"Para um amor no Recife"
Peça
teatral de Moisés Monteiro de Melo Neto
Num banco na Av.
Beira Mar, um rapaz de 20 e poucos anos, dorme. Parece estranhamente
adormecido. Diz algo que não se entende. Sua mochila lembra as asas de um anjo.
Usa uma bermuda até o joelho. Botas e meias até o tornozelo.
Época : dia 24 de Dezembro, final do
segundo milênio e o sol já se pôs. Sons da avenida e do mar. Isabela está com
um vestido curto, olhar algo cansado. Tenta fazer uma surpresa. Márcio
não acorda, está dopado
provavelmente.
Bel -
Márcio ô! Ei! Acorda.
Márcio - Ah...
Bel - Meu
Deus, eu não posso agüentar isso por muito tempo (fala isso para a platéia).
Márcio - Beeel! (acordando. Ri antes de falar)
Bel -
Márcio, qualquer um podia roubar você, você não pode dormir aqui. Vá para casa.
Márcio - Que casa? (Pausa: Olham-se em silêncio. É
uma oração).
Bel -
Quer um pouco de colírio?
Márcio - Eu tenho. (Pausa enorme).
Bel -
Coloque então.
Márcio -Bel, eu quero morrer. Eu não agüento mais.
Bel -
Você está bebendo há 24 horas. Como você agüenta? Isto não atrapalha os
remédios, não? Este coquetel misturado com álcool não deve fazer bem. E ficar
sem dormir 48 horas. Você quer morrer?
Márcio - Quero (chora desesperado). Por que eu
conheci aquele homem? Por que o tempo não pára? Por que essa doença é tão feia?
Bel -
Existe doença "bonita"?
Márcio - Fica comigo. Deixa ficar no teu colo, me
leva daqui pra algum lugar. Me salva você é meu anjo, me salva.
Bel - Vá
para casa. Tome um banho, coma, durma. Você não comeu nada.
Márcio : - Porra (bêbado) sua merda! Você é merda.
Bel: - Eu
não sou obrigada a escutar isso. Não sou, está ouvindo?
Márcio - Como é que eu vou fazer? (abre a bolsa,
procura algo). Fui roubado (pausa). Roubaram o meu celular. Estes desgraçados!
Bel -
Você foi caçar ontem, não foi?
Márcio - Você não quer transar comigo, diz que não
tem medo da morte, mas não é suicida. (pausa). Bel...Fica comigo hoje.
Bel -
Você já ligou pra sua mãe?
Márcio - Pra quê? (pausa) Aquela casa pequena é uma
prisão enorme. Eu não agüento mais, não agüento mais.
Bel -
Tome o telefone (tira da bolsa) ligue para ela. Dona Ana deve estar preocupada.
Márcio -
Ela não se preocuparia. Preocupação causa envelhecimento e ela não quer
envelhecer, tem 53 anos e diz que "dá
para o gasto". (pausa. Ri -sarcástico). Eu quero morrer. ..essa
porcaria incurável, esses remédios... (agarra-se com a bolsa). Eu fui tão feliz
antes, eu nunca mais vou ser feliz não vou encontrar mais ninguém para me amar.
Quando eu digo que tenho isso as pessoas fogem dizendo que eu sou muito
"pesado" dão o fora. Nem posso beijar você direito. Você acha que
pega com a saliva.
Bel - Eu
estou com um corte na boca.
Márcio - Está vendo? Se eu não tivesse dito que
tinha isso você continuaria me beijando loucamente como fazia antes de eu lhe
contar... tudo. (pausa). Vamos fugir, Bel.
Bel -
Vamos, eu estou de férias. (ri)
Márcio - Fica comigo hoje à noite Bel. É natal. Eu
não tenho ninguém, me bota pra dormir. Me dá um banho. Me tira dessa.
Bel - Não
posso. Vou jantar com mamãe. (pausa) E você bêbado assim faria escândalo.
Márcio - Janta comigo! Deixa eu ser teu namorado.
Por favor. Eu paro de sair à noite. Fico em casa. Fico lendo. Fica comigo.
Deixa somente eu ficar ao seu lado. Me abraça. Toca em mim (chora, apaga
o cigarro) passa a mão no meu cabelo, eu estou tão triste. Tão triste.
Bel -
Deixa de drama Márcio ! Por que você não
vai para casa e pronto?
Márcio - Me dá o telefone (liga) vou ligar para a
"boca da noite", "boca da escuridão"! A mama do meu câncer.
Bel - Sua
mãe... Dona Ana. Santa ingratidão, não é, Márcio ? Você não reconhece nunca o que as pessoas
fazem por você.
Márcio -
Chama, chama e ninguém atende. A bruxa está fora do ar (desliga, devolve o
telefone a Bel).
Bel -
(farta de tudo, mesmo assim esperançosa) Quando esta noite... findará?
Márcio - Até quando a gente vai empurrar este sonho
pra frente?
Bel - Por
que você não come alguma coisa? Vamos naquele restaurante ali. Tem uma peixada
ótima. Eu conheço...
Márcio - "Uma peixada ótima" (zombando).
Você é tão ridícula!
Bel - Não
me chame desse jeito que eu não gosto.
Márcio - Você gosta de quê? Do César, não é?
Bel - Eu
não quero falar sobre o César.
Márcio - Você vai ficar com ele hoje. Não vai?
(furioso)
Bel -
Pare. Se você continuar assim, eu vou-me embora. Que coisa!
Márcio - Hum. Tá zangadinha, é? (pega o colírio na
mochila e tenta colocar nos olhos. Não acerta).
Bel -
Deixa que eu te ajudo. (põe gotas de colírio nos olhos dele que se deitou no colo
dela).
Márcio - Você ficou velando meu sono aqui. Você
veio. Você veio. Você é meu anjo.
Bel
-Bobagem...
Márcio - Fica comigo. Vamos para um hotel.
Bel - Meu
cavalo marinho. Meu unicórnio voador. Eu não posso. O máximo que posso é deixar
você lá. Ficar um pouco e sair. Vou pra casa da minha mãe.
Márcio - Eu estou sozinho. Queria tanto ficar com
você. Só nós dois. Vamos para sua casa.
Bel -
Não. Márcio eu já disse quais são os
meus planos.
Márcio - E o meu futuro? Será que eu vou
ficar deformado?
Bel -
Você é assintomático. Ninguém diria que você tem isso.
Márcio - "I-s-s-o". Muito bem explicado:
"i-s-s-o". Eu odeio i-s-s-o!
Bel -
Vamos comer. Levanta!
Márcio - Você vai jantar comigo!
Bel -
Não. (pausa). Vou somente lhe acompanhar.
Márcio - Então eu não quero jantar.
Bel -
Você precisa comer.
Márcio - Não quero.
Bel - Vá.
Deite aqui, meu filho. Conte pra sua terapeuta de plantão: como tudo começou.
Márcio - (Fingindo-se de paciente. Ironiza) Eu tinha
17 anos. Era muito bonito. Um dia um homem mais velho ficou olhando para mim e
me chamou para tomar banho de piscina. Fui. Escutamos música. Não transamos,
naquele dia. Ele foi me buscar de carro depois e transamos. Ele me deu
dinheiro. Eu não tinha. Ele disse que era "para o lanche".
Bel -
Prostituição.
Márcio - Papai tinha nos abandonado: a mim, meu
irmão e minha mãe. A velha fazia doce e costurava pra ganhar dinheiro. Papai
sumiu. Fui pra escola pública, ralei muito para me manter na universidade,
passei num concurso público. Concurso para funcionário público. Trabalhei em
tantos lugares, aprendi inglês, francês e italiano. E...Tchan-tchan-tchan: Tive
alguns amores, que nããão es-que-ço! (Ri, como um apresentador de circo)
Bel - Não
banque o apresentador de circo de horrores. Please. Você é um vencedor.
Márcio - Um morto vivo, é o que eu sou.
Bel -
Vamos continuar nossa terapia.(Bel reassume postura de psicanalista, bem
interessada nos problemas daquele complicado caso) Quer dizer então que o seu
pai não deu mais as caras, mesmo?
Márcio - Sim , doutora. Foi isso mesmo que ele fez.
A senhora acha que eu tenho culpa disso? Eu tinha medo...(Márcio finge que está
sofrendo porque "papaizinho" nunca lhe deu colo).
Bel -
Então...O que aconteceu?
Márcio - Quando descobri que era soro positivo fui
procurá-lo. Há 10 anos não o via. Chorei no ombro dele e contei tudo.
Bel - E
ele? Como reagiu?
Márcio -
Ele disse: "É, meu filho. Você... está se cuidando? Está... tomando os
remédios?". Foram as duas frases que ele disse. E nos separamos.
Bel -
Ele, o seu pai, é casado com outra?
Márcio - É e tem uma filhinha.
Bel - A outra ...é mais jovem que ele?
Márcio - Uns vinte e poucos anos mais jovem. O que
tem isso a ver com meu pai ter abandonado nosso lar e nos deixado à própria
sorte... eu, ainda uma criança...
Bel -
Isso que você sente é apenas um ciúme infantil.
Márcio - Que absurdo.
Bel
- Seu pai é ... bonito?
Márcio -
Não muito. Sabe? Eu o gostava muito dele... quando eu era menino. (Ri). Quando
eu era menino.
Bel - Freud explica. Eu acho
que o homossexualismo entre homens vem da ausência do pai na infância. A
ausência do amor paterno na formação do caráter de um jovem como você...
Márcio - E uma mãe como a minha? Hein, doutora ?
Isso não deixa o filhote meio doido?
Bel -
Bem...(tosse, se recompõe) E... o seu irmão?
Márcio - Casou-se e fugiu, daquilo tudo! Eu também,
bem que podia ter me casado.
Bel - Ele
gosta da esposa? Eles brigam? Seu irmão e a esposa dele?
Márcio -
Não. Nada que a televisão ligada não resolva. Umas porradas aqui e ali e neuras,
como a maior parte dos casais.
Bel -
Fale sobre as vezes que você.. amou.
Márcio - A primeira foi uma garota linda chamada
Vilma. Eu tinha 15 anos. Ela me beijou na boca com sorvete de morango na
língua. Fiquei apaixonado na hora. Ela não me amava, mas engravidou. Eu ia ser
pai! Engravidou... e fez aborto. Do nosso filho. Filho que nunca mais terei.
Bel -
Você tinha 15 anos já... Foi quando seu pai abandonou vocês.
Márcio - É depois veio o tal cara que lhe falei.
Ele era mais velho e começou. Ele fazia tudo de uma maneira louca. Eu fui me
acomodando. Ele era como um pai. Já que o meu foi embora.
Bel -
Pai... e amante.
Márcio - Eu era bonito. Depois fui amante de uma
senhora lá de Casa Forte. Ela me deu dinheiro para fazer o que quisesse.
Bel - E
aí?
Márcio - Eu fiz. (pausa) Mas, agora...eu me
transformei neste trapo que a senhora está vendo, doutora. Nem metade do jovem
que fui...
Bel: -
Você é bonito.
Márcio - Mas você me rejeitou. (pausa, levanta os olhos,
sinistro). É por causa do HIV. (pausa) Olhe para mim! Não é? Você diz que somos
"incompatíveis sexualmente". Mas você sente atração por mim. Você me
deseja como homem. Você me disse isso!
Bel - Eu
te amo.
Márcio - Então por que não casa comigo?
Bel: -
Meu amor por você...é de amiga.
Márcio : - Qual foi a última vez que você transou
com seu namorado?
Bel - Não
é da sua conta. Que atrevimento! Não fale do meu namorado. Que coisa. Que
insistência! Não devo satisfação da minha vida a ninguém.
Márcio - Vocês tem uma relação legal?
Bel -
Claro...
Márcio - Mentira! (agarra Bel pelos ombros, tenta
beijá-la)
Bel -
Pare!
Márcio - (pausa) O que é que você vai fazer amanhã?
Bel –
Nada especial.
Márcio - Vamos nos encontrar?
Bel - Não
sei se devo...
Márcio - Onde?
Bel -
Diga.
Márcio - No seu apartamento.
Bel -
Não.
Márcio - Está com medo que eu lhe ataque?
Bel - Não
tenho medo de você. Não é isso.
Márcio - O que é então? Medo dos vizinhos?
Bel - Não
devo satisfação a ninguém, já disse. Ninguém paga minhas contas .
Márcio - Então por que não quer que eu vá no seu
apartamento?
Bel - Por
nada. Talvez eu saia.
Márcio - Você gosta dos meus beijos?
Bel -
Gosto, mas não quero intimidade sexual com você.
Márcio - Nossa! "Intimidade sexual"! (respira fundo) Essa é nova.
Bel - Não
seja insistente.
Márcio - Que tipo de amor é este que temos? Estamos
atrapalhando a vida um do
outro, isto sim.
Bel -
Você não me atrapalha.
Márcio - Mas você sim, me atrapalha muito.
Bel - Se
você tivesse uma casa iríamos para lá.(Tenta mudar de assunto) Por que você não
vai morar sozinho? Hein, Márcio? Você... seria... independente de sua mãe. Quer
dizer...
Márcio - Estar com mamãe, é uma forma de não me
sentir só. (pausa. Márcio tira um chiclete de uma caixa e começa a mastigá-lo)
- Posso te pedir uma coisa?
Bel -
Pede.
Márcio - Fica comigo. (pausa) Deixa eu te amar. Eu
durmo feito um cachorro ( deita-se aos pés de Bel)no chão, ao lado da tua cama.
Não reclamo nada. Faço tudo que você quiser.
Bel - Não
posso (angustiada). Não me torture. Não consigo me concentrar mais no meu
trabalho. Estou bebendo além da conta. Eu estou usando comprimidos para dormir.
(imita um dramalhão mexicano).
Márcio - Desde que me conheceu? (Bancando o Don Juan
Segura-a pelo braço)
Bel -
Desde que me apaixonei por você. (Faz pose de cartaz de filme de amor)
Márcio - Você não me ama.
Bel -
Amo.
Márcio :- Se me amasse faria sexo comigo, me
beijaria.
Bel - É
um amor diferente.
Márcio - Eu não tenho muito tempo.
Bel - Por
isso mesmo. Quer dizer, não! Você tomando os remédios e se cuidando vai viver
muito mais tempo.
Márcio - O problema é que eu não quero mais tomar
estes remédios. É um atrás do outro. Se vou dormir fora todos perguntam porque
tantos remédios, é pó, é pastilha, é cápsula, é de 12 em 12, é uma hora depois
da comida... é comprimido. Um inferno. E eu estou emagrecendo uns cantos e
engordando em outros é efeito do coquetel de comprimidos que eu tomo.
Bel -
Todo mundo toma remédio!
Márcio - Mas o meu é pra sempre!
Bel -
Muita doença é pra sempre.
Márcio - Eu não estou doente, isso não é uma
doença.
Bel - É o
quê?
Márcio - Você não entende.
Bel -
Vamos. Levante-se. Vamos ao restaurante aqui perto.
Márcio - Eu quero morrer.
Bel -
Você tem muita coisa pra fazer. Pense nas pessoas que lhe amam.
Márcio - Transa comigo. Vai. Eu boto três
camisinhas.
Bel - Eu
viveria com medo.
Márcio - Deixa acariciar teu corpo (passa a mão no
corpo de Bel, ela deixa. Tempo)
Bel -
Pare, Márcio. (levanta-se. Ele vira-se e
chora).
Márcio - Vá embora. Vá embora.
Bel -
Está bem. Se é assim que você quer. Eu vou mesmo. Agora, depois não me
telefone. Não me procure. Eu vou esquecer você. (levanta-se para sair).
Márcio - Vá. Vá mesmo. É melhor. Para sempre! É
melhor.
Bel - Seu
coisa ruim. (tenta sair. Vacila. Sai. Ele não vê, está virado com a cara
afundada na mochila, chora. Ela volta pouco depois). Márcio !
Márcio - Por que você voltou?
Bel - Eu
não posso deixar você aqui, assim, desse jeito... não posso.
Márcio - Que jeito?
Bel -
Desse jeito que você está. Márcio! Hoje é noite de natal.
Márcio - (cospe o chiclete). E daí? (tosse). Grande
merda.
Bel -
Todos se enternecem com o natal.
Márcio - Eu não confio nesta ternura desses recifenses.(pausa).
Pois este é o meu último natal e eu não estou nem aí. Pronto!
Bel -
Você não confia em mim, Márcio , este é
o problema, você está ansioso demais com a maneira que você vai morrer. Você
está procurando um jeito de se desprezar. Sabe qual vai ser o seu próximo
passo?
Márcio - Não. (pausa) Diga.
Bel -
Arranjar alguém bem miserável para pôr no meu lugar.
Márcio -
Seu lugar...?
Bel - Não
sou uma menina. Sei muito bem como você funciona. (pausa) Você confia em mim?
Márcio -
Confio... um pouco.
Bel -
Pois você deveria confiar mais no meu amor. O meu amor não morre nunca.
Márcio -
Bobagem. Eu gostava de uma pessoa. Não gosto mais. Gostei de outra, não gosto
mais. Todo amor acaba.
Bel - Eu
só quero o seu bem.
Márcio -
Eu vou arranjar outra pessoa. Essa coisa entre nós tem que acabar.
Bel - E
você acha que um dia o nosso amor pode acabar?
Márcio -
Eu quero alguém... para tudo... sexo. Tudo! Você quer um pai para seus filhos.
Eu nunca poderei ter filhos. Provavelmente nasceriam doentes, sem falar que
você se "contaminaria" com minha "semente".
Bel - Mas
nós nos amamos, acima de tudo isso.
Márcio -
Como dois cúmplices de um crime. De um crime que não deu certo. Por que ser
feliz é tão complicado?
Bel - É
porque você não aprendeu a aceitar a felicidade como uma coisa simples.
Márcio-
Simples? Que felicidade é esta que você me dá hoje? Ou será que você só está me
emprestando seu amor? Ou será que você está só perdendo tempo comigo?
Bel - Me
dê suas mãos.
Márcio -
Para quê? (oferece as mãos, que ela beija, e sente o cheiro) - Eu não presto
Bel. Eu não valho nada. Antes de lhe conhecer eu já era infeliz. Eu sou um
crápula.
Bel - Não
fale assim.
Márcio -
Você não conhece o mal como eu conheço, Bel.
Bel - Não
me subestime tanto.
Márcio -
Você não sabe ficar comigo. (segura-a pelos ombros assustadoramente com os
olhos esbugalhados) eu não estou mais nesse mundo para brincadeiras, eu não sou
um presente para uma bur-gue-si-nha
como você abrir na noite de natal (ri, solta-a, pausa) como hoje.
Bel -
Você duvida dos meus sentimentos?
Márcio -
O que eu digo é que a morte já está dentro de mim e a única coisa que eu, às
vezes, quero é ajustar contas.
Bel -
Você é um poço de contradições. Tipo assim o médico e o monstro.
Márcio -
Pior é você sem coragem nem para viver uma vida quanto mais duas.
Bel -
Muito engraçadinho. Quer parar de me humilhar? Tá pensando o quê? Hein? Só você
é que pode fazer o que bem entender com os outros, gritar, espernear?
Márcio -
Você está presa numa teia de mesquinharias e falsos valores. Será que você não
vê?
Bel - E
você nesse oceano de dúvidas só pisa nas pedras da certeza, não é? Eu é que sou
mesquinha e falsa? Você sempre esquece o que eu fiz por você...
Márcio -
Eu sempre exigi tão pouco... e além do mais lembre-se: tudo que você fez por
mim deu em nada.
Bel -
Você não vai conseguir me deixar amargurada, hoje não meu vampirozinho. Hoje não.
Márcio -
Nós estamos inventando que estamos apaixonados um pelo outro, acho que é isso.
Bel -
Isto já está ficando repetitivo.
Cena das algemas
Márcio -
Olha: (tira algo da mochila) seu presente de natal. (mostra um pacote). É uma
coisa para fazer sua imaginação funcionar.
Bel - O
que é isso? (pega e abre) Algemas? Que espécie de brincadeira é essa?
Márcio -
Você sabe? Podíamos nos divertir muito.
Bel -
Qual seria o próximo passo? Chicotes?
Márcio -
Boa idéia. Eu também pensei nisso. Seria uma maneira de chegarmos mais rápido
até o fundo de nós mesmos. Eu lhe amordaçaria e você algemada, amarrada pelos
pés, falaria somente com os olhos.
Bel -
Você gostaria de ser outra pessoa, não é Márcio
?
Márcio -
Quem não gostaria?
Bel - Eu.
Eu não gostaria.
Márcio -
Mentira!
Bel - Ah,
Márcio. Não temos a noite inteira, levante-se daí. Pare de agir como uma
criança.
Márcio -
Gostou do seu presente de natal?
Bel -
(indecisa) São minhas? (mostra as algemas).
Márcio -
São. Não quer? (pausa) Eu devia ter dado a outra pessoa.
Bel -
(fica com as algemas na mão) Estou cansada de fazer tudo por você e você não
reconhecer isto. Vá. Fique com seus amiguinhos que eles é que lhe ajudam.
Márcio -
O lobinho está cansado Bel. Deixe que eu fique aqui chorando. Amanhã eu
esqueço, tudo, ou penso noutras coisas. Deixa pra lá. Me dá isso aqui (pega
numa das pulseiras das algemas Bel segura a outra) algemas... (ri) isso não ia
dar certo mesmo.
Bel -
(segura sua parte da algema, dá um puxão, Márcio é sacudido mas não solta sua parte) solte. O
presente não é meu? O seu eu entrego amanhã.
Márcio -
Solte (ele pega as algemas). Você não entendeu o significado das algemas. Dar
um presente para você é como o livre arbítrio para escolher entre Deus e o
Diabo. Mas só devo escolher Deus.
Bel -
Você quer é mandar nos outros, não é Márcio
? Quer que tudo aconteça na hora que você quer.
Márcio -
Alguém tem que mandar, dar ordens em algum momento. De um navio sem capitão.
Quem ouviu falar? E sem contar que a maior parte do meu tempo eu passo
obedecendo (neste momento Márcio, brincando, algemou-se e levanta os pulsos).
Bel - Ah,
num relacionamento o marido tem que mandar na mulher?
Márcio -
Ou a mulher no marido. Não deve haver liberdade sem limite. O homem depende de
regras.
Bel -
(brincando – empunha uma lança imaginária, um elmo, uma armadura) lá vai o Márcio
Dom Quixote, com seu empregado Sancho e pairando sobre os dois: A loucura!
"Quebrem todas as regras".
Márcio -
Dom Quixote era um velho sonhador da Espanha. (pára, olha para o chão, triste)
será que eu vou envelhecer Bel? Será que eu vou ter tempo para envelhecer?
Bel -
Novas técnicas, novos remédios. (olha-o algemado) Que brincadeira é essa? Onde
estão as chaves das algemas?
Márcio -
Vem cá.
Bel -
Cadê as chaves?
Márcio -
Estão nos nossos corações. Encarceradas. Ficar presa é um bom castigo para uma
chave.
Bel - Ah,
Márcio deixa de brincadeira. Está
ficando tarde e eu preciso ir.
Márcio -
Deixa eu te dizer uma coisa bem bonita.
Bel -
(aproxima-se) - Diga.
Márcio -
(Beijando-a suavemente nos lábios quando se sentam) Feliz Natal. Feliz Nascer.
Para um amor no Recife, esta Manguecéia
desvairada...
Bel - (sentindo-se
estranha) Ui! (arrepia- se)
Márcio -
O que foi?
Bel -
Senti uma coisa estranha, uma espécie de pressentimento. Um calafrio.
Márcio -
(indicando as chaves num saquinho vermelho) - Abra isso aqui. Tome as chaves.
Bel - Garotos
maus, como você, precisam mais de amor do que os outros (ela abre as algemas,
que na verdade nem estavam trancadas).
Cena entre Deus
e o Acusador
Márcio -
Você é como um milagre para mim, para um filho da mãe como eu.
Bel -
Punir-se é o único jeito que você arranjou para se divertir hoje?
Márcio -
Eu acuso você! (sobe no banco e aponta para ela) de me iludir com um falso amor
e me deixar assim.
Bel -
Você sempre me acusa. O acusador satânico é seu segundo papel favorito.
Márcio -
É (desce do banco e reflete balançando a cabeça) É. Satã em Hebreu significa
"o acusador". E você é Nossa Senhora gerando um filho de Deus e eu
condenado a não procriar! (esbofeteia Bel).
Bel -
(sente o murro e põe as mãos no rosto para chorar, sentada, curva-se)
Márcio -
Ah, (ironiza) o bálsamo inútil dos teus pobres olhos. Se pudesse aliviar a
minhas espera. (cai em si).
Bel -
(parando de chorar) – Por que você fez isso? (clima de inquietação).
Márcio –
Desculpe, Bel. Desculpe. (Chora. Bate várias vezes com a cabeça no banco como
querendo arrebentá-la).
Bel –
Calma, Márcio. Calma.
Márcio -
Eu não suporto mais esperar por você! Eu sonho com você, passo o dia com você
no pensamento.
Bel -
Acontece comigo também.
Márcio -
Então? Por que não ficamos juntos?
Bel -
Você sabe por quê!
Márcio -
(numa crise nervosa) Eu podia dizer coisas péssimas para você agora, mas
prefiro que elas fiquem mergulhadas no meu pensamento.
Bel -
Apodrecendo dentro de você? (respira fundo e solta o ar lentamente) mais cedo
ou mais tarde você me dirá tudo que pensa sobre mim e aproveita porque está
bêbado.
Márcio -
Bêbado, doido, é minha proteção contra esse mundinho irreal que está
"esquematizado" por gente como você!
Bel -
Mesmo assim... (triste. Pausa) você acha que podemos formar um casal: Bel e
Márcio?
Márcio -
Bel e Márcio. Sem filhos, netos, sem cães, nem gatos. Bel e Márcio, noite, sol,
chuva, lua... e agonia, ânsia e risos.
Bel -
Você não tem limites. Também para quê? Não é? A linha de partida ou de chegada.
Que importa? É tudo uma aventura para você. (Pausa) Sinceramente Márcio. Diga:
O que você quer comigo?
Márcio - Amar você.
Bel -
Você não pode ter filhos. Eu quero ser mãe. Entende?
Márcio -
Você transa com outros homens. A gente adota. Eu topo qualquer coisa.
Bel -
Você é muito galinha. Eu iria sofrer mais ainda.
Márcio - Eu fico em casa todas as noites como você
quer.
Bel - Não
daria certo. Eu ia me sentir culpada.
Márcio - Você tem medo de pegar "isso"
não é?
Bel - (irônica)
"Isso" o quê?
Márcio - Não brinque comigo.
Bel - Eu
estou cansada, muito, muito cansada.
Márcio - Eu também. Você ama é César. Não é?
Bel: -
Você reza?
Márcio - (depois de longo silêncio) Rezo.
Bel -
Muito?
Márcio - Já rezei "muito" . Aí eu descobri
que era soropositivo.
Bel - E
hoje?
Márcio - Rezo menos.
Bel - Vamos rezar?
Márcio - O quê??? (espantado)
Bel -
Agora (pausa)
Márcio - Não. (começa a chorar)
Bel - Pai
nosso que estás no céu. Santificado seja o Vosso nome...
Márcio - Não.
Bel -
Venha a nós o Vosso reino.
Márcio - Eu quero casar com você.
Bel -
Seja feita a vossa vontade.
Márcio - Você está fugindo do seu amor.
Bel -
Assim na terra como no céu.
Márcio
–Me deixa ficar com você.
Bel - O
pão nosso de cada dia nos daí hoje.
Márcio - Me deixa
te servir.
Bel -
Perdoai as nossas ofensas.
Márcio - Minha rainha.
Bel -
Assim como nós perdoamos.
Márcio - Eu te amo.
Bel - A
quem nos tem ofendido...
Márcio -
(procurando algo na mochila) Roubaram um
frasco de remédio meu. É caríssimo. Se não fosse do governo eu não poderia
comprar.
Bel - Não
nos deixeis cair em tentação.
Márcio - Eu tenho outro.
Bel - Mas
livrai-nos do mal.
Paris,
Pernambuco! (A cena)
Márcio - Seduzir é dizer a vítima o que ela quer
ouvir. Esquecer de amar você seria como esquecer que eu existo. Seria ótimo se
eu pudesse. Sua fortaleza tem muro de sorvete eu penetro comendo. Essa
escuridão que nos envolve agora é a luz de Deus. O sol de amanhã será a sua
sombra. Sabe? Você não é diferente de mim, amanhã poderemos estar mortos.
Bel -
Livrai-nos de todos os males. Amém. (pausa enorme)
lhe dizer uma
coisa. Eu vou embora para Paris.
Bel - Eu
não tenho essas vontades. Eu não quero sair do Recife.
Márcio - Pois eu vou. Não sou acomodado como você.
Bel - Vai
para longe de mim? Para sempre?
Márcio - Eu não vou demorar muito.
Bel -
Você vai voltar logo?
Márcio - Não. Eu vou morrer, logo.
Bel -
Você é muito sarcástico.
Márcio -
(pausa) O que eu detesto naquele lugar que eu pego o remédio, é olhar aquelas
pessoas que apresentam o sinal do soropositivo,
os sintomas. Você lembra, não é? Você foi comigo. Foi a única pessoa que se
ofereceu pra ir comigo uma vez.
Bel: - Eu
não conseguiria viver sem você, Márcio ,
eu juro.
Márcio - Ah, se suas juras ou orações pudessem nos salvar,
me salvar. Mas estou num
ponto onde não
há retorno possível. (Ri).
Bel - Seu
sorriso é tão lindo, seus olhos de bebê. Desde o dia que lhe conheci que me
apaixonei por você. Pelo seu retrato de adolescente. Seu jeitinho inocente,
malicioso, dado, jogado.
Márcio - Como é que você me ama? Me explique. Eu não
entendo nada.
Bel - Eu
te amo. Só isso.
Márcio - Nosso amor é fantasia de dois corações
partidos.
Bel - Eu
te amo, Márcio. Muito.
Márcio - Eu te amo muito Bel. Me beija.
Bel - Não
posso.
Márcio -
(baixa a cabeça nos joelhos e chora, triste, desesperado, cósmico) "Não
posso".
(pausa) Amar
para você não significa estar amando. Não é, Bel?
Bel -
Algo me impede, é mais forte que eu. Eu não sei o que é.
Márcio - É a vida. Não é, Bel? Você quer continuar.
Você quer ter seu lugarzinho entre os idiotas, garantido.
Bel - Eu
não sei o que você quer dizer com isso.
Márcio -
Não sabe?
Bel – Só
sei é que em relação a você, quando estou longe, dá aquela dor no meu coração.
Uma tristeza. Vontade irracional de jogar tudo para o alto. E fim. A gente
dançando, o luar e as estrelas se encarregariam do resto e rolariam os
letreiros finais.
Márcio -
Você às vezes é muito imatura. Parece uma criança, louca, minha ratinha
zarolha. Eu te amo muito. Me abraça. (chora mais).
Bel -
Como eu estou sofrendo, Márcio. (os dois choram muito, essa cena tem que ter
lágrimas visíveis toca "Lábios que Beijei". O abraço continua, é como
se dançassem).
Começa o
Dramalhão "Lábios que Beijei"
Bel -
(música toca baixinho) O que faremos? O que acontecerá conosco e com todas
pessoas que vivem ou viverão como nós?
Márcio - O que importa? Eu estou aqui.
Bel -
Presos nos mistérios do amor.
Márcio - Estou só.
Bel -
Você está comigo.
Márcio -
Você vai embora. Prefere conservar sua vida no vinagre, do que arriscar
qualquer romance comigo.
Bel -
Você está completamente bêbado, não dorme há quarenta e oito horas. Não
almoçou...
Márcio - Pare de repetir isso feito uma velha chata.
Bel - É,
eu sou como uma velha chata.
Márcio -
Se eu não tivesse te contado tudo na noite seguinte a que nos conhecemos...
você estava tão... intensa. Você mal podia acreditar.
Bel -
Pensei que era uma brincadeira.
Márcio -
Ficava repetindo "o quê? O quê? O quê?" Pareciam facadas no meu
corpo. Eu devia ter usado a camisinha e pronto.
Bel - Não
seria justo. Eu odiaria você por não ter me avisado. O amor tem que ter a
verdade completa doa a quem doer.
Márcio -
Será que sabemos mesmo o que é o amor? Será que alguém sabe? Você, por exemplo.
Bel - Olha
lá o que você vai jogar na minha cara.
Márcio -
Como é essa sua relação com seu namorado?
Bel -
Deixe o César em paz. Ele não tem nada a ver com isso.
Márcio - Vocês estão separados? Você não o ama mais.
E não se separa por comodismo. Não se pode amar duas pessoas com a mesma
intensidade. Você me ama.
Bel - É
diferente.
Márcio - (agarra Bel à
força e beija os lábios dela com intensidade) Eu te quero, eu te quero.
Bel - Me larga!
Márcio - Não sinta nojo de mim! Não me faça me
sentir pior do que já estou me sentindo.
Bel -
(olha para o céu estrelado implora, passando a mão pelos cabelos) Meu Deus me
ajude. Eu não sei o que fazer. Eu não sei como amar este rapaz. Leve-me mas não
me deixe neste tormento. Eu não consigo trabalhar, ler, viajar, sorrir. Nada
sem ele é tranqüilo.
(Aqui como
comédia espanhola).
Márcio - (deitado quase não houve Bel falando com
Deus) Bel!
Bel -Oi.
Márcio -
(deitado com o rosto escondido estende a mão)
Vem cá.
Bel -
Diga, Márcio.
Márcio - Me
dá o telefone para eu ligar pra "Dona Ana...", minha mã... mãezinha
querida.
Bel - É,
a velha deve estar louca atrás de você que não dá notícias há três dias.
Márcio - Até nas delegacias ela já deve ter ido.
(pega o telefone. Digita)
Bel -
Você se lembra de tudo que faz quando está assim: bêbado?
Cena "Mamãe
Natureza"
Márcio - Chama, chama. Ninguém atende. De novo.
(respira fundo). Sabe, Bel? Acho que o melhor que a gente tem a fazer é ir cada
um para o seu canto e pronto. Não devemos ter compaixão um do outro. Acho que
até para Deus nosso amor é um crime.
Bel - Nem
sequer os homens poderiam fazer com que se transformasse o amor de duas pessoas
em crime.
Márcio - Mas a natureza pode e a natureza sempre
vence. (vira-se de costas para a platéia)
Bel - O
que é que você está fazendo?
Márcio -Eu quero você! Queimadinha. Nesse
vestido curto. Mostrando seus ombros, seios. Sua boquinha... tão bonita. Eu
quero.
Bel -
Pare.
Márcio -
(levanta o vestido dela) Eu quero.
Gostosa. Meu amor! (sussurra).
Bel -Eu
vou embora.
Márcio - Aahh... (tenta tocar nela)
Bel -
Márcio, não! Você está bêbado. Não, Márcio
! (tenta desvencilhar-se dele). Não!
Márcio - Deixa. Ninguém está vendo. Eu não vou sujar
você. Deixa vai!
Bel: - Se
você continuar, eu saio correndo e a gente nunca mais se ver.
Márcio - Você não me quer mesmo. (fecha o zíper). -
Adeus Little Bel. Não esqueça de colocar flores na minha cova. Jingle Bel.
Jingle Bel.
Bel -
Você vai viver muito. Vai ficar velho.
Márcio - Obrigado.
Bel - Vou
chamar um táxi para você.
Márcio - Eu não quero um táxi. Eu quero você pra
mim!
Bel - Eu
não agüento mais. Pare de me torturar, Márcio, pare.
Márcio -
(acalma-se) Não se apagar, murchar ou envelhecer. Lembra? E agora a morte na
cara da gente. Meu tempo está se acabando Little Bel.
Bel -
(olha relógio, tenta recompor-se) Mais
de dez horas, preciso ir.
Márcio -
Você vai me deixar sozinho na noite de natal das nossas vidas. O único que
poderíamos estar juntos e curtindo isso. Não percebe que Deus nos deu de
presente um para o outro?
Cena / Baile
Bel -
Deixe de história! Você está na gandaia desde ontem. Você me agrediu ontem pelo
telefone. Que é que eu posso fazer? (pausa) - Vou na casa de mamãe. E você
nessas condições...
Márcio - Cadê o restaurante? Me deixe lá e pronto.
Você não tem que ser boazinha e ficar comigo não.
Bel -
Você também já me "abandonou" três vezes no mínimo.
Márcio - (irônico)
É? Quando?
Bel - No
teatro naquele dia você se jogou nos braços de alguém conhecido e me deixou
para trás.
Márcio - Eu lhe procurei e não lhe encontrei.
Bel -
Papo furado. Você já tinha marcado lá com aquela pessoa.
Márcio - E as outras duas vezes?
Bel - No
encontro de maracatus, na Noite dos tambores silenciosos, você não lembra? Você
"se perdeu" da gente e passou a noite toda nos lugares que você
freqüenta, até o dia nascer e querendo mais, fazendo a linha "graças a
Deus é sexta-feira” e da outra vez foi no show da Nação Zumbi. Está esquecido?
Márcio -
(pausa) - Escuta: Quando a gente vai se ver de novo?
Bel- O que é que você vai fazer domingo à tarde?
Márcio - Depois de você, eu não vou conseguir amar
mais ninguém.
Bel -
Você está subestimando o amor.
Márcio
- (Ri)
Pois sim! Você diz isso porque não está embaixo da minha pele. Só eu sei
o que eu tenho agüentado.
Bel -
Também agora ser soropositivo virou explicação para tudo que era pergunta sem
resposta, não é
Márcio -
Mas é verdade, Bel. É como se a noite escura caísse de repente sobre a terra ao
meio-dia.
Bel -
Jante. Por enquanto é o melhor que você tem a fazer agora e deixe de drama.
Márcio - Pra quê? Um dia a mais ou a menos nesta
prisão.
Bel -
Muitos são livres.
Márcio - Você, é livre?
Bel -
Sou.
Márcio -
A única liberdade que sinto é não ter gerado outro ser humano.
Bel – Que
poderia se dar bem na vida e ser feliz de vez em quando.
Márcio - Sofrer ou ser feliz é a mesma merda neste
planeta.
Bel – Ah!
Você está insuportável.
Márcio - Vá embora, eu já disse. Eu nunca mais vou
ligar para você. Eu vou te esquecer.
Bel - É
melhor mesmo, é a única solução para nós dois.
Márcio -
Eu vou ficar longe de todos que possam trazer notícias suas.
Bel -
Pois vá em frente, eu já estou de saco cheio, eu cansei Márcio, eu estou
esgotada. Você não reconhece o que eu faço por você...
Márcio -
É por isso que eu só faço pelos outros o que eu quero, é pra depois não bancar
a vítima choramingando o "tempo perdido", feito um bezerro desmamado.
Bel - Um
dia você vai me entender.
Márcio - Ainda bem que eu não preciso esperar muito.
Bel -
Você esperaria por mim?
Márcio -
Você diz, assim? É, em casa com sopa numa noite de chuva, pedindo uma pizza
pelo telefone para você? Esperando você depois do banho?
Bel -
Você lutaria por um futuro melhor se eu estivesse ao seu lado?
Márcio - Claro que com
você ao meu lado será mais fácil, melhor. Eu vou me sentir mais... em casa,
esqueço de mim facilmente, com você ao meu lado eu riria da vida como um
miserável ri com uma piada bem contada.
Bel -
Exagerado.
Márcio -
(jogando-se aos pés de Bel) "Jogado aos seus pés eu sou mesmo exagerado".
Bel -
(Ri) Com você como não ser clichê? (fica
séria, olha o relógio) Meu Deus.
(apressando-se). - Eu tenho que
ir embora.
Cena "Do
revólver"
Márcio - Senta aí porra, eu tenho uma merda pra te
contar.
Bel -
Pode guardar sua merda que eu não quero não.
Márcio - Me escuta nem que seja pela última vez.
Bel - Não
é sua culpa. É que você está de um jeito muito kamikase pro meu gosto.
Louco em noite de lua cheia.
Márcio - Um louco a mais ou a menos, o que a lua
cheia tem a ver com isso? E hoje não temos lua cheia.
Bel -
Você recarregou as baterias na última lua cheia.
Márcio - Deixe eu lhe contar.
Bel - Eu
tenho que ir embora.
Márcio - Vamos viajar amanhã?
Bel -
Para onde? Eu não posso.
Márcio - Vamos.
Bel -
Isso está virando uma guerra de nervos.
Márcio - Uma guerra de nervos.
Bel - Uma
guerra de nervos sim. Você está tentando deliberadamente me enlouquecer.
(grita) eu não
agüento mais!
Márcio
- Satanás (grita) me leva! (Brinca,
sorri).
Bel - De
novo este texto? Ah! Deus lhe abençoe, Márcio, porque você não sabe mesmo
o que faz!
Márcio - Tantas coisas que eu fiz nessa vida, Bel,
tanta coisa para carregar. Eu não agüento mais (pausa) - Há alguns dias um
amigo meu deixou um revólver comigo porque ia se mudar para os Estados Unidos...
Bel -
Miami, provavelmente.
Márcio - Não, Nova Orleans. Bel, está sendo difícil conviver
com este revólver.
Bel -
Esse seu amigo para que ele queria esse revólver?
Márcio - Ele é meio anjo e meio bandido.
Bel -
Qual a idade dele?
Márcio - Que importa isso agora?
Bel -
Qual a idade dele?
Márcio - Vinte e um anos.
Bel -
Você devia se juntar com gente ajuizada...
Márcio - O revólver Bel, isso é que interessa. O
fim do caminho.
Bel - O
que é que você vai fazer? Vai matar alguém? Vai matar-se? É isso Márcio é isso que você quer? Nos manchar com este
horror imundo?
Márcio - Eu não quero mais viver assim!
Bel - Que
coisa ridícula. Você vai tomar os remédios e tudo fica legal. Agora, você devia
beber menos e dormir mais.
Márcio - Eu consegui um monte de comprimidos para
dormir.
Bel -
Suicidar-se com comprimidos? E o revólver?
Márcio
- (tira da mochila) Aqui está ele
(mostra o revólver).
Bel
- (assustada, olhando ao redor) Por favor! (esbugalha os olhos) - Guarde
isso! Você bêbado com isso... assim. Cuidado. (olha ao redor). Podemos ser
presos. Ai meu Deus passar o natal na cadeia. Já pensou?
Márcio -
Eu pensei em muito mais que isso.
Bel - Não
Márcio. Guarde isso. Por favor.
Márcio
- (guardando) Você ficou com medo. Não
ficou? E se isso fosse uma arma de brinquedo?
Bel -
Para que você compraria uma arma de brinquedo?
Márcio -
Fui na casa de um pessoal amigo, o lugar estava cheio de brinquedos... os “diabinhos" das crianças se esbanjando
na fartura. Eu bêbado peguei o revólver de uma das crianças.
Bel -
Você não pode se matar. Suicídio não! Por favor.
Márcio - Eu não estou nem vivo nem morto... é algum
lugar entre a vida e a morte... e você, que eu esperava, fosse a resposta às
minhas preces... (pausa) Não adianta. Não adianta mais. Eu desisto. Meu inferno
estará aonde eu for. Onde eu estiver. A culpa é minha.
Bel - Não
faça da culpa o centro da sua vida.
Márcio -
Vá se tratar! "Não faça isso! Não faça aquilo..." (Pausa. Aproxima-se
de Bel) o seu perfume...
Cena do Perfume
Bel - Meu
perfume...
Márcio
- (abraçando-a sensualmente) - Conheço
bem.
Bel - O
meu cheiro?
Márcio
- (sem ouvi-la. Seduzindo-a no abraço
que vai se tornando mais profundo) Eu te
amo. Eu te amo. Sai deste trono, renuncia. Desce, vem pra mim. Eu faço tudo que
você quiser. Tudo.
Bel
- (debatendo-se, depois de haver cedido
ao abraço de Márcio) - Você é muito cruel comigo. Você me tortura mentalmente.
Meu cérebro derrete às vezes, que você me azucrina.
Márcio - Azucrinar? É assim que você chama o meu amor?
(pausa). - Eu não sei porque eu fiquei preso a você.
Bel -
Talvez seja pela lembrança dos momentos bons que nós vivemos.
Márcio - É talvez, de alguma forma tudo em nós seja
só lembrança. Lembrança de um tempo feliz. Um amor de conto de fadas como você
mesma disse uma vez... um conto de fadas para alegrar meu coração arruinado...
joguete dos deuses que sou.
Bel -
Talvez seja melhor a gente dar um tempo mesmo. Sabia? Tipo assim "férias
conjugais".
Márcio - Que contradição. Nunca nos casamos. Nem casaremos.
Você tem nojo de mim.
Cena: Cinderela,
11horas.
Bel - Meu
Deus. (olha para o relógio) Quase onze horas! A ceia de natal é meia-noite.
Márcio -
É. Você foi ficando, ficando. Eu tenho um poder magnético sobre você. Não
tenho? É só um pouquinho, mas eu tenho.
Bel -
Sim, Márcio. Você me atrai. Mas o que eu sou para você?
Márcio -
Você, Bel, é como um sol dourando as águas do meu mangue sujo, miserável, uma
piada de Deus. A última?... Neste cemitério. E eu metido nisso como numa
brincadeira... e eu... a esperar que algo sobrenatural aconteça... me
suspenda... me transforme em pó... uma onda... um vento... algo que me
carregue! Um final de vida prático sem preocupações que acabe com esse
isolamento, essa prisão.
Bel - Você está falando um monte de besteira.
Márcio -
Mas esse revólver não é besteira. Sabe o que eu vou fazer?
Bel - Não
me interessa. Faça o que achar melhor. Está bem? Tchau, Márcio , agora eu tenho que ir mesmo.
Márcio - Espera. Me dá o telefone. Vou ligar pra
minha mãe, uma última vez.
Bel
- (entregando o celular) É bom mesmo. Toma liga logo que eu tenho que
ir embora.
Cena do
"Taí"
Márcio -
(digitando e esperando canta "Taí") Alô. Mãe? Puxa. Aonde a senhora foi? Liguei
três vezes. Ninguém atendeu.
Bel - Diz
que eu tô mandando um "feliz natal".
Márcio - Bel tá mandado um "feliz natal"
(pausa) certo. Ela tá mandando um "feliz natal" pra você também.
Bel - Diz
que amanhã eu vou lá.
Márcio - Amanhã ela vai aí. (pausa) Mãe, sabia que
eu estou muito doente?
Bel –
Márcio, por favor! (apreensiva)
Márcio -
Deve ser uma gripe! (pausa). Se eu vou pra casa? (pausa) Não mamãe. Eu vou ter
que passar a noite aqui. (pausa) Aqui onde? (pausa) No inferno, mamãe. No
inferno onde você me jogou por não saber criar um filho e ter procriado. Eu não
agüento mais mamãe. Tô cheio completamente. Eu acho que a culpa é toda sua. Não
sabe? (pausa) Quer saber mais?
Bel –
Márcio, por favor. Hoje é natal!
Márcio
- (ainda ao telefone falando com a mãe)
Quer saber mesmo? (Pausa) Eu - sou – soropositivo (pausa) AIDS. (pausa) gostou
do seu presente de natal? Boa noite (desliga).
Bel -
Satisfeito?
Márcio - Não (entrega o telefone a Bel) Não. Mas ela
merecia isto.
Bel - É
sua Mãe. Hoje é dia de Natal.
Márcio - Ela é fria, é um monstro da razão. O Natal
não tem nada a ver com ela.
Cena: Arte
longa, vida curta.
Bel -
Como ousa?
Márcio - Já fui obrigado a esconder o que sinto, mas
agora chegou a hora do grande duelo.
Bel - E o
amor onde fica nisso tudo?
Márcio - O amor é a luz que ilumina o duelo.
Bel -
(suspira) Você sabe como transformar tudo numa coisa pior.
Márcio - Sou especialista nisto.
Última cena: Jingle
Bell. Jingle All The
Way.
Bel - E agora?
Márcio - - O tempo foi se arrastando, o relógio
distraiu meus sentidos, meu espírito. Perdi o tempo e a saúde, fui esmagado
pela prostituição medíocre. Nada mais resta além deste solitário paranóico que
você está vendo.
Bel - O
que é que quer que eu faça?
Márcio - Siga seu caminho. (procura algo na mochila
– o revólver) – Você é jovem, todos lhe amam. (mostra o revólver). Você vai
procriar. Ser avó. E... morrer feliz daqui a um século (pausa) quanto a mim...
Bel - Me
dê este revólver (tenta tomar a arma).
Márcio -
Não. (pausa) Já decidi. Quando você for embora. Eu me mato.
Bel - Não
faça isso. Não é justo.
Márcio - O que é justo? Esse carrossel maluco?
Estou farto!
Bel -
Enquanto há vida há esperança. Lembre-se: você sempre pode ajudar alguém.
Márcio -
Isso está ficando melodramático demais pra meu gosto. Eu já amei demais.
Trabalhei demais. Sofri. E, quem sabe? Já fui feliz o suficiente. Cheguei a um
limite. Chega de terapia. Chega de novos e velhos amores. Nada mais me anima.
Eu não vou deixar cartas... nem quero deixar saudades.
Bel - Me
dá esta porcaria. Vou jogar isso no mar. (tenta tomar a arma. Abraça-se com
Márcio ) Solta. Me dá. Você não pode
fazer isso (esforça-se para tomar a arma).
Márcio -
Não adianta. Eu já decidi. (diz isso com mágoa, raiva, força) Sai! Vai embora.
Bel - Não
faça isso... eu (ouve-se o som do tiro) te amo. (ela respira fundo) muito
(chora)
Márcio : - Bel! (grito de desespero – o tiro a
atingiu mortalmente) Nããão! Não é possível meu Deus. Isso não pode ter
acontecido. Bel cai aos pés de Márcio
já perdendo os sentidos) Bel por favor. (ela está de costas para a
platéia) Bel... meu amor... (chora) responda (Bel treme, morre)
Som de sirenes.
Sinos. É meia noite. Bel está morta. Ruídos de máquinas . UTI. Márcio vai acordando. Bel entra e o texto é quase o
mesmo do início da peça. Márcio percebe que tudo foi um sonho.
Bel –
Márcio. Levanta. Olha o copo d´água. Cadê os remédios?
FIM
"PARA UM
AMOR NO RECIFE"
Prêmios: *
Melhor diretor (Carlos Bartolomeu)
* Melhor ator (Gustavo Falcão)
* Melhor trilha sonora: DJ Dolores
(Helder Aragão)
* Melhor iluminação: Beto
Trindade e Alexandre Veloso (Teatro Apolo).
...Anjos
de Fogo e Gelo...
PEÇA TEATRAL DE
MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO
Dedicada a
Carlos Bartolomeu, Jomard Muniz de Britto, José Francisco Filho e João Denys
Recife,
abril de 2008
Equipe da montagem de 2008, Recife
PRÓLOGO
(Chegada
de Rimbaud ao Inferno:
sua
entrada lembra uma criança à beira da morte improvisando doces canções)
VERLAINE: Ele está morto!
(Toca o quinteto, Opus 115 de
Brahms)
TRECHOS DE POEMAS DE PAUL VERLAINE:
RIMBAUD- A lua branca /brilha no
bosque. /De ramo em ramo, /parte uma voz que /vem da ramada. Oh! bem-amado!
//Reflete o lago, /como um espelho, /o perfil vago /do ermo salgueiro que ao
vento chora. //Sonhemos, é hora... //Como que desce /uma imprecisa / calma
infinita do firmamento /que a lua frisa.
VERLAINE- É a hora indecisa...Antes
que apagues teu brilho, /nívea estrela matutina/ volve ao poeta, cujo
olhar o amor cegou como um véu, /teu olhar, que se diria /banhado na luz da
aurora, e leva o meu pensamento, /longe, além, lá, bem distante, /no sonho em
que não cessa de se embalar o meu bem, (mas depressa, que o sol dourado já
vem!).
RIMBAUD- Cada concha, no interior /dessa
gruta onde a gente se amou, /tem o seu especial sabor. Uma, a púrpura tem da
chama /roubada ao nosso coração, /quando o desejo nos inflama”.
VERLAINE: (Celo: acorde assustador) Absinto! (Olha o
cálice com o líquido verde) Absinto!
Combustível para minha estadia no inferno! Infinita estadia. Sobre o rio maldito, navega
nosso barco ébrio, nele estão os nossos segredos mais ocultos. Sobre ele quisemos reinventar o
amor! (Verlaine bebe mais)
RIMBAUD: Mocidade aprisionada, a tudo
subjugada. Por delicadeza, eu perdi a
vida...
(Toca trecho de “Casta Diva” de “Norma” de Bellini).
VERLAINE: Leva-nos o barco bêbado...até o mais
estranho portal...o inferno...
RIMBAUD: É chegada minha hora!
(Verlaine repete em francês)
VERLAINE: Sobre o arco da entrada está
escrito: Os que cruzarem este portal, deixem para trás toda esperança.
RIMBAUD: Aos
céus ergui minha estranha sede. Deixei tudo para trás e segui.
VERLAINE: Ele não reconhecia limites
RIMBAUD: Sedento entre ferozes moscas imundas, eis a minha
entrada.
VERLAINE: E eu, na mais alta torre: restam as
lembranças, as flores... o silêncio embaixo das pilastras.. o azul... as
estrelas esparramadas? (Grita enlouquecido). Prisioneiro e possuído pela alma
de Jean Nicholas Arthur Rimbaud! Ele me vê (arregala os olhos) daquele outro
mundo...
RIMBAUD: Ventos noturnos me envolveram... me
falaram...
VERLAINE: Na minha memória, ao entrar, ele parecia uma criança à beira da
morte, improvisando doces canções. Ele, o garoto que veio do interior...
(Música)
MATHILDE: Ele parecia segurar nas mãos uma
granada, depois de lhe ter arrancado o
pino!
VERLAINE- Ele! A mistura de presente, passado e futuro a
paralisar o impossível. Disposto a
roubar o fogo sagrado do altar!
RIMBAUD- Eu não conhecia limites.
MATHILDE: Usou
os seus versos para alimentar o
seu sonho tolo de liberdade. Roubou meu
marido. Destruiu minha família.
VERLAINE: Aqueles olhos azuis..
MATHILDE:
Tão malignos.
VERLAINE: Aquele sorriso...
MATHILDE: Tão satânico!
VERLAINE: Destruindo rima e métrica...
MATHILDE: Ele destruiu boa parte da minha
vida. (segura algo com força e
respira e respira fundo) E agora eu tenho guardados seus últimos escritos. (olha para baixo) Não tenho
força para destruí-los. Não tenho coragem. (ergue a cabeça) É como se das...
trevas... viesse o ...impedimento.
(Música)
VERLAINE: Com as botas rasgadas pelas pedras
do caminho ele chegou até mim...
RIMBAUD: Que me importam os grandes poetas? Apossei-me deles e superei-os.
VERLAINE: Trinta e sete prêmios no colégio.
MATHILDE: Bicho do
mato com sotaque insuportável. Anticristo! Um dia escreveu:
RIMBAUD: À merda, Deus! Merde à dieu!
(Ajoelha-se e chora convulsivamente)
MATHILDE: Blásfemo! Proscrito! Ele roubou-me o pai do meu filho!
Meu filho...
VERLAINE: Meu filho Georges nasceu naqueles dias tumultuados por tanto haxixe,
ópio, absinto...
RIMBAUD: Merde à dieu!
(Música)
VERLAINE: Sim.
Ele era um menino de família que
lia a Bíblia e o Corão.
MATHILDE:
Família, pois sim! O pai?
VITALIE- O pai nos abandonou quando ele
tinha pouco mais de seis anos.
MATHILDE- A mãe tornou-se amarga, seca. Outro
dia veio me procurar, ela e a insuportável da irmã dele. Duas víboras. Raça de
cães. Odeio esse povinho!Nem o marido agüentou aqueles filhos e a mulher.
VITALIE- Largou tudo sem dar satisfação.
RIMBAUD: (Estranho) Meu pai...
MATHILDE:
Ela se refugiou no trabalho do campo. Coisa de gente sem estudo!
(desdenha)
VERLAINE: O primeiro estudo a que se deve
submeter aquele que deseja ser poeta...
RIMBAUD-
... é o estudo de si mesmo. Precisa ser vidente! E essa vidência vem com
o desregramento de todos os sentidos.
MATHILDE: Ele estudava para se tornar um bom
canalha! (ri, jogando a cabeça para trás
e erguendo- a para frente lentamente) Atiçando seus... sentidos...
de modo ...assustador.
VERLAINE: Meu menino... dormindo... debruçado
sobre um livro sob o céu estrelado da França, no silêncio, depois da caminhada
noturna por tantas estradas que percorreu. O
que tanto ele buscava?
MATHILDE: E meu marido juntou dinheiro, com
outros poetas e enviou uma passagem de trem
para esse...(torce o nariz) menininho...
VERLAINE: Do nordeste até Paris.
VITALIE- Meias de lã tricotadas pela mamãe, calças curtas, pois ainda estava em fase de crescimento...
VERLAINE- E lá estava aquele menino-poeta! (abraça o vazio do palco) Entre os meus
braços. (confuso) E agora? O que me resta?
MATHILDE:
Era o prelúdio de um desastre!
VERLAINE: Mathilde era o tipo de esposa
ciumenta.
MATHILDE:Rimbaud era arredio, intratável, monossilábico.
VERLAINE: Ele decepcionou-se comigo. Queria
que eu fosse aquele sujeito dos meus poemas. Queria que eu vivesse como
escrevia. La vrai vie!
MATHILDE: Dizia que buscava a verdadeira
vida! A verdadeira vida, pois, pois. Aquele crapulazinho miserável que dormia com os cães pulguentos das ruas
foi para dentro da minha casa. Como pude dar cabimento? Ah! Meu Deus.
VERLAINE: Perplexos, foi como os poetas
ficaram diante de tanto talento. Alguns o esnobaram por ser do interior. Ele tornou-se agressivo, querendo viver... só
de... poesia.
MATHILDE:
Não dava um dia de serviço a
ninguém! Nem durante a colheita ajudava
a família! Ficava trancado escrevendo
suas porcarias!
VERLAINE: Um
mito que eu ajudei a criar.
Remendar. Quantas vezes ele a precisou de mim?
MATHILDE:
Pálido, errante, coberto de lama
(pausa) Fezes...desesperado de fome, frio.
VERLAINE: Essa autoflagelação fazia parte do seu ideal poético.
RIMBAUD: Eu já. Conhecia Paris muito bem e
me aproveitava disso.
MATHILDE:
O lugar dele era mesmo os albergues miseráveis, em meio aos vagabundos que vasculham latas de lixo para encontrar comida.
VERLAINE: Ele me provocava.
MATHILDE:
E Verlaine tentou matá-lo com dois tiros de revólver. Feriu-lhe o braço.
(põe as mãos no rosto- crise) O meu marido! Preso na Bélgica! (recupera-se
momentaneamente) Jesus foi mais forte e um ano e meio depois, ele saiu.
Meu marido! Tão canalha
comigo... que escândalo. Comigo! Eu, uma mulher tão jovem, rica, bonita, inteligente...
VERLAINE: Enquanto eu estava na prisão, ele
recolheu-se ao sótão da fazenda e ali escreveu “Une saison en enfer” e a mãe dele, que
não dava dinheiro a ninguém, e não aprovava muito o filho poeta, pagou-lhe a
edição de quinhentos exemplares.
MATHILDE: Mas Deus é tão justo que o desgraçado
do Rimbaud só teve foi a oportunidade de receber os exemplares do autor.
VERLAINE: Para mim a dedicatória foi bem seca: “A P. Verlaine...”
MATHILDE: Gastou o dinheiro que a mãe lhe deu!
(ri) Na farra (ri mais) e não pagou ao
editor. Bem feito! O pacote ficou per-di-do e ele, en-lou-que-ci-do, jogou quase todo
o original no fogo. (zomba) Devia ter se jogado também, naquela
hora! Mas preferiu ser “negociante” na África.
Armas, café, ervas... e suponho
que escravos também. Ele tem o perfil de quem venderia escravos, embora todos
neguem isso. Ele queria ficar rico e ele
não tinha escrúpulos. Isso eu tenho cer-te-za.
VITALIE-
Sempre que ele parte, nunca sei se vai voltar...
VERLAINE-
Com ele a gente nunca sabia.
(toca a overture,
op. 21 de “Sonho
de uma noite de verão” – Mendelsohn)
CENA 2
RIMBAUD: Eu
não gosto muito de estudar, mesmo.
Mas lá na fazenda eu fazia compras, arrumava a casa, cuidava do jardim. Pra que tanta matéria na escola? Não é
uma tortura? Eu sou um poeta.
VERLAINE: Escute...
RIMBAUD: Porra! Ficar esfregando as calças nas
bancas da escola.
VERLAINE: Para vencer na vida, você precisa
estudar...
RIMBAUD: Para quê? Tenho que passar em um
exame para ser engraxate? Só se é rico nessa vida roubando ou explorando a
força de trabalho do próximo.
VERLAINE: Não exagere.
RIMBAUD: Ah!
Não. Que emprego você imagina para um cara como eu? : Tratador de porcos? Boiadeiro? (ri) muito
obrigado! Não quero (ri) Ah! (se benze e se arrepende de se ter benzido).
VERLAINE: (percebendo que Rimbaud
arrependera-se de se ter benzido) Renegando a igreja católica?
RIMBAUD: (pulando para cima de Verlaine que ri relaxado
na cama). A santa doutrina católica. França,
disse o Papa: a primogênita da igreja. Joana D’arc é exemplo
interessante do que a igreja pode fazer com uma pessoa. Não é?
VERLAINE: E seus amigos padres? E Ernesto? Você era... virgem, com ele, também?
RIMBAUD: Como você é vulgar! Conservador! (bate com raiva em Verlaine).
Burguês de merda! Não nega as origens!
VERLAINE: O par perfeito para você.
(tenta beijar Rimbaud)
RIMBAUD: Não me trate como se eu fosse uma das suas mulherezinhas ou apenas mais um dos seus rapazes.
VERLAINE: Isto está virando novela para adolescentes: “Bate um coração, lateja minha tesão, sob
esta batina” (acaricia as partes de Rimbaud e ri, prolongada e ironicamente).
RIMBAUD: O absinto faz de você uma pessoa bem
pior do que você é, quando está sóbrio.
VERLAINE: Você tem olhos de serpente (pega o
lençol simula masturbação sob o “véu”
improvisado- Toca trecho de Mendelsohn) Ó vem a
nós, grande Maria! Tu que és mãe pia do bom Jesus! Do Cristo Santo,
ó virgem prenha, sobre nós venha a tua
luz!(ri e se engasga). O Éter Cósmico sacudiu minha alma enquanto eu despetalava esta rosa
poética! peguei minha cítara...
RIMBAUD: Como um salmista, elevei minha voz inocente... Você
não sabe o que é pureza!
VERLAINE: Faça-me o favor! Puro? (ri) Você?
RIMBAUD: Puro! Ergui minha voz até as
altitudes celestes.
VERLAINE: (vira-se violentamente) E depois recolheu as asinhas. Não foi?
(atraca-se com o outro) Onde você escondeu as suas asinhas de anjo? (rolam pela cama,
Verlaine faz cócegas em Rimbaud) Hein? Seu menino malvado.
RIMBAUD: Guardadas para não se sujarem! Protegendo o meu canto virginal.
VERLAINE: Virgem prenha!
Virgem prenha! Cadê tua
cítara e as energias misteriosas? (rolam pela cama até o chão e continuam em
estranha dança. Dança macabra).
RIMBAUD: Você está possesso...
VERLAINE: Possesso está você, seu pequeno canalha!
RIMBAUD: (cínico) Porca velha!
VERLAINE: Vem!
Vem mamar nos meus peitinhos desta porca, como você mamou nos da sua
mamãe. Vem!
RIMBAUD: Doente!
VERLAINE: Sem
mim, você está perdido, Rimbaud.
Quem vai contar sua história? Analisar sua obra e publicar?
RIMBAUD: Veremos.
VERLAINE: Veremos uma porra! (respira fundo) Bem fez o seu pai que lhe abandonou aos seis
anos.É o seu pai que você vê em mim?
Essa violência é por causa dele, é?
RIMBAUD: Idiota!
Imbecil! Estúpido! Vaca!
VERLAINE: Vaca é Vitalie, a sua mamãezinha,mulher que não soube ser
mulher!
RIMBAUD: E você e a sua esposinha, Mathilde, hein?
Parindo este monstrinho chamado Georges?!
Essa aberração gerada por
vocês dois! (ri, assustadoramente).
VERLAINE: O mal reconhece o mal...
RIMBAUD: Você é um cadáver
adiado que procria!
VERLAINE: Plagiador. Você é uma pessoa muito
má. Eu fiz tudo por você. Estou até
tentando colocar você numa coletânea e...
RIMBAUD: Dane-se sua coletânea!
VERLAINE- Você devora a si mesmo.Como é
doloroso lhe amar( agarram-se) É...desnorteante. Arde. Enfurece. Mal saído da
infância e ..tão...homem velho.
RIMBAUD- A sagrada família cobre o meu
espírito.
VERLAINE- Penetrando. Envolvendo-o.
(acaricia-o)
(brigam na cama novamente)
VERLAINE: Eu lhe entreguei tudo (Rimbaud tira um
terço branco do bolso. Agita-o
enquanto fala. Depois o joga no rosto de Verlaine. Silêncio. Aproximam-se os
rostos. Beijam-se. Deitam-se suavemente. Um fica sobre o outro).
(música)
RIMBAUD: Uma gota sai do meu sexo. (êxtase: abraça
Verlaine) Gota rubra de vergonha! Lágrima de amor, lágrima... tenho o coração
tão cheio... na minha carne... meu coração tão repleto.
VERLAINE: Repleto de quê?
RIMBAUD: (senta-se na borda da cama- pausa,
Rimbaud veste a camisa ) Vamos sair. Eu preciso beber.
VERLAINE: Quer sair para se embebedar?
RIMBAUD- Você quer ir comigo ou não?
VERLAINE: Você não vai mudar o mundo. Suas
iluminações, sua temporada no inferno,
seu evangelho de São João.... tudo pode ser bem inútil.
RIMBAUD: Sou um Cristo sem milagres, apodrecendo na miséria profunda de todos os
homens, corrupção universal, que seria
preciso curar, mas o milagre não se realiza. Deixo todos para trás, o
demônio, os danados... Jesus, todos ...eu
vejo tudo tão claro... os anjos... dando esmolas ao diabo... as flores do
mal... minha inaptidão no trato com as mulheres... a pátria...
VERLAINE: Vamos ficar aqui hoje. Faça de
conta que eu sou a sua mãe e a sua pátria. Pegue a sua coroa de espinhos.
Senhor poeta vidente.
(ele dá a Rimbaud algo para
mascar- ópio- ele aceita, masca- Verlaine tenta agarrá-lo,
Rimbaud que se esquiva)
RIMBAUD: Não tenho mãe. Não tenho pátria. Fujo de toda força moral!
VERLAINE: Vem cá, Arthur, me abraça.
(música, som mínimo)
RIMBAUD: Que gritos preciso soltar? Que animal é
preciso adorar? Sobre que sangue
marchar? A que demônio alugar-me? Erguer
com o punho seco a tampa do caixão? Entrar
nele e sufocar?
VERLAINE: O que você queria?
RIMBAUD: Nada de velhice!
VERLAINE: Este veneno que lhe dá tanta sede,
é a poesia?
RIMBAUD: A cidade, os campos, o lago... o rio ao
luar... O sino tocando à meia noite, me chamando para o inferno.... (Rimbaud ajoelha-se.
Deita-se e adormece sob o praticável da cama. Verlaine sai).
CENA 3
(Rimbaud
está
dormindo debaixo de um banco
próximo ao hotel onde houve uma reunião de poetas franceses que zombaram
dele por ser jovem e da roça).
(Entra
Mathilde com um véu negro- Ela toca no banco com a sombrinha e ele acorda).
MATHILDE:
Surpreso de me ver? (pausa) Sabe
o que me traz aqui?
RIMBAUD: Sei pouquíssimo, madame, e quero saber cada vez menos. Por isso decidi
abandonar a poesia.
MATHILDE: Você
nem começou e já quer parar? Você é tão engraçado.
RIMBAUD:
Não sou mesmo, madame? As pessoas
quando me vêem me tomam por tímido
e quando convivem comigo não suportam meu atrevimento.
MATHILDE: Faltam-lhe forças para continuar na poesia? Ou descobriu
que isto não é um meio de vida?
RIMBAUD: Eu tenho que ir embora...
MATHILDE: Eu vim para lhe ajudar.
RIMBAUD:
Ajudar, como?
MATHILDE: Dinheiro. Você quer?
RIMBAUD: Manchado de sangue?
MATHILDE: Não exagere...
RIMBAUD-
Ah! Madame. Por Lúcifer! (respira fundo- atrevido) Tenha dó!
MATHILDE: Você praticou magia? Não foi? Fez
algum pacto com o... Deus do fogo?
(Rimbaud, furioso, levanta)
RIMBAUD: Queria ver se ele conseguia me
derrubar!
MATHILDE: Eu lhe aviso que você não é mais uma
criança. Vim lhe oferecer ajuda.
RIMBAUD: E em
troca o que quer de mim?
MATHILDE: Nada.
RIMBAUD:
Que eu fique bem longe do seu marido, talvez?
MATHILDE:
Alguns amigos meus poderiam lhe ajudar...
RIMBAUD:
É? Que gentil da parte de vocês. (irônico). Mas já vivi o suficiente para saber que tudo
tem seu preço e que o espírito
burguês nasceu com Cristo, portanto é abençoado.
MATHILDE: A vida oferece-lhe uma nova estrada. Se me trair, garanto que
será expulso da França. Todos estão fartos das suas canalhices.
RIMBAUD: A sociedade francesa que a senhora
representa tão bem, madame?
MATHILDE: Sim A sociedade francesa. Uma
oportunidade fora do país. Tão a seu gosto. Não é?
RIMBAUD: Eu vou pensar no assunto.
(música)
CENA 4
RIMBAUD: Não vou mais escrever poemas.
VERLAINE: Não acredito. Vai escrever o quê?
Romances?
RIMBAUD: Vou abandonar a poesia. Eu não
consegui o que queria. Agora chega.
VERLAINE: Oh! (irônico) boa criança
francesa. Pelo bem estar de todos ele
vai parar de escrever. (sério) Não seja tolo. Seus poemas são bons.
RIMBAUD: De que adianta, Verlaine? (chora)
não deu certo. A poesia quis me enterrar vivo.
VERLAINE: A posteridade.
RIMBAUD: (Histérico) Que me importa a
posteridade? O que estes canalhas
fazem comigo é injusto! E quanto a nós dois, sinceramente, eu estou
cansado de repetirmos sempre a mesma conversa.
VERLAINE: Associe-se a uma trupe de
comediantes.
RIMBAUD: sua mulher me procurou.
VERLAINE: O que ela queria?
RIMBAUD: Me ameaçar e me oferecer dinheiro.
Ridícula.
VERLAINE: A família dela conhece muita gente
e...
(Rimbaud veste-se)
RIMBAUD: Vocês nunca vão me entender.
VERLAINE: Aqueles soldados que lhe estupraram lhe entenderam muito bem.
RIMBAUD: Você e suas mentiras degradantes.
VERLAINE: (cínico) Esses fios vermelhos que
estão escorrendo dos seus olhos, são lágrimas?
RIMBAUD:
Saia do meu caminho. Eu vou embora.
VERLAINE: Foda-se! Arthur de merda. (Verlaine puxa uma pistola
imaginária e... “atira”! Rimbaud sorri,
finge que foi atingido mortalmente, no
coração. Vai caindo e Verlaine o ampara. Brincam). Tudo começou com risos de
crianças, com eles vai terminar. Esta bebida permanecerá em nossas veias.
RIMBAUD:
Começou com repugnância... termine com perfumes. Começou com grosseria? Que acabe em anjos de fogo e
gelo.
VERLAINE: Estou de joelhos aos seus pés.
RIMBAUD: Não me interessa mais nada daqui.
(Verlaine levanta-se)
VERLAINE: Criança monstruosa. Conheço suas
manobras. Este seu vil desespero. Como
se fôssemos os seus brinquedos!
MATHILDE: Flores que você pisa no seu paraíso
artificial de absinto!
VERLAINE: A feiticeira vai se erguer sobre o poente branco?
MATHILDE: Pois que se vá!
VERLAINE: O sino de fogo vai soar vermelho entre as nuvens? Que soe!
Eu volto para minha mulher!
RIMBAUD: Isto! Volte para Mathilde. Ela é do seu nível. Nós
fomos apenas órfãos noivos.
VERLAINE: Nós?
Órfãos noivos?! (ri) você é
muito engraçado! Nosso amor, se é que
podemos chamar isto de amor, é mais como um belo crime na lama da rua. Um circo. Eu que imaginei um mar agitado com nascimento eterno de Vênus, me
deparei com esta coisa sombria...
MATHILDE: A amizade deles era um castelo feito de ossos... de onde brotava uma
música desconhecida. Dentro dele selvagens dançavam sem cessar a festa da
noite.
VERLAINE: O poeta satânico e seus sonhos de sofrimento.
(cospe para Rimbaud) Seu idiota! Estúpido!
RIMBAUD: Idiota é você!
VERLAINE: O caso era esse?
RIMBAUD: O sonho arrefece.
VERLAINE: Quem sou eu para impedir sua
partida? Se nem mesmo sei porque fico.
RIMBAUD: O que ficou para trás foi levado em
carro fúnebre, água turbulenta,
bebida derramada, ataque de cães,
ambições esmagadas, tempo de indigência vergonha de nossa fatal inabilidade. Somos palermas quando rimos destes
suplícios? Destes crânios, destes
albergues?
VERLAINE: Aonde você vai?
RIMBAUD: Você sabe.
VERLAINE: Você não escapará.
RIMBAUD: Haverá sempre segredos
enlouquecedores, eu bem sei. Saberei ser pássaro silencioso quando tudo se
fizer sombra. Adeus ao aqui, seja onde for.
VERLAINE:
É mesmo adeus?
RIMBAUD: Pode-se dar adeus à imensidão do universo?
VERLAINE: Serei sempre seu amigo. Não importa a distância.
RIMBAUD:
Então... (abraçam-se. Música) adeus.
(Rimbaud sai. Verlaine senta-se, põe as mãos
na cabeça. Afunda. Luz esmaece Mulher aproxima-se).
Cena 5
INTERMEZZO
MATHILDE: Você diz que quer voltar a viver
comigo e com seu filho.
VERLAINE: Eu preciso da minha família e vocês
são tudo que eu tenho.
MATHILDE: Você foi preso por causa dele...
levou o meu nome para lama! Você é mentiroso, mentiu sobre o crime...
VERLAINE: Estávamos na estação. Eu vinha com o meu revólver no bolso, mamãe ao meu lado, Rimbaud atrás.
De repente eu me virei, ele pensou que eu ia atirar nele novamente
chamou um guarda e pediu que eu fosse preso. Foi assim.
MATHILDE: Você
e ele lhe abandonando mais e
mais: alistou-se no Exército Colonial Holandês,
recebeu adiantamento, desertou algumas semanas depois.
VERLAINE- Cale-se, por favor, Mathilde.
MATHILDE: Foi trabalhar num circo!
VERLAINE: Incrível.
MATHILDE: Dinamarca... Roma! (ri) Orgias e
problemas, de novo, com a polícia.
VERLAINE:
Você tem prazer com a desgraça dos outros?
MATHILDE: O que estou querendo dizer é que se
ele lhe amasse, pelo menos um pouco...
VERLAINE: Ele me amou de um modo que você não
pode entender...
MATHILDE: Eu lhe dei a sua família.
(agride-o) Você não precisa disso.
Não é? Você quer o seu êxtase intelectual...sexual...sei lá. Você não vale
nada! É isso. Eu tenho nojo de você. Sabe o que é isso? Nojo? Seu filho de uma
puta! (bate na cara dele).
VERLAINE: Pare, Mathilde.
MATHILDE: Tomara que ele vá parar num
ambiente infecto, pulgas, mosquitos,
calor, água salobra. Contraia tifo.
VERLAINE: Pare de blasfemar! Ele não merece
isto.
MATHILDE: E você. O que você merece, hein?
Seu...seu...indecente!
VERLAINE: Eu mereço, como qualquer um
merece...
MATHILDE: O quê?
VERLAINE: A salvação.
MATHILDE: (olha ao redor) Bem que disseram
que você está entregue ao vício, bebendo
muito, e, pelo que vejo, na mais completa decadência.
VERLAINE: É isso tudo que você sabe sobre
ele?
MATHILDE: Logo ele estará num caixão: o corpo
seco e mutilado, velas, um coral, uma estranha melodia... mais nada.
VERLAINE: Quanto ao nosso filho... eu tenho
direito...
MATHILDE: (brusca) Esqueça que eu e seu filho
existimos! Nunca mais me procure. E diga a sua mãe que ela pare de me incomodar
também!
(música)
Cena 6
VINGANÇA
MATHILDE: Então você decidiu ficar! Seu moleque insolente! É um farsante. Este é
o fato nu e cru. Você não entende nada de poesia.
RIMBAUD:. Um dia
sentei a beleza no meu colo. E a achei amarga e injuriei-a.
MATHILDE: Estou vendo que você tirou do
espírito o último traço de esperança
humana. Não aceitar a minha oferta foi a pior coisa que você fez. Mas
agora você vai sofrer as conseqüências.
RIMBAUD: (pula sobre Mathilde, assustador)
Eu poderia estrangular você se eu quisesse, aqui mesmo e esfregar sua cara
morta no chão!
MATHILDE: Faz da desgraça um Deus. Se espoja na lama! Se estende para secar na aura do crime. Faz piada com a loucura!
RIMBAUD- Idiota. (ri)
MATHILDE: Você tem um riso horrível. Hiena!
Você e seu caderno maldito!Pensa que tenho medo de você? (ri, mostra uma
pistola) Está pensando que isso é fruto do álcool ou drogas em excesso? É não. É de verdade.
RIMBAUD: Oh! Armada e perigosa. Boa Mathilde.
Está com raiva do jovem poeta que roubou o seu macho.
MATHILDE:
Vamos combinar uma coisa: Sua poesia é de merda. (irônica aponta a
pistola para Rimbaud) Ver uma mesquita... na torre de uma fábrica?! Um salão no
fundo de um lago. Assombrar-se com
um cartaz de teatro de revista. (ri).
RIMBAUD: Longe dos pássaros, rebanhos. Numa
clareira de joelhos a beber...
MATHILDE: Beber o quê?
RIMBAUD: Tendo em volta os bosques de avelãs na cerração de um meio-dia úmido e
verde...
MATHILDE: Com você é difícil se manter um
diálogo racional.
RIMBAUD: Bebia algum
licor dourado.
MATHILDE: Bebia um licor dourado. Estava de joelho nos bosques de avelãs na cerração de um meio-dia úmido e verde! (ri) O que fiz para merecer isto?
RIMBAUD: E um
temporal varreu o céu. Ao anoitecer.... na areia branca dos bosques...o vento de Deus... eu via o
ouro sem poder beber.
MATHILDE: Pouco
me importa o que o senhor bebeu.
Você é um mal para a nossa
sociedade. Saiba que em nome da moral e dos bons costumes...
RIMBAUD: A moral é a fraqueza do cérebro.
MATHILDE: Devia estar num hospício! Isto sim. Com seus terrores e sonhos soturnos. Dane-se para os confins da terra! Foi isto que vim lhe anunciar, em nome da sociedade francesa. Ninguém aqui gosta de você. Eu sei
das suas falcatruas aqui e noutros países. Eu mesma vou lhe denunciar. Você vai
para a cadeia! Está ouvindo? Fuja! Dane-se! Suma, desgraçado! E não volte mais. Seu pedintezinho nojento. Livre-nos das suas bruxarias.
RIMBAUD: Mágico estudo!
MATHILDE: Dê um arremate
aos seus desejos por aqui! Siga. Vá!
RIMBAUD: A feiticeira que acende sua brasa no
vaso da argila, jamais nos contará o que sabe e que ignoramos.
MATHILDE: Não queremos saber de nada que venha
de você. Só a certeza da sua distância. Vá beber, seus mazagrans bem longe. Destrua
lá o resto da sua jovem miséria. E um dia farão um túmulo branco, de menina,
para você na sua cidadezinha.
RIMBAUD: Também é vidente, madame?
MATHILDE: Não é preciso ser vidente para perceber aonde o senhor vai com tanta pressa.
RIMBAUD: No horizonte da minha cidade: as florestas. Eu olhei para tudo com o céu nos olhos.
Abandonei a minha casa de pedras.
MATHILDE: Em-can-ta-dor.
E fez da vida um sonho contínuo
(ironiza) que poético! Tão ridículo
quanto a sua pessoa.
RIMBAUD: Minha vontade não é de lhe encantar.
Não quero que meus versos lhe rasguem o
coração, também.
MATHILDE: Ridículo! Bossal! Pois bem. O recado está
dado. Suma, Jean Nicholas Arthur
Rimbaud! Volte para o
Inferno que é o seu lugar!
(ela sai, contrariada, por um lado e ele pelo outro)
(música)
CENA 7
(Vitalie
e Verlaine os dois personagens estão em espaço e tempo diferentes apenas
parecem dialogar)
VERLAINE: E ele largou a poesia... nunca
respeitou as musas.
VITALIE: E agora está semi-morto. Desse jeito
terrível! Será castigo? (Benze-se)
Deus me perdoe (fecha os olhos, bate na
boca, pega o telegrama e lê em voz alto e estranha): “Hoje, a senhora ou
Isabelle, venham a Marselha. Trem expresso segunda de manhã vão amputar-me
a perna. Perigo de vida. Negócios sérios a acertar”. Negócio sério. Como é
difícil ser mãe numa hora dessas!
VERLAINE: Não havia esperança. Só o suplício era certo.
VITALIE: Câncer no joelho. Se espalhou pelos
ossos. Voltou para a família depois de
onze anos de exílio na África. o bom
filho à casa torna...
VERLAINE: Penetrou nas entranhas do inferno...
Mutilado e sem forças, no desespero, na tortura. O calor... asfixia...
VITALIE: Da África só sairia desse modo, bem
que eu pressenti. Coração de mãe não se engana. Ele se parece nisso com o pai.
VERLAINE: Os sóis, as savanas, selvas, o desconhecido, a Abissínia... O que era o seu anseio de desbravar o reino
das palavras, diante daquele imenso
reino chamado África? Ele que esteve em
tantos países... tantos infernos.
VITALIE: Quer que eu fique com o dinheiro
que ele consegui nesses dez anos. Sabe-se lá de que modo sujo! (respira) Mas é
dinheiro. Fazer o quê? Mãe é mãe.
VERLAINE: Seu primeiro inferno foi o metafísico, o desregramento, a poesia. O
segundo foi dos sentidos. Tornou-se um
bicho, um ser escuro
VITALIE: Mas poderia ser salvo. Eu sintia
isso. Meu filho ainda tinha muito do menino que foi. Uma vez, ele me abraçou de
maneira tão sincera, meu filhinho, que eu chorei junto com ele. (respira fundo)
De algum modo ele será salvo!
VERLAINE: Restaram-lhe a solidão e o fel. Ele
que queria um natal na terra... Arthur:
estrela que brilha ainda na distância... sozinho... alucinado, odiando, morrendo, buscando o infinito.
(olha para cima e grita) Blasfêmia? Pudor?
Dignidade de alma? Santo Poeta! Por
que não? Cheio de dignidade abismada, cheio de tanta verdade na tristeza
amorosa da noite. Esta noite que afoga o
mundo (masca o ópio) a compor o seu ...livro
negro...
VITALIE: Ele tinha o coração enfermo desde a
infância.
CENA 8
O COLO DA MÃE
(Rimbaud está
deitado. sua perna direita será amputada)
(música aumenta: “Passion”, de Peter Gabriel – “Sandstorm”)
VITALIE– Arthur! Queria ser o quê? Igual ao
seu pai? Dinheiro? Sexo? Poesia? I
independência? (tosse) Como se não bastasse o seu irmão! Frederic, eu
pressinto, não será mais que um trabalhador de ônibus. Mas você! Em quem
depositei todas as minhas esperanças? Você...você...foi uma... (espécie de
choro- pausa) decepção.
RIMBAUD: não é a melhor hora para falar sobre
isso, mamãe. E me chame só de Jean.
A minha situação militar...você
sabe...se me descobrem...
VITALIE: Armas na selva, não é? Meu filho! Uma fábrica era o que você queria. se
não fosse o governo francês...você seria um senhor da guerra naquela região maldita!
Isso é negócio que se faça?
RIMBAUD: Um
mero comerciante,
mamãezinha. Um mero
comerciante. Para a Europa eu não podia
voltar tão cedo.
VITALIE: (aproxima-se dele , segura-o como se fosse
trocar a fralda). Traficantes de
armas costumam ter como castigo a
castração. (pega na testa dele) Deixe-me ver se você está com febre.
RIMBAUD: Não. Não cortaram o meu pênis, não
chegou a isso. Mas foi quase! Houve uma greve dos condutores de camelos.
Imagine se eu não falasse árabe...
VITALIE: (espanta-se) Você está ardendo em
febre!
RIMBAUD – Mamãe, isso tudo está parecendo um
sonho..
VITALIE - Você disse que recebia algumas mensagens em sonho...
RIMBAUD: Sim.
VITALIE: Como assim?
Quem lhe fala nestes sonhos?
RIMBAUD: Apolo. O próprio Apolo.
VITALIE: Republicano e ateu, eu suponho.
RIMBAUD: Como todo bom poeta parnasiano. (ele
sente fortes dores e grita)
VITALIE: “Rimbaud é inteligente até não poder
mais; porém acabará mal”, os professores
bem que me avisaram. (mexe nos frascos) Já tomou sua dose boa de morfina hoje?
(pega alguma coisa, vira-se bruscamente) Cadê o dinheiro?
RIMBAUD: Eu deixei na caverna...
(música)
VITALIE: Que caverna?
RIMBAUD: Meu refúgio...
VITALIE: de novo esta história da
caverna? O que faziam, você e seu amigo Ernesto, naquela caverna? Diga! Eu
sempre quis saber... agora que você está delirando, talvez confesse...
RIMBAUD: Líamos
Baudelaire, Edgar Allan Poe, Rabelais.
Criei um código
poético e lancei-o numa simples carta!
Eu, o poeta vidente!
VITALIE: E por que você renega seus poemas? Sua irmã
descobriu que eles estão começando a render
alguma coisa. Eu estou precisando de dinheiro. Verlaine...
RIMBAUD: Não diga a Verlaine que eu estou
aqui! Não quero que ele saiba! Ele seria a última pessoa que eu queria que me
visse assim. E quanto aos meus escritos...
VITALIE- Sua irmã Isabelle disse...
RIMBAUD: Águas
turvas! Não passavam de águas
turvas.
VITALIE: Dizem agora que sua poesia é linguagem de alma para alma resumindo tudo:
perfumes, cores, sons...
RIMBAUD: Não quero saber dos meus poemas...
VITALIE: Imagino que tipo de leitor você
tem. Aqueles que admiram singelas
violetas parnasianas transformadas em
doces escarros das ninfas! Que poesia! (irônica, é claro) Meu filho e seus
escarros das ninfas...sua virgem prenha.
Prenha! (respira fundo) Maria! Que a igreja nos absolva. Onde eu errei na sua
educação? Será que errei?
RIMBAUD: Não, mamãe...foi tudo uma grande
conspiração (ele está delirando sob efeito da morfina, seu delírio é muito
suave) Vislumbrei os sete mares no
cristal líquido do Rio Meuse, nossa
cidade. (fecha os olhos, respira fundo, esboça um sorriso) Rosto rente à água,
observando. (tenta agarrar os raios imaginários) Os prismáticos reflexos
dourados do sol. A correnteza “ondulando meus cabelos”...
MATHILDE: Águas turvas, como você mesmo
disse! Todos sabem, meu filho...sobre o bulevar de Saint-Michel e o que você
fez nas outras cidades também...
VITALIE: Ah! Como eu sofri com o que você fez! Você
acha que foi fácil? E agora agüentar mais isso?
Você! Assim ...e isso é para sempre. Meu
filho que eu eduquei no melhor colégio! Você sabe os sacrifícios que passei.
Abandonada sozinha e com quatro filhos para criar, aquele canalha do seu pai...(respira fundo) minha vida se acabou ali!
RIMBAUD: Eu fui um jovem tolo . É isso que
você quer dizer, não é?
VITALIE: Victor Hugo disse que você era digno de pena. Recusou-se a ser seu advogado!
RIMBAUD: Que honra ser citado pelo senhor Victor Hugo! Dane-se, Victor Hugo!
VITALIE: Meu filho bandoleiro...
RIMBAUD: Uma vez a feiticeira verde do
absinto, numa dose de apenas três centavos,
disse que eu deveria devolver os
homens ao seu estado primitivo de filhos
do sol.
MATHILDE: Pois bem, senhor filho do sol. Veja o ponto aonde você chegou.
RIMBAUD: Eu
quis viver a vida inimitável!
VITALIE: Isso incluiu
insuflar Verlaine contra a esposa
dele? Eu nunca fui com a cara daquele Verlaine. Sujeito intratável.É do bar
para o hospital e de volta para o bar! Ele
teve vários amantes antes e depois de você! E aquela mulherzinha ordinária dele também
não é coisa que se preze!
RIMBAUD: Bruxa fedorenta! Princesa camundonga! (range os dentes)
Percevejo! É a culpada de tudo. Estragou
tudo...
VITALIE: E você, meu filho? É isto que me
pergunto mil vezes: Aonde pretendia chegar com toda aquela loucura? E depois
essa vida na África...
RIMBAUD: Poesia e a vida. Beijar as duas.
VITALIE: Esse seu jeito de provocar as pessoas! Eu sei.
É meu filho. Eu sinto. Mas a culpa
também é do seu pai que abandonou a
casa. Meu filho envolvido com armas e tráfico!
RIMBAUD: Quando Verlaine pegou naquele
revólver, disse: isto é para você,
para mim, para todo mundo! Quer ir
embora? Pois toma! (imita o disparo)
VITALIE: Isso é vida
que se queira?
RIMBAUD: Completamente fora de si.
VITALIE: (olha para a pele dele, a pele, os olhos) Sua
pele está horrível. Todo queimado, cheio de manchas. Que cabelo é esse? Você
não tem amor próprio? (solta-o bruscamente, está chocada com o estado do filho)
Maldita Abissínia!
RIMBAUD: Dizem que lá eu encontraria a
arca da aliança que foi depósito dos dez
mandamentos... a terra da rainha
de Sabá...
VITALIE: Você está completamente fora de si. Como
podemos discutir negócios, com você neste estado?
RIMBAUD: Eu estou bem, mamãe. Você vai
guardar estes oito quilos e meio de ouro e também as pedras e o dinheiro.
VITALIE: E esta mulher?
Que você levou de Harrar para Áden? Que você bancou a educação dela. Essa africana em trajes
europeus...
RIMBAUD: Mais elegante do que muitas européias.
VITALIE: É? (riso amargo) Você se casou oficialmente com ela, lá na África? Olha
que ela pode querer parte do seu dinheiro...
RIMBAUD: Não seja boba, mamãe
VITALIE: E o tráfico de armas? A polícia ...você sabe
RIMBAUD: Eu
queria ganhar muito dinheiro e isso incluiu o tráfico...
VITALIE: Por desertos e florestas na África? Entre
rinocerontes, javalis?
RIMBAUD:
Eu pretendia partir para a China
ou Japão, logo depois. (ri, sarcasticamente)
VITALIE: (faz cara de desgosto profundo) Sua
desgraça foi esse seu espírito sarcástico. Sempre quer ver o lado cômico e
ridículo das pessoas. (pega na mão dele) Peça perdão a Deus, meu filho.
(Rimbaud está deitado, delira: Verlaine entra, aproxima-se dele)
RIMBAUD: Allah Kerim (Deus
o queira) Me diga:
a que horas eles vão me levar
para o navio?
(Rimbaud levanta-se e cai. Chora.
Não sente a perna direita)
RIMBAUD- Eu estou
adormecido no vale...o riacho ...o sol ...aquele
soldado...morto... Jovem soldado, boca aberta, a testa nua, morto... já não
sente o odor das flores, o macio da relva...a mão sobre o peito, dois furos
vermelhos do lado direito... é a guerra...eu preciso chegar a
Paris...os tiros...eles...eles não me vêem...meus pés entre os lírios, eu estou
muito cansado...mamãe...cansado...eu não...agüento mais...
(Vitalie embala-o, ele treme muito)
(Verlaine sai das sombras)
VERLAINE: Onde está o seu namorado?
RIMBAUD: Na guerra. Estamos sofrendo as
primeiras derrotas. Meu querido professor,
deixou o colégio. O grande mestre
foi à casa das tias. E de lá, como eu pensava
que ele fizesse, alistou-se. Eu fugi de trem para Paris: queria ver a queda da
monarquia... Napoleão terceiro.
VITALIE: Com quem você está falando?
RIMBAUD: Com ele...
VERLAINE: Você ultrapassou os limites.
VITALIE: Ele
quem?
RIMBAUD: Meu bilhete era só até
Saint-Quentin. Segui e fui detido na Gare du Nord. Cobraram os treze francos
para complementar a passagem fui parar na cadeia. Nem
dezoito anos eu tinha. Aqueles dias
ali me ensinaram algo que eu nunca esqueci. Por causa de treze francos!
(Vitalie
pega um pano e umedece para esfriar a
testa do filho)
VERLAINE- Olhe bem para mim e responda: o que
é que você queria comigo?Se era ao seu grande professor, a quem você amava?
RIMBAUD: escrevi da prisão uma carta. Ele
veio e me levou à casa das tias, onde passei algumas semanas, em Douai.
VERLAINE: Sua mãe nunca gostou de mim.
RIMBAUD: Mamãe...
VITALIE: Você está delirando, meu filho. Só
estamos nós dois neste quarto. Você está falando com quem?
VERLAINE: Ela não consegue me ver.
RIMBAUD: Eu vou chamar a polícia!
VITALIE: Nem me fale da polícia...
VERLAINE: De novo? Quer que me prendam
novamente? Tem certeza? Sou eu,
Verlaine: eu voltei. (tenta tocar em Rimbaud)
RIMBAUD: (afasta-se apavorado, quase derruba
Vitalie, que o ajuda a deitar-se de novo) O meu relógio de prata... eu
passei quinze dias andando sem
conseguir nada... preciso vender meu
relógio...mãe...
VITALIE: Sim...
RIMBAUD: Você vai guardar meu dinheiro, não
vai? Na fazenda. Promete? Eu sou um
Comunnard! Eles vão me prender.
VERLAINE: Num quartel chamado Babilônia! Vão lhe
violentar. (ri)
RIMBAUD: Eles não gostam da estética, meu
método de vidência. A revolução está
chegando...
VERLAINE: Pobre menino...
RIMBAUD:
Vou esgotar em mim todos os
venenos.: doente, criminoso, maldito... sabedor supremo.
VERLAINE: Venha morar
RIMBAUD: As ondas lavam este barco fantasma...vontade de
partir, navegar ao céu... chegar ao desconhecido. Não me sentir mais
amarrado... mais forte que a bebida... a noite verde em neves infinitas.
Perfumes pretos... onda azul, peixes de ouro...barco perdido em brumas
roxas. Céu vermelho...ilhas no céu!
VERLAINE: E agora, aqui, neste hospital; o que
lhe resta? Esta água fria e escura para o seu crepúsculo?
RIMBAUD: Vou até à infinita vida! Vou sugar
seu seio casto e doce e aplacar esta sede ...
VITALIE- Você está com sede?
RIMBAUD- Estou. (Ela vai pegar água)
VERLAINE: E se o leite se transformar em
cuspe vermelho e arder no fogaréu?
(música- Vitalie afasta-se para o escuro)
RIMBAUD: Esses pássaros negros! Buscam em mim o lugar onde o beijo dorme...e onde o fauno morde a flor vermelha com dentes brancos.
VERLAINE: Delírios... como lhe parecem?
RIMBAUD: Suaves queimaduras... coração sangrando.
(Vitalie volta com o copo com água, dá de beber ao filho)
VERLAINE: Lembrei de quando você afogava esse
coração na cerveja e mijava
entre os girassóis. (ri) Para o
céu! como se fosse água benta.
VITALIE: (preocupada, ansiosa) Eu vou chamar um
médico. A infecção deve estar tomando conta do seu cérebro. Temos que fazer
logo esta maldita operação!
(Vitalie vai para o escuro)
VERLAINE: A cidade era toda nossa.
RIMBAUD: Cadela no cio a comer cataplasmas na
noite ardente dos espasmos.
VERLAINE: O mar vermelho no bico dos teus
peitos. Sangue negro.
RIMBAUD: Eu estou tão só...
VERLAINE: Eu estou aqui!
RIMBAUD: Estou com sede.
VERLAINE: Você
tem medo de morrer, agora?
RIMBAUD: A eternidade é o mar que o sol
invade... Meu navio foi a pique. Partiu-se ao meio a minha quilha. Saí boiando
em alto-mar.
(Vitalie volta e ampara Rimbaud, saem para o escuro)
VITALIE: Venha comigo.
(música)
VERLAINE: Fiquei pensando nele que trocou a
vida pela literatura e depois trocou a
literatura pela vida... Amargurado, taciturno,
vazio, desolado Não se achava bem em lugar nenhum... mundo afora,
ardendo uma década na África. Assado em
forno de cal. Inesgotável energia.
Rompeu com amigos e parentes para explorar a vida em toda sua
plenitude. Lutando contra amarras, para se salvar. Obter a liberdade... Pensando, até à morte,
em não ser querido, não servir para nada neste mundo! Não ser digno de regressar à sua pátria, a
França. Não lhe seria permitido
reiniciar a vida normal de um cidadão. Temia
ser preso: cadeia depois do que
acabo de sofrer? Antes a morte! Foi enganado e traído. Barriga vazia, febre pelas
inflamações das paredes do estômago causado pelo atrito das costelas contra o
abdômen. A pé, a cavalo, em busca de pão, emprego, um lugar onde cair morto...
(imita Rimbaud novamente) morrerei onde
me largar o destino! Agora que tudo
passou me sinto desolado. Prisioneiro de não sei que gaiola horrível. Ele fez
de mim o seu único amigo e conforto. E
agora chove, chora no meu coração. Por que sem amor nem ódio, meu coração
sofre?
Cena 8/ Conclusão
RIMBAUD (EM OFF): As pessoas desta cidade,
na África, não são mais burras nem mais
canalhas do que os negros brancos dos
países ditos civilizados; não são do
mesmo tipo, só isso. Eles são até menos
maldosos e podem em alguns casos, manifestar gratidão e fidelidade. É preciso ser
humano com eles.
(Luz vermelha sobre Verlaine)
VERLAINE: No hospital em Marselha. À beira da morte, ele
delirava. Era preciso organizar a
caravana, buscar os camelos. Rápido! Estavam esperando. Queria fechar as malas e partir.
Aos trinta e sete anos. Meu menino, meu
formidável explosivo. Viu talvez na amputação da perna uma prova de combate com o anjo. Homem dos pés de vento. Trocou a lira pelo tilintar das moedas
de ouro. Seus escritos, tal pombos vermelhos voando, levarão a
mensagem, iluminarão a noite da alma
como uma... lição de vida. Ele jamais encontrou companhia. Estava sempre só. Assustadoramente só, no
labirinto... No arremate dos desejos... A história lhe reerguerá triunfante da morte. Para que
apesar de toda a lama, o mundo
veja, seus pés, Arthur,
intactos sobre a cabeça da inveja!
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