por Moisés Monteiro de Melo Neto
Moisés Monteiro de Melo Neto com o escritor Bernardo Carvalho
O escritor Bernardo Carvalho nasceu no Rio de
Janeiro, vive em São Paulo, mas para ele é fundamental o sentimento de não
pertencer a um lugar, certo deslocamento que impossibilita ao mesmo tempo
integração e reconhecimento, ver as coisas de fora. São Paulo é sua terra
estrangeira dentro do Brasil, seu estranhamento e, em O sol se põe em São
Paulo, o narrador-protagonista (publicitário, neto de japoneses imigrantes)
encontra-se com a dona de um restaurante japonês, Setsuko (80 anos). Instalam
ali mesmo um terceiro espaço, cheio de identidades trocadas: ela lhe conta para
que ele escreva, e fazemos assim a viagem com eles a um Japão reinventado: “Ela
vinha de Osaka, o berço da Yakuza. No fundo, sou um moralista. O mundo está
cheio deles. É um azar quando se tornam escritores. Estão sempre prontos a dar
opinião sobre tudo.”(p.16) Ele critica a opção da irmã, que migrou para o
Japão, em busca de emprego. O jogo metalinguístico é óbvio, as frases curtas
nos remetem ao narrador que retornara àquele restaurante depois de 10 anos.
Este narrador está desempregado e descasado; é descendente de japoneses; sua
irmã foi morar no Japão – ele não fala muito sobre as duas. É a inquietação de
um eu em passagem, há também o triângulo amoroso que nos remete ao passado, no
Japão, depois da guerra. E os personagens nesse entre-lugar tentam reconstruir
suas identidades. Pós-moderno? Avesso dos estrangeiros no Brasil? Parecem
inúteis tais classificações aqui, onde as informações históricas, geográficas
mesclam-se em tom agressivo: “depois de me foder por nada, trabalhando como
redator de comerciais de uma agência de publicidade...”. Parece Dashiell
Hammet. Pressentimos o Noir. O pôr-do-sol em São Paulo pode ser belo na
poluição e Setsuko, voz dupla com o narrador, vem da terra do sol nascente, que
vem se pôr em São Paulo. São universos paralelos, sutilmente contraditórios:
nissei (americano filho de japonês), sansei (neto). Da Ásia, da América do Sul,
fugindo da miséria, da opressão, do nada e seguindo um sonho. E o narrador
escuta as histórias como se tudo estivesse na sombra no restaurante Seiyoken.
Sakê, cerveja, o apagar das luzes, perguntas, códigos: estrada de palavras.
Fecha-se a trilogia ''Nove noites'' (2002) e ''Mongólia'' (2003) são fronteiras
apagadas, Setsuko foi jovem de família respeitada, conhecemos através dela o
filho de um industrial e um ator de kyogen, o teatro cômico local. Tudo parece
um outro lugar, a ambiguidade, a entrega, as imposturas, angústia, a literatura
como dissimulação... O sol se põe em São Paulo foi reescrito 20 vezes. Temos
nele a metalinguagem . É um livro que trata de literatura japonesa, cuja
sociedade não preza a individualidade, não preza o estilo individual - a
ruptura não faz parte da tradição cultural. Carvalho faz parte de uma vertente
da literatura brasileira a partir dos anos 80: Caio Fernando Abreu, João
Gilberto Noll e Chico Buarque. O jogo e a história em dubiedade: toda parte,
lugar nenhum. A desconfiança, a relação com o passado, com o conhecer-se, qual
Édipo. Em “O sol se põe...”, há ainda a história contada pelo homem com o lábio
leporino que vamos conhecer no final da obra. Paira sobre tudo a desconfiança
em relação a uma verdade histórica. Há muitos microrelatos, vestígios, alguns enganosos.
É literatura falando de si em processo metaficcional historiográfico, o errante
e sua relação com as coisas. Instabilidade, o desconhecido, projetos da
existência e da experiência subjetiva: problematizações, desconstruções, como
em O sol se põe em São Paulo, a construção do personagem principal, ambígua:
“Voltar ao Japão como operário (apesar de nunca ter posto os pés lá antes)
seria perpetuar o fracasso e o erro, a fuga apenas nos afundava ainda mais no
inferno. A literatura podia ser a minha miragem, mas pelo menos era uma forma
de abraçar o inferno como pátria. No fundo, era nisso que eu acreditava.”
(CARVALHO, 2007, p. 20) Carvalho ressalta: “A literatura que serve para alguma
coisa é a que o mercado quer. Se vivêssemos na Idade Média, a literatura
serviria para a Igreja. Se vivêssemos num país comunista, faríamos literatura
oficial. Não servir para nada é um negócio radical e muito importante; permite
que se faça uma literatura de ruptura, que não obedece a demandas
preexistentes. Não é o novo pelo novo. Não é isso. É criar um mundo que ainda
não existe. Criar uma vontade nas pessoas que elas ainda não têm (romance de
demanda). Isso é genial. É uma oferta para ver se germina. É lógico que eu acho
que a literatura serve para alguma coisa. Mas preciso manter esta ideia, porque
é uma ideia política, de resistência: literatura não serve para nada mesmo. Mas
eu vou continuar fazendo. A ilusão de que não tem função é super-importante.
Para mim, é fundamental; me dá um alento; me deixa respirar. Para o tipo de
literatura que eu faço, há cada vez menos espaço. A maioria dos escritores é
composta por ingleses e americanos. Passei dois meses convivendo com alguns
escritores anglo-saxões e me dei conta de que a importância do mercado é um
negócio chocante. Esses escritores só funcionam em função do mercado porque se
você for um escritor nos Estados Unidos e na Inglaterra e não funcionar no
mercado, você não existe. Para mim, fazer literatura com essa preocupação é
algo muito sem graça.” A literatura no Brasil, país de analfabetos, onde o
texto faz parte apenas de uma cultura de classe média ou de uma elite
grosseira, iletrada, ignorante, que cultiva e reproduz a ignorância para os
seus filhos: a arte que Carvalho defende não funciona na sociedade, não tem função,
entra em desacordo - não tem lugar no Brasil. Trata-se de um tipo de literatura
que tem importância mas ele diz não ter nenhuma consequência social. Uma
literatura que pode ser de resistência, a ideia de que a literatura não serve
para nada surgiu na modernidade, e ele a considera importante. É uma ideia
política. É essa ideia que faria a literatura de verdade sobreviver. É uma
literatura que se quer militante contra a perda do interesse dos leitores pela
ficção na literatura. “Parte do livro pode ser lida como um pastiche dos
romances do Tanizaki, narrado por uma das personagens principais. O Japão
produziu grandes escritores no século XX. E isso em termos absolutos, mundiais.
No caso desse romance, o que me interessava era o deslocamento do qual eu vinha
falando, o Japão no Brasil e o Brasil no Japão, as coisas fora do lugar. E o
curto-circuito que a inadequação e o estranhamento podem provocar na criação de
outros pontos de vista, de outras maneiras de ver. Há uma frase no final do
livro que resume esse sentimento e essa vontade: o oposto é o que mais se
parece conosco”. “Uma professora universitária escreveu um ensaio longuíssimo
sobre Nove noites, dizendo que o personagem era um gay enrustido. E como o
romance seria autobiográfico, só podia ser eu o gay enrustido. Então, com O sol
se põe em São Paulo, eu queria fazer um livro que essa professora não
descobrisse que o gay enrustido era eu. Até agora ela não descobriu. Se eu
trato de gay enrustido, é porque isso me interessa, mas aquele não sou eu.” Bernardo
lembra Beckett e escreve algo dissonante, novo e inovador que demanda força de
vida, um mundo sombrio, Sade também: vozes dissonantes, incompatíveis com seu
tempo. Forte, paradoxal. Uma celebração do humano. Ele faz o elogio da ficção e
propõe uma formulação que não é simples ao ver “a imaginação como elemento
constitutivo da realidade e não um artigo supérfluo”. É parte da tendência da
literatura brasileira contemporânea ao realismo e ao documental, uma tendência
natural. Quanto maior a violência dessa realidade, mais ela vai impor uma
representação unívoca, mais ela vai reduzir as possibilidades de representação.
A questão não é representar ou deixar de representar a realidade (até porque,
de alguma forma, ela sempre acaba representada), mas não sucumbir a uma
determinada ideia de representação da realidade como modelo e paradigma. A
imaginação é um elemento complexo da realidade. A literatura e a arte cessam
quando você passa a aceitar modelos para a criação. Os seus livros explicitam a
manipulação do leitor até quase o grotesco. É muito visível. Mas o que o
romance faz é manipular o leitor e fazer com que ele participe? Carvalho
polemiza: “Guimarães Rosa, que eu considero um gênio. Há três traduções no
mundo do Rosa: duas boas (Itália e Alemanha) e uma na França (mais ou menos).
Mas se perguntar para um alemão, italiano ou francês quem é Guimarães Rosa,
ninguém sabe. Nos Estados Unidos, Grande Sertão foi traduzido como
bangue-bangue. Este jornalista nunca ouviu falar em Guimarães Rosa. É triste:
você pode ser um gênio da literatura, pode fazer uma obra incontestável, e
mesmo assim não vai ter lugar para você. No cânone internacional, ocidental,
não tem lugar para o brasileiro, pode ser o maior gênio da raça. Você fica
babando ovo para escritor inglês e americano (há alguns geniais), mas não tem a
contrapartida. Ninguém vai ler escritor brasileiro. E não é escritor
pequenininho como eu, é Guimarães Rosa. Ninguém sabe quem é Guimarães Rosa e
nem quer saber. A cultura brasileira é samba, futebol e música popular. Não é
alta cultura. O Brasil tem a oferecer cultura popular, futebol e administração
da miséria. Não sei como lidar com isso. Eu sou um pouco paranóico. Mas se pode
ver a paranoia como a criação do sentido. Se o mundo não faz sentido - e não
faz -, o paranóico é que aquele que vê sentido onde não tem. O mundo não faz
sentido, a vida não tem sentido, não faz sentido eu estar vivo. A paranoia me
atraía como uma matriz de sentido, uma matriz desvairada. A ideia da paranoia
me atraía como ficção, como produção de ficção.Eu escrevo os romances que eu
gostaria de ler. É importante que o leitor participe de forma ativa da leitura,
que seja empurrado para dentro do texto não de maneira meramente passiva,
queria deixar isso claro. Então, o jogo em meus livros é importante. Tem a
função de cooptar o leitor, de fazê-lo ter uma participação ativa no livro”
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