A década de 1990 foi
marcada pela afirmação e contestação do modelo econômico do neoliberalismo e
pelos desdobramentos da globalização. No Recife surgiu o Movimento Manguebeat
que produziu deslocamentos e rompeu com os paradigmas estéticos. Este
importante livro (re) constrói o universo cultural da capital de Pernambuco nos
anos 90. A poética, as representações, as demandas sociais de um movimento que
pensou os mangues e a periferia da cidade como centro. Na obra do Prof. Dr. Moisés
Monteiro de Melo Neto o encontro entre o pensamento de Josué de Castro, a
poesia de Chico Science, e os “caranguejos com cérebro” potencializam a
narrativa.
Helder Remigio de
Amorim
Coordenador do
Mestrado em História da Universidade Católica de Pernambuco (PPG História/ UNICAP)
Este
livro não teria sido escrito sem que antes houvesse uma série de personagens
reais, “pessoas extraordinárias”, na expressão roubada aqui do historiador inglês
Eric Hobsbawn. Refiro-me a Chico Science, Fred 04, Renato L. e muitos outros
músicos, roadies, técnicos de som, promotores de eventos, cineastas, jornalistas, etc. que
movimentaram e fizeram parte da cena recifense na década de 90. Na verdade, um
dos capítulos mais importantes da história da música brasileira foi escrito
ali, nas noites quentes da Manguetown. No entanto, esse livro e todas as
histórias contidas nele não chegariam aos leitores sem que houvesse um escritor
dedicado e comprometido como é o caso do autor deste livro, o professor Moisés
Monteiro de Melo Neto.
Munido
de vasta pesquisa e excelente aporte teórico, Moisés se propõe a discutir a
poética diluída e condensada em letras de música, shows, filmes, manifestos,
entrevistas etc. Esta poética é a peça-chave desse quebra-cabeça, fundamental
na reconstrução dessa história, do que se viveu na agitada Cena Recifense
daqueles anos. O que compunha toda a diversidade sonora e imagética, que iam
dos batuques de terreiro, dos graves alcançados nos tambores de pele de bode,
passando pelas guitarras distorcidas por overdrive,
wah wah, delay e outros efeitos, era a palavra, ou melhor, uma série de
escritos, poesias em forma de letras de músicas que foram amplificadas nos
alto-falantes e fizeram a cabeça de uma geração, movimentando a
“cultura quatrocentona de Pernambuco”, na expressão do autor. De fato, o solo da Manguetown foi
fértil, um ecossistema completo. Quase três décadas depois, discos como Da Lama
ao Caos (Chico Science e Nação Zumbi) e Samba Esquema Noise (Mundo Livre S/A)
ainda impressionam pela qualidade da gravação, a escolha dos timbres, arte
visual das capas e encartes, temática das letras etc. Toda a estética do
movimento e padrões de comportamento nasciam ali. Esses discos, de tão perfeitos,
podem ser comparados a outros tão importantes da Música Popular Brasileira,
como Construção (Chico Buarque) ou Expresso 2222 (Gilberto Gil), tamanha a
força e a perenidade das composições prensadas no vinil. Obras primas da
criação humana que inspiraram outros trabalhos, provocando metamorfoses e
deslocamentos. Depois deles, poética nunca deixou de brotar no solo fértil da
Manguetown.
O
legado deixado pelas bandas e outros artistas que compunham esse cenário é
inegável. Muito já se escreveu, de forma geral ou pontual, sobre o Movimento
Mangue. Pela diversidade característica das bandas e produções artísticas, as
interpretações são muito distintas, quase particulares.
O
professor Moises Monteiro de Melo Neto foi um dos primeiros autores, ainda nos
anos 2000, a dedicar um livro sobre o Movimento Mangue, na intenção de fornecer
uma compreensão teórica sobre a cena e seu principal mentor, o Chico Science,
figura carismática e uma das cabeças mais brilhantes que já nasceu nessas
paragens. O valor daquela incursão foi grande, gerando uma dissertação de
mestrado em Letras da UFPE, defendida em 2004, onde o tema foi mais que
aprofundado. O que o leitor tem hoje em mãos são anos de investigação, de
trabalho dedicados a compreender da melhor forma possível aquele movimento, um
fenômeno cultural que levou a imprensa nacional e internacional a focar seus
holofotes na cidade estuário do Recife.
Temas
como “tradição” e “cultura popular”, entre muitos outros, são discutidos com
maestria por Moisés, sem correr o risco de cair numa mera folclorização ou
mesmo em fomentar antagonismo simplórios e batidos, como por exemplo,
modernidade versus conservadorismo.
De forma simples, o autor parte para desenvolver ideias instigantes que
dialogam com autores da pós-modernidade, dos Estudos Culturais etc. A
construção dos argumentos é bem ancorada não apenas nas pesquisas empreendidas
pelo autor, mas também nos aportes teóricos, utilizando gente de peso, como
Bhabha, Hall, Barthes, Octavio Paz, entre outros. Apesar da complexidade de alguns
temas, a escrita de Moisés não se faz entendida apenas ao leitor versado nos
jargões do mundo acadêmico. Pelo contrário, o leitor comum vai se deliciar com
o que vai encontrar nessas páginas.
Ao
leitor que começou esse livro pela leitura desse prefácio, faço questão de
ressaltar que a escrita de Moisés Monteiro de Melo Neto é extremamente
versátil, misturando com maestria análise acadêmica profícua, fruto de extensa
pesquisa e reflexão teórica, com aquele gostinho de crônica domingueira, que
encontrávamos nos bons jornais de outrora, quando a leitura era feita com
leveza e prazer. Mas não é só isso, como toda boa obra literária, o texto
cresce, fica denso, nervoso, como se o leitor estivesse participando
diretamente dos embates que se travaram na legitimação daquele tipo de arte que
era produzido ali no Recife dos anos 90. Por fim, espero que esse livro seja
tão estimulante quanto foi para mim. Ler o livro de Moisés Neto me fez voltar
no tempo, de quando frequentava as festas, discotecagem e show na Soparia, na
Oficina Mecânica, no Pina de Copacabana, no Abril pro Rock e muitos outros
“lugares de memória”, das minhas memórias e de toda uma geração que viveu e se
criou ao som do que se produziu na Manguetown. O que se viveu naqueles anos foi
de fato uma experiência única.
Bruno Augusto Dornelas Câmara*
Garanhuns, 25 de
abril de 2021.
* Professor adjunto do
Curso de Licenciatura em História da Universidade de Pernambuco – UPE, Campus
Garanhuns, e docente permanente do Programa de Mestrado Profissional em
Culturas Africanas, da Diáspora, e dos Povos Indígenas – PROCADI, docente
colaborador no Programa de Pós-Graduação em História – UFPE.