desta datação tão cristã que menosprezávamos! Foi-se nesta década de 2000 e tanto, nestes anos de 2000 e tanto, nestes cristianos imbecis! Mas, justo, nós teríamos tido tempo ainda de nos reencontrar nos anos 2020, nos anos 2030, quem sabe até nos anos 2040 – em qualquer dos antianos, dos anticristianos nossos, como caberia ao nosso ateísmo! 
Mas você saiu antes. E agora tua mulher me lembra, me relembra, me mostra a dedicatória que fiz para você num livro, há tempos, há décadas perdidas, atemporais.
“Amigo mortal, para você este livro, que eu escrevi como quem brinca no quintal dos fundos! Acredita? Seu, sempre amigo, P. Agosto, 1994.”
“Amigo mortal” foi como nos tratamos um ao outro por uns tempos, o epíteto que tiramos do título do filme pelo qual você ficou friamente obcecado. Mas disseram que você não falou da morte, não quis falar. Como assim? Você não quis falar? Pensou em milagre? Se a filosofia falhou, se a ciência falhou... você pensou em milagre?
– Hoje é um bom dia para morrer! (Você, por acaso, impropriamente, teria pensado isso na tua hora final, abrindo os braços, como o personagem no filme?)
Só que todos os personagens voltaram. Só que você não voltou. Agora com esta tua morte, pego teu orgulho ferido, meu orgulho ferido, tua mágoa, minha mágoa, somo tudo, diminuo, divido por dois... e o resultado é isto: uma água, uma lágrima que eu engulo. Portanto, isto não é uma reconciliação —embora seja uma saudade intemporal—, isto é somente para te lembrar que aquele filme a que assistimos como adolescentes era uma ilusão, rapaz, uma ficção, uma brincadeira de médicos experimentando morrer. Não era para você, de verdade! Nunca foi.
Será que te reencontro um dia para além, para aquém? Para onde?
Repito que não terei cerimônia. Direi tudo o que tiver de dizer, impropriamente, que seja. Descontarei todos os dias de ausência – tua e minha. Acusarei ao vivo tua presença aqui por meio do teu legado, do teu deixado inesperado.
Tuas filhas brincam no gramado da minha casa, brotam como flores, como o vermelhovinho-ou-vivo, como o absurdo rosa em choque das primaveras, das azaleias —o milagre. 

Para Fernanda Diamant 
(Em 21.08.2019)

Marilene Felinto é escritora e tradutora
 A autora é excepcional ficcionista, com dois romances publicados “No Lago Encantado de Grongonzo” e “As Mulheres de Tijucopapo” além de um livro de contos “Postcard”, e tem importância assegurada no perfil da literatura brasileira dos últimos anos. Recentemente teve compilados seus artigos de jornal também em livro. A escritora tem posturas polêmicas, às vezes radicais. Mas é a sua coragem, sua falta de meias-palavras que faz dela esta grande porta-voz das nossas penas. Muitos sabem e se omitem, alguns falam veladamente: Marilene não deixa nas entrelinhas suas mensagens. Em recente entrevista à revista Caros Amigos, mostrou posições e opiniões que causariam estranheza a muitos leitores. Ela reflete uma certa amargura no viver que transparece em seus relatos semanais. Discordei de algumas coisas que disse e penso que o normal é que seja mesmo assim: os que expõe sem máscaras suas posições e sentimentos, muitas vezes, estabelecem conflitos com os que pensam e sentem diferente, nada mais humano, mais intrinsecamente humano. A divergência é que cria a discussão e muitas vezes deságua em soluções interessantes. A concordância eterna só leva à estagnação do pensamento.



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