por Moisés Neto*
Nelson Rodrigues: Um homem comum, voz
fronteiriça, entre banal e o singular, antiintelectualista e anti-retórica. Com
a linguagem de modo a recriar seus espaços. Opostas e simétricas dimensões, a
pornográfica e a mística, ou a do erótico: "convertido".
Reacionário". Resposta ao "revolucionário de esquerda".
Recife-RJ : ligação visceral com a cidade, jornalista e escritor. O trivial, o
ser como todo mundo, torna-se a fonte da experiência produtora do texto. Já é
lendária sua peça Vestido de Noiva, de 1943: literatura na e com a linguagem ordinária:
caráter performativo da palavra. A experiência bifronte do jornalismo e da literatura,
Teatrólogo maldito a escrever no sufoco da própria subsistência. Tinha o hábito das polêmicas.
Da cidade, a crônica
de cada um: Zona Norte,Centro e Zona Sul: Nelson batia tudo: por meio de
transporte público ou em percursos a pé. Histórias curtas: A vida como ela é, durante os anos
1950: metalinguagem espacial, conotando valores e comportamentos no amplo
espectro de possibilidades da Zona Norte à Zona Sul. Pense na Folha de
Pernambuco casando com Freud, a igreja e sabe-se o que mais.Ele é um autor
irônico que aproveita o espaço da
transgressão. Vivencia climas mais melodramáticos, atingindo o grotesco,
Repórter de polícia, aos 13, depois: futebol, crítica, crônica, conto,
folhetim, romance e inclusive, consultório sentimental. Mistura de componentes
passionais ou melodramáticos ao tom humorístico é traço estilístico radical. A
rigidez mecânica de seus personagens, capazes de transformar manias em
obstinações as criações rodrigueanas, ao se manifestarem pela aparência
desagradável do grotesco – kitsch ou pornográfico –, constroem a visão moral da
vida, inerente à obra. É justamente esse desconcertante âmago filosófico, a
partir do qual a existência aparece
como brinquedo absurdo. Temos na sua dramaturgia um tom confessional/
memorialista e característica reflexiva e intrigante de ensaio, investigação
existencial, filosófico-moral de ordem estritamente subjetiva. São confissões
exorcizando todos os diabos: inventário das exacerbações mais pessoais. Em suas
ficções híbridas e destemperadas, "parodia", literária e
jornalisticamente. Ato extremo, um risco. Canibal de si mesmo, seu próprio bode
expiatório. Nelson, a "flor de obsessão": linguagem ordinária,
metáforas coloquiais e lancinantes, igualmente desdobra o próprio pensamento,
se alimenta dele mesmo, de suas "fixações obtusas, fanáticas, delirantes:
"Ninguém sai de si mesmo", já disse Gracilano Ramos. Exame das
obsessões e interesses mais íntimos: "strip-tease" moral, ato
problemático, suspeito, quase obsceno, em termos tanto públicos quanto
individuais.Volta proustiana a um passado que parecia irreconquistável. Perene menino humilhado nas vivências ordinárias
da pequena burguesia, cotidiana penúria. Histórias, embaraçosas ou tristes, mas
sempre contadas em tom passional: o episódio das orelhas sujas, a descoberta
dos piolhos na cabeça, "a utopia do sanduíche de ovo", em vez da
banana de "um vintém", ou mesmo da fome, na falta dela. Traz a
perspectiva do homem comum : O aperto de um "ônibus apinhado", capaz
de enguiçar, as fixações de pobre: “Quando ando de ônibus (e, às vezes, só
tenho o dinheiro contadinho do
ônibus), viajo como um ofendido e sou, realmente, um desfeiteado. É uma
promiscuidade tão abjeta, que eu diria: o
ônibus apinhado é o túmulo do pudor”.
Clarice Lispector elogiou por Bonitinha, mas
ordinária. Ela disse que aquele narrador era um menino que acaba de olhar
pelo buraco da fechadura uma cena monstruosa! “A própria Clarice também é uma
menina de Dickens. E vou mais longe: – é o próprio ser humano que ainda não se
tornou adulto. Continua menino órfão Nunca vi ninguém tão menino como o
Guimarães Rosa. Ai de quem não é menino! Ai do que vive sem horror! Pois é o
espanto que nos salva. Aquele que se horroriza pode esperar ainda a
Ressurreição. A visão romântica e encantatória do mundo, a
crença em um absoluto inalcançável, a inesgotável capacidade de se
alimentar das próprias obsessões habitam o âmago da sensibilidade
artística de Nelson e são responsáveis pela correspondência estreita entre arte
e vida que caracteriza o seu percurso existencial e artístico de incurável
polemista. É o "teatro desagradável": o autor como uma espécie de
"bode expiatório", autodesignado para purgar as culpas de uma
sociedade na etapa crucial do fim dos anos 1960, com a perda das liberdades democráticas,
e durante os piores momentos da ditadura militar nos anos 1970. Morbidez?
Sensacionalismo? Não, senhoras e senhores: Teatro para ser purificador, precisa
ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria
inconfessa de cada um de nós. Mentalidade mórbida esticada no limite da
elasticidade, exaltação dos climas, obsedante visionarismo, exorcismo crítica
conservadora, mas lúcida, que promove das alienações e dos engodos ideológicos
da intelectualidade dominante nos grandes centros brasileiros da época (Rio de
Janeiro e São Paulo), o personagem Nelson se expõe radicalmente. Não apenas em
termos políticos, mas sobretudo em termos pessoais. "Eu sou um
ex-covarde": "Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento
pessoal e coletivo. [...] O que existe, por trás de tamanha degradação, é o
medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados,
fisicamente montados, pelos jovens. [...] Sim, os pais têm medo dos filhos, os
mestres dos alunos [...] Não há um medo só. São vários medos,
alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário.
Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas.
Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário.
Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria,
não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o negam até
como valor plástico [...] Há um velho e obtuso preconceito,
segundo o qual todas as frases querem dizer alguma coisa. Nem sempre”.
*Moisés Monteiro de Melo Neto é pesquisador, escritor e
professor recifense. Mestre e Doutor em Letras.
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