Uma
carta a meu amigo Caetano Veloso, que, como eu, é do balacobaco
Continuo
gostando da matriz libertária do liberalismo
Caro Caetano, foi muito bom escutar sua
entrevista com Bial, no dia 4 de setembro de 2020, e agora assistir a Narciso
em férias, , na Globoplay.
Tem um momento da entrevista com Bial em
que você fala que o seu olhar sobre o século 20 mudou.
Nos últimos dois anos, os horrores do
nazifascismo e os do socialismo real lhe parecem poder ser considerados e
talvez julgados de maneira diferente.
Essa mudança, você atribui à leitura de
um autor italiano, Domenico Losurdo que eu desconhecia até então. Losurdo
foi um escritor prolífico; escolhi ler “Contra-História do Liberalismo” (ed.
Ideias e Letras) além de escutar entrevistas e depoimentos. E aqui vai o que
pensei.
Imagino que nós tenhamos em comum uma
paixão libertária, ou seja, a sensação de que existe uma dimensão da liberdade
individual que é irrenunciável, e que o coletivo (desde o governo até a turma
dos boçais no boteco da esquina) é sempre, em alguma medida, inimigo dessa
liberdade. Por isso talvez tenhamos tido, inicialmente, uma simpatia
compartilhada pelo liberralismo.
Na minha história, não foi difícil:
cresci sabendo que os liberais eram antifascistas irredutíveis, de Luigi
Einaudi (segundo presidente da República Italiana, que deixou o jornalismo em
1926, com a chegada do fascismo) a Piero Gobetti (que chegou a declarar que a
Revolução Russa poderia ser uma revolução liberal e acabou morrendo em Paris
das sequelas de seu linchamento por milícias fascistas) e, enfim, até o meu
pai, liberal e partigiano.
Mais tarde, descobri que havia, no dito partido liberal, sinistras figuras dispostas a simpatizar com o próprio neofascismo para se defender do perigo (suposto ou não) socialista ou comunista.
Essa covardia dos liberais dos anos 1960
foi o que me levou para a esquerda.
A esquerda italiana dos anos 1960 era
(Gobetti não teria hesitado em dizer) uma boa casa para um liberal.
O Partido Comunista Italiano não tinha
grande simpatia pelo Grande Expurgo, ou pelos processos de Praga de 1952.
Se precisasse, uma viagem ao outro lado
da Cortina de Ferro bastaria para verificar que não eram só as meias de náilon
que faltavam: a pior falta era a daquela liberdade pela qual tenho uma paixão
que imagino compartilhar com você.
“Origens do totalitarismo”, de Hannah
Arendt,publicado em 1951, levou tempo para ser lido e entendido, mas acabou
sendo um dos livros cruciais na minha formação.
No começo dos anos 1990, meu doutorado
era uma interrogação sobre o que permite o horror no comportamento do homem
comum quando ele se torna funcionário de um regime integralista ou totalitário,
seja ele qual for, nazifascista ou socialista.
No livro que eu li, Losurdo faz uma longa
crítica do liberalismo baseada no fato de que liberais famosos e fundadores,
como John Locke, possuíam escravos. O que é homólogo a dizer que Engels e Marx
não podiam ser socialistas porque viviam graças ao trabalho dos operários da
fábrica de Engels.
As coisas são mais complicadas, e a
mudança dos modos de produção é lenta. Mais importante: em um vídeo, Losurdo aponta
uma diferença entre a violência de Toussaint l’Ouverture (que liberou o Haiti
da escravatura e dos franceses) e a violência do general francês que a ele se
opunha. Haveria, em suma, uma violência a fim do bem (abolir a escravatura) e
uma violência do mal (manter o poder colonial).
Eu sempre fico com calafrio quando alguém
defende uma violência “a fim do bem”. Afinal, 60 mil mulheres foram
destroçadas, torturadas e queimadas, na Europa da Renascença, tudo a fim do
bem: a alma dessas “bruxas” teria assim mais chances de subir aos céus.
Não tem um massacre sem um bem pelo qual
ele teria sido decidido.
Não quero ter a paciência para descobrir
e lembrar os bens diferentes pelos quais o socialismo real massacrou. Até
porque aposto que sempre o que ele realizou de melhor poderia ser realizado sem
massacrar ninguém. E deixando ainda a liberdade infinitamente mais solta.
Em suma, talvez não tenha lido Losurdo o
suficiente, mas não consigo abandonar a ideia de totalitarismo ou integralismo
como efeitos colaterais de qualquer coletivo, que é sempre organizado sobretudo
pelo medo da liberdade individual.
E continuo gostando da matriz libertária
do liberalismo. Deve ser por isso: embora envelhecendo, eu, como meu amigo
Caetano, sou do balacobaco…
Contardo Calligaris
Psicanalista,
autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta'
(Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)
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