por
Emerson Bras de Santana Júnior
Em
Palimpsesto, Moisés Monteiro de Melo Neto, o autor, tece, em tons elétricos, um texto
que
ora flerta com a autoficção, ora com causos insólitos; estes comuns às
mentes
mais inventivas da criação, que, óbvio, é o caso de Neto. Num misto de
ritmo,
nuances e montagem, o romance se ergue diante dos olhos do leitor.
Dessa
forma, ao passo que as memórias (?) se acumulam, o cenário do Recife
toma
forma através do primeiro narrador, Lucas, e diante de todos um quarteto
amoroso
se entrelaça – e é entrelaçado – por entre uma capital enérgica,
permeada
por um personagem que se apresenta como pano de fundo, mas é
mais:
o movimento mangue.
Destino,
inveja, ciúmes e outros tantos temperos fomentam os
acontecimentos
que permeiam as três partes que encapsulam o enredo
compacto
e paradoxalmente plural. A bem da verdade, como que em uma
dança
entre luz e sombra, tudo que se sente e o que é possível, nasce de uma
mulher,
esse fruto proibido que disputa espaço no Éden com todas as outras
maravilhas
que permeiam a existência; em Palimpsesto, a
perdição tem nome:
Michelle.
Quando
acompanhado das ferramentas certas, o ciúme pode ser mortal.
No
romance de Neto é justamente isso que acontece; o mais puro fatalismo
que
desemboca no fio condutor da vida: a morte. Um crime, um assassinato, a
justiça
profana. Homens que tecem seus próprios destinos. Na obra, a
alternância
de narradores sinaliza para uma sutil analogia entres as fases e
faces
do amor. Ora o ponto de vista se dá a partir do próprio Lucas, narrador
primário,
ora por terceiros: um amigo, o foco terceirizado, e Michelle, o outro
lado
dessa moeda. Michelle, inclusive, apresenta-se enquanto a personificação
de um
abismo – tudo e todos que se aproximam dela perdem-se de alguma
forma,
lançam-se ao destino. Todavia, diferente do que se espera de uma
clássica
femme fatale, há resquícios de
passividade em Michelle. Aqui, todos
se
apresentam enquanto marionetes, apenas.
As
reescritas do papiro se dão do Recife onírico ao Egito; cenários
possíveis
que comportam os causos absurdos que só a mais límpida realidade
pode
conceder. Em Pernambuco, Emerson, um picareta de marca maior, encontra seu
fim a
partir das mãos de uma das tantas faces do amor: o ciúme. No Egito,
anos
depois, a morte ronda o poeta, Lucas, o ponto de intersecção entre todas
as
partes do quarteto amoroso que adorna o romance em questão. Por fim, a
morte
metafórica do amor encontra Michelle e esta se depara com o troco do
destino,
em balas: o recomeço.
O
jogo proposto por Moisés traz ao leitor marcas profundas da
constituição
dos indivíduos: resultados do meio? – em um aceno a Ratzel; ou
responsáveis
pelas dores e delícias que somos e proporcionamos à existência?
– Sartre
te dit bonjuor. Assim como na canção de Caetano Veloso, é
justamente
isso que autor sugere: somos produtos ou produtores da
existência?
Moisés, como de costume, lança mão do seu Dom de Iludir*.
Ao
passo que a narrativa se desdobra, o possível se apresenta e ganha
forma,
em tons e dúvidas, de modo que o ápice narrativo, o nó, pode estar em
qualquer
lugar: em Moisés Monteiro de Melo Neto tudo é possível e nada escapa à
ambiguidade
narrativa.
Entre assassinatos, traições e recomeços, tudo pode ser o ponto alto
da
narrativa. Do alto ao auto, Palimpsesto é
ambíguo e sugestivo de propósito;
a
realidade inicial se perde por entre a reescrita dela própria, do novo possível.
Ao
transcorrer das páginas, Magno, irmão de Michelle, Emerson, o agregado, e
Lucas,
o poeta, encaram o abismo e este, personificado em Michelle, os encara
e
sugere o pulo. No fim, todos saltam, inclusive o próprio abismo.
“Emerson
foi um menino marcado pela vida” (p.35), Lucas, um poeta,
Magno
um angustiado, e Michelle um abismo, cada um marcado à sua
maneira.
E as marcas que carregavam jamais foram vistas, tampouco
consideradas.
Além desses, Saluá, nascida do outro lado do oceano e
destinada
a ser a porta do paraíso, carregava suas próprias dores, marcas, e
se
apresenta na narrativa de Neto como o ponto alto da concepção da
realidade
possível; diante dela, anos adiante do Recife onírico, Lucas considera
o
próximo verso, a rima perfeita, mas o tempo, esse deus amargo, não
permitiu;
a morte é a recompensa dos que vivem.
No
Egito, viver é obrigação! Todavia, Lucas, de joelhos, preferiu
equilibrar-se
na linha tênue entre o agora e o ontem. Alheia à realidade,
Michelle
esculpiu seu próprio destino e seguiu; e a narrativa deixou-se levar
pela
pressa dos dias comuns, o passado glorioso outra vez se desfez diante
dos
personagens e do leitor. A vida é agora! E disso Neto sabe muito bem; o
autor
equilibra as três instâncias do tempo ao passo que as reescreve:
passado,
presente e futuro, o meio-do-meio de tudo.
Em Palimisesto, Melo
Neto tece e é tecido. Na obra, realidade
e
ficção apresentam-se enquanto termos sinonímicos, partes que coexistem
em um
mesmo pergaminho, ao passo que se reescrevem de modo
emancipatório.
A obra abre-se com a seguinte declaração “[...] estou morrendo
e
resolvi contar a tumultuada história do meu amor por Michelle.” (p.13), esta
advém
do fim já anunciado do protagonista primário, Lucas, e acena para o
símbolo
Ouroboros, que
tem sua origem no túmulo de Tutankhamon, no
Antigo
Egito. A serpente que se alimenta de sua própria cauda encontra sentido
na
última página da obra; dessa vez, Michelle é quem declara: “Agora eu vou
simplesmente
correr para os braços da pessoa que eu amo” (p. 136). Os
braços
citados por Michelle, evidentemente, não pertencem a Lucas; dessa
forma,
início e fim veem-se dispostos um diante do outro; e além, entrelaçados,
de
modo a ser impossível a identificação incisiva de onde o início tem fim e o
fim
se inicia.
Vida
e obra, início e fim; em Palimpsesto, a
realidade é reinventada a
cada
página e tudo é possível. Com prosa certeira e personagens tão palpáveis
quanto
a própria concretude dos dias comuns, o autor demonstra habilidoso
trato
com as palavras e um profundo respeito às concepções de tempo e
espaço
– de sugestão e apresentação. Seja na dramaturgia, nos versos, na
prosa
ou qualquer face da arte já concebida pelo homem, Moisés Monteiro de
Melo Neto
converge a um só termo: transgressor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário