Conto de Marilene
Felinto
(parte de coletânea a ser
lançada em março de 2020)
Agora esta tua morte, esse trauma... Teu livro me olha de lá de cima da
minha escrivaninha, teu nome ressaltando nas letras brancas. É que me trouxeram
livros teus que eu não conhecia. Tua obra. É que me trouxeram inclusive tuas
filhas, tua mulher... a mim, que não as conhecia!
Tuas filhas brincam no gramado da minha casa. Como assim? Como é que eu
faço? Você não me disse... não me avisou. Nada. Tuas filhas brincam, e meu
cachorro pula e salta com elas...
Ora, nosso desencontro virou reencontro! Mas apenas com partes de você,
com o melhor da tua reprodução: teus gestos, teu nariz, tua testa, teu sorriso
no sorriso de tuas filhas, na cara delas. Teu legado, teu deixado.
Meu cachorro salta e as meninas riem... tudo em cores, em tempo real.
Estivesse você aqui, como nos velhos tempos, e soltaríamos um comentário
qualquer daqueles nossos, um julgamento, sobre os cachorros, por exemplo,
daquelas falas que não serviam para muita coisa, senão somente para que
ríssemos depois:
– Que existência imbecil desses animais, hein?! Tão bonitos, esses
bichos de estimação, mas não sabem de nada! Quanta imbecilidade! Que vida! Ó!
Um comentário qualquer desses, do lugar da nossa arrogância inútil. Em
seguida riríamos, feito adolescentes sem compromisso. E essas nossas risadas
ecoam ainda, essa nossa impertinência juvenil paira no ar como se fosse ontem.
Fantasmas nossos. Teu fantasma.
– Vamos fazer uma coisa bem doida? – Você propunha, risonho, como se
dizia na letra da música. – Topa? Uma coisa bem ilegal, o que você acha? – E nós
então gargalhávamos, adolescentes sem propósito.
Mas agora, com esta tua morte, fico eu aqui, mais precocemente velho,
mais precocemente feio, mais precocemente à beira da morte. Qualquer dia
desses, embarco eu também... de um acidente, de uma explosão orgânica, um
escorrer de sangue, uma palpitação, um estertor, de uma dor, de um súbito
qualquer. Não é assim que é?
Faço de conta que é você aqui, tuas filhas, tua mulher falando em você!
Que coisa. Isso é alguma brincadeira? Ou foi uma daquelas tuas curiosidades
científicas, uma especulação? (Alguém precisava ter lembrado a você que “Linha
mortal” era apenas um filme... Era somente ficção. Ou você levou aquilo a
sério?). Sei lá de você! Todos os personagens do filme voltaram, que eu me
lembre. Só você, no tempo real, não voltou.
Desconheço tua dor, não estive... Não vi o soro, o engulho, o vômito, a
morfina, os eletrodos... a linha mortal, não vi. Mas conheço o desamparo: o
teu, o meu, o das meninas.
Tuas filhas brincam exuberantes no gramado da minha casa – mas eu, de
mãos atadas, ainda assim cuido para que elas não corram perigo!
Ora, como é que eu faço?
Tua mulher veio de visita... e fuma aqui ao meu lado... e tudo é fumaça,
neblina, nuvem... Por acaso isso não passa de um filme de cinema? Diga que sim,
por favor! Para que eu então me localize, entenda, realize a tua morte para
além desta névoa: pois esta tua morte, se tivesse uma cor, seria vermelho
absurdo, de tanto que ofusca, de tanto que ofende a minha vista!
Tuas filhas pulam e riem vivazes, brincam de faz-de-conta no gramado da
minha casa. É inverno, e uma sequência de estações está por vir, uma sequência
de fatos, de folhas caídas, de flores, de frutos, de eventos de vida. Mas o que
fazer? As meninas gesticulam incrivelmente como você, fazem caras e bocas como
as tuas! O que fazer com isso?
– Vamos ser sozinhos juntos, que amigos servem para isso mesmo. – Você
disse (citando também a letra da música), num pacto, numa promessa de partilha
da solidão inexorável.
– Sim – respondi –, e vamos vivendo essas nossas vidas simpatéticas! – E
você gargalhou muito. – Lembra disso? “Simpatéticas”! Boa, muito boa! – você
exclamou. E a tua gargalhada ecoa aqui ainda, fantasmagórica.
Será que te encontro dia desses em algum lugar para além? Não terei
cerimônia, entendeu? Direi tudo o que tiver de dizer. Descontarei todos os dias
de ausência – tua e minha. E vê se me trata de igual para igual, está certo?
Que eu não estou aqui para fazer as pazes com você. Não. Seria hipocrisia numa
hora dessas, da tua morte. Isso é apenas nosso acerto de contas. É entre
você e eu, e nada mais. Nosso acerto, de homem para homem. Pode ser, sim, que
você queira me estapear: quis muitas vezes, não? E eu também, não se engane
não!
Será que te encontro dias desses? Para onde? Pois quando a gente se
reencontrar, fica combinado que um vai dar um soco na cara do outro... Ou
somente um sopapo dos bons, quem sabe – terminando por se abraçar como velhos
amigos, como dois personagens de D. H. Lawrence em luta corporal.
É inverno. E você se foi justo em agosto, o mês de que eu menos gosto
(“mês do desgosto”, sim... e pouco importa se você condenava o ditado, a
crendice supersticiosa, o clichê). E pensar que você se foi depois da chamada
virada de todo um século! Justo depois desta datação tão cristã que
menosprezávamos! Foi-se nesta década de 2000 e tanto, nestes anos de 2000 e
tanto, nestes cristianos imbecis! Mas, justo, nós teríamos tido tempo ainda de
nos reencontrar nos anos 2020, nos anos 2030, quem sabe até nos anos 2040 – em
qualquer dos antianos, dos anticristianos nossos, como caberia ao nosso
ateísmo!
Mas você saiu antes. E agora tua mulher me lembra, me relembra, me
mostra a dedicatória que fiz para você num livro, há tempos, há décadas
perdidas, atemporais.
“Amigo mortal, para você este livro, que eu escrevi como quem brinca no
quintal dos fundos! Acredita? Seu, sempre amigo, P. Agosto, 1994.”
“Amigo mortal” foi como nos tratamos um ao outro por uns tempos, o
epíteto que tiramos do título do filme pelo qual você ficou friamente obcecado.
Mas disseram que você não falou da morte, não quis falar. Como assim? Você não
quis falar? Pensou em milagre? Se a filosofia falhou, se a ciência falhou...
você pensou em milagre?
– Hoje é um bom dia para morrer! (Você, por acaso, impropriamente, teria
pensado isso na tua hora final, abrindo os braços, como o personagem no filme?)
Só que todos os personagens voltaram. Só que você não voltou. Agora com
esta tua morte, pego teu orgulho ferido, meu orgulho ferido, tua mágoa, minha
mágoa, somo tudo, diminuo, divido por dois... e o resultado é isto: uma água,
uma lágrima que eu engulo. Portanto, isto não é uma reconciliação —embora seja
uma saudade intemporal—, isto é somente para te lembrar que aquele filme a que
assistimos como adolescentes era uma ilusão, rapaz, uma ficção, uma brincadeira
de médicos experimentando morrer. Não era para você, de verdade! Nunca foi.
Será que te reencontro um dia para além, para aquém? Para onde?
Repito que não terei cerimônia. Direi tudo o que tiver de dizer,
impropriamente, que seja. Descontarei todos os dias de ausência – tua e minha.
Acusarei ao vivo tua presença aqui por meio do teu legado, do teu deixado
inesperado.
Tuas filhas brincam no gramado da minha casa, brotam como flores, como o
vermelhovinho-ou-vivo, como o absurdo rosa em choque das primaveras, das
azaleias —o milagre.
Para Fernanda
Diamant
(Em 21.08.2019)
(Em 21.08.2019)
Marilene Felinto é escritora e tradutora
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