Pesquisar este blog

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Teatro para crianças: drmaturgia e encenação Prof. Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto

 Emocionantes e supergostosas, desde os anos 70, as peças infantis levam adultos e crianças ao teatro no Brasil. Não precisam ser didáticas, basta que entretenham sadiamente os cidadãos de amanhã. Eis as peças infantis.

O teatro para crianças versus texto-educação: é a ficção que está em cena.


UM POUCO DE HISTÓRIA: Desde a China do século III AC, havia teatro de bonecos para crianças e mulheres ricas.

E se avançarmos mais no tempo, veremos que a Commedia dell´ Arte (século XV a XVII) com seu teatro profissional, também é raiz do teatro para criança. Estes tais comediantes pediam dinheiro ao público depois do espetáculo. Viviam disso. Eram ambulantes. Aprimoraram sua arte assim. Eram improvisos e acrobacias em cima de um roteiro que inspiraram artistas de teatro dos séculos seguintes (XVIII e XIX). Deboche, modos grosseiros, temperamento insolente e desrespeito às instituições, eram características de personagens como Polichinelo (ou João Redondo, em português, ou o Punch, inglês).

A violência na literatura infantil se justifica, se pensarmos que antigamente não havia literatura feita especificamente para criança (os medos, as ansiedades geram reações violentas que se unem a instintos violentos).

SONHO DE PRIMAVERA: espetáculo escrito por Moisés Monteiro de Melo Neto, Rosália Calsavara e Paulo Smith, ficou em cartaz por sete anos, lotando teatros por onde passava (na foto: Teatro do Parque, Recife). de 2004 a 2010

Na França do século XIX, um personagem virou estilo: o Guignol, meio Polichinelo, ele era cheio de exageros, mas agradava bastante, mas deixou de satisfazer certos interesses quando o teatro ficou moralizante.

O teatro de sombras de Seraphin foi o primeiro dirigido às crianças. Ele morreu em 1800.
A Bélgica tem tradição em teatro de bonecos. Dom Bosco (1815-1888), fundador da Ordem dos Salesianos, cuidou de fazer teatro (encenação, música, biblioteca dramática, cenários, figurino, etc.) educando com qualidade técnica através da cena. No século XX, Maria Montessori, respeitando a criança, criou móveis em tamanhos e observou as necessidades específicas da infância.

Andersen, Grimm e Maeterlinck são escritores que dedicaram bastante atenção aos “pequenos”. E na URSS surge em 1918 (um ano depois da Revolução) tinha supervisão de um comitê de educadores e artistas, formado por cidadãos socialistas tudo também em tamanho reduzido (à altura dos baixinhos): poltronas, banheiros, etc., estimulando deste modo, a autonomia das crianças. Além de jogos, havia peças de caráter fantástico e representações do folclore russo.

Após a segunda guerra mundial surgem vários espetáculos par criança na Europa. O teatro é indicado então como instrumento educativo.

Aparece a dramaturgia especializada e profissionalização das companhias.

Na Austrália de 1938, havia o Theatre for children, com temas como escola e família. Na Finlândia também houve algo similar (o Teatro de Turku). No México em 1947 houve a montagem de Dom Quixote para crianças. Em Londres, 1946, vários grupos se dedicaram a montagens assim.

Alguns acham que neste teatro deve haver luz na platéia para a criança ver os outros espectadores e ter assim o conforto e sensação de experiência em comum. Realiza-se então o 1º Congresso Internacional de Teatro Infantil (Brasil, Cuba, Bélgica, África do Sul, EUA, Dinamarca, França, Bélgica, Itália, Noruega, Reino Unido, Suécia e Suíça) em Paris de 7 a 9 de abril de 1952. Assuntos como formação de platéia e reciclagem dos artistas foram objetos de discussão.

NO BRASIL: a origem do teatro para a infância em terras brasileiras está ligada aos bonecos. No século XVIII, um homem só com armação nos ombros manipulava fantoches, rodava o chapéu depois. Às vezes os bonecos se exibiam nas janelas ou nas portas abertas pela metade. Mas é já no século XX que se pode falar de teatro infantil por aqui: Coelho Neto e Olavo Bilac são pioneiros, mas pecam pelo didatismo de suas obras. Durante um bom tempo, vemos as crianças sendo tratadas como adultos em miniaturas, mas condenadas à passividade e falta de iniciativa. Olavo Barros mostra espetáculos como “A gata borralheira”, um texto cheio de moralismos. Valdemar de Oliveira, no Recife lança suas idéias. O governo começa a apoiar tais iniciativas e surgem outras idéias.

“A revolta dos brinquedos” (1949) é um marco de Pernambuco de Oliveira, “Pluft”, de Maria Clara Machado (1955) é outro.


A Revolta dos Brinquedos, texto de Pernambuco de Oliveira, direção José Francisco Filho. Produção da CIRCUS. Produção CIRCUS. Produção Executiva: Moisés Monteiro de Melo Neto e Mísica Coutinho. TEATRO APOLO (1989)


Em muitos casos surgem narradores e outros recursos da narrativa oral. Mas sempre o mal sendo castigado, ou se convertendo, às vezes apelando para soluções sobrenaturais como fadas, por exemplo.

Em 1950, no Rio de Janeiro, surge o 1º Concurso Nacional de dramaturgia infantil. Em 1951 o 1º Congresso Brasileiro de Teatro lança as bases psicológicas, técnicas e estéticas de forma repensada. Destacava-se o subconsciente das crianças. Júlio Gouveia, numa palestra, disse: “teatro para criança e adolescente, só pode ser pensado como educativo (…) o treino das emoções (…) sempre mediante ingresso adquirido” (LOMARD 1994:48). Dá vontade de rir destes detratores da bilheteria que dizem que o aspecto comercial deve ser ignorado e só se deve pensar na moral. Para eles uma peça infantil sem “ensinamentos” seria de má qualidade. Criança tem que ficar ligada, calada na platéia e bitolada.

Em 1951, Maria Clara Machado funda o Tablado, sua escola de teatro. Ela, autora e diretora, especializou-se em textos infantis. Geralmente suas tramas giram em torno de recuperar “algo que se perdeu”, como diz a crítica Flora Sussekind (ibid. 53). Outro destaque na área infantil é a dramaturgia de Oscar von Pful (“Dom Chicote Mula Manca”), Tatiana Belinki (“A Sopa de Pedra”) e Stella Leonardos. Estes tentam romper o tom explicativo de um narrador. Um bom texto, hoje, tem que valorizar aas diferenças e não as convenções, como no caso do pernambucano “Hipopocaré”, do psicanalista Antônio Guinho, montado em Recife nos anos 80/90.
Eu mesmo tive três textos infanto-juvenis de minha autoria (Moisés Monteiro de Melo Neto) encenados no Recife: “Draculin e o Circo no Espaço”, “A Maior Bagunça de Todos os Tempos” (ambos com direção de Buarque de Aquino) e “A Ilha do Tesouro” (direção de Carlos Bartolomeu) e tendo como co-produtora Simone Figueiredo, nos três os heróis titubeiam entre o convencional e a contravenção. Alguns críticos ficam irados com tal atitude, mas fiquei firme e os três tiveram ótimos públicos, ficando em cartaz durante meses e meses. Abaixo os pseudo-maniqueísmos!

Draculin e o Circo no Espaço, texto de Moisés Monteiro de Melo Neto, direção Buarque de Aquino
Ilusionistas Corporação Artística. Recife


Em 1962, o Serviço Nacional de Teatro (SNT), inaugura o curso de teatro infantil, em Porto Alegre também.

A partir de 1970 o prêmio Molière, pra os melhores no teatro no Rio de Janeiro e São Paulo, passa a ser entregue também ao teatro infantil. A partir de 79 a Fundação Teatro Guairá, de Curitiba, promove o Encontro Nacional de Teatro Infantil. Artistas e outros profissionais se reúnem para debater.

Vladimir Capela, Ilo Krugli, Ronaldo Ciambroni são outros autores que fizeram história no teatro infantil brasileiro. Em Pernambuco destacamos o trabalho de José Francisco Filho, Paulo de Castro e Marco Camarotti.

TEORIAS: Em arte-educação há duas fortes correntes:

1)Arte para atingir outros fins (não artísticos): Contextualismo.
2)Arte em função de si mesma: Esencialismo (como faz Viola Spolin).

Outra questão importante é a participação da platéia. Por exemplo: quanto tempo deve durar um espetáculo que não “inquiete” os baixinhos? Resposta: 50 minutos, de acordo com o professor Camarotti (UFPE).

Há também que se considerar que a classe média alta forma em grosso o público do teatro convencional, a não ser que haja um trabalho de responsabilidade social, que é imprescindível hoje em dia e foi feito na Ilha do Tesouro, por exemplo. Outro fator que devemos analisar brevemente é o tal “projeto escola”, desenvolvido no Recife há 20 anos por Paulo André: crianças são levadas às centenas, da escola para o teatro, sem a família. Isto arruína as temporadas de fim de semana das outras companhias, mas tem é claro, ou deve ter, algum aspecto positivo. Porém, perde-se o hábito de debater com os pais.

Questões que poderiam aparecer em peças infantis hoje: o tema do meio ambiente, relacionamento de família, mídia.

O lúdico é outra questão a ser resolvida, já que criança exige o jogo, constantemente.

Mas teatro para criança tem que ser sempre divertido? A maioria dos intelectuais diz que sim. E emocionante, ágil. Temos que contar com as crianças mais “antenadas” que querem mais do que histórias com bichinhos e ternurinhas.

Ousadias. Uma tal de Adriana Maia, eixo Rio-São Paulo, já apresentou um espetáculo chamado “Cabaré Infantil” (ibid. p. 85). Algo bem difícil de se conceber se imaginarmos que a produção para crianças está ligada a instituições como escola e família.

A criança é um ser de linguagem, leis próprias e específicas que devem ser trabalhados com cuidado tanto a forma quanto o conteúdo, um “duplo inseparável e inerente à historicidade do fenômeno artístico”, como afirma Sonia Khéde.

A recepção do público, o marketing, a percepção da criança na sociedade brasileira/ recifense, são outras questões que abordaremos posteriormente.

Gostaríamos de destacar artistas recifenses como Ulisses Dornelas (Palhaço Chocolate), José Francisco Filho, Marco Camarotti, Buarque de Aquino, José Manuel, Manuel Constantino que a partir dos anos 70, deram, de modos diversos, suas contribuições ao espetáculo feito para crianças. Alguns foram um pouco anacrônicos em seus posicionamentos, é claro e outros não apresentavam a “cor local”.

Se o Modernismo decretou a morte do sujeito, os anos 90 trouxeram de volta o respeito às diferenças.

LINGUAGEM PRÓPRIA: A comunicação com a criança poderá ser feita através de associações, personagens com os quais ela se identifique. “Um personagem poderá se apresentar fragmentariamente porque representa a crise de identidade, a busca de um (novo) papel, o desconcerto diante de valores velhos e novos” (KHÉDE, 1986: p. 56), sem que seja mal construído, é claro.

O lúdico, o humor e o nonsense se entrelaçam num intercâmbio entre conotação e denotação, buscando driblar o autoritarismo, tão presente na cultura brasileira como a malandragem (e na relação adulto-criança a questão do autoritarismo é de fundamental importância). Por isso um personagem que quer mandar na brincadeira deve, por exemplo, ser mostrado como um chato.

É bom lembrar a criança que ela pode pelo menos tentar mudar as situações que lhe são impostas no mundo. Ela pode interferir.

Devemos fazer o espectador, criança ou não, avaliar sua identidade no confronto com
outras vozes e começar o intercâmbio com o universo da arte.

Quanto aos pais e professores, é bom que não mergulhem muito na nostalgia ou na idealização da infância. Como já dissemos, os espetáculos devem se distanciar do pedagogismo e do moralismo.

Deseroicizar os personagens é uma saída.

                     A Ilha do Tesouro. Musical de Moisés Monteiro de Melo Neto e Ricardo Valença


VIOLÊNCIA: E falar do amor e da violência? Primeiro colocando os verbos no presente, sempre que possível. Mostrar que a solidariedade é fundamental para o ser humano. A cooperação, a justiça social (sem clichês!).
Os filmes americanos que exaltam a violência devem ser evitados, com seu lucrativo comércio de armas e de guerras “criando o hábito da violência (…) técnicas de eliminação da vida (…) torturas”, como sugere Antonieta Moraes.

“Muitos intelectuais, principalmente aqueles dedicados à produção cultural para a criança e jovens, não assumem posição definida e proclamam que não existe literatura para adulto, para criança, pra jovem; a literatura é uma só: não ensina nem informa” (op. cit. p. 85).

“Não se pode fazer boa literatura com maus sentimentos”, dizia Sartre. Isso não significa entronizar os detentores do poder que exploram os trabalhadores ou os pais que tratam os filhos com grosserias ou vice-versa.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

"Para um amor no Recife" e "Anjos de fogo e gelo" (duas peças teatrais do recifense Moisés Monteiro de Melo Neto) TEATRO RECIFE PERNAMBUCO

 

"Para um amor no Recife"

Peça teatral de Moisés Monteiro de Melo Neto

 

Num banco na Av. Beira Mar, um rapaz de 20 e poucos anos, dorme. Parece estranhamente adormecido. Diz algo que não se entende. Sua mochila lembra as asas de um anjo. Usa uma bermuda até o joelho. Botas e meias até o tornozelo.

 


 

Época : dia 24 de Dezembro, final do segundo milênio e o sol já se pôs. Sons da avenida e do mar. Isabela está com um vestido curto, olhar algo cansado. Tenta fazer uma surpresa.  Márcio   não acorda, está dopado provavelmente.

Bel - Márcio  ô! Ei! Acorda.

Márcio   - Ah...

Bel - Meu Deus, eu não posso agüentar isso por muito tempo (fala isso para a platéia).

Márcio  - Beeel! (acordando. Ri antes de falar)

Bel - Márcio, qualquer um podia roubar você, você não pode dormir aqui. Vá para casa.

Márcio   - Que casa? (Pausa: Olham-se em silêncio. É uma oração).

Bel - Quer um pouco de colírio?

Márcio   - Eu tenho. (Pausa enorme).

Bel - Coloque então.

Márcio  -Bel, eu quero morrer. Eu não agüento mais.

Bel - Você está bebendo há 24 horas. Como você agüenta? Isto não atrapalha os remédios, não? Este coquetel misturado com álcool não deve fazer bem. E ficar sem dormir 48 horas. Você quer morrer?

Márcio   - Quero (chora desesperado). Por que eu conheci aquele homem? Por que o tempo não pára? Por que essa doença é tão feia?

Bel - Existe doença "bonita"?

Márcio   - Fica comigo. Deixa ficar no teu colo, me leva daqui pra algum lugar. Me salva você é meu anjo, me salva.

Bel - Vá para casa. Tome um banho, coma, durma. Você não comeu nada.

Márcio  : - Porra (bêbado) sua merda! Você é merda.

Bel: - Eu não sou obrigada a escutar isso. Não sou, está ouvindo?

Márcio   - Como é que eu vou fazer? (abre a bolsa, procura algo). Fui roubado (pausa). Roubaram o meu celular. Estes desgraçados!

Bel - Você foi caçar ontem, não foi?

Márcio   - Você não quer transar comigo, diz que não tem medo da morte, mas não é suicida. (pausa). Bel...Fica comigo hoje.

Bel - Você já ligou pra sua mãe?

Márcio   - Pra quê? (pausa) Aquela casa pequena é uma prisão enorme. Eu não agüento mais, não agüento mais.

Bel - Tome o telefone (tira da bolsa) ligue para ela. Dona Ana deve estar preocupada.

Márcio - Ela não se preocuparia. Preocupação causa envelhecimento e ela não quer envelhecer, tem 53 anos e diz que "dá para o gasto". (pausa. Ri -sarcástico). Eu quero morrer. ..essa porcaria incurável, esses remédios... (agarra-se com a bolsa). Eu fui tão feliz antes, eu nunca mais vou ser feliz não vou encontrar mais ninguém para me amar. Quando eu digo que tenho isso as pessoas fogem dizendo que eu sou muito "pesado" dão o fora. Nem posso beijar você direito. Você acha que pega com a saliva.

Bel - Eu estou com um corte na boca.

Márcio   - Está vendo? Se eu não tivesse dito que tinha isso você continuaria me beijando loucamente como fazia antes de eu lhe contar... tudo. (pausa). Vamos fugir, Bel.

Bel - Vamos, eu estou de férias. (ri)

Márcio   - Fica comigo hoje à noite Bel. É natal. Eu não tenho ninguém, me bota pra dormir. Me dá um banho. Me tira dessa.

Bel - Não posso. Vou jantar com mamãe. (pausa) E você bêbado assim faria escândalo.

Márcio  - Janta comigo! Deixa eu ser teu namorado. Por favor. Eu paro de sair à noite. Fico em casa. Fico lendo. Fica comigo. Deixa somente eu ficar ao seu lado. Me abraça. Toca em mim (chora, apaga o cigarro) passa a mão no meu cabelo, eu estou tão triste. Tão triste.

Bel - Deixa de drama Márcio  ! Por que você não vai para casa e pronto?

Márcio   - Me dá o telefone (liga) vou ligar para a "boca da noite", "boca da escuridão"! A mama do meu câncer.

Bel - Sua mãe... Dona Ana. Santa ingratidão, não é, Márcio  ? Você não reconhece nunca o que as pessoas fazem por você.

Márcio - Chama, chama e ninguém atende. A bruxa está fora do ar (desliga, devolve o telefone a Bel).

Bel - (farta de tudo, mesmo assim esperançosa) Quando esta noite... findará?

Márcio   - Até quando a gente vai empurrar este sonho pra frente?

Bel - Por que você não come alguma coisa? Vamos naquele restaurante ali. Tem uma peixada ótima. Eu conheço...

Márcio   - "Uma peixada ótima" (zombando). Você é tão ridícula!

Bel - Não me chame desse jeito que eu não gosto.

Márcio   - Você gosta de quê? Do César, não é?

Bel - Eu não quero falar sobre o César.

Márcio   - Você vai ficar com ele hoje. Não vai? (furioso)

Bel - Pare. Se você continuar assim, eu vou-me embora. Que coisa!

Márcio  - Hum. Tá zangadinha, é? (pega o colírio na mochila e tenta colocar nos olhos. Não acerta).

Bel - Deixa que eu te ajudo. (põe gotas de colírio nos olhos dele que se deitou no colo dela).

Márcio   - Você ficou velando meu sono aqui. Você veio. Você veio. Você é meu anjo.

Bel -Bobagem...

Márcio   - Fica comigo. Vamos para um hotel.

Bel - Meu cavalo marinho. Meu unicórnio voador. Eu não posso. O máximo que posso é deixar você lá. Ficar um pouco e sair. Vou pra casa da minha mãe.

Márcio   - Eu estou sozinho. Queria tanto ficar com você. Só nós dois. Vamos para sua casa.

Bel - Não. Márcio   eu já disse quais são os meus planos.

Márcio   - E o meu futuro? Será que eu vou ficar deformado?

Bel - Você é assintomático. Ninguém diria que você tem isso.

Márcio   - "I-s-s-o". Muito bem explicado: "i-s-s-o". Eu odeio i-s-s-o!

Bel - Vamos comer. Levanta!

Márcio   - Você vai jantar comigo!

Bel - Não. (pausa). Vou somente lhe acompanhar.

Márcio   - Então eu não quero jantar.

Bel - Você precisa comer.

Márcio   - Não quero.

Bel - Vá. Deite aqui, meu filho. Conte pra sua terapeuta de plantão: como tudo começou.

Márcio  - (Fingindo-se de paciente. Ironiza) Eu tinha 17 anos. Era muito bonito. Um dia um homem mais velho ficou olhando para mim e me chamou para tomar banho de piscina. Fui. Escutamos música. Não transamos, naquele dia. Ele foi me buscar de carro depois e transamos. Ele me deu dinheiro. Eu não tinha. Ele disse que era "para o lanche".

Bel - Prostituição.

Márcio   - Papai tinha nos abandonado: a mim, meu irmão e minha mãe. A velha fazia doce e costurava pra ganhar dinheiro. Papai sumiu. Fui pra escola pública, ralei muito para me manter na universidade, passei num concurso público. Concurso para funcionário público. Trabalhei em tantos lugares, aprendi inglês, francês e italiano. E...Tchan-tchan-tchan: Tive alguns amores, que nããão es-que-ço! (Ri, como um apresentador de circo)

Bel - Não banque o apresentador de circo de horrores. Please. Você é um vencedor.

Márcio   - Um morto vivo, é o que eu sou.

Bel - Vamos continuar nossa terapia.(Bel reassume postura de psicanalista, bem interessada nos problemas daquele complicado caso) Quer dizer então que o seu pai não deu mais as caras, mesmo?

Márcio  - Sim , doutora. Foi isso mesmo que ele fez. A senhora acha que eu tenho culpa disso? Eu tinha medo...(Márcio finge que está sofrendo porque "papaizinho" nunca lhe deu colo).

Bel - Então...O que aconteceu?

Márcio   - Quando descobri que era soro positivo fui procurá-lo. Há 10 anos não o via. Chorei no ombro dele e contei tudo.

Bel - E ele? Como reagiu?

Márcio - Ele disse: "É, meu filho. Você... está se cuidando? Está... tomando os remédios?". Foram as duas frases que ele disse. E nos separamos.

Bel - Ele, o seu pai, é casado com outra?

Márcio   - É e tem uma filhinha.

Bel - A outra ...é mais jovem que ele?

Márcio   - Uns vinte e poucos anos mais jovem. O que tem isso a ver com meu pai ter abandonado nosso lar e nos deixado à própria sorte... eu, ainda uma criança...

Bel - Isso que você sente é apenas um ciúme infantil.

Márcio   - Que absurdo.

Bel -  Seu pai é ... bonito?

Márcio - Não muito. Sabe? Eu o gostava muito dele... quando eu era menino. (Ri). Quando eu era menino.

Bel - Freud explica. Eu acho que o homossexualismo entre homens vem da ausência do pai na infância. A ausência do amor paterno na formação do caráter de um jovem como você...

Márcio  - E uma mãe como a minha? Hein, doutora ? Isso não deixa o filhote meio doido?

Bel - Bem...(tosse, se recompõe) E... o seu irmão?

Márcio   - Casou-se e fugiu, daquilo tudo! Eu também, bem que podia ter me casado.

Bel - Ele gosta da esposa? Eles brigam? Seu irmão e a esposa dele?

Márcio - Não. Nada que a televisão ligada não resolva. Umas porradas aqui e ali e neuras, como a maior parte dos casais.

Bel - Fale sobre as vezes que você.. amou.

Márcio  - A primeira foi uma garota linda chamada Vilma. Eu tinha 15 anos. Ela me beijou na boca com sorvete de morango na língua. Fiquei apaixonado na hora. Ela não me amava, mas engravidou. Eu ia ser pai! Engravidou... e fez aborto. Do nosso filho. Filho que nunca mais terei.

Bel - Você tinha 15 anos já... Foi quando seu pai abandonou vocês.

Márcio   - É depois veio o tal cara que lhe falei. Ele era mais velho e começou. Ele fazia tudo de uma maneira louca. Eu fui me acomodando. Ele era como um pai. Já que o meu foi embora.

Bel - Pai... e amante.

Márcio   - Eu era bonito. Depois fui amante de uma senhora lá de Casa Forte. Ela me deu dinheiro para fazer o que quisesse.

Bel - E aí?

Márcio   - Eu fiz. (pausa) Mas, agora...eu me transformei neste trapo que a senhora está vendo, doutora. Nem metade do jovem que fui...

Bel: - Você é bonito.

Márcio   - Mas você me rejeitou. (pausa, levanta os olhos, sinistro). É por causa do HIV. (pausa) Olhe para mim! Não é? Você diz que somos "incompatíveis sexualmente". Mas você sente atração por mim. Você me deseja como homem. Você me disse isso!

Bel - Eu te amo.

Márcio   - Então por que não casa comigo?

Bel: - Meu amor por você...é de amiga.

Márcio  : - Qual foi a última vez que você transou com seu namorado?

Bel - Não é da sua conta. Que atrevimento! Não fale do meu namorado. Que coisa. Que insistência! Não devo satisfação da minha vida a ninguém.

Márcio   - Vocês tem uma relação legal?

Bel - Claro...

Márcio   - Mentira! (agarra Bel pelos ombros, tenta beijá-la)

Bel - Pare!

Márcio  - (pausa) O que é que você vai fazer amanhã?

Bel – Nada especial.

Márcio   - Vamos nos encontrar?

Bel - Não sei se devo...

Márcio   - Onde?

Bel - Diga.

Márcio   - No seu apartamento.

Bel - Não.

Márcio   - Está com medo que eu lhe ataque?

Bel - Não tenho medo de você. Não é isso.

Márcio   - O que é então? Medo dos vizinhos?

Bel - Não devo satisfação a ninguém, já disse. Ninguém paga minhas contas .

Márcio   - Então por que não quer que eu vá no seu apartamento?

Bel - Por nada. Talvez eu saia.

Márcio   - Você gosta dos meus beijos?

Bel - Gosto, mas não quero intimidade sexual com você.

Márcio   - Nossa! "Intimidade sexual"! (respira fundo) Essa é nova.

Bel - Não seja insistente.

Márcio   - Que tipo de amor é este que temos? Estamos atrapalhando a vida um do

outro, isto sim.

Bel - Você não me atrapalha.

Márcio   - Mas você sim, me atrapalha muito.

Bel - Se você tivesse uma casa iríamos para lá.(Tenta mudar de assunto) Por que você não vai morar sozinho? Hein, Márcio? Você... seria... independente de sua mãe. Quer dizer...

Márcio  - Estar com mamãe, é uma forma de não me sentir só. (pausa. Márcio tira um chiclete de uma caixa e começa a mastigá-lo) - Posso te pedir uma coisa?

Bel - Pede.

Márcio   - Fica comigo. (pausa) Deixa eu te amar. Eu durmo feito um cachorro ( deita-se aos pés de Bel)no chão, ao lado da tua cama. Não reclamo nada. Faço tudo que você quiser.

Bel - Não posso (angustiada). Não me torture. Não consigo me concentrar mais no meu trabalho. Estou bebendo além da conta. Eu estou usando comprimidos para dormir. (imita um dramalhão mexicano).

Márcio   - Desde que me conheceu? (Bancando o Don Juan Segura-a pelo braço)

Bel - Desde que me apaixonei por você. (Faz pose de cartaz de filme de amor)

Márcio   - Você não me ama.

Bel - Amo.

Márcio  :- Se me amasse faria sexo comigo, me beijaria.

Bel - É um amor diferente.

Márcio   - Eu não tenho muito tempo.

Bel - Por isso mesmo. Quer dizer, não! Você tomando os remédios e se cuidando vai viver muito mais tempo.

Márcio   - O problema é que eu não quero mais tomar estes remédios. É um atrás do outro. Se vou dormir fora todos perguntam porque tantos remédios, é pó, é pastilha, é cápsula, é de 12 em 12, é uma hora depois da comida... é comprimido. Um inferno. E eu estou emagrecendo uns cantos e engordando em outros é efeito do coquetel de comprimidos que eu tomo.

Bel - Todo mundo toma remédio!

Márcio   - Mas o meu é pra sempre!

Bel - Muita doença é pra sempre.

Márcio   - Eu não estou doente, isso não é uma doença.

Bel - É o quê?

Márcio  - Você não entende.

Bel - Vamos. Levante-se. Vamos ao restaurante aqui perto.

Márcio   - Eu quero morrer.

Bel - Você tem muita coisa pra fazer. Pense nas pessoas que lhe amam.

Márcio   - Transa comigo. Vai. Eu boto três camisinhas.

Bel - Eu viveria com medo.

Márcio   - Deixa acariciar teu corpo (passa a mão no corpo de Bel, ela deixa. Tempo)

Bel - Pare, Márcio.  (levanta-se. Ele vira-se e chora).

Márcio   - Vá embora. Vá embora.

Bel - Está bem. Se é assim que você quer. Eu vou mesmo. Agora, depois não me telefone. Não me procure. Eu vou esquecer você. (levanta-se para sair).

Márcio   - Vá. Vá mesmo. É melhor. Para sempre! É melhor.

Bel - Seu coisa ruim. (tenta sair. Vacila. Sai. Ele não vê, está virado com a cara afundada na mochila, chora. Ela volta pouco depois). Márcio  !

Márcio  - Por que você voltou?

Bel - Eu não posso deixar você aqui, assim, desse jeito... não posso.

Márcio   - Que jeito?

Bel - Desse jeito que você está. Márcio! Hoje é noite de natal.

Márcio  - (cospe o chiclete). E daí? (tosse). Grande merda.

Bel - Todos se enternecem com o natal.

Márcio  - Eu não confio nesta ternura desses recifenses.(pausa). Pois este é o meu último natal e eu não estou nem aí. Pronto!

Bel - Você não confia em mim, Márcio  , este é o problema, você está ansioso demais com a maneira que você vai morrer. Você está procurando um jeito de se desprezar. Sabe qual vai ser o seu próximo passo?

Márcio   - Não. (pausa) Diga.

Bel - Arranjar alguém bem miserável para pôr no meu lugar.

Márcio - Seu lugar...?

Bel - Não sou uma menina. Sei muito bem como você funciona. (pausa) Você confia em mim?

Márcio - Confio... um pouco.

Bel - Pois você deveria confiar mais no meu amor. O meu amor não morre nunca.

Márcio - Bobagem. Eu gostava de uma pessoa. Não gosto mais. Gostei de outra, não gosto mais. Todo amor acaba.

Bel - Eu só quero o seu bem.

Márcio - Eu vou arranjar outra pessoa. Essa coisa entre nós tem que acabar.

Bel - E você acha que um dia o nosso amor pode acabar?

Márcio - Eu quero alguém... para tudo... sexo. Tudo! Você quer um pai para seus filhos. Eu nunca poderei ter filhos. Provavelmente nasceriam doentes, sem falar que você se "contaminaria" com minha "semente".

Bel - Mas nós nos amamos, acima de tudo isso.

Márcio - Como dois cúmplices de um crime. De um crime que não deu certo. Por que ser feliz é tão complicado?

Bel - É porque você não aprendeu a aceitar a felicidade como uma coisa simples.

Márcio- Simples? Que felicidade é esta que você me dá hoje? Ou será que você só está me emprestando seu amor? Ou será que você está só perdendo tempo comigo?

Bel - Me dê suas mãos.

Márcio - Para quê? (oferece as mãos, que ela beija, e sente o cheiro) - Eu não presto Bel. Eu não valho nada. Antes de lhe conhecer eu já era infeliz. Eu sou um crápula.

Bel - Não fale assim.

Márcio - Você não conhece o mal como eu conheço, Bel.

Bel - Não me subestime tanto.

Márcio - Você não sabe ficar comigo. (segura-a pelos ombros assustadoramente com os olhos esbugalhados) eu não estou mais nesse mundo para brincadeiras, eu não sou um presente para uma bur-gue-si-nha como você abrir na noite de natal (ri, solta-a, pausa) como hoje.

Bel - Você duvida dos meus sentimentos?

Márcio - O que eu digo é que a morte já está dentro de mim e a única coisa que eu, às vezes, quero é ajustar contas.

Bel - Você é um poço de contradições. Tipo assim o médico e o monstro.

Márcio - Pior é você sem coragem nem para viver uma vida quanto mais duas.

Bel - Muito engraçadinho. Quer parar de me humilhar? Tá pensando o quê? Hein? Só você é que pode fazer o que bem entender com os outros, gritar, espernear?

Márcio - Você está presa numa teia de mesquinharias e falsos valores. Será que você não vê?

Bel - E você nesse oceano de dúvidas só pisa nas pedras da certeza, não é? Eu é que sou mesquinha e falsa? Você sempre esquece o que eu fiz por você...

Márcio - Eu sempre exigi tão pouco... e além do mais lembre-se: tudo que você fez por mim deu em nada.

Bel - Você não vai conseguir me deixar amargurada, hoje não meu vampirozinho. Hoje não.

Márcio - Nós estamos inventando que estamos apaixonados um pelo outro, acho que é isso.

Bel - Isto já está ficando repetitivo.

 

Cena das algemas

 

Márcio - Olha: (tira algo da mochila) seu presente de natal. (mostra um pacote). É uma coisa para fazer sua imaginação funcionar.

Bel - O que é isso? (pega e abre) Algemas? Que espécie de brincadeira é essa?

Márcio - Você sabe? Podíamos nos divertir muito.

Bel - Qual seria o próximo passo? Chicotes?

Márcio - Boa idéia. Eu também pensei nisso. Seria uma maneira de chegarmos mais rápido até o fundo de nós mesmos. Eu lhe amordaçaria e você algemada, amarrada pelos pés, falaria somente com os olhos.

Bel - Você gostaria de ser outra pessoa, não é Márcio  ?

Márcio - Quem não gostaria?

Bel - Eu. Eu não gostaria.

Márcio - Mentira!

Bel - Ah, Márcio. Não temos a noite inteira, levante-se daí. Pare de agir como uma criança.

Márcio - Gostou do seu presente de natal?

Bel - (indecisa) São minhas? (mostra as algemas).

Márcio - São. Não quer? (pausa) Eu devia ter dado a outra pessoa.

Bel - (fica com as algemas na mão) Estou cansada de fazer tudo por você e você não reconhecer isto. Vá. Fique com seus amiguinhos que eles é que lhe ajudam.

Márcio - O lobinho está cansado Bel. Deixe que eu fique aqui chorando. Amanhã eu esqueço, tudo, ou penso noutras coisas. Deixa pra lá. Me dá isso aqui (pega numa das pulseiras das algemas Bel segura a outra) algemas... (ri) isso não ia dar certo mesmo.

Bel - (segura sua parte da algema, dá um puxão, Márcio   é sacudido mas não solta sua parte) solte. O presente não é meu? O seu eu entrego amanhã.

Márcio - Solte (ele pega as algemas). Você não entendeu o significado das algemas. Dar um presente para você é como o livre arbítrio para escolher entre Deus e o Diabo. Mas só devo escolher Deus.

Bel - Você quer é mandar nos outros, não é Márcio  ? Quer que tudo aconteça na hora que você quer.

Márcio - Alguém tem que mandar, dar ordens em algum momento. De um navio sem capitão. Quem ouviu falar? E sem contar que a maior parte do meu tempo eu passo obedecendo (neste momento Márcio, brincando, algemou-se e levanta os pulsos).

 

Bel - Ah, num relacionamento o marido tem que mandar na mulher?

Márcio - Ou a mulher no marido. Não deve haver liberdade sem limite. O homem depende de regras.

Bel - (brincando – empunha uma lança imaginária, um elmo, uma armadura) lá vai o Márcio Dom Quixote, com seu empregado Sancho e pairando sobre os dois: A loucura! "Quebrem todas as regras".

Márcio - Dom Quixote era um velho sonhador da Espanha. (pára, olha para o chão, triste) será que eu vou envelhecer Bel? Será que eu vou ter tempo para envelhecer?

Bel - Novas técnicas, novos remédios. (olha-o algemado) Que brincadeira é essa? Onde estão as chaves das algemas?

Márcio - Vem cá.

Bel - Cadê as chaves?

Márcio - Estão nos nossos corações. Encarceradas. Ficar presa é um bom castigo para uma chave.

Bel - Ah, Márcio   deixa de brincadeira. Está ficando tarde e eu preciso ir.

Márcio - Deixa eu te dizer uma coisa bem bonita.

Bel - (aproxima-se) - Diga.

Márcio - (Beijando-a suavemente nos lábios quando se sentam) Feliz Natal. Feliz Nascer. Para um amor no Recife, esta Manguecéia desvairada...

Bel - (sentindo-se estranha) Ui! (arrepia- se)

Márcio - O que foi?

Bel - Senti uma coisa estranha, uma espécie de pressentimento. Um calafrio.

Márcio - (indicando as chaves num saquinho vermelho) - Abra isso aqui. Tome as chaves.

Bel - Garotos maus, como você, precisam mais de amor do que os outros (ela abre as algemas, que na verdade nem estavam trancadas).

 

 

Cena entre Deus e o Acusador

 

Márcio - Você é como um milagre para mim, para um filho da mãe como eu.

Bel - Punir-se é o único jeito que você arranjou para se divertir hoje?

Márcio - Eu acuso você! (sobe no banco e aponta para ela) de me iludir com um falso amor e me deixar assim.

Bel - Você sempre me acusa. O acusador satânico é seu segundo papel favorito.

Márcio - É (desce do banco e reflete balançando a cabeça) É. Satã em Hebreu significa "o acusador". E você é Nossa Senhora gerando um filho de Deus e eu condenado a não procriar! (esbofeteia Bel).

Bel - (sente o murro e põe as mãos no rosto para chorar, sentada, curva-se)

Márcio - Ah, (ironiza) o bálsamo inútil dos teus pobres olhos. Se pudesse aliviar a minhas espera. (cai em si).

Bel - (parando de chorar) – Por que você fez isso? (clima de inquietação).

Márcio – Desculpe, Bel. Desculpe. (Chora. Bate várias vezes com a cabeça no banco como querendo arrebentá-la).

Bel – Calma, Márcio. Calma.

Márcio - Eu não suporto mais esperar por você! Eu sonho com você, passo o dia com você no pensamento.

Bel - Acontece comigo também.

Márcio - Então? Por que não ficamos juntos?

Bel - Você sabe por quê!

Márcio - (numa crise nervosa) Eu podia dizer coisas péssimas para você agora, mas prefiro que elas fiquem mergulhadas no meu pensamento.

Bel - Apodrecendo dentro de você? (respira fundo e solta o ar lentamente) mais cedo ou mais tarde você me dirá tudo que pensa sobre mim e aproveita porque está bêbado.

Márcio - Bêbado, doido, é minha proteção contra esse mundinho irreal que está "esquematizado" por gente como você!

Bel - Mesmo assim... (triste. Pausa) você acha que podemos formar um casal: Bel e Márcio?

Márcio - Bel e Márcio. Sem filhos, netos, sem cães, nem gatos. Bel e Márcio, noite, sol, chuva, lua... e agonia, ânsia e risos.

Bel - Você não tem limites. Também para quê? Não é? A linha de partida ou de chegada. Que importa? É tudo uma aventura para você. (Pausa) Sinceramente Márcio. Diga: O que você quer comigo?

Márcio   - Amar você.

Bel - Você não pode ter filhos. Eu quero ser mãe. Entende?

Márcio - Você transa com outros homens. A gente adota. Eu topo qualquer coisa.

Bel - Você é muito galinha. Eu iria sofrer mais ainda.

Márcio  - Eu fico em casa todas as noites como você quer.

Bel - Não daria certo. Eu ia me sentir culpada.

Márcio   - Você tem medo de pegar "isso" não é?

Bel  - (irônica)  "Isso" o quê?

Márcio   - Não brinque comigo.

Bel - Eu estou cansada, muito, muito cansada.

Márcio  - Eu também. Você ama é César. Não é?

Bel: - Você reza?

Márcio  - (depois de longo silêncio)  Rezo.

Bel - Muito?

Márcio  - Já rezei "muito" . Aí eu descobri que era soropositivo.

Bel - E hoje?

Márcio  - Rezo menos.

Bel - Vamos rezar?

Márcio   - O quê??? (espantado)

Bel - Agora (pausa)

Márcio  - Não. (começa a chorar)

Bel - Pai nosso que estás no céu. Santificado seja o Vosso nome...

Márcio  - Não.

Bel - Venha a nós o Vosso reino.

Márcio   - Eu quero casar com você.

Bel - Seja feita a vossa vontade.

Márcio  - Você está fugindo do seu amor.

Bel - Assim na terra como no céu.

Márcio –Me deixa ficar com você.

Bel - O pão nosso de cada dia nos daí hoje.

Márcio  - Me deixa  te servir.

Bel - Perdoai as nossas ofensas.

Márcio  - Minha rainha.

Bel - Assim como nós perdoamos.

Márcio  - Eu te amo.

Bel - A quem nos tem ofendido...

Márcio - (procurando algo na mochila)  Roubaram um frasco de remédio meu. É caríssimo. Se não fosse do governo eu não poderia comprar.

Bel - Não nos deixeis cair em tentação.

Márcio   - Eu tenho outro.

Bel - Mas livrai-nos do mal.

 

Paris, Pernambuco! (A cena)

 

Márcio  - Seduzir é dizer a vítima o que ela quer ouvir. Esquecer de amar você seria como esquecer que eu existo. Seria ótimo se eu pudesse. Sua fortaleza tem muro de sorvete eu penetro comendo. Essa escuridão que nos envolve agora é a luz de Deus. O sol de amanhã será a sua sombra. Sabe? Você não é diferente de mim, amanhã poderemos estar mortos.

Bel - Livrai-nos de todos os males. Amém. (pausa enorme)

lhe dizer uma coisa. Eu vou embora para Paris.

Bel - Eu não tenho essas vontades. Eu não quero sair do Recife.

Márcio  - Pois eu vou. Não sou acomodado como você.

Bel - Vai para longe de mim? Para sempre?

Márcio  - Eu não vou demorar muito.

Bel - Você vai voltar logo?

Márcio  - Não. Eu vou morrer, logo.

Bel - Você é muito sarcástico.

Márcio - (pausa) O que eu detesto naquele lugar que eu pego o remédio, é olhar aquelas pessoas que apresentam o sinal do soropositivo, os sintomas. Você lembra, não é? Você foi comigo. Foi a única pessoa que se ofereceu pra ir comigo uma vez.

Bel: - Eu não conseguiria viver sem você, Márcio  , eu juro.

Márcio  - Ah, se suas juras ou orações pudessem nos salvar, me salvar. Mas estou num

ponto onde não há retorno possível. (Ri).

Bel - Seu sorriso é tão lindo, seus olhos de bebê. Desde o dia que lhe conheci que me apaixonei por você. Pelo seu retrato de adolescente. Seu jeitinho inocente, malicioso, dado, jogado.

Márcio  - Como é que você me ama? Me explique. Eu não entendo nada.

Bel - Eu te amo. Só isso.

Márcio  - Nosso amor é fantasia de dois corações partidos.

Bel - Eu te amo, Márcio. Muito.

Márcio  - Eu te amo muito Bel. Me beija.

Bel - Não posso.

Márcio - (baixa a cabeça nos joelhos e chora, triste, desesperado, cósmico) "Não posso".

(pausa) Amar para você não significa estar amando. Não é, Bel?

Bel - Algo me impede, é mais forte que eu. Eu não sei o que é.

Márcio  - É a vida. Não é, Bel? Você quer continuar. Você quer ter seu lugarzinho entre os idiotas, garantido.

Bel - Eu não sei o que você quer dizer com isso.

Márcio - Não sabe?

Bel – Só sei é que em relação a você, quando estou longe, dá aquela dor no meu coração. Uma tristeza. Vontade irracional de jogar tudo para o alto. E fim. A gente dançando, o luar e as estrelas se encarregariam do resto e rolariam os letreiros finais.

Márcio - Você às vezes é muito imatura. Parece uma criança, louca, minha ratinha zarolha. Eu te amo muito. Me abraça. (chora mais).

Bel - Como eu estou sofrendo, Márcio. (os dois choram muito, essa cena tem que ter lágrimas visíveis toca "Lábios que Beijei". O abraço continua, é como se dançassem).

 

Começa o Dramalhão "Lábios que Beijei"

 

Bel - (música toca baixinho) O que faremos? O que acontecerá conosco e com todas pessoas que vivem ou viverão como nós?

Márcio  - O que importa? Eu estou aqui.

Bel - Presos nos mistérios do amor.

Márcio  - Estou só.

Bel - Você está comigo.

Márcio - Você vai embora. Prefere conservar sua vida no vinagre, do que arriscar qualquer romance comigo.

Bel - Você está completamente bêbado, não dorme há quarenta e oito horas. Não almoçou...

Márcio  - Pare de repetir isso feito uma velha chata.

Bel - É, eu sou como uma velha chata.

Márcio - Se eu não tivesse te contado tudo na noite seguinte a que nos conhecemos... você estava tão... intensa. Você mal podia acreditar.

Bel - Pensei que era uma brincadeira.

Márcio - Ficava repetindo "o quê? O quê? O quê?" Pareciam facadas no meu corpo. Eu devia ter usado a camisinha e pronto.

Bel - Não seria justo. Eu odiaria você por não ter me avisado. O amor tem que ter a verdade completa doa a quem doer.

Márcio - Será que sabemos mesmo o que é o amor? Será que alguém sabe? Você, por exemplo.

Bel - Olha lá o que você vai jogar na minha cara.

Márcio - Como é essa sua relação com seu namorado?

Bel - Deixe o César em paz. Ele não tem nada a ver com isso.

Márcio  - Vocês estão separados? Você não o ama mais. E não se separa por comodismo. Não se pode amar duas pessoas com a mesma intensidade. Você me ama.

Bel - É diferente.

Márcio - (agarra Bel à força e beija os lábios dela com intensidade) Eu te quero, eu te quero.

Bel - Me larga!

Márcio  - Não sinta nojo de mim! Não me faça me sentir pior do que já estou me sentindo.

Bel - (olha para o céu estrelado implora, passando a mão pelos cabelos) Meu Deus me ajude. Eu não sei o que fazer. Eu não sei como amar este rapaz. Leve-me mas não me deixe neste tormento. Eu não consigo trabalhar, ler, viajar, sorrir. Nada sem ele é tranqüilo.

(Aqui como comédia espanhola).

Márcio  - (deitado quase não houve Bel falando com Deus)  Bel!

Bel -Oi.

Márcio - (deitado com o rosto escondido estende a mão)  Vem cá.

Bel - Diga, Márcio.

Márcio  -  Me dá o telefone para eu ligar pra "Dona Ana...", minha mã... mãezinha querida.

Bel - É, a velha deve estar louca atrás de você que não dá notícias há três dias.

Márcio  - Até nas delegacias ela já deve ter ido. (pega o telefone. Digita)

Bel - Você se lembra de tudo que faz quando está assim: bêbado?

 

Cena "Mamãe Natureza"

 

Márcio  - Chama, chama. Ninguém atende. De novo. (respira fundo). Sabe, Bel? Acho que o melhor que a gente tem a fazer é ir cada um para o seu canto e pronto. Não devemos ter compaixão um do outro. Acho que até para Deus nosso amor é um crime.

Bel - Nem sequer os homens poderiam fazer com que se transformasse o amor de duas pessoas em crime.

Márcio  - Mas a natureza pode e a natureza sempre vence. (vira-se de costas para a platéia)

Bel - O que é que você está fazendo?

Márcio  -Eu quero você! Queimadinha. Nesse vestido curto. Mostrando seus ombros, seios. Sua boquinha... tão bonita. Eu quero.

Bel - Pare.

Márcio - (levanta o vestido dela)  Eu quero. Gostosa. Meu amor! (sussurra).

Bel -Eu vou embora.

Márcio  - Aahh... (tenta tocar nela)

Bel - Márcio, não! Você está bêbado. Não, Márcio  ! (tenta desvencilhar-se dele). Não!

Márcio  - Deixa. Ninguém está vendo. Eu não vou sujar você. Deixa vai!

Bel: - Se você continuar, eu saio correndo e a gente nunca mais se ver.

Márcio  - Você não me quer mesmo. (fecha o zíper). - Adeus Little Bel. Não esqueça de colocar flores na minha cova. Jingle Bel. Jingle Bel.

Bel - Você vai viver muito. Vai ficar velho.

Márcio  - Obrigado.

Bel - Vou chamar um táxi para você.

Márcio  - Eu não quero um táxi. Eu quero você pra mim!

Bel - Eu não agüento mais. Pare de me torturar, Márcio, pare.

Márcio - (acalma-se) Não se apagar, murchar ou envelhecer. Lembra? E agora a morte na cara da gente. Meu tempo está se acabando Little Bel.

Bel - (olha relógio, tenta recompor-se)  Mais de dez horas, preciso ir.

Márcio - Você vai me deixar sozinho na noite de natal das nossas vidas. O único que poderíamos estar juntos e curtindo isso. Não percebe que Deus nos deu de presente um para o outro?

Cena / Baile

 

Bel - Deixe de história! Você está na gandaia desde ontem. Você me agrediu ontem pelo telefone. Que é que eu posso fazer? (pausa) - Vou na casa de mamãe. E você nessas condições...

Márcio  - Cadê o restaurante? Me deixe lá e pronto. Você não tem que ser boazinha e ficar comigo não.

Bel - Você também já me "abandonou" três vezes no mínimo.

Márcio  - (irônico)  É? Quando?

Bel - No teatro naquele dia você se jogou nos braços de alguém conhecido e me deixou para trás.

Márcio  - Eu lhe procurei e não lhe encontrei.

Bel - Papo furado. Você já tinha marcado lá com aquela pessoa.

Márcio  - E as outras duas vezes?

Bel - No encontro de maracatus, na Noite dos tambores silenciosos, você não lembra? Você "se perdeu" da gente e passou a noite toda nos lugares que você freqüenta, até o dia nascer e querendo mais, fazendo a linha "graças a Deus é sexta-feira” e da outra vez foi no show da Nação Zumbi. Está esquecido?

Márcio - (pausa) - Escuta: Quando a gente vai se ver de novo?

Bel-  O que é que você vai fazer domingo à tarde?

Márcio  - Depois de você, eu não vou conseguir amar mais ninguém.

Bel - Você está subestimando o amor.

Márcio -  (Ri)  Pois sim! Você diz isso porque não está embaixo da minha pele. Só eu sei o que eu tenho agüentado.

Bel - Também agora ser soropositivo virou explicação para tudo que era pergunta sem resposta, não é

Márcio - Mas é verdade, Bel. É como se a noite escura caísse de repente sobre a terra ao meio-dia.

Bel - Jante. Por enquanto é o melhor que você tem a fazer agora e deixe de drama.

Márcio  - Pra quê? Um dia a mais ou a menos nesta prisão.

Bel - Muitos são livres.

Márcio  - Você, é livre?

Bel - Sou.

Márcio - A única liberdade que sinto é não ter gerado outro ser humano.

Bel – Que poderia se dar bem na vida e ser feliz de vez em quando.

Márcio  - Sofrer ou ser feliz é a mesma merda neste planeta.

Bel – Ah! Você está insuportável.

Márcio  - Vá embora, eu já disse. Eu nunca mais vou ligar para você. Eu vou te esquecer.

Bel - É melhor mesmo, é a única solução para nós dois.

Márcio - Eu vou ficar longe de todos que possam trazer notícias suas.

Bel - Pois vá em frente, eu já estou de saco cheio, eu cansei Márcio, eu estou esgotada. Você não reconhece o que eu faço por você...

Márcio - É por isso que eu só faço pelos outros o que eu quero, é pra depois não bancar a vítima choramingando o "tempo perdido", feito um bezerro desmamado.

Bel - Um dia você vai me entender.

Márcio  - Ainda bem que eu não preciso esperar muito.

Bel - Você esperaria por mim?

Márcio - Você diz, assim? É, em casa com sopa numa noite de chuva, pedindo uma pizza pelo telefone para você? Esperando você depois do banho?

Bel - Você lutaria por um futuro melhor se eu estivesse ao seu lado?

Márcio - Claro que com você ao meu lado será mais fácil, melhor. Eu vou me sentir mais... em casa, esqueço de mim facilmente, com você ao meu lado eu riria da vida como um miserável ri com uma piada bem contada.

Bel - Exagerado.

Márcio - (jogando-se aos pés de Bel) "Jogado aos seus pés eu sou mesmo exagerado".

Bel - (Ri)  Com você como não ser clichê? (fica séria, olha o relógio) Meu Deus.

 

(apressando-se). - Eu tenho que ir embora.

 

Cena "Do revólver"

 

Márcio  - Senta aí porra, eu tenho uma merda pra te contar.

Bel - Pode guardar sua merda que eu não quero não.

Márcio  - Me escuta nem que seja pela última vez.

Bel - Não é sua culpa. É que você está de um jeito muito kamikase pro meu gosto. Louco em noite de lua cheia.

Márcio  - Um louco a mais ou a menos, o que a lua cheia tem a ver com isso? E hoje não temos lua cheia.

Bel - Você recarregou as baterias na última lua cheia.

Márcio  - Deixe eu lhe contar.

Bel - Eu tenho que ir embora.

Márcio  - Vamos viajar amanhã?

Bel - Para onde? Eu não posso.

Márcio  - Vamos.

Bel - Isso está virando uma guerra de nervos.

Márcio  - Uma guerra de nervos.

Bel - Uma guerra de nervos sim. Você está tentando deliberadamente me enlouquecer.

(grita) eu não agüento mais!

Márcio -  Satanás (grita) me leva! (Brinca, sorri).

Bel - De novo este texto? Ah! Deus lhe abençoe, Márcio, porque você não sabe mesmo o que faz!

Márcio  - Tantas coisas que eu fiz nessa vida, Bel, tanta coisa para carregar. Eu não agüento mais (pausa) - Há alguns dias um amigo meu deixou um revólver comigo porque ia se mudar para os Estados Unidos...

Bel - Miami, provavelmente.

Márcio  - Não, Nova Orleans. Bel, está sendo difícil conviver com este revólver.

Bel - Esse seu amigo para que ele queria esse revólver?

Márcio  - Ele é meio anjo e meio bandido.

Bel - Qual a idade dele?

Márcio  - Que importa isso agora?

Bel - Qual a idade dele?

Márcio  - Vinte e um anos.

Bel - Você devia se juntar com gente ajuizada...

Márcio   - O revólver Bel, isso é que interessa. O fim do caminho.

Bel - O que é que você vai fazer? Vai matar alguém? Vai matar-se? É isso Márcio   é isso que você quer? Nos manchar com este horror imundo?

Márcio  - Eu não quero mais viver assim!

Bel - Que coisa ridícula. Você vai tomar os remédios e tudo fica legal. Agora, você devia beber menos e dormir mais.

Márcio  - Eu consegui um monte de comprimidos para dormir.

Bel - Suicidar-se com comprimidos? E o revólver?

Márcio -  (tira da mochila) Aqui está ele (mostra o revólver).

Bel -  (assustada, olhando ao redor)  Por favor! (esbugalha os olhos) - Guarde isso! Você bêbado com isso... assim. Cuidado. (olha ao redor). Podemos ser presos. Ai meu Deus passar o natal na cadeia. Já pensou?

Márcio - Eu pensei em muito mais que isso.

Bel - Não Márcio. Guarde isso. Por favor.

Márcio -  (guardando) Você ficou com medo. Não ficou? E se isso fosse uma arma de brinquedo?

Bel - Para que você compraria uma arma de brinquedo?

Márcio - Fui na casa de um pessoal amigo, o lugar estava cheio de brinquedos... os  “diabinhos" das crianças se esbanjando na fartura. Eu bêbado peguei o revólver de uma das crianças.

Bel - Você não pode se matar. Suicídio não! Por favor.

Márcio  - Eu não estou nem vivo nem morto... é algum lugar entre a vida e a morte... e você, que eu esperava, fosse a resposta às minhas preces... (pausa) Não adianta. Não adianta mais. Eu desisto. Meu inferno estará aonde eu for. Onde eu estiver. A culpa é minha.

Bel - Não faça da culpa o centro da sua vida.

Márcio - Vá se tratar! "Não faça isso! Não faça aquilo..." (Pausa. Aproxima-se de Bel) o seu perfume...

 

Cena do Perfume

 

Bel - Meu perfume...

Márcio -  (abraçando-a sensualmente) - Conheço bem.

Bel - O meu cheiro?

Márcio -  (sem ouvi-la. Seduzindo-a no abraço que vai se tornando mais profundo)  Eu te amo. Eu te amo. Sai deste trono, renuncia. Desce, vem pra mim. Eu faço tudo que você quiser. Tudo.

Bel -  (debatendo-se, depois de haver cedido ao abraço de Márcio) - Você é muito cruel comigo. Você me tortura mentalmente. Meu cérebro derrete às vezes, que você me azucrina.

Márcio  - Azucrinar? É assim que você chama o meu amor? (pausa). - Eu não sei porque eu fiquei preso a você.

Bel - Talvez seja pela lembrança dos momentos bons que nós vivemos.

Márcio  - É talvez, de alguma forma tudo em nós seja só lembrança. Lembrança de um tempo feliz. Um amor de conto de fadas como você mesma disse uma vez... um conto de fadas para alegrar meu coração arruinado... joguete dos deuses que sou.

Bel - Talvez seja melhor a gente dar um tempo mesmo. Sabia? Tipo assim "férias conjugais".

Márcio  - Que contradição. Nunca nos casamos. Nem casaremos. Você tem nojo de mim.

 

Cena: Cinderela, 11horas.

 

Bel - Meu Deus. (olha para o relógio) Quase onze horas! A ceia de natal é meia-noite.

Márcio - É. Você foi ficando, ficando. Eu tenho um poder magnético sobre você. Não tenho? É só um pouquinho, mas eu tenho.

Bel - Sim, Márcio. Você me atrai. Mas o que eu sou para você?

Márcio - Você, Bel, é como um sol dourando as águas do meu mangue sujo, miserável, uma piada de Deus. A última?... Neste cemitério. E eu metido nisso como numa brincadeira... e eu... a esperar que algo sobrenatural aconteça... me suspenda... me transforme em pó... uma onda... um vento... algo que me carregue! Um final de vida prático sem preocupações que acabe com esse isolamento, essa prisão.

Bel  - Você está falando um monte de besteira.

Márcio - Mas esse revólver não é besteira. Sabe o que eu vou fazer?

Bel - Não me interessa. Faça o que achar melhor. Está bem? Tchau, Márcio  , agora eu tenho que ir mesmo.

Márcio  - Espera. Me dá o telefone. Vou ligar pra minha mãe, uma última vez.

Bel -  (entregando o celular)  É bom mesmo. Toma liga logo que eu tenho que ir embora.

 

Cena do "Taí"

 

Márcio  -  (digitando e esperando canta "Taí")  Alô. Mãe? Puxa. Aonde a senhora foi? Liguei três vezes. Ninguém atendeu.

Bel - Diz que eu tô mandando um "feliz natal".

Márcio  - Bel tá mandado um "feliz natal" (pausa) certo. Ela tá mandando um "feliz natal" pra você também.

Bel - Diz que amanhã eu vou lá.

Márcio  - Amanhã ela vai aí. (pausa) Mãe, sabia que eu estou muito doente?

Bel – Márcio, por favor! (apreensiva)

Márcio - Deve ser uma gripe! (pausa). Se eu vou pra casa? (pausa) Não mamãe. Eu vou ter que passar a noite aqui. (pausa) Aqui onde? (pausa) No inferno, mamãe. No inferno onde você me jogou por não saber criar um filho e ter procriado. Eu não agüento mais mamãe. Tô cheio completamente. Eu acho que a culpa é toda sua. Não sabe? (pausa) Quer saber mais?

Bel – Márcio, por favor. Hoje é natal!

Márcio -  (ainda ao telefone falando com a mãe) Quer saber mesmo? (Pausa) Eu - sou – soropositivo (pausa) AIDS. (pausa) gostou do seu presente de natal? Boa noite (desliga).

Bel - Satisfeito?

Márcio  - Não (entrega o telefone a Bel) Não. Mas ela merecia isto.

Bel - É sua Mãe. Hoje é dia de Natal.

Márcio  - Ela é fria, é um monstro da razão. O Natal não tem nada a ver com ela.

 

Cena: Arte longa, vida curta.

 

Bel - Como ousa?

Márcio  - Já fui obrigado a esconder o que sinto, mas agora chegou a hora do grande duelo.

Bel - E o amor onde fica nisso tudo?

Márcio  - O amor é a luz que ilumina o duelo.

Bel - (suspira) Você sabe como transformar tudo numa coisa pior.

Márcio  - Sou especialista nisto.

 

 

Última cena: Jingle Bell. Jingle All The Way.

 

Bel - E agora?

Márcio -   - O tempo foi se arrastando, o relógio distraiu meus sentidos, meu espírito. Perdi o tempo e a saúde, fui esmagado pela prostituição medíocre. Nada mais resta além deste solitário paranóico que você está vendo.

Bel - O que é que quer que eu faça?

Márcio  - Siga seu caminho. (procura algo na mochila – o revólver) – Você é jovem, todos lhe amam. (mostra o revólver). Você vai procriar. Ser avó. E... morrer feliz daqui a um século (pausa) quanto a mim...

Bel - Me dê este revólver (tenta tomar a arma).

Márcio - Não. (pausa) Já decidi. Quando você for embora. Eu me mato.

Bel - Não faça isso. Não é justo.

Márcio   - O que é justo? Esse carrossel maluco? Estou farto!

Bel - Enquanto há vida há esperança. Lembre-se: você sempre pode ajudar alguém.

Márcio - Isso está ficando melodramático demais pra meu gosto. Eu já amei demais. Trabalhei demais. Sofri. E, quem sabe? Já fui feliz o suficiente. Cheguei a um limite. Chega de terapia. Chega de novos e velhos amores. Nada mais me anima. Eu não vou deixar cartas... nem quero deixar saudades.

Bel - Me dá esta porcaria. Vou jogar isso no mar. (tenta tomar a arma. Abraça-se com Márcio  ) Solta. Me dá. Você não pode fazer isso (esforça-se para tomar a arma).

Márcio - Não adianta. Eu já decidi. (diz isso com mágoa, raiva, força) Sai! Vai embora.

Bel - Não faça isso... eu (ouve-se o som do tiro) te amo. (ela respira fundo) muito (chora)

Márcio  : - Bel! (grito de desespero – o tiro a atingiu mortalmente) Nããão! Não é possível meu Deus. Isso não pode ter acontecido. Bel cai aos pés de Márcio   já perdendo os sentidos) Bel por favor. (ela está de costas para a platéia) Bel... meu amor... (chora) responda (Bel treme, morre)

 

Som de sirenes. Sinos. É meia noite. Bel está morta. Ruídos de máquinas . UTI. Márcio  vai acordando. Bel entra e o texto é quase o mesmo do início da peça. Márcio percebe que tudo foi um sonho.

 

Bel – Márcio. Levanta. Olha o copo d´água. Cadê os remédios?

 

 

FIM

 

"PARA UM AMOR NO RECIFE"

Prêmios: * Melhor diretor (Carlos Bartolomeu)

              * Melhor ator  (Gustavo Falcão)

              * Melhor trilha sonora: DJ Dolores (Helder Aragão)

              * Melhor iluminação: Beto Trindade e Alexandre Veloso (Teatro Apolo).

 

 

 

...Anjos de Fogo e Gelo...

 

PEÇA TEATRAL   DE   MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO

 

 

Dedicada a Carlos Bartolomeu, Jomard Muniz de Britto, José Francisco Filho e João Denys

Recife, abril de 2008


Equipe da montagem de 2008, Recife

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PRÓLOGO

(Chegada de Rimbaud ao Inferno:

sua entrada lembra uma criança à beira da morte improvisando doces canções)

 

VERLAINE: Ele está morto!

(Toca o quinteto, Opus 115 de Brahms)

TRECHOS DE  POEMAS DE PAUL VERLAINE:

RIMBAUD- A lua branca /brilha  no bosque. /De ramo em ramo, /parte uma voz que /vem da ramada. Oh! bem-amado! //Reflete o lago, /como um espelho, /o perfil vago /do ermo salgueiro que ao vento chora. //Sonhemos, é hora... //Como que desce /uma imprecisa / calma infinita do firmamento /que a lua frisa.


VERLAINE- É a hora indecisa...Antes que apagues teu  brilho, /nívea estrela matutina/ volve ao poeta, cujo olhar o amor cegou como um véu, /teu olhar, que se diria /banhado na luz da aurora, e leva o meu pensamento, /longe, além, lá, bem distante, /no sonho em que não cessa de se embalar o meu bem, (mas depressa, que o sol dourado já vem!).

RIMBAUD- Cada concha, no interior /dessa gruta onde a gente se amou, /tem o seu especial sabor. Uma, a púrpura tem da chama /roubada ao nosso coração, /quando o desejo nos inflama”.

VERLAINE:  (Celo:  acorde assustador) Absinto!  (Olha o  cálice com o líquido verde) Absinto!  Combustível para minha estadia no inferno! Infinita  estadia. Sobre o rio maldito,  navega  nosso barco ébrio, nele estão os nossos segredos  mais ocultos. Sobre ele quisemos reinventar o amor! (Verlaine bebe mais)

RIMBAUD: Mocidade aprisionada, a tudo subjugada.  Por delicadeza, eu perdi a vida...

(Toca trecho de “Casta Diva” de “Norma” de Bellini).

VERLAINE: Leva-nos o barco bêbado...até o mais estranho portal...o inferno...

RIMBAUD: É chegada minha hora!

(Verlaine repete em francês)

VERLAINE: Sobre o arco da entrada está escrito: Os que cruzarem este portal, deixem para trás toda esperança.

RIMBAUD: Aos  céus ergui minha estranha sede. Deixei tudo para trás e segui.

VERLAINE: Ele não reconhecia limites

RIMBAUD: Sedento  entre ferozes moscas imundas, eis a minha entrada.

VERLAINE: E eu, na mais alta torre: restam as lembranças, as flores... o silêncio embaixo das pilastras.. o azul... as estrelas esparramadas? (Grita enlouquecido). Prisioneiro e possuído pela alma de Jean Nicholas Arthur Rimbaud! Ele me vê (arregala os olhos)  daquele outro mundo...

RIMBAUD: Ventos noturnos me envolveram... me falaram...

VERLAINE: Na minha memória,  ao entrar, ele parecia uma criança à beira da morte,  improvisando doces canções. Ele, o garoto que veio do interior...

(Música)

MATHILDE: Ele parecia segurar nas mãos uma granada, depois de lhe ter arrancado  o pino!

VERLAINE- Ele! A  mistura de presente, passado e futuro a paralisar o impossível.  Disposto a roubar o fogo sagrado  do altar!

RIMBAUD- Eu não conhecia limites.

MATHILDE: Usou  os seus versos para alimentar  o seu sonho tolo de liberdade.   Roubou meu marido. Destruiu minha família.

VERLAINE: Aqueles olhos azuis..

MATHILDE:  Tão malignos.

VERLAINE: Aquele sorriso...

MATHILDE: Tão satânico!

VERLAINE: Destruindo rima e métrica...

MATHILDE: Ele destruiu boa parte da minha vida. (segura algo com força e respira e respira fundo) E agora eu tenho guardados seus últimos escritos. (olha para baixo) Não tenho força para destruí-los.  Não tenho  coragem. (ergue a cabeça) É como se das... trevas... viesse o ...impedimento.

(Música)

VERLAINE: Com as botas rasgadas pelas pedras do caminho ele chegou até mim...

RIMBAUD: Que me importam  os grandes poetas?  Apossei-me deles e superei-os.

VERLAINE: Trinta e sete prêmios no colégio.

MATHILDE: Bicho  do  mato com sotaque insuportável. Anticristo! Um dia escreveu: 

RIMBAUD: À merda, Deus! Merde à dieu!

 (Ajoelha-se  e chora convulsivamente)

MATHILDE: Blásfemo!  Proscrito! Ele roubou-me o pai do meu filho! Meu filho...

VERLAINE: Meu filho Georges nasceu  naqueles dias tumultuados por tanto haxixe, ópio, absinto...

RIMBAUD: Merde à dieu!

(Música)

VERLAINE: Sim.  Ele era um  menino de família que lia a Bíblia e o  Corão.

MATHILDE:  Família, pois sim! O pai?

VITALIE- O pai nos abandonou quando ele tinha pouco mais de seis anos.

MATHILDE- A mãe tornou-se amarga, seca. Outro dia veio me procurar, ela e a insuportável da irmã dele. Duas víboras. Raça de cães. Odeio esse povinho!Nem o marido agüentou aqueles filhos e a mulher.

VITALIE- Largou tudo sem dar satisfação.

RIMBAUD: (Estranho) Meu pai...

MATHILDE:   Ela se refugiou no trabalho do campo. Coisa de gente sem estudo! (desdenha)

VERLAINE: O primeiro estudo a que se deve submeter aquele que deseja  ser poeta...

RIMBAUD-  ... é o estudo de si mesmo. Precisa ser vidente! E essa vidência vem com o desregramento de todos os sentidos.

MATHILDE: Ele estudava para se tornar um bom canalha!  (ri, jogando a cabeça para trás e erguendo- a para frente lentamente) Atiçando seus...  sentidos... de modo ...assustador.

VERLAINE: Meu menino... dormindo... debruçado sobre um livro sob o céu estrelado da França, no silêncio, depois da caminhada noturna por tantas estradas que percorreu. O  que tanto ele buscava?

MATHILDE: E meu marido juntou dinheiro, com outros poetas e enviou uma passagem de trem  para esse...(torce o nariz)  menininho...

VERLAINE: Do nordeste até Paris. 

VITALIE- Meias de lã  tricotadas pela mamãe, calças curtas, pois ainda estava em fase de crescimento...

VERLAINE- E lá estava  aquele menino-poeta!  (abraça o vazio do palco) Entre os meus braços. (confuso) E agora? O que me resta?

MATHILDE:  Era o prelúdio de um desastre!

VERLAINE: Mathilde era o tipo de esposa ciumenta.

MATHILDE:Rimbaud era arredio, intratável,  monossilábico.

VERLAINE: Ele decepcionou-se comigo. Queria que eu fosse aquele sujeito dos meus poemas. Queria que eu vivesse como escrevia. La vrai  vie!

MATHILDE: Dizia que buscava a verdadeira vida!  A verdadeira vida, pois, pois. Aquele crapulazinho miserável que dormia com os cães pulguentos das ruas foi para dentro da minha casa. Como pude dar cabimento? Ah! Meu Deus.

VERLAINE: Perplexos, foi como os poetas ficaram diante de tanto talento. Alguns o esnobaram por ser do interior.  Ele tornou-se agressivo, querendo viver... só de... poesia.

MATHILDE:  Não dava um  dia de serviço a ninguém!  Nem durante a colheita ajudava a família!  Ficava trancado escrevendo suas porcarias!

VERLAINE: Um  mito que eu ajudei a criar.  Remendar. Quantas vezes ele a precisou de mim? 

MATHILDE:  Pálido,  errante, coberto de lama (pausa) Fezes...desesperado de fome, frio.

VERLAINE: Essa autoflagelação fazia parte do seu ideal poético.

RIMBAUD: Eu já. Conhecia Paris muito bem e me aproveitava disso.

MATHILDE:  O lugar dele era mesmo os albergues miseráveis,  em meio aos vagabundos que vasculham  latas de lixo para encontrar comida.

VERLAINE: Ele me provocava.

MATHILDE:  E Verlaine tentou matá-lo com dois tiros de revólver. Feriu-lhe o braço. (põe as mãos no rosto- crise) O meu marido! Preso na Bélgica! (recupera-se momentaneamente) Jesus foi mais forte e um ano e meio depois,  ele saiu.  Meu marido! Tão canalha comigo... que escândalo. Comigo! Eu, uma mulher tão jovem, rica, bonita, inteligente...

VERLAINE: Enquanto eu estava na prisão, ele recolheu-se ao   sótão  da fazenda e ali escreveu “Une saison en enfer” e a mãe dele, que não dava dinheiro a ninguém, e não aprovava muito o filho poeta, pagou-lhe a edição de quinhentos exemplares.

MATHILDE: Mas Deus é tão justo que  o desgraçado do Rimbaud só teve foi a oportunidade de receber os exemplares do autor.

VERLAINE: Para mim a dedicatória  foi bem seca: “A P. Verlaine...”

MATHILDE: Gastou o dinheiro que a mãe lhe deu! (ri) Na farra (ri mais)  e não pagou ao editor. Bem feito! O pacote ficou  per-di-do e ele, en-lou-que-ci-do, jogou quase todo o original no fogo.  (zomba) Devia ter se jogado também, naquela hora!  Mas preferiu  ser “negociante”  na África.  Armas, café,  ervas... e suponho que escravos também. Ele tem o perfil de quem venderia escravos, embora todos neguem isso. Ele  queria ficar rico e ele não tinha escrúpulos. Isso eu tenho cer-te-za.

VITALIE- Sempre que ele parte, nunca sei se vai voltar...

VERLAINE- Com ele a gente nunca sabia.

(toca a  overture, op. 21  de “Sonho de uma noite  de verão” –  Mendelsohn)

CENA 2

RIMBAUD: Eu  não gosto muito de estudar, mesmo.  Mas  lá na fazenda eu fazia  compras, arrumava a casa,  cuidava do jardim.  Pra que tanta matéria na escola? Não é uma  tortura?  Eu sou um poeta.

VERLAINE: Escute...

RIMBAUD: Porra! Ficar esfregando as calças nas bancas da escola.

VERLAINE: Para vencer na vida, você precisa estudar...

RIMBAUD:  Para quê? Tenho que passar  em  um exame para ser engraxate? Só se é rico nessa vida roubando ou explorando a força de trabalho do próximo.

VERLAINE: Não exagere.

RIMBAUD:  Ah!  Não. Que emprego você imagina para um cara como eu? :  Tratador de porcos? Boiadeiro?  (ri) muito obrigado! Não quero (ri)  Ah!  (se benze e se arrepende de se ter benzido).

VERLAINE: (percebendo que Rimbaud arrependera-se de se ter benzido) Renegando a igreja católica?

RIMBAUD:  (pulando para cima de Verlaine que ri relaxado na cama). A santa doutrina católica. França,  disse o Papa: a primogênita da igreja. Joana D’arc é exemplo interessante do que a igreja pode fazer com uma pessoa. Não é?

VERLAINE: E seus amigos padres?  E Ernesto? Você era... virgem, com ele, também?

RIMBAUD:  Como você é vulgar!  Conservador! (bate com raiva em Verlaine). Burguês de merda! Não nega as origens!

VERLAINE: O par perfeito para você.

(tenta beijar Rimbaud)

RIMBAUD: Não me trate como se eu fosse uma das suas mulherezinhas ou apenas mais um dos seus rapazes.

VERLAINE: Isto está virando novela para adolescentes:  “Bate um coração, lateja minha tesão, sob esta batina” (acaricia as partes de Rimbaud e ri, prolongada e ironicamente).

RIMBAUD: O absinto faz de você uma pessoa bem  pior do que você é, quando está sóbrio.

VERLAINE: Você tem olhos de serpente (pega o lençol  simula masturbação sob o “véu” improvisado- Toca trecho de Mendelsohn)  Ó vem  a nós, grande Maria!  Tu  que és mãe pia do bom Jesus! Do Cristo Santo, ó virgem prenha,  sobre nós venha a tua luz!(ri e se engasga).  O Éter Cósmico sacudiu  minha alma enquanto eu despetalava esta rosa  poética! peguei minha cítara...

RIMBAUD: Como um  salmista, elevei minha voz inocente... Você não sabe o que é pureza!

VERLAINE: Faça-me o favor! Puro? (ri) Você?

RIMBAUD: Puro! Ergui minha voz até as altitudes celestes.

VERLAINE: (vira-se  violentamente)  E depois recolheu as asinhas.  Não foi?  (atraca-se com  o outro)  Onde você escondeu as suas asinhas de anjo?  (rolam pela cama, Verlaine faz cócegas em Rimbaud)  Hein? Seu menino malvado.

RIMBAUD:  Guardadas para não se sujarem! Protegendo  o meu canto virginal.

VERLAINE: Virgem  prenha!  Virgem prenha! Cadê  tua cítara  e as energias misteriosas?  (rolam pela cama até o chão e continuam em estranha dança. Dança macabra).

RIMBAUD:  Você está possesso...

VERLAINE: Possesso está você, seu pequeno canalha!

RIMBAUD:  (cínico) Porca velha!

VERLAINE: Vem!  Vem mamar nos meus peitinhos desta porca, como você mamou nos da sua mamãe. Vem!

RIMBAUD:  Doente!

VERLAINE: Sem  mim, você está perdido,  Rimbaud. Quem vai contar sua história? Analisar sua obra e publicar?

RIMBAUD:  Veremos.

VERLAINE: Veremos uma porra! (respira fundo) Bem fez o seu pai que lhe abandonou aos seis anos.É o seu pai que você vê em mim? Essa violência é por causa dele, é?

RIMBAUD:  Idiota!  Imbecil!  Estúpido! Vaca!

VERLAINE: Vaca é Vitalie, a sua mamãezinha,mulher que não soube ser mulher!

RIMBAUD:  E você e a sua esposinha, Mathilde, hein? Parindo este monstrinho chamado Georges?!  Essa aberração gerada por vocês dois!  (ri, assustadoramente).

VERLAINE: O mal  reconhece o mal...

RIMBAUD:  Você é um cadáver adiado que procria!

VERLAINE: Plagiador. Você é uma pessoa muito má. Eu fiz tudo  por você. Estou até tentando colocar você numa coletânea e...

RIMBAUD:  Dane-se sua coletânea!

VERLAINE- Você devora a si mesmo.Como é doloroso lhe amar( agarram-se) É...desnorteante. Arde. Enfurece. Mal saído da infância e ..tão...homem velho.

RIMBAUD- A sagrada família cobre o meu espírito.

VERLAINE- Penetrando. Envolvendo-o. (acaricia-o)

 (brigam na cama novamente)

VERLAINE: Eu lhe entreguei tudo (Rimbaud  tira um  terço branco do bolso.  Agita-o enquanto fala. Depois o joga no rosto de Verlaine. Silêncio. Aproximam-se os rostos. Beijam-se. Deitam-se suavemente. Um fica sobre o outro).

(música)

RIMBAUD:  Uma gota sai do meu sexo. (êxtase: abraça Verlaine) Gota rubra de vergonha! Lágrima de amor, lágrima... tenho o coração tão cheio... na minha carne... meu coração tão repleto.

VERLAINE: Repleto de quê?

RIMBAUD: (senta-se na borda da cama- pausa, Rimbaud veste a camisa ) Vamos sair. Eu preciso beber.

VERLAINE: Quer sair para se embebedar?

RIMBAUD- Você quer ir comigo ou não?

VERLAINE: Você não vai mudar o mundo. Suas iluminações, sua temporada  no inferno, seu evangelho de São João.... tudo pode ser bem inútil.

RIMBAUD: Sou um Cristo sem milagres,  apodrecendo na miséria profunda de todos os homens, corrupção  universal, que seria preciso curar, mas o milagre não se realiza. Deixo  todos para trás, o demônio, os danados... Jesus, todos ...eu vejo tudo tão claro... os anjos... dando esmolas ao diabo... as flores do mal... minha inaptidão no trato com as mulheres... a pátria...

VERLAINE: Vamos ficar aqui hoje. Faça de conta que eu sou a sua mãe e a sua pátria. Pegue a sua coroa de espinhos. Senhor poeta vidente.

(ele dá a Rimbaud  algo para mascar- ópio-  ele aceita, masca- Verlaine tenta  agarrá-lo,  Rimbaud  que se esquiva)

RIMBAUD:  Não tenho mãe. Não tenho pátria.  Fujo de toda força moral!

VERLAINE: Vem cá, Arthur, me abraça.

(música, som mínimo)

RIMBAUD:  Que gritos preciso soltar? Que animal é preciso adorar?  Sobre que sangue marchar?  A que demônio alugar-me? Erguer com o punho seco a tampa do caixão?  Entrar nele e sufocar? 

VERLAINE: O que você queria?

RIMBAUD:  Nada de velhice!

VERLAINE: Este veneno que lhe dá tanta sede, é a poesia?

RIMBAUD:  A cidade, os campos, o lago... o rio ao luar... O sino  tocando à meia noite, me chamando para o inferno.... (Rimbaud ajoelha-se. Deita-se e adormece sob o praticável da cama. Verlaine sai).

 

CENA 3

 (Rimbaud  está  dormindo debaixo de um banco  próximo ao hotel onde houve uma reunião de poetas franceses que zombaram dele por ser jovem e da roça).

(Entra Mathilde com um véu negro- Ela toca no banco com a sombrinha e ele acorda).

MATHILDE:  Surpreso  de me ver? (pausa) Sabe o que me traz aqui?

RIMBAUD: Sei pouquíssimo,  madame, e quero   saber cada vez menos. Por isso decidi abandonar a poesia.

MATHILDE: Você  nem começou e já quer parar? Você é tão engraçado.

RIMBAUD:  Não sou mesmo, madame?  As pessoas quando me vêem  me tomam  por tímido  e quando convivem comigo não suportam meu atrevimento.

MATHILDE: Faltam-lhe  forças para continuar na poesia? Ou descobriu que isto não é um meio de vida?

RIMBAUD: Eu tenho que ir embora...

MATHILDE: Eu vim para lhe ajudar.

RIMBAUD:  Ajudar, como?

MATHILDE: Dinheiro. Você quer?

RIMBAUD: Manchado de sangue?

MATHILDE: Não exagere...

RIMBAUD- Ah! Madame. Por Lúcifer! (respira fundo- atrevido) Tenha dó!

MATHILDE: Você praticou magia? Não foi? Fez algum pacto com o... Deus do fogo?

(Rimbaud,  furioso, levanta)

RIMBAUD: Queria ver se ele conseguia me derrubar!

MATHILDE: Eu lhe aviso que você não é mais uma criança. Vim lhe oferecer ajuda.

RIMBAUD: E em  troca o que quer de mim?

MATHILDE: Nada.

RIMBAUD:  Que eu fique bem longe do seu marido, talvez?

MATHILDE:  Alguns amigos meus poderiam lhe ajudar...

RIMBAUD:  É? Que gentil da parte de vocês. (irônico).  Mas já vivi o suficiente para saber que tudo tem seu preço e que o espírito burguês nasceu com Cristo, portanto é abençoado.

MATHILDE: A vida oferece-lhe uma nova estrada. Se me trair, garanto que será expulso da França. Todos estão fartos das suas canalhices.

RIMBAUD: A sociedade francesa que a senhora representa tão bem, madame?

MATHILDE: Sim A sociedade francesa. Uma oportunidade fora do país. Tão a seu gosto. Não é?

RIMBAUD: Eu vou pensar no assunto.

(música)

CENA 4

RIMBAUD: Não vou mais  escrever poemas.

VERLAINE: Não acredito. Vai escrever o quê? Romances?

RIMBAUD: Vou abandonar a poesia. Eu não consegui o que queria. Agora chega.

VERLAINE: Oh! (irônico) boa criança francesa.  Pelo bem estar de todos ele vai parar de escrever. (sério) Não seja tolo. Seus poemas são bons.

RIMBAUD: De que adianta, Verlaine? (chora) não deu certo. A poesia quis me enterrar vivo.

VERLAINE: A posteridade.

RIMBAUD: (Histérico) Que me importa a posteridade?  O que estes canalhas fazem  comigo é injusto!  E quanto a nós dois, sinceramente, eu estou cansado de repetirmos sempre a mesma conversa.

VERLAINE: Associe-se a uma trupe de comediantes.

RIMBAUD: sua mulher me procurou.

VERLAINE: O que ela queria?

RIMBAUD: Me ameaçar e me oferecer dinheiro. Ridícula.

VERLAINE: A família dela conhece muita gente e...

(Rimbaud  veste-se)

RIMBAUD: Vocês nunca vão me entender.

VERLAINE: Aqueles soldados que lhe estupraram  lhe entenderam  muito bem.

RIMBAUD: Você e suas mentiras degradantes.

VERLAINE: (cínico) Esses fios vermelhos que estão escorrendo dos seus olhos, são lágrimas?

RIMBAUD:  Saia do meu caminho. Eu vou embora.

VERLAINE: Foda-se!  Arthur de merda. (Verlaine puxa uma pistola imaginária e... “atira”! Rimbaud  sorri, finge que foi atingido mortalmente,  no coração. Vai caindo e Verlaine o ampara. Brincam). Tudo começou com risos de crianças,  com eles vai terminar.  Esta bebida permanecerá em nossas veias.

RIMBAUD:  Começou com repugnância... termine com perfumes. Começou  com grosseria? Que acabe em anjos de fogo e gelo.

VERLAINE: Estou de joelhos aos seus pés.

RIMBAUD: Não me interessa mais nada daqui. (Verlaine levanta-se)

VERLAINE: Criança monstruosa. Conheço suas manobras.  Este seu vil desespero. Como se fôssemos os seus brinquedos! 

MATHILDE: Flores que você pisa no seu paraíso artificial de absinto! 

VERLAINE: A feiticeira vai se erguer  sobre o poente branco? 

MATHILDE: Pois que se vá! 

VERLAINE: O sino de fogo  vai soar vermelho  entre as nuvens?  Que soe!  Eu volto para minha mulher!

RIMBAUD: Isto!  Volte para Mathilde. Ela é do seu nível. Nós fomos apenas órfãos noivos.

VERLAINE: Nós?  Órfãos noivos?! (ri) você é muito engraçado!  Nosso amor, se é que podemos chamar isto de amor, é mais como um belo crime na lama da rua. Um  circo. Eu que imaginei um mar  agitado com nascimento eterno de Vênus, me deparei com esta coisa sombria...

MATHILDE: A amizade deles era um  castelo feito de ossos... de onde brotava uma música desconhecida. Dentro dele selvagens dançavam sem cessar a festa da noite.

VERLAINE: O poeta satânico e seus sonhos de sofrimento. (cospe para Rimbaud) Seu idiota! Estúpido!

RIMBAUD: Idiota é você!

VERLAINE: O caso era esse?

RIMBAUD: O sonho arrefece.

VERLAINE: Quem sou eu para impedir sua partida?  Se nem mesmo sei porque fico.

RIMBAUD: O que ficou para trás foi levado em carro fúnebre,   água turbulenta, bebida  derramada, ataque de cães, ambições esmagadas, tempo de indigência vergonha de nossa fatal inabilidade.  Somos palermas quando rimos destes suplícios?  Destes crânios, destes albergues? 

VERLAINE: Aonde  você vai?

RIMBAUD: Você sabe.

VERLAINE: Você não escapará.

RIMBAUD: Haverá sempre segredos enlouquecedores, eu bem sei. Saberei ser pássaro silencioso quando tudo se fizer sombra. Adeus ao aqui, seja onde for.

VERLAINE:  É mesmo  adeus?

RIMBAUD: Pode-se dar  adeus à imensidão do universo? 

VERLAINE: Serei sempre seu amigo.  Não importa a distância.

RIMBAUD:  Então... (abraçam-se. Música) adeus.

 (Rimbaud sai. Verlaine senta-se, põe as mãos na cabeça. Afunda. Luz esmaece Mulher aproxima-se).

 

Cena 5

INTERMEZZO

 

MATHILDE: Você diz que quer voltar a viver comigo e com seu filho.

VERLAINE: Eu preciso da minha família e vocês são tudo que eu tenho.

MATHILDE: Você foi preso por causa dele... levou o meu nome para lama! Você é mentiroso, mentiu sobre o crime...

VERLAINE: Estávamos na estação.  Eu vinha com o meu revólver  no bolso, mamãe ao meu lado, Rimbaud  atrás.  De repente eu me virei, ele pensou que eu ia atirar nele novamente chamou um guarda e pediu que eu fosse preso. Foi assim.

MATHILDE: Você  e ele  lhe abandonando mais e mais: alistou-se no Exército Colonial Holandês,  recebeu adiantamento, desertou algumas semanas depois.

VERLAINE- Cale-se, por favor, Mathilde.

MATHILDE: Foi trabalhar  num circo!

VERLAINE: Incrível.

MATHILDE: Dinamarca... Roma! (ri) Orgias e problemas, de novo, com a polícia.

VERLAINE: Você tem prazer com a desgraça dos outros?

MATHILDE: O que estou querendo dizer é que se ele lhe amasse, pelo menos um pouco...

VERLAINE: Ele me amou de um modo que você não pode entender...

MATHILDE: Eu lhe dei a sua família. (agride-o) Você não precisa disso. Não é? Você quer o seu êxtase intelectual...sexual...sei lá. Você não vale nada! É isso. Eu tenho nojo de você. Sabe o que é isso? Nojo? Seu filho de uma puta! (bate na cara dele).

VERLAINE: Pare, Mathilde.

MATHILDE: Tomara que ele vá parar num ambiente infecto,  pulgas, mosquitos, calor, água salobra.  Contraia tifo.

VERLAINE: Pare de blasfemar! Ele não merece isto.

MATHILDE: E você. O que você merece, hein? Seu...seu...indecente!

VERLAINE: Eu mereço, como qualquer um merece...

MATHILDE: O quê?

VERLAINE: A salvação.

MATHILDE: (olha ao redor) Bem que disseram que você  está entregue ao vício, bebendo muito, e, pelo que vejo, na mais completa decadência.

VERLAINE: É isso tudo que você sabe sobre ele?

MATHILDE: Logo ele estará num caixão: o corpo seco e mutilado, velas, um coral, uma estranha melodia... mais nada.

VERLAINE: Quanto ao nosso filho... eu tenho direito...

MATHILDE: (brusca) Esqueça que eu e seu filho existimos! Nunca mais me procure. E diga a sua mãe que ela pare de me incomodar também!

(música)

 

 

Cena 6

VINGANÇA

 

MATHILDE: Então você decidiu ficar!  Seu moleque insolente! É um farsante. Este é o fato nu e cru. Você não entende nada de poesia.

RIMBAUD:. Um dia sentei a beleza no meu colo. E a achei amarga e injuriei-a.

MATHILDE: Estou vendo que você tirou do espírito o último traço de esperança  humana. Não aceitar a minha oferta foi a pior coisa que você fez. Mas agora você vai sofrer as conseqüências.

RIMBAUD: (pula sobre Mathilde, assustador) Eu poderia estrangular você se eu quisesse, aqui mesmo e esfregar sua cara morta no chão!

MATHILDE: Faz da desgraça um Deus.  Se espoja na lama!  Se estende para secar na aura do crime.  Faz piada com a loucura!

RIMBAUD- Idiota. (ri)

MATHILDE: Você tem um riso horrível. Hiena! Você e seu caderno maldito!Pensa que tenho medo de você? (ri, mostra uma pistola) Está pensando que isso é fruto do álcool ou drogas  em excesso? É não. É de verdade.

RIMBAUD: Oh! Armada e perigosa. Boa Mathilde. Está com raiva do jovem poeta que roubou o seu macho.

MATHILDE:  Vamos combinar uma coisa: Sua poesia é de merda. (irônica aponta a pistola para Rimbaud) Ver uma mesquita... na torre  de uma fábrica?!  Um salão no fundo  de um lago. Assombrar-se com um cartaz  de teatro de revista. (ri).

RIMBAUD: Longe dos pássaros, rebanhos. Numa clareira de joelhos a beber...

MATHILDE: Beber o quê?

RIMBAUD: Tendo em volta os bosques  de avelãs na cerração de um meio-dia úmido e verde...

MATHILDE: Com você  é difícil  se manter um  diálogo racional.

RIMBAUD:  Bebia algum  licor dourado.

MATHILDE: Bebia um licor dourado. Estava  de joelho nos bosques de avelãs na  cerração de um  meio-dia úmido e verde!  (ri) O que fiz para  merecer isto?

RIMBAUD: E um  temporal varreu o céu. Ao anoitecer.... na areia branca  dos bosques...o vento de Deus... eu via o ouro sem poder beber.  

MATHILDE:  Pouco  me importa o que o senhor bebeu.  Você é  um mal para a nossa sociedade. Saiba que em nome da moral e dos bons costumes...

RIMBAUD:  A moral é a fraqueza  do cérebro.

MATHILDE: Devia estar num  hospício! Isto sim.  Com seus terrores e sonhos soturnos.  Dane-se para os confins da terra!  Foi isto que vim lhe anunciar, em  nome da sociedade  francesa. Ninguém aqui gosta de você. Eu sei das suas falcatruas aqui e noutros países. Eu mesma vou lhe denunciar. Você vai para a cadeia! Está ouvindo? Fuja! Dane-se! Suma, desgraçado!  E não volte mais. Seu pedintezinho nojento. Livre-nos das suas bruxarias.

RIMBAUD: Mágico  estudo!

MATHILDE: Dê um  arremate  aos  seus desejos por aqui!  Siga. Vá!

RIMBAUD: A feiticeira que acende sua brasa no vaso da argila, jamais nos contará o que sabe e que ignoramos.

MATHILDE: Não queremos saber de nada que venha de você.    a certeza da sua distância. Vá  beber, seus mazagrans bem longe.  Destrua lá o resto da sua jovem miséria. E um dia farão um túmulo branco, de menina, para você na sua cidadezinha.

RIMBAUD: Também  é vidente, madame?

MATHILDE: Não é preciso  ser vidente para perceber  aonde o senhor vai com tanta pressa.

RIMBAUD: No  horizonte  da minha cidade: as florestas. Eu  olhei para tudo com o céu nos olhos. Abandonei a minha casa de pedras.

MATHILDE: Em-can-ta-dor. E fez  da vida um sonho contínuo (ironiza) que poético!  Tão ridículo quanto a sua pessoa.

RIMBAUD: Minha vontade não é de lhe encantar. Não quero que meus versos lhe rasguem  o coração, também.

MATHILDE: Ridículo!  Bossal! Pois bem. O recado está dado.  Suma, Jean Nicholas Arthur Rimbaud! Volte para o Inferno que é o seu lugar!

(ela sai, contrariada, por um lado e ele pelo outro)

(música)

CENA 7

(Vitalie e Verlaine os dois personagens estão em espaço e tempo diferentes apenas parecem dialogar)

VERLAINE: E ele largou a poesia... nunca respeitou as musas.

VITALIE: E agora está semi-morto. Desse jeito terrível! Será castigo?  (Benze-se) Deus  me perdoe (fecha os olhos, bate na boca, pega o telegrama e lê em voz alto e estranha): “Hoje, a senhora ou Isabelle, venham  a Marselha.  Trem expresso segunda de manhã vão amputar-me a perna. Perigo de vida. Negócios sérios a acertar”. Negócio sério. Como é difícil ser mãe numa hora dessas!

VERLAINE: Não havia esperança.  Só o suplício era certo.

VITALIE: Câncer no joelho. Se espalhou pelos ossos.  Voltou para a família depois de onze anos de exílio na África. o bom filho à casa torna...

VERLAINE: Penetrou nas entranhas do inferno... Mutilado e sem forças, no desespero, na tortura. O calor... asfixia...

VITALIE: Da África só sairia desse modo, bem que eu pressenti. Coração de mãe não se engana. Ele se parece nisso com o pai.

VERLAINE: Os sóis,  as savanas, selvas,  o desconhecido, a Abissínia...  O que era o seu anseio de desbravar o reino das palavras, diante daquele  imenso reino chamado África?  Ele que esteve em tantos países... tantos infernos.

VITALIE: Quer que eu fique com o dinheiro que ele consegui nesses dez anos. Sabe-se lá de que modo sujo! (respira) Mas é dinheiro. Fazer o quê? Mãe é mãe.

VERLAINE: Seu primeiro inferno foi o  metafísico, o desregramento, a poesia. O segundo foi dos sentidos. Tornou-se um bicho, um ser escuro

VITALIE: Mas poderia ser salvo. Eu sintia isso. Meu filho ainda tinha muito do menino que foi. Uma vez, ele me abraçou de maneira tão sincera, meu filhinho, que eu chorei junto com ele. (respira fundo) De algum modo ele será salvo!

VERLAINE: Restaram-lhe a solidão e o fel. Ele que queria um natal na terra... Arthur:  estrela que brilha ainda na distância... sozinho... alucinado, odiando, morrendo, buscando o infinito. (olha para cima e grita) Blasfêmia? Pudor? Dignidade de alma? Santo Poeta!  Por que não? Cheio de dignidade abismada, cheio de tanta verdade na tristeza amorosa da noite. Esta noite que afoga  o mundo (masca o ópio) a compor o seu ...livro negro...

VITALIE: Ele tinha o coração enfermo desde a infância.

 

 

CENA 8

O COLO DA MÃE

(Rimbaud está deitado. sua perna direita será amputada)

(música aumenta: “Passion”, de Peter Gabriel – “Sandstorm”)

 

           VITALIE–  Arthur! Queria ser o quê? Igual ao seu pai?  Dinheiro? Sexo? Poesia? I independência? (tosse) Como se não bastasse o seu irmão! Frederic, eu pressinto, não será mais que um trabalhador de ônibus. Mas você! Em quem depositei todas as minhas esperanças? Você...você...foi uma... (espécie de choro- pausa) decepção.

RIMBAUD: não é a melhor hora para falar sobre isso, mamãe. E me chame só de Jean.  A  minha situação militar...você sabe...se me descobrem...

VITALIE:  Armas na selva, não é? Meu  filho! Uma fábrica era o que você queria. se não fosse o governo francês...você seria um senhor da guerra naquela região maldita! Isso é negócio que se faça?

RIMBAUD: Um  mero comerciante,  mamãezinha.  Um  mero  comerciante. Para a Europa eu não podia  voltar tão cedo.

VITALIE:  (aproxima-se dele , segura-o como se fosse trocar a fralda). Traficantes de armas costumam  ter como castigo a castração. (pega na testa dele) Deixe-me ver se você está com febre.

RIMBAUD: Não. Não cortaram o meu pênis, não chegou a isso. Mas foi quase! Houve uma greve dos condutores de camelos. Imagine se  eu não falasse árabe...

VITALIE: (espanta-se) Você está ardendo em febre!

RIMBAUD – Mamãe, isso tudo está parecendo um sonho..

VITALIE - Você disse que  recebia algumas mensagens em sonho...

RIMBAUD: Sim.

VITALIE:  Como assim?  Quem lhe fala nestes sonhos?

RIMBAUD: Apolo.  O próprio Apolo.

VITALIE:  Republicano e ateu, eu suponho.

RIMBAUD: Como todo bom poeta parnasiano. (ele sente fortes dores e grita)

VITALIE: “Rimbaud é inteligente até não poder mais;  porém acabará mal”, os professores bem que me avisaram. (mexe nos frascos) Já tomou sua dose boa de morfina hoje? (pega alguma coisa, vira-se bruscamente) Cadê o dinheiro?

RIMBAUD: Eu deixei na caverna...

 

(música)

VITALIE:  Que caverna?

RIMBAUD: Meu refúgio...

VITALIE: de novo esta história da caverna?  O que faziam, você e seu amigo Ernesto, naquela caverna? Diga! Eu sempre quis saber... agora que você está delirando, talvez confesse...

RIMBAUD: Líamos Baudelaire,  Edgar Allan Poe,  Rabelais.  Criei um código poético e lancei-o numa  simples carta! Eu, o poeta vidente!

VITALIE:  E por que você renega seus poemas? Sua irmã descobriu que eles estão começando a render alguma coisa. Eu estou precisando de dinheiro. Verlaine...

RIMBAUD: Não diga a Verlaine que eu estou aqui! Não quero que ele saiba! Ele seria a última pessoa que eu queria que me visse assim. E quanto aos meus escritos...

VITALIE- Sua irmã Isabelle disse...

RIMBAUD: Águas turvas!  Não passavam  de águas turvas.

VITALIE:  Dizem agora que sua poesia é linguagem de alma para alma resumindo tudo:  perfumes, cores, sons...

RIMBAUD: Não quero saber dos meus poemas...

VITALIE: Imagino que tipo de leitor você tem. Aqueles que admiram  singelas violetas parnasianas  transformadas em doces escarros das ninfas! Que poesia! (irônica, é claro) Meu filho e seus escarros das ninfas...sua virgem prenha. Prenha! (respira fundo) Maria! Que a igreja nos absolva. Onde eu errei na sua educação? Será que errei?

RIMBAUD: Não, mamãe...foi tudo uma grande conspiração (ele está delirando sob efeito da morfina, seu delírio é muito suave) Vislumbrei os sete mares  no cristal líquido do Rio Meuse, nossa cidade. (fecha os olhos, respira fundo, esboça um sorriso) Rosto rente à água, observando. (tenta agarrar os raios imaginários) Os prismáticos reflexos dourados do sol. A correnteza “ondulando meus cabelos”...

MATHILDE: Águas turvas, como você mesmo disse! Todos sabem, meu filho...sobre o bulevar de Saint-Michel e o que você fez nas outras cidades também...

VITALIE:  Ah! Como eu sofri com o que você fez! Você acha que foi fácil? E agora agüentar mais isso? Você!  Assim ...e isso é para sempre. Meu filho que eu eduquei no melhor colégio! Você sabe os sacrifícios que passei. Abandonada sozinha e com quatro filhos para criar, aquele canalha do seu pai...(respira fundo) minha vida se acabou ali!

RIMBAUD: Eu fui um jovem tolo . É isso que você quer dizer, não é?

VITALIE:  Victor Hugo disse  que você era digno de pena. Recusou-se  a ser seu advogado! 

RIMBAUD: Que honra ser citado pelo senhor Victor Hugo! Dane-se, Victor Hugo!

VITALIE: Meu filho bandoleiro...

RIMBAUD: Uma vez a feiticeira verde do absinto, numa dose de apenas três centavos,  disse que eu  deveria devolver os homens  ao seu estado primitivo de filhos do sol.

MATHILDE: Pois bem, senhor filho do sol. Veja o ponto aonde você chegou.

RIMBAUD: Eu  quis viver a vida  inimitável!

VITALIE:  Isso incluiu  insuflar Verlaine  contra a esposa dele? Eu nunca fui com a cara daquele Verlaine. Sujeito intratável.É do bar para o hospital e de volta para o bar! Ele  teve vários amantes antes e depois de você!  E aquela mulherzinha ordinária dele também não é coisa que se preze!

RIMBAUD: Bruxa fedorenta! Princesa camundonga! (range os dentes) Percevejo! É a culpada de tudo.  Estragou tudo...

VITALIE: E você, meu filho? É isto que me pergunto mil vezes: Aonde pretendia chegar com toda aquela loucura? E depois essa vida na África...

RIMBAUD: Poesia e a vida. Beijar as duas.

VITALIE:  Esse seu jeito de provocar as pessoas! Eu sei. É meu filho. Eu sinto. Mas a culpa também é do seu pai que abandonou a casa. Meu filho envolvido com armas e tráfico!

RIMBAUD: Quando Verlaine pegou naquele revólver, disse:  isto é  para você,  para mim, para todo mundo!  Quer ir embora? Pois toma! (imita o disparo)

VITALIE:  Isso é vida que se queira?

RIMBAUD: Completamente  fora de si.

VITALIE:  (olha para a pele dele, a pele, os olhos) Sua pele está horrível. Todo queimado, cheio de manchas. Que cabelo é esse? Você não tem amor próprio? (solta-o bruscamente, está chocada com o estado do filho) Maldita Abissínia!

RIMBAUD: Dizem que lá eu encontraria a arca  da aliança que foi depósito  dos dez  mandamentos... a terra da rainha de Sabá...

VITALIE:  Você está completamente fora de si. Como podemos discutir negócios, com você neste estado?

RIMBAUD: Eu estou bem, mamãe. Você vai guardar estes oito quilos e meio de ouro e também as pedras e o dinheiro.

VITALIE:  E esta mulher?  Que você levou de Harrar para Áden? Que você bancou  a educação dela. Essa africana em trajes europeus...

RIMBAUD: Mais elegante  do que muitas européias.

VITALIE:  É? (riso amargo) Você se casou oficialmente com ela, lá na África? Olha que ela pode querer parte do seu dinheiro...

RIMBAUD: Não seja boba, mamãe

VITALIE:  E o tráfico de armas? A polícia ...você sabe

RIMBAUD: Eu  queria ganhar muito dinheiro e isso incluiu o tráfico...

VITALIE:  Por desertos e florestas na África?  Entre  rinocerontes, javalis?

RIMBAUD:  Eu pretendia partir  para a China ou Japão, logo depois. (ri, sarcasticamente)

VITALIE: (faz cara de desgosto profundo) Sua desgraça foi esse seu espírito sarcástico. Sempre quer ver o lado cômico e ridículo das pessoas. (pega na mão dele) Peça perdão a Deus, meu filho.

(Rimbaud está deitado, delira: Verlaine entra, aproxima-se dele)

RIMBAUD: Allah  Kerim (Deus o queira)  Me diga:  a que horas eles vão me levar  para o navio?

(Rimbaud levanta-se e cai.  Chora. Não sente a perna direita)

RIMBAUD- Eu estou adormecido no vale...o  riacho ...o sol ...aquele soldado...morto... Jovem soldado, boca aberta, a testa nua, morto... já não sente o odor das flores, o macio da relva...a mão sobre o peito, dois furos vermelhos do lado direito... é a guerra...eu preciso chegar a Paris...os tiros...eles...eles não me vêem...meus pés entre os lírios, eu estou muito cansado...mamãe...cansado...eu não...agüento mais...


(Vitalie embala-o, ele treme muito)


 

 (Verlaine sai das sombras)

            VERLAINE: Onde está o seu namorado?

RIMBAUD: Na guerra. Estamos sofrendo as primeiras derrotas. Meu querido professor,  deixou o colégio.  O grande mestre foi à casa  das tias. E de lá, como eu pensava que ele fizesse, alistou-se. Eu fugi de trem para Paris: queria ver a queda da monarquia... Napoleão terceiro.

VITALIE: Com quem você está falando?

RIMBAUD: Com ele...

VERLAINE: Você ultrapassou os limites.

VITALIE: Ele quem?

RIMBAUD: Meu bilhete era só até Saint-Quentin. Segui e fui detido na Gare du Nord. Cobraram os treze francos para complementar a  passagem  fui parar na cadeia.  Nem  dezoito anos eu tinha. Aqueles dias  ali me ensinaram algo que eu nunca esqueci. Por causa de treze francos!

(Vitalie pega um pano  e umedece para esfriar a testa do filho)

VERLAINE- Olhe bem para mim e responda: o que é que você queria comigo?Se era ao seu grande professor, a quem você amava?

RIMBAUD: escrevi da prisão uma carta. Ele veio e me levou à casa das tias, onde passei algumas semanas, em Douai.

VERLAINE: Sua mãe nunca gostou de mim.

RIMBAUD: Mamãe...

VITALIE: Você está delirando, meu filho. Só estamos nós dois neste quarto. Você está falando com quem?

VERLAINE: Ela não consegue me ver.

RIMBAUD: Eu vou chamar a polícia!

VITALIE: Nem me fale da polícia...

VERLAINE: De novo? Quer que me prendam novamente? Tem certeza?  Sou eu, Verlaine: eu voltei. (tenta tocar em Rimbaud)

RIMBAUD: (afasta-se apavorado, quase derruba Vitalie, que o ajuda a deitar-se de novo) O meu relógio de prata... eu passei  quinze dias andando sem conseguir  nada... preciso vender meu relógio...mãe...

VITALIE: Sim...

RIMBAUD: Você vai guardar meu dinheiro, não vai? Na fazenda. Promete? Eu sou um Comunnard!  Eles vão me prender. 

VERLAINE: Num quartel chamado Babilônia!  Vão lhe  violentar. (ri)

RIMBAUD: Eles não gostam da estética, meu método de vidência.  A revolução está chegando...

VERLAINE: Pobre menino...

RIMBAUD:  Vou esgotar  em mim todos os venenos.: doente, criminoso, maldito... sabedor supremo. 

VERLAINE: Venha  morar  em Paris. Venez,  Chère Grande Âme,  on  vous attend, on vous désire.

RIMBAUD: As ondas  lavam este barco fantasma...vontade de partir, navegar ao céu... chegar ao desconhecido. Não me sentir mais amarrado... mais forte que a bebida... a noite verde em neves infinitas. Perfumes pretos... onda azul, peixes de ouro...barco perdido em brumas roxas.  Céu vermelho...ilhas no céu! 

VERLAINE: E agora, aqui, neste hospital; o que lhe resta? Esta água fria e escura para o seu crepúsculo? 

RIMBAUD: Vou até à infinita vida! Vou sugar seu seio casto e doce e aplacar esta sede ...

VITALIE- Você está com sede?

RIMBAUD- Estou. (Ela vai pegar água)

VERLAINE: E se o leite se transformar em cuspe vermelho e arder no fogaréu?

(música- Vitalie afasta-se para o escuro)

RIMBAUD: Esses pássaros negros! Buscam em mim o lugar onde o beijo dorme...e onde o fauno  morde a flor vermelha com dentes brancos.

VERLAINE: Delírios... como lhe parecem?

RIMBAUD: Suaves queimaduras...  coração sangrando.

(Vitalie volta com o copo com água, dá de beber ao filho)

VERLAINE: Lembrei de quando você afogava esse coração na cerveja e mijava entre  os girassóis. (ri)  Para o  céu! como se fosse água benta.

VITALIE: (preocupada, ansiosa) Eu vou chamar um médico. A infecção deve estar tomando conta do seu cérebro. Temos que fazer logo esta maldita operação!

(Vitalie vai para o escuro)

VERLAINE: A cidade era toda nossa.

RIMBAUD: Cadela no cio a comer cataplasmas na noite ardente dos espasmos.

VERLAINE: O mar vermelho no bico dos teus peitos. Sangue negro.

RIMBAUD: Eu estou tão só...

VERLAINE: Eu estou aqui!

RIMBAUD: Estou com sede.

VERLAINE: Você  tem medo de morrer, agora?

RIMBAUD: A eternidade é o mar que o sol invade... Meu navio foi a pique. Partiu-se ao meio a minha quilha. Saí boiando em  alto-mar.

(Vitalie volta e ampara Rimbaud, saem para o escuro)

VITALIE: Venha comigo.

(música)

VERLAINE: Fiquei pensando nele que trocou a vida pela literatura  e depois trocou a literatura pela vida... Amargurado, taciturno,  vazio, desolado Não se achava bem em lugar nenhum... mundo afora, ardendo uma década na África.  Assado em forno de cal. Inesgotável energia.  Rompeu com amigos e parentes para explorar a vida em toda sua plenitude.  Lutando contra amarras,  para se salvar.  Obter a liberdade... Pensando, até à morte, em não ser querido, não servir para nada neste mundo!  Não ser digno de regressar à sua pátria, a França.  Não lhe seria permitido reiniciar a vida normal de um cidadão. Temia  ser preso: cadeia depois do que acabo de sofrer?  Antes a morte! Foi  enganado e traído. Barriga vazia, febre pelas inflamações das paredes do estômago causado pelo atrito das costelas contra o abdômen. A pé, a cavalo, em busca de pão, emprego, um lugar onde cair morto... (imita Rimbaud novamente) morrerei onde me largar o destino!  Agora que tudo passou me sinto desolado. Prisioneiro de não sei que gaiola horrível. Ele fez de mim o seu único amigo e conforto.  E agora chove, chora no meu coração. Por que sem amor nem ódio, meu coração sofre?

 

 

Cena 8/ Conclusão

RIMBAUD (EM OFF): As  pessoas desta cidade, na África, não são  mais burras nem mais canalhas do que os negros brancos  dos países ditos civilizados;  não são do mesmo tipo, só isso.  Eles são até menos maldosos e podem em  alguns casos,  manifestar gratidão e fidelidade.  É preciso ser  humano com eles.

(Luz vermelha sobre Verlaine)

VERLAINE: No hospital  em Marselha. À beira da morte, ele delirava.  Era preciso organizar a caravana,  buscar os camelos.  Rápido! Estavam  esperando. Queria fechar as malas e partir. Aos trinta  e sete anos. Meu menino, meu formidável explosivo.  Viu talvez  na amputação da perna  uma prova de combate com o anjo. Homem  dos pés de vento. Trocou a lira pelo tilintar  das moedas  de ouro. Seus escritos, tal pombos vermelhos voando, levarão a mensagem,  iluminarão a noite da alma como uma... lição de vida. Ele jamais encontrou companhia.  Estava sempre só. Assustadoramente só, no labirinto... No arremate dos desejos... A história lhe  reerguerá triunfante da morte. Para que apesar  de toda a lama, o mundo veja,  seus pés,  Arthur,  intactos sobre a cabeça da inveja!