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terça-feira, 31 de outubro de 2023

Ensaio Sobre o Tempo: do Recife Onírico ao Egito. PALIMPSESTO: um romance pernambucano

 


                                                                                      por Emerson Bras de Santana Júnior

 

 

Moisés Monteiro de Melo Neto

Em Palimpsesto, Moisés Monteiro de Melo Neto, o autor,  tece, em tons elétricos, um texto

que ora flerta com a autoficção, ora com causos insólitos; estes comuns às

mentes mais inventivas da criação, que, óbvio, é o caso de Neto. Num misto de

ritmo, nuances e montagem, o romance se ergue diante dos olhos do leitor.

Dessa forma, ao passo que as memórias (?) se acumulam, o cenário do Recife

toma forma através do primeiro narrador, Lucas, e diante de todos um quarteto

amoroso se entrelaça – e é entrelaçado – por entre uma capital enérgica,

permeada por um personagem que se apresenta como pano de fundo, mas é

mais: o movimento mangue.

Destino, inveja, ciúmes e outros tantos temperos fomentam os

acontecimentos que permeiam as três partes que encapsulam o enredo

compacto e paradoxalmente plural. A bem da verdade, como que em uma

dança entre luz e sombra, tudo que se sente e o que é possível, nasce de uma

mulher, esse fruto proibido que disputa espaço no Éden com todas as outras

maravilhas que permeiam a existência; em Palimpsesto, a perdição tem nome:

Michelle.

Quando acompanhado das ferramentas certas, o ciúme pode ser mortal.

No romance de Neto é justamente isso que acontece; o mais puro fatalismo

que desemboca no fio condutor da vida: a morte. Um crime, um assassinato, a

justiça profana. Homens que tecem seus próprios destinos. Na obra, a

alternância de narradores sinaliza para uma sutil analogia entres as fases e

faces do amor. Ora o ponto de vista se dá a partir do próprio Lucas, narrador

primário, ora por terceiros: um amigo, o foco terceirizado, e Michelle, o outro

lado dessa moeda. Michelle, inclusive, apresenta-se enquanto a personificação

de um abismo – tudo e todos que se aproximam dela perdem-se de alguma

forma, lançam-se ao destino. Todavia, diferente do que se espera de uma

clássica femme fatale, há resquícios de passividade em Michelle. Aqui, todos

se apresentam enquanto marionetes, apenas.

As reescritas do papiro se dão do Recife onírico ao Egito; cenários

possíveis que comportam os causos absurdos que só a mais límpida realidade

pode conceder. Em Pernambuco, Emerson, um picareta de marca maior, encontra seu

fim a partir das mãos de uma das tantas faces do amor: o ciúme. No Egito,

anos depois, a morte ronda o poeta, Lucas, o ponto de intersecção entre todas

as partes do quarteto amoroso que adorna o romance em questão. Por fim, a

morte metafórica do amor encontra Michelle e esta se depara com o troco do

destino, em balas: o recomeço.

O jogo proposto por Moisés traz ao leitor marcas profundas da

constituição dos indivíduos: resultados do meio? – em um aceno a Ratzel; ou

responsáveis pelas dores e delícias que somos e proporcionamos à existência?

Sartre te dit bonjuor. Assim como na canção de Caetano Veloso, é

justamente isso que autor sugere: somos produtos ou produtores da

existência? Moisés, como de costume, lança mão do seu Dom de Iludir*.

Ao passo que a narrativa se desdobra, o possível se apresenta e ganha

forma, em tons e dúvidas, de modo que o ápice narrativo, o nó, pode estar em

qualquer lugar: em Moisés Monteiro de Melo Neto tudo é possível e nada escapa à ambiguidade

narrativa. Entre assassinatos, traições e recomeços, tudo pode ser o ponto alto

da narrativa. Do alto ao auto, Palimpsesto é ambíguo e sugestivo de propósito;

a realidade inicial se perde por entre a reescrita dela própria, do novo possível.

Ao transcorrer das páginas, Magno, irmão de Michelle, Emerson, o agregado, e

Lucas, o poeta, encaram o abismo e este, personificado em Michelle, os encara

e sugere o pulo. No fim, todos saltam, inclusive o próprio abismo.

“Emerson foi um menino marcado pela vida” (p.35), Lucas, um poeta,

Magno um angustiado, e Michelle um abismo, cada um marcado à sua

maneira. E as marcas que carregavam jamais foram vistas, tampouco

consideradas. Além desses, Saluá, nascida do outro lado do oceano e

destinada a ser a porta do paraíso, carregava suas próprias dores, marcas, e

se apresenta na narrativa de Neto como o ponto alto da concepção da

realidade possível; diante dela, anos adiante do Recife onírico, Lucas considera

o próximo verso, a rima perfeita, mas o tempo, esse deus amargo, não

permitiu; a morte é a recompensa dos que vivem.

No Egito, viver é obrigação! Todavia, Lucas, de joelhos, preferiu

equilibrar-se na linha tênue entre o agora e o ontem. Alheia à realidade,

Michelle esculpiu seu próprio destino e seguiu; e a narrativa deixou-se levar

pela pressa dos dias comuns, o passado glorioso outra vez se desfez diante

dos personagens e do leitor. A vida é agora! E disso Neto sabe muito bem; o

autor equilibra as três instâncias do tempo ao passo que as reescreve:

passado, presente e futuro, o meio-do-meio de tudo.

Em Palimisesto, Melo Neto tece e é tecido. Na obra, realidade

e ficção apresentam-se enquanto termos sinonímicos, partes que coexistem

em um mesmo pergaminho, ao passo que se reescrevem de modo

emancipatório. A obra abre-se com a seguinte declaração “[...] estou morrendo

e resolvi contar a tumultuada história do meu amor por Michelle.” (p.13), esta

advém do fim já anunciado do protagonista primário, Lucas, e acena para o

símbolo Ouroboros, que tem sua origem no túmulo de Tutankhamon, no

Antigo Egito. A serpente que se alimenta de sua própria cauda encontra sentido

na última página da obra; dessa vez, Michelle é quem declara: “Agora eu vou

simplesmente correr para os braços da pessoa que eu amo” (p. 136). Os

braços citados por Michelle, evidentemente, não pertencem a Lucas; dessa

forma, início e fim veem-se dispostos um diante do outro; e além, entrelaçados,

de modo a ser impossível a identificação incisiva de onde o início tem fim e o

fim se inicia.

Vida e obra, início e fim; em Palimpsesto, a realidade é reinventada a

cada página e tudo é possível. Com prosa certeira e personagens tão palpáveis

quanto a própria concretude dos dias comuns, o autor demonstra habilidoso

trato com as palavras e um profundo respeito às concepções de tempo e

espaço – de sugestão e apresentação. Seja na dramaturgia, nos versos, na

prosa ou qualquer face da arte já concebida pelo homem, Moisés Monteiro de

Melo Neto converge a um só termo: transgressor.

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