por MOISÉS MONTEIRO DE MELO
Índice
Hermilo
Borba Filho............................................
Jomard Muniz
de Britto...................................
Cesar
Leal...........................................................
Raimundo
Carrero................................................
A Geração 65........................................................
Lucila Nogueira....................................................
Marcus
Accioly......................................................
Luzilá
Gonçalves Ferreira....................................
Regina Vilaça.........................................................
Gilvan
Lemos..........................................................
Ariano
Suassuna.......................................................
Ascenso Ferreira........................................................
Manuel Bandeira.............................................................
João Cabral de Melo
Neto...............................................
Chico Science e outros poetas do Movimento Mangue
(“A Cena Recifense dos
anos 90”)...............................
Mauro Mota..................................................................
Carlos Pena Filho.........................................................
Giberto Freyre..............................................................
Joaquim Cardozo.........................................................
Nelson
Rodrigues.........................................................
Osman Lins.................................................................
Hermilo Borba Filho
(Ensaio PUBLICADO NO DIÁRIO DO SENADO FEDERAL 23168
QUINTA-FEIRA 12 de JULHO DE 2007)
Um dos mais importantes intelectuais pernambucanos, o escritor e encenador Hermilo Borba Filho foi o criador do Teatro de Estudante de Pernambuco e do Teatro Popular do Nordeste.
Em 1932, na cidade de Palmares, interior de Pernambuco, ele começou como ponto, depois foi promovido a ator. Em 36, conheceu Samuel Campelo em Recife, diretor do grupo Gente Nossa. Engajou-se como técnico. As peças eram influenciadas pelo estilo francês e falavam dos costumes cariocas. O teatro de boulevar.
Em 1940 morre Campelo e Waldemar de Oliveira funda o TAP, Teatro de Amadores de Pernambuco. Hermilo traduz peças para a companhia. O estilo era o francês do início do século.
Na Semana da Arte Popular em Recife, em 1945, ao lado de Gilberto Freyre, Hermilo proferiu a Conferência “Teatro, Arte do Povo”, ali começava um novo projeto, um grupo ligado à redemocratização do Brasil, um teatro político.
Aquela era uma época de crise. Luca Cardoso Ayres desenhou os cenários da 1ª peça que foi apresentada em cima das mesas da Biblioteca da Faculdade de Direito. Houve até vaia, mas foi um mesmo, era o início. Representou-se de tudo, mas valorizou-se o autor nacional e principalmente o nordestino. Leva teatro ao povo. Já surgiu Ariano Suassuna.
Inspirada no grupo de teatro do espanhol Garcia Lorca foi construída uma barraca no Parque 13 de Maio (Recife) e montada a peça “Cantam as Harpas do Sião”, de Suassuna e outros. Apresentaram-se, com outros espetáculos, em hospitais, fábricas, presídios. Sófocles, Shakespeare, Ibsen, faziam parte do repertório.
Em 1952 Hermilo vai para São Paulo e o Teatro de Estudantes dá uma parada.
Hermilo escreveu as peças “João sem terra”, “A barca de ouro” e “Electra no Circo”, “Donzela Joana”, “Sobrados e mocambos” (baseada em Gilberto Freyre). Mas seu objetivo era ser diretor e romancista.
Sua primeira experiência foi dirigindo “Fruto proibido”, de Oduvaldo Viana.
Como jornalista foi crítico do jornal Última Hora e da revista Visão e teve acesso aos bastidores de companhias nacionais e internacionais. Dono de enorme biblioteca, teve que se desfazer dela por falta de dinheiro.
Lançou em São Paulo “O auto da compadecida”, com sucesso e dirigiu Sérgio Cardoso em o “Casamento Suspeitoso”, ambas de Suassuna. Adaptou “A Dama das Camélias”, para Dercy Gonçalves.
Voltou para Recife e fundou o Teatro Popular do Nordeste e o Teatro de Arena, com peças de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, dentre outros. Trabalhou ao lado de José Carlos Cavalcanti Borges, Gastão de Holanda, Aldomar Conrado, Leda Alves e Capiba.
Representou-se “A
Mandrágora”, de Maquiavel, no Teatro do Parque, com 1200 lugares e somente seis
espectadores!
Depois Hermilo Borba Filho começou a trabalhar com encenações na linha de Brecht, mesclando-o com bumba-meu-boi, pastoril e outros folguedos do nordeste. Embora Dias Gomes, Osman Lins. Enfrentou o semi-profissionalismo, atores tinham outras ocupações para ganhar dinheiro. Em 1971, Recife tinha cerca de um milhão de habitantes, ao 0,5% ia ao teatro. O preço não importava. Nem o operário nem o estudante, ninguém quase se interessava por isso, Hermilo tentou até divulgar em escolas.
Através do SESI e do SESC fizemos convênios, mas os operários, que trabalhavam o dia inteiro, estranhavam o ingresso gratuito e só queria saber de futebol. O que salvou o Teatro Popular do Nordeste (TPN) foi o auxílio do Serviço Nacional do Teatro (SNT).
Ao trabalhar com o pastoril, Hermilo viu quanta semelhança havia com este o teatro de Calderón de La Barca, do Século de Ouro Espanhol. Para ele, nosso pastoril veio de linha do auto sacramental e caiu no profano porque o público começou a gostar. Como na Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, que começou a abrir concessões para atrair mais público. O velho do pastoril é o diabo das farsas medievais. Aos puristas que diziam que o folclore estava se degradando ao evoluir, Hermilo Borba Filho respondia que não: “O brinquedo é do povo, o povo faz dele o que bem quiser. Não são os intelectuais os donos do brinquedo. Vi um mamulengo em Surubim (PE) em que um personagem carregava uma miniatura de garrafa de Coca-Cola nas costas. É direito dele misturar Cristo com bumba-meu-boi, o que é que tem? O animal acompanhou Cristo na manjedoura.”
Hoje são poucos os espetáculos populares que sobreviveram como o Fandango, que conta as epopéias marinhas portuguesas. Eu não agüento, aquilo dura a noite toda. Não há quem agüente”.
Hermilo preferia algo mais picante, como os personagens de comédia dell’ arte e os de Moliére, que lembram o Dr. Pinico do bumba-meu-boi, que vem ressuscitar o bicho. “A origem é erudita”, dizia Hermilo. Hemilo Borba Filho renovou o teatro brasileiro, seu desprezo por nossas raízes folclóricas, como o bumba-meu-boi e o mamulengo. Filho de ateu tratou a religiosidade com respeito: “tenho de limpar terrenos e afastar ao máximo todas as tentações. É através da carne, sobretudo da libidinagem, que o demônio nos acompanha. Vade retro, Satanas! Não se brinca com Deus. O que tenho feito é encher a minha alma de carne. Todo dia é dia de conversão. Nem catolicismo ainda é meu deleite e não amor. Ontem ouvi um suflar de asas terrível que me deixou em pânico. Seria um anjo? Pensei. Mas os anjos não causam pavor. E de repente, sem que nada me levasse a esta conclusão, pensei: ‘É o demônio. Ouvi o bater de suas asas de anjo caído”.
Muito se falou sobre a identificação de Hermilo Borba Filho com o romancista norte-americano Henry Miller, embora as circunstâncias exteriores e históricas de ambos sejam bem diversas, há pontos de convergência na obra dos dois. Hermilo era filho de senhor de engenho em decadência e inspirou-se no povo de Palmares, sua terra, para compor parte de sua obra.
Algo em comum entre os dois autores: a compulsão sexual, o erotismo, envolto em alegria e humor, natural, como comer e defecar: Voyeurismo, masturbação, sexos anal e oral, incesto, experiências sadomasoquistas e homossexuais. Ambos louvaram o sexo, lutaram pela destruição de preconceitos antigos. Usaram o “palavrão” e foram libertários.
O envolvimento de Hermilo Borba Filho com o Movimento de Cultura Popular (MCP) junto com Paulo Freire e sua simpatia pelo Partido Comunista e a Igreja Progressista, trouxeram-lhe algumas perseguições, do mesmo modo que Henry Miller teve que responder a alguns processos por pornografia, por exemplo.
Miller não expressava o coletivo em suas obras, Hermilo buscou exprimir solidariedade e aproximação com seu povo.
Hermilo Borba Filho nasceu em 8/ 7/ 1917 no Engenho Verde, município de Palmares, na Zona da Mata de Pernambuco, filho de Hermilo Borba Carvalho e Irinéia Portela. Em 35 escreveu “A Felicidade”, sua 1ª peça. Em 41 o primeiro conto: “As Pernas Daquela Moça”. Escreveu e dirige as peças “Parentes da ocasião” e “O Presidente da República” (1943), “Círculo Encantado”, “Vidas Cruzadas” e “Electra no Circo (1944), “João Sem Terra” (1947), “O Vento do Mundo”, “Cabra Cabriola” (1948), “A Barca de Ouro” (1949), “Os Bailarinos” e diálogos para o filme “O Canto do Mar”, de Alberto Cavalcanti (1951), “Três Cavalheiros a Rigor” (1953), “As Moscas” (1960), “O Bom Samaritano” (1965), “O Cabo Fanfarrão”, “A Donzela Joana” (1966).
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da UFPE (1950), publicou os romances “Caminho da Solidão” (1957), “Sol das Almas (1964), “A Porteira do Mundo” (da Tetralogia “Um Cavalheiro da Segunda Decadência” – 1967). Publicou ainda estudos, contos e novelas.
Morreu em 2/ 06/ 76, no Recife, ao lado do seu grande amor, a pesquisadora e atriz Leda Alves.por Moisés Neto
Depois Hermilo Borba Filho começou a trabalhar com encenações na linha de Brecht, mesclando-o com bumba-meu-boi, pastoril e outros folguedos do nordeste. Embora Dias Gomes, Osman Lins. Enfrentou o semi-profissionalismo, atores tinham outras ocupações para ganhar dinheiro. Em 1971, Recife tinha cerca de um milhão de habitantes, ao 0,5% ia ao teatro. O preço não importava. Nem o operário nem o estudante, ninguém quase se interessava por isso, Hermilo tentou até divulgar em escolas.
Através do SESI e do SESC fizemos convênios, mas os operários, que trabalhavam o dia inteiro, estranhavam o ingresso gratuito e só queria saber de futebol. O que salvou o Teatro Popular do Nordeste (TPN) foi o auxílio do Serviço Nacional do Teatro (SNT).
Ao trabalhar com o pastoril, Hermilo viu quanta semelhança havia com este o teatro de Calderón de La Barca, do Século de Ouro Espanhol. Para ele, nosso pastoril veio de linha do auto sacramental e caiu no profano porque o público começou a gostar. Como na Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, que começou a abrir concessões para atrair mais público. O velho do pastoril é o diabo das farsas medievais. Aos puristas que diziam que o folclore estava se degradando ao evoluir, Hermilo Borba Filho respondia que não: “O brinquedo é do povo, o povo faz dele o que bem quiser. Não são os intelectuais os donos do brinquedo. Vi um mamulengo em Surubim (PE) em que um personagem carregava uma miniatura de garrafa de Coca-Cola nas costas. É direito dele misturar Cristo com bumba-meu-boi, o que é que tem? O animal acompanhou Cristo na manjedoura.”
Hoje são poucos os espetáculos populares que sobreviveram como o Fandango, que conta as epopéias marinhas portuguesas. Eu não agüento, aquilo dura a noite toda. Não há quem agüente”.
Hermilo preferia algo mais picante, como os personagens de comédia dell’ arte e os de Moliére, que lembram o Dr. Pinico do bumba-meu-boi, que vem ressuscitar o bicho. “A origem é erudita”, dizia Hermilo. Hemilo Borba Filho renovou o teatro brasileiro, seu desprezo por nossas raízes folclóricas, como o bumba-meu-boi e o mamulengo. Filho de ateu tratou a religiosidade com respeito: “tenho de limpar terrenos e afastar ao máximo todas as tentações. É através da carne, sobretudo da libidinagem, que o demônio nos acompanha. Vade retro, Satanas! Não se brinca com Deus. O que tenho feito é encher a minha alma de carne. Todo dia é dia de conversão. Nem catolicismo ainda é meu deleite e não amor. Ontem ouvi um suflar de asas terrível que me deixou em pânico. Seria um anjo? Pensei. Mas os anjos não causam pavor. E de repente, sem que nada me levasse a esta conclusão, pensei: ‘É o demônio. Ouvi o bater de suas asas de anjo caído”.
Muito se falou sobre a identificação de Hermilo Borba Filho com o romancista norte-americano Henry Miller, embora as circunstâncias exteriores e históricas de ambos sejam bem diversas, há pontos de convergência na obra dos dois. Hermilo era filho de senhor de engenho em decadência e inspirou-se no povo de Palmares, sua terra, para compor parte de sua obra.
Algo em comum entre os dois autores: a compulsão sexual, o erotismo, envolto em alegria e humor, natural, como comer e defecar: Voyeurismo, masturbação, sexos anal e oral, incesto, experiências sadomasoquistas e homossexuais. Ambos louvaram o sexo, lutaram pela destruição de preconceitos antigos. Usaram o “palavrão” e foram libertários.
O envolvimento de Hermilo Borba Filho com o Movimento de Cultura Popular (MCP) junto com Paulo Freire e sua simpatia pelo Partido Comunista e a Igreja Progressista, trouxeram-lhe algumas perseguições, do mesmo modo que Henry Miller teve que responder a alguns processos por pornografia, por exemplo.
Miller não expressava o coletivo em suas obras, Hermilo buscou exprimir solidariedade e aproximação com seu povo.
Hermilo Borba Filho nasceu em 8/ 7/ 1917 no Engenho Verde, município de Palmares, na Zona da Mata de Pernambuco, filho de Hermilo Borba Carvalho e Irinéia Portela. Em 35 escreveu “A Felicidade”, sua 1ª peça. Em 41 o primeiro conto: “As Pernas Daquela Moça”. Escreveu e dirige as peças “Parentes da ocasião” e “O Presidente da República” (1943), “Círculo Encantado”, “Vidas Cruzadas” e “Electra no Circo (1944), “João Sem Terra” (1947), “O Vento do Mundo”, “Cabra Cabriola” (1948), “A Barca de Ouro” (1949), “Os Bailarinos” e diálogos para o filme “O Canto do Mar”, de Alberto Cavalcanti (1951), “Três Cavalheiros a Rigor” (1953), “As Moscas” (1960), “O Bom Samaritano” (1965), “O Cabo Fanfarrão”, “A Donzela Joana” (1966).
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da UFPE (1950), publicou os romances “Caminho da Solidão” (1957), “Sol das Almas (1964), “A Porteira do Mundo” (da Tetralogia “Um Cavalheiro da Segunda Decadência” – 1967). Publicou ainda estudos, contos e novelas.
Morreu em 2/ 06/ 76, no Recife, ao lado do seu grande amor, a pesquisadora e atriz Leda Alves.por Moisés Neto
Jomard Muniz de Britto
Filho da pernambucana
Maria Celeste Amorim da Silva com o
paraibano José Muniz de Britto, Jomard Muniz de Brito (um hipertropicalista) é híbrido de nascença.Aos
70 anos tem produção regular. São
estéticas múltiplas e controversas. Contradições do Homem Brasileiro, Do
Modernismo à Bossa Nova e Vanguarda e
Retaguarda da Cultura Brasileira. Em 2007 lançou um livro de poemas (“O livro
dos 3”) em conjunto com dois poetas baianos, Fernando da Rocha Peres e João
Carlos Teixeira Gomes.
Professor universitário
poeta, ator, diretor, escritor, crítico de cinema e de música, cineasta, este
recifense nascido na rua Imperial, bairro de São José, em 1937, participou de
vários movimentos artísticos durante as décadas de 1960, 70 e 80, nas estéticas
pós-modernas. É um dos autores do Manifesto Tropicalista no Recife, junto com
Aristides Guimarães e Celso Marconi, foi levado pelo escritor José Rafael de Menezes a ser professor titular da UFPB em 1964 – um dia após o Golpe
Militar.
Jomard escreveu onze livros, entre poemas, ensaios e críticas, produziu 33 filmes e vídeos em Super 8, foi grande amigo de Glauber Rocha e mantém estreitos contatos com Caetano Veloso e Gilberto Gil. JMB gravou CD, está no MySpace e no Youtube. Distribui seus poemas como temas-problemas . Trabalha o conceito de Pop filosofia.
Jomard escreveu onze livros, entre poemas, ensaios e críticas, produziu 33 filmes e vídeos em Super 8, foi grande amigo de Glauber Rocha e mantém estreitos contatos com Caetano Veloso e Gilberto Gil. JMB gravou CD, está no MySpace e no Youtube. Distribui seus poemas como temas-problemas . Trabalha o conceito de Pop filosofia.
“O jogo das vanguardas é o jogo de méritos e
de maldições. A palavra vanguarda é muito controvertida. Eu não tenho bandeira
de vanguarda. Mas eu concordo com Jorge Mautner quando ele fala em
hipertropicalismo. Eu talvez tenha essa máscara que grudou na minha cara, e eu
gosto”.(JMB)
Jomard Muniz de Brito faz 70 anos. (Re)Vive os anos 70, com perdão do
trocadilho. Para analisar a poeticidade numa obra, como a de JMB, que rompe
fronteiras entre prosa e poesia e chegar à fonte de criação desta poiesis que cheia de contradições gerou contradicções (contradições do
falar/escrever jomardiano), você deve olhar além do ser e não ser mergulhado na
lógica dos paradoxos (um salto além da lógica binária).
A reflexão emotiva, presente já no seu primeiro livro
permeado de rigorosas intuições. As situações-limite geraram as tensões e
distensões criadoras. É obra permeada por filosofias da existência
(existencialismo às avessas?). São ambigüidades dialogando com as tensões, a
bricolagem, o pensamento selvagem, a crítica cultural, a crítica da cultura.
A poeticidade jomardiana
é mensagem política/ideológica. Jogo de
interpenetrações. Fricção por detrás das palavras/ construções sintáticas.
Abismo entre sentidos denotativo e conotativo. Democrática e dialética, esta
palavra/ obra Poesia moderna? Satírica? Filosófica? Claro enigma?
Pouca gente se arrisca a
classificar JMB. O imaginário e o simbólico são particularíssima experiência da
invenção de uma narrativa pessoal (quem escreve um poema concebe a si mesmo,
simultaneamente) O autor passeia pelo Tropicalismo, concretismo ou nada disso e
exercita a expansão e a democratização da experiência literária .
Esta difusão de formas poéticas de todos os
níveis, do grande épico-satírico à busca de uma sonoridade. Do poema hipertexto
cheio de links parodístico-histórico-filosóficos são marcas e podemos detectar
seus efeitos na cultura local. Seus reflexos atrativos e repelentes.
A maneira de JMB
representar em poeticidade a relação dos homens com o seu destino, com a vida,
discute temas/ problemas fundamentais de uma sociedade. O convencional versus o
experimental em Jomard, expõe a separação de um estado (ideal) de literatura,
que sempre foi a incensada pela cultura e a literatura produzida de modo menos
convencional (ruptura com a sintaxe, etc.) Observar nesta fricção os modos de
religação entre o homem e o seu universo, entre os homens e o local da cultura
(perdido), entre os homens e sua comunidade (Recife) leva-nos até a segunda
metade dos anos 60 quando JMB começou a publicar em livros a necessidade de um
espaço alternativo de onde se pudesse enunciar algum tipo de verdade que desse
conta deste desamparo dos sujeitos modernos, e que se estenderia nos anos 70,
80 e 90 do século XX e início do século XXI.
O corpo desta poesia surge na esteira de transformações sociais e subjetivas, como expressão, no campo da arte, da reflexão como meio de acesso à verdade.
O corpo desta poesia surge na esteira de transformações sociais e subjetivas, como expressão, no campo da arte, da reflexão como meio de acesso à verdade.
Suas relações solitárias
de sujeito com a verdade, tentam responder através da dúvida sistemática, como
os filósofos empiristas .
Podemos checar a vasta
transformação da sociedade recifense de 1964 ao final do século na
radicalização desta poeticidade
Mapear a obra poética
jomardiana é enlaçar-se com as contradições e coincidências entre a história
literária oficialesca e a construção simbólica de indivíduos particulares
vivendo experiências particulares em épocas e lugares particulares.È querer
decifrar/ compreender a falta de certezas universais e/ ou transcendentais numa
poética que coloca o indivíduo como centro de suas próprias referências. Uma
poeticidade impregnada de revoluções em enigmas contundentes.
A Academia está se empenhando em reflexões e conclusões possíveis sobre este “escreviver”. Situando-o no conjunto de expectativas formadas a partir da literatura passada; colocando em ação mecanismos de identificação Quais são os fundamentos desta literatura? No que consiste? Como ela opera, que efeitos produz - e até que ponto precisamos enxergá-la, para não corrermos o risco de pensar o intelectual/ poeta recifense como uma categoria universal abstrata ?
A Academia está se empenhando em reflexões e conclusões possíveis sobre este “escreviver”. Situando-o no conjunto de expectativas formadas a partir da literatura passada; colocando em ação mecanismos de identificação Quais são os fundamentos desta literatura? No que consiste? Como ela opera, que efeitos produz - e até que ponto precisamos enxergá-la, para não corrermos o risco de pensar o intelectual/ poeta recifense como uma categoria universal abstrata ?
JMB modifica radicalmente
a poética local e oferece sua representação para figuras destacadas da massa.
Os marginalizados aparecem em linguagem sincopada como reis, santos ou heróis,
e além de pessoas comuns, se destacam da massa ganhando uma história de vida
digna de ser relatada - a identificação do leitor funciona para
simultaneamente, 1º. legitimar a experiência e, 2º autorizar a diferença,
legitimando a experiência.
Jomard autoriza a diferença: e busca a adesão
dos seus leitores/ouvintes que por um motivo ou por outro não se ajustam
perfeitamente, nem à velha ordem decadente nem à nova política.
Jogando entre os pólos,
em contraposição às conveniências e aparências que regem o jogo social. Catando
misteriosos detalhes secretos sabendo que os detalhes da vida só adquirem
existência quando encontram palavras com que se expressar numa determinação
literária de poeticidade os anseios, desejos, sofrimentos e gozos.
Sua literatura é campo de
referências que se dirige ao sujeito/leitor a partir de um outro lugar,
diferente do lugar- comum dos discursos de autoridade . É campo de experiência
compartilhada de forte interpenetração imaginária, ao mesmo tempo em que
interpela diretamente o indivíduo em seu isolamento.Ruptura, apóstrofe, apelo
aos sujeitos mergulhados no vazio, na ausência de sentido, na ameaça de
aniquilamento e de diluição das identidades. Como diz Claude Lévi Strauss nos
ensaios "O feiticeiro e sua magia" e "A eficácia simbólica"
- ao descrever como o xamã opera algumas curas, manipulando símbolos e
inventando narrativas que forneçam ao doente ... "uma linguagem para
exprimir estados informuláveis". Partindo da constatação de que "o
informulável é a doença do pensamento", Strauss assim define a cura xamânica:
"é necessário que, por uma colaboração entre a tradição coletiva e a
invenção individual se elabore continuamente uma estrutura, isto é, um sistema
de oposições e correlações que integre todos os elementos de uma situação em
que feiticeiro, doente e público, representações e processos, encontrem seu
lugar".
É uma poeticidade atenta ao seu próprio destino e escolhas morais, e simultaneamente mais emancipada, relativamente mais livre para o escreviver.
É uma poeticidade atenta ao seu próprio destino e escolhas morais, e simultaneamente mais emancipada, relativamente mais livre para o escreviver.
Convocado a dar conta de
sua própria experiência subjetiva, produzida no encontro tenso entre
"vivências de diversidade e de ruptura" e outras tendências, JMB
articula o seu caminho por entre as frágeis malhas da rede de informações que
lhe chegam através de outros textos, (atentados poéticos!). Se não há nesta
lira uma garantia de verdade, há pelo menos a busca de interlocutores no meio
da incerteza.
É desta rede de
interlocuções que provêm as vozes de Jomard: da relação com o semelhante, com o
pequeno outro e sua condição de desamparo e de dúvida, que escreve para
interrogar a falência dos enunciados de verdade.
Textos em que a dispersão
e a fragmentação do eu encontram alguma unidade, e a vida, algum sentido e
questionam a impossibilidade de se estabelecer qualquer certeza sobre o sentido
da vida e do mundo. Cabe a esta poeticidade nomear nosso precário saber. E o
que podemos saber sobre as coisas é apenas aquilo que propomos a respeito
delas, denunciando que o Outro é obra nossa, incapaz de nos dar qualquer
garantia sobre a verdade e sabendo que a significação de uma palavra é seu uso
na linguagem contra a tirania do Um.
Sem ocupar um lugar de
autoridade e buscando a interlocução transformando poesia em divertimento
buscando a legitimação simbólica sem a pretensão a fundar uma exceção perversa.
Uma qualquer Recife
Uma qualquer Recife cidade sitiada
é a escuta PSI,
a escritura psiu de seus arquitetos da mais sutil
urbanidade ao redor dos favores
da SANTA CASA DE MISERICÓRDIA.
Restauram apenas fachadas em cores vivas,
reinventando a cidade-cartão-postal-global
em sua dignidade tão degradante, sufocada,
turismo mimético do Pelourinho e advertências.
Uma cidade, além das dúvidas e suspeições,
é o conjunto de seus buracos. Imanentes e
galácticos. Cartesianos e dionisíacos.
Gilbertianos por todos os séculos.
Uma qualquer Recife cidade sitiada
é a escuta PSI,
a escritura psiu de seus arquitetos da mais sutil
urbanidade ao redor dos favores
da SANTA CASA DE MISERICÓRDIA.
Restauram apenas fachadas em cores vivas,
reinventando a cidade-cartão-postal-global
em sua dignidade tão degradante, sufocada,
turismo mimético do Pelourinho e advertências.
Uma cidade, além das dúvidas e suspeições,
é o conjunto de seus buracos. Imanentes e
galácticos. Cartesianos e dionisíacos.
Gilbertianos por todos os séculos.
“O pensamento homogêneo, único, o politicamente correto, tudo isso vem do nosso capitalismo tardio e onipresente”, fala o homem que acumulou vários rótulos ao longo de sua existência: tropicalista, iconoclasta, agitador, maluco, marginal e até baiano. Tudo por causa de sua conhecida e íntima relação com figuras como Glauber Rocha e Caetano Veloso, entre outros.(Em entrevista ao Jornal do Commercio)
“Nós, ainda intelectuais, precisamos perder ou
dispensar tanta arrogância de salão ou de televisão. Confiar menos na potência
de cantos e cátedras. Suspender afãs de julgamento. Trapacear com as linguagens
estabelecidas. Cultivar a ironia socrática nos aforismos nietzscheanos. Cortes
epistemológicos arrebentando o núcleo das complexidades.” (Em
entrevista a revista Trópico)
“Amador, como um contra-burguês, tal diz Roland Barthes; e um amador, como um incompetente, tal diz o senso comum”, explica. “Comungo a anti-ambição de ser um cineasta profissional. Minha única atuação profissional foi lecionar” (Em entrevista a Folha de Pernambuco)
“Amador, como um contra-burguês, tal diz Roland Barthes; e um amador, como um incompetente, tal diz o senso comum”, explica. “Comungo a anti-ambição de ser um cineasta profissional. Minha única atuação profissional foi lecionar” (Em entrevista a Folha de Pernambuco)
Depoimento de JMB: “As pessoas estão muito preocupadas com o
mercado, com o sucesso e com a sobrevivência do mercado. Pra você entrar no
mercado tem um jogo, se você tem um amigo numa grande editora, aí você vai ser
editado, vai ser publicado. Se você mora no Rio e em São Paulo há mais
possibilidades de se entrar no circuito nacional do que se morando aqui. Estas
são relatividades, que é o relativismo, que é o cinismo total... se deve fazer
a análise concreta de situações concretas.
Não se vive impunemente no Recife, em João Pessoa ou em Natal, você tem que assumir isso, o ônus disso, por covardia ou por qualquer coisa ou por medo de não fazer sucesso numa cidade maior. E depois tem mais uma coisa que eu não gosto: é de assumir uma máscara de seriedade (risos) Isso eu aprendi com Sartre. Pra você ser um intelectual, ou ser um poeta, ou ser uma pessoa que tem trânsito na academia, na sociedade letrada, tem que ter uma postura de seriedade, tem que estar enquadrado, que é uma hipocrisia, ter de fazer um jogo de cortesia e eu aprendi com o Tropicalismo a me lixar pra estas coisas.”
Não se vive impunemente no Recife, em João Pessoa ou em Natal, você tem que assumir isso, o ônus disso, por covardia ou por qualquer coisa ou por medo de não fazer sucesso numa cidade maior. E depois tem mais uma coisa que eu não gosto: é de assumir uma máscara de seriedade (risos) Isso eu aprendi com Sartre. Pra você ser um intelectual, ou ser um poeta, ou ser uma pessoa que tem trânsito na academia, na sociedade letrada, tem que ter uma postura de seriedade, tem que estar enquadrado, que é uma hipocrisia, ter de fazer um jogo de cortesia e eu aprendi com o Tropicalismo a me lixar pra estas coisas.”
Trecho de carta de Glauber Rocha para Jomard:
“o que vai por aí neste distante Pernambuco do Recife? como agüentas a província brutalizada, a
lama do subdesenvolvimento, o feijão, o angu, as velhas lotações, as estradas
sujas, as ruas esburacadas, as moças sonhadoramente ansiosas na longínqua
maquillage, a brutalidade adolescente dos rapazes, os velhos latifundiários, o
arrivismo, os jovens poetas sinceramente dispostos a tudo salvar?”[Glauber Rocha.
Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997]
JMB, em entrevista a Carlos Adriano para a
revista eletrônica Trópico, explicou a sua desconstrução geográfica, em prol de
um Brasil não mais dividido entre Província e Metrópole: “João Pessoa de
repente Rio de Janeiro. Olinda barbaramente Paulicéia. Natal absurdamente
Londres desnorteada. Campina Grande desgovernada por Bráulio Tavares.”
“Jomard
Muniz de Britto e seus Atentados Poéticos”
(Ensaio de Moisés Neto Publicado na LeMangue)
Um atentado causa espanto,e quando se trata de poesia,ficamos
“atentos” às combinações de palavras.E quando o poeta é o recifense Jomard,
sabe-se que por aí vem bomba.
Pois bem,ele lançou
seu novo livro “Atentados Poéticos”
(editora Bagaço.354 páginas,mais um caderno de bricolagens. R$ 25) onde mais
uma vez mistura poesia e prosa(sua marca registrada),filosofia e vanguarda.
Um filme,um livro,uma
aula os versos de JMB são como ele
mesmo,uma pessoa com os olhos no próximo momento.Sempre provocando, pinotando,alvoroçando,elegantemente.
Em “Atentados Poéticos”
,o tumulto emocional cria uma atmosfera de tensão empurrando o leitor
freneticamente para o absurdo,para o limite entre consciente e
inconsciente,realidade e releitura/ ficção poética,política e sexo: “Que
quebrarei?/que mentiras devo sustentar?(...) sou outro Rimbaud ou qualquer
Sancho Pança?” .Há no livro referências a amigos ,ídolos e desafetos,que
aparecem na 1ª parte parafraseados,parodiados,apimentados.
O autor não dá muito
valor à forma.Seu conteúdo buliçoso é
expresso com uma certa musicalidade e
vem munido de uma certa retórica de centro-esquerda.Sua impassibilidade faz-nos
paradoxalmente ver a vida por tantos ângulos(inclusive o da dialética) sem que
haja necessariamente compromisso com nenhum.Nas suas “bricolagens”, vemos o
cineasta,que ele traz dentro de si,interrompido,no meio do jogo
erótico-existencialista.
Ele passeia como num
baile de máscaras entre o sujeito social,a situação histórica,o carnaval,a
fome,a cidade,as letras.É um discurso cheio de disfarces e desmascaramentos ,como numa corda
bamba entre o enigma e a obviedade.Não vai direto ao ponto:delicia-se em ficar
zumbindo ao redor: “Trapacear com a língua/ essa trapaça salutar,esquiva/ este
logro magnífico/ que permite ouvir a língua fora do poder (...)porque é no
interior da língua que a língua deve ser combatida,desviada”,diz,apossando-se
de Roland Barthes .
Ser ou
não ser servo do transitório,do surreal,como ele mesmo se define,é uma dúvida
que vai se imiscuindo por entre os textos inéditos e os requentados neste livro
cheio de imanências e transdependências
.São 4 partes:memórias roubadas(paráfrases,paródias,homenagens,citações)
,poeticidade em trânsito(crônicas), replicantes mitologias(que o perseguem e
são perseguidas por ele) e caderno de bricolagens(uma homenagem ao
poema-processo,desembocando em algo como o neon-processo,é o lado audiovisual de JMB,que por falta de grana
está meio parado)
Da parte 3 ,destacamos “O
Palhaço Degolado” (alusão/ paródia a um romance de Ariano Suassuna e ao
Regionalismo aburguesado de Gilberto Freyre) ,que já foi texto de um super 8 do
autor: “Muita fricção nas pedras e nas pedradas do Reino(...) sertanejos de ficção?/classe
média ou/Derrame do populismo?(...)brasões familiares(...TUDO pode
transformar-se em armorial(...)Sobrados e Mocambos,quem diria,armoriais”.
Eis a estética
anárquico-poética aos modos da Tropicália, à Chacrinha (clown/ apresentador de
programa de auditório).O que vemos são mitos arruinados, num texto onde
lingüística e fenômeno cultural se
entrelaçam numa recusa à história totalista. JMB tanto se apega ao cotidiano,à
vida,como também à Academia,quando recria
Alan Lightman,escritor inglês,os irmãos Campos,Francisco Bandeira de
Melo,Heráclito de Éfeso,que o persegue com os pré-socráticos,Ítalo Calvino,”por
sua melancolia e humor”, João Denys,Luiz Costa Lima:”O real não é nem o que se
põe diante de mim/ e exige uma linguagem que o torne/ transparente,/ nem tão
pouco o que se embaralha/ em uma cadeia deslizante de significantes,/de
promessas de sentido sempre autodestruídas./O real é isso e aquilo:desafios da
MÌMESIS:/algo que está aí e algo que se constrói./ Imitação como
invenção(...)transferência (...) interminabilidade/ do sentido(...)assim como
há amores irremediáveis,/há pesadelos inesquecíveis./E leituras intermináveis
como/ desafios do pensar pensante”. Outros autores que aparecem “recriados”,
são: o escritor Mário Hélio(editor da revista “Continente”) “num recife de joycelands
sem confins(...)heliocêntricos(...)que
escondexpõe” crianças recém “fenascidas rancorais”.JMB apóia-se ainda no
filósofo e fenomenólogo alemão Max Scheler,em Merceau-Ponty,filósofo
francês,Norbert Elias,pensador alemão que fugiu do Nazismo para a
Inglaterra,Peter Burke,historiador,Platão,Roberto Mota,antropólogo,Roger
Chartier,Barthes e Simone Weil,filósofa místico-marxista que trabalhou como
operária para sentir na pele esta barra.
O livro encera a 3ª
parte,“Replicantes Mitologias”, com o poema “Oração (talvez) Pagã”(p-350)
dedicado aos poetas de todas as contemporaneidades :”ó poetas sempre
desejantes:/rezem pelas meninas e meninos/das ruas,morros e alagados/porque
eles não são/mangue boys(...)de um sonho de outra noite/de verão ou
infernolento(...)arredores da /Casa Grande de Detenção/das culturas
híbridas(...)Para todos os estudos culturais/o
anárquico-super-construtivismo(...)berrem pelas neo-antropofagias/rezem e
roguem(...)supliquem(...)poetas da idade mídia (...)por todos os
pastiches(...)não tenham crenças em cosmogonias/cristais e
crisantempos(...)gozem pelas infâmias(...) supliciem/não digam amém(...)encarem
ou desmascarem/ a finitude do verbo orar”.
E começa o “Caderno de
Bricolagens”(4ª parte do livro):Portinari,sensualidade,classicismo,romantismo,sexo,religião,a
bunda de Rodrigo Pavanello,a morte,Carmen Miranda,um pênis e uma dama européia
coberta de jóias e maquiada,o crânio de Yorick e muito mais,numa espécie de
clipe gráfico, que não dá crédito aos originais.
E daí?
Jomard é o observador de
uma cidade adormecida e quente,vibrando entre a apatia e o sobressalto,sem
entender o que há de bom (nuance de
vício e refinamento da vida)sob a última luz da tarde:uma maçã no escuro-Recife.Provocante,assaltante,deglutindo,sufocando,sugando,pois
não tem jugular de donzela.
Releituras, reis e
palhaços degolados,sem dengos nem lamentos: pop filosofia,é isso?
“Eu ainda não vi o
mundo.Mas,de uma coisa eu estou certo:ele não começa no Recife”,diz nosso
filósofo-autor,revertendo Cícero Dias.
César Leal
“Minha Amante em
Leipzig”(247 páginas.Editora Calibán.RJ,2002.R$ 25),primeiro romance do poeta
cearense César Leal,78 anos,tem um quê
de almanaque literário e outro tanto de exaltação à verdadeira Literatura.
Conhecido por seu formalismo, o autor lançou mão de um
subtítulo , “Ensaios sobre as Artes,as Armas e o Amor”,para rechear sua
narrativa com citações,umas bens conhecidas e outras meio estapafúrdias,sobre
clássicos,entre os quais a Bíblia.Sua obsessão pela “Divina Comédia” de
Dante,chega a ser irritante.
Não se pode falar
propriamente de um enredo,e sim de uma
seqüência mais ou menos empolgante de ações, neste novo livro de César.
Um jovem estudante de
direito,nosso narrador sem nome,vindo de Frankfurt,está em Leipzig para
concluir se curso.Lá,torna-se amante de uma prussiana,a senhora von
Hardenberg,inteligentíssima,mulher do seu orientador.
Mal amada pelo marido(que
já tinha uma amante,a bela secretária cracoviana,Isolda),esta ruiva de 29 anos
entrega-se lúbrica ao jovem estudante quase dez anos mais moço.Os encontros
“literários” entre os dois ,seriam narrados pelo jovem, anos depois e
encontrada alguns séculos adiante por...César Leal,que teria comprado (por 5
mil marcos) e “traduzido” o manuscrito e
o incinerado a seguir.Um recurso digno
de um poeta romântico,que não é bem a linha de Leal.Tudo isso com o intuito de
nos dar uma ligeira sensação que se trata de um fato real.
A Alemanha foi
berço primeiro do Romantismo que saiu dali às pressas para Paris e se espalhou pelo mundo de forma contagiante na virada do
século XVIII para o XIX e nossa história
se passa justamente na Alemanha pré –romântica,Goethe não é citado,seu
“Werther” ainda não tinha vindo à luz.Leal não mede esforços em exaltar a
Germânia,falando inclusive em suástica,superioridade racial e que nunca
viu um “ vira-lata vencer Pastor Alemão”.
Alguns dizem que César é
mais festejado no resto do Brasil do que em Pernambuco,seu lar.Mas a verdade
que o criador do mestrado em literatura da UFPE,um dos mais respeitados
do país,é muito querido e tem uma obra no mínimo notável.Quis agora
aventurar-se pelos caminhos do romance(ensaístico),diz que tal trabalhão
terminou por remoçá-lo e injetar em seu espírito juventude e altivez.Uma
espécie de vitória da cultura sobre a natureza,ou pelo menos uma tentativa.
Ele lançou mão de
conhecidas técnicas narrativas,é óbvio,mas dificilmente atingirá um leitor que
não seja um estudioso das Letras.
Há excesso de informações
e os personagens não têm profundidade alguma.São como prateleiras que guardam
livros.Mesmo os dois amantes só transmitem alguma emoção no final da
narrativa,quando nosso “herói”
narrador,num sonho,encontra-se com o espírito de sua amada no momento em que
ela é arrebatada para os céus por uma
águia (cujas asas mediam 17 metros de envergadura de uma ponta a
outra),”enquanto um relâmpago iluminou o espaço,e a nuvem balançou,como se
fosse uma enorme montanha celeste,ou a própria lua a cair no oceano”.
César é um mestre em imagens
poéticas e podemos saboreá-las ao longo desta narrativa.
No lançamento do livro em
março de 2002,no então Espaço Cultural Bandepe (Recife),o autor
queixava-se dos erros da edição e sorria
das passagens eróticas contidas no volume.Mas a narrativa lembra uma aula de
literatura.O único eixo que une os
encontros sexuais da dupla central é
cérebro da prussiana a esparramar-se por todo lado,destruindo qualquer
verossimilhança com seu tempo e sua idade.Dificilmente aos 29,uma mulher teria
tamanho conhecimento,principalmente sendo tão bela e atirada.O que imediatamente me faz pensar
que sendo César um poeta,estaria querendo nos inserir em mais um jogo de
metáforas .Esta “amante”,seria na verdade ou a Literatura,as “artes” ,ou quem
sabe a cultura alemã,recoberta pelas carnes de uma prussiana.E sua morte,seria um início de uma vida
“prática”,que o até então estudante/narrador,iniciaria (dali em diante).
São mais de 200
personagens (históricas e fictícias) numa colagem que às vezes força a barra em
demasia:Jesus ,por exemplo,é mostrado como sendo descendente de alemão.Maria
teria feito sexo com um soldado germânico voluntário,que serviu ao exército de
Roma.O marido dela,José, é apontado,segundo uma vertente da
narrativa,tipo “histórias populares da
Alemanha”,como “um carpinteiro impotente”.Os gregos e os ingleses segundo o
texto,também descenderiam dos alemães(germânicos).
Todas essas informações
são transmitidas pelos personagens ,na maior parte das vezes,enquanto estão
fazendo sexo ,“a suprema arte concedida pelos deuses ao gênero
humano(...)trepar com arte,uma das belas-artes que não deve ser exposta em
museus(...) a paixão a arder em brasas nos abismos das nossas almas sem
preconceitos éticos(...)um ato sexual vigoroso”.
Assim refere-se o
narrador à sua relação com a mulher do seu professor/orientador.
“Os bastardos são
formados de esperma abundante e forte”,diferentes dos “imbecis gerados numa
cama insípida,por um casal cansado e aborrecido,fodendo sem prazer,durante um
cochilo que geralmente anuncia um entediante despertar”.
O narrador tinha 19 anos
ao iniciar as tais “aventuras”,que incluem uma animada conversa com ninguém
menos que Jean Jacques Rousseau .
A religião católica é
desancada pelo espírito luterano/calvinista.E o que vemos são personagens como Nassau
e Padre Antônio Vieira a vislumbrar numa Olinda(!)holandesa,um Quinto
Império(Nassau e seu plano imperialista).São conversas enquanto o narrador
vagueia no “golfo” dos seios da amante,alcançando seus “mamilos eretos”,e
devaneando sobre os tercetos de Dante.Alimentando-se bem,pois “os alimentos são
a fonte da força espiritual (...)determinam também a força psíquica capaz de
alterar o nosso humor,produzir grandes pensamentos,enriquecer a linguagem.A
falta de alimento provoca tristeza”.
O narrador também é poeta
e enxerta seus textos à narrativa,e também de outros autores como Nassau e
Jorge de Albuquerque Coelho (1º governador de Pernambuco),aquele que
cedeu seu cavalo a Dom Sebastião na última batalha do mítico rei.
Os capítulos são curtos e
no meio de uma invejável erudição encontramos também frase s como: “rasga-me
não penses em nada agora,empurra,mais...mais...mais!...Entra assim..Entra
inteiro,estou go-zan-do,aperta-me, goza bem dentro!”,como diz a senhora von
Hardenberg durante a cópula com seu jovem amante a discutir sobre gêneros
literários.Tudo isso numa Alemanha,onde apesar do frio,voa um beija-flor,que
busca arrancar néctar de um arranjo floral pintado num quadro na casa daquela
senhora.
Raimundo Carrero
1.
SOMBRA SEVERA:
Publicado em 1986 (Editora José Olympio) , o
romance traz o estilo de Carrero, este pernambucano da cidade de Salgueiro,
.estampado por todas as páginas :
- A ANGÚSTIA DIANTE DA
INCOMUNICABILIDADE
- O ESTRANHAMENTO DIANTE DO QUE É
SIMPLES E COMUM
- IMPOSSIBILIDADE DE AMAR COMPLETAMENTE
- ÓDIO POR NÃO SER COMPREENDIDO
- A QUESTÃO DA FÉ
- AS ARBITRARIEDADES DO PODER
- ABORDAGEM PSICOLÓGICA
- O HOMEM DO CAMPO
- A CIDADE PROBLEMATIZADA.
- A
JUSTIÇA SOCIAL
-
Num dos seus livros encontramos a seguinte
epígrafe: "Intuitivamente eu me agarro ao abismo" (Murilo Mendes). Existe
um certo fascínio na obra de Carrero em
retratar a decadência humana em sua busca de esperança. A desgraça psíquica
afeta os personagens, que movidos por seus fantasmas interiores, agem, às
vezes, como irracionais.
Três personagens dominam a narrativa(3ª
pessoa) de "Sombra Severa" :
JUDAS -
Irmão mais moço de Abel. Prepara um caixão e pede que o irmão se finja
de morto enquanto ele" despista"
seus perseguidores, na verdade Abel odeia o irmão e vai terminar por
esfaqueá-lo, dizer que ele morreu num acidente, casar com a mulher que o irmão
raptara( Dina).
ABEL -
É perseguido pelos irmãos da mulher que ama. Aceita fingir-se de morto no caixão. Enquanto
isso Judas aproveita para violentar sua mulher
, dentro da capela, na fazenda JATI, de propriedade de ambos.
DINA - Filha de Sara e Adão, irmã de
Jordão( Carrero adora nomes bíblicos), Depois de casada com Judas, assume a
identidade do seu amado assassinado, Abel, criando inclusive um clima de
incesto.
A inveja e o fratricídio permeiam esta versão da história de Caim e
Abel. Judas é obscurecido pela sombra do irmão , Abel, o "bom", que
não o deixará em paz nem depois de morto, já que reaparece na figura de Dina
travestida. Merece destaque a fúria exposta pelo narrador quando descreve a
morte do carneiro que Abel ganhara do padrinho
e Que Judas morrendo de inveja esfaqueia e queima o bicho.
Há algo de mórbido em
Raimundo Carrero. Algo de "casmurro"
em vários de seus personagens. Quase não há diálogo, o discurso indireto
apossa-se da trama conduzindo a juízos sobre :
DEUS - (página ll4) "...era um ser incrível cercado de
solidão- a solidão dos abandonados da sorte, dos miseráveis que estendem latas
vazias pelas ruas, das mulheres que, enlouquecidas andam sujas pelas estradas.
A solidão do esquecimento completo e absoluto".
AMOR - " O amor é a inveja do outro: ama-se para
roubar do outro a parte que lhe falta" (P- 56) .
No final, como numa
imensa alegoria, um bando de cães famintos invadem a casa de Dina e Judas, ela
os afasta. A seguir vem a metamorfose definitiva de Dina em Abel, de quem ela
assume os trajes, o corte de cabelo e ...a identidade. Judas tranca-se no
quarto e Dina (Abel?) encara a luz do sol.
2.A DUPLA FACE DO BARALHO
Esta novela
de Carrero é ambientada em Santo Antônio do Salgueiro (Salgueiro, cidade
pernambucana onde nasceu) , onde o Comissário
Felix Gurgel vive e narra , de forma sombria, a sua existência:
"Estou aqui sentado na cadeira de balanço em frente à minha casa nesta
cidade Santo Antônio do Salgueiro, esperando a morte chegar".
Regenerar-se, refazer a vida (como Paulo
Honório, de "São Bernardo", ou Bentinho de "Dom Casmurro",
com quem Gurgel mantém semelhanças), são
as metas do narrador que de carcereiro
passou a comissário: "Quem entrar
aqui e disser que não apanhou, volta e apanha". Sentia-se alegre em ser da
polícia e decidir a liberdade dos outros. Humilha jovens idealistas, inclusive
um que no futuro seria prefeito e teria Gurgel como subalterno.
Casos curiosos permeiam esta narrativa:
Gurgel recebe um homem que traz a esposa amarrada pelo pescoço e pede "um
atestado" , pois sabe que a mulher o traiu. Gurgel prende-a, e na hora de
espancá-la, torna-se...seu amante! Convive com um enteado, Camilo, a quem trata
como filho. Em seu sadismo mata barbaramente os pássaros do rapaz(símbolos da
vida e harmonia plena).
De esquerdista a cigano, Carrero usa uma
linguagem simples. Seu mundo é de violência, de individualismo. Seus
personagens trazem algo selvagem em suas relações sadomasoquistas.
Esta novela foi escrita na época do fim da
URSS e da queda do Muro de Berlim.
Carrero, em sonhos, previu a própria morte.
DADOS BIOGRÁFICOS: Nascido
em 20 de dezembro de 1947, é jornalista, ficcionista, bastante supersticioso e
temente a Deus. Começou a escrever ainda como aluno interno no colégio Salesiano do Recife. Em seus
escritos objetiva aprofundar temas eternos como "liberdade, igualdade e
justiça".
3.O SENHOR DOS SONHOS (ROMANCE DE 1986)
"O caminho
da vida pode ser o da liberdade, porém
nos extraviamos"
O velho
Domingos de Oliveira Olímpio (protagonista)
misto de melancólico e irônico, humilde sorridente, amante da vida e dos
animais nunca reclamava de nada. Em Salgueiro, onde morava luta contra a
miséria e a injustiça sacrifica-se pelos oprimidos. Por causa de um porco que ia ser sacrificado,
apanha de um sujeito forte: "Como é possível estar indiferente diante da
dilaceração e da tortura?" . Alegoria sobre a maldade dos homens que têm o
poder de fazer o que querem, enquanto os miseráveis são como "restos
humanos que se amontoam em ossos, sangue, músculos e nervos, insistindo em
viver."
Na eleição para prefeito, Venâncio, irmão
mais novo do então prefeito (Anselmo Cruz) representa a continuidade, e a
oposição é o cego Tomé da farmácia. Anselmo não cuida bem dos velhos, enquanto
Domingos , desafiando o poder, luta para construir um abrigo para velhos.
É +perseguido, tem a casa destruída,
procura advogado, mas contra o Poder nada consegue. É acusado de instigar uma
revolução e de ser comunista:" (...) o réu está construindo uma casa em
desrespeito às leis municipais para provocar antipatia e reunir adeptos para a
luta contra o poder constituído e contra a polícia" (P-79). Preso, após
muita tortura , é solto , volta para sua
casa destruída.
O cego Tomé aproveitou a confusão e vence as
eleições e muda seu discurso popular.
Domingos percebe que o cego Tomé era a
continuação dos governos anteriores e decide continuar a peleja: "(...)
fechou os olhos, entre os destroços, e confessou a si mesmo que a luta ia
recomeçar."
A Geração 65
O termo
Geração, principalmente no Brasil, é polêmico embora críticos e historiadores
usem essa repartição em gerações com finalidade didática para sistematização
dos estudos literários - históricos - estéticos. Geração 65 é um termo que agrega escritores reunidos
originalmente em Jaboatão, Pernambuco, no ano de 1964. O termo foi cunhado por Tadeu Rocha em um breve
artigo no jornal Diário de Pernambuco. A “Geração” é
formada, dentre outros, por exemplo , Maximiano Campos, Alberto da Cunha
Melo, Lucila Nogueira, Celina de Holanda, Jaci Bezerra, Marcus Accioly, Janice Japiassu, Ângelo
Monteiro, José Rodrigues
de Paiva, José Maria
Rodrigues, Marco Pólo, José Rodrigues Paiva, Terêza Tenório, Sérgio Moacir de
Albuquerque, Paulo Gustavo, Raimundo Carrero.Forma-se
em plena ditadura militar e no auge da estética do concretismo, pelo qual ela
não se deixou afetar muito.Houve boa recepção na mídia, foi marco de
resistência.Seguem alguns depoimentos sobre a Geração 65: “enquanto
trabalhadores intelectuais, éramos crentes, em primeiro lugar, em que
concepções ideológicas, religiosas, políticas eram bem vindas, eram respeitadas
e mesmo desejadas, mas eram secundárias à beleza e à verdade. e esse traço é
talvez a principal razão do pluralismo político ideológico 'stricto sensu' de
todos que integram a Geração”.(Roberto
Aguiar). “Não estávamos entre aqueles que ainda classificam os seres humanos em
nobres e plebeus, prática e modo de pensar tão persistente neste Brasil tão
oligárquico e pré-iluminista, principalmente entre os nordestinos ciosos de
nomes de família. E é por isso, por sermos povo, que, na nossa arte, o povo
nunca foi visto nem tratado como algo exótico, pitoresco e engraçado” (Sebastião Vila Nova). “O fenômeno de
surgimento da Geração 65, pelas mãos de César Leal, foi um paradoxo histórico
de caráter democrático. No momento em que as oligarquias uniam-se aos militares
para interromper todo um processo que visava a uma maior distribuição de renda
no País, não foram os filhos dessas oligarquias os contemplados com espaço nos
jornais e na UFPE. Mas o paradoxo é aparente. 64 não foi 68, quando a ditadura
tirou a máscara e botou o capuz. O Brasil é muito grande e eles precisaram de
quatro anos para sufocar, mesmo, o que havia de melhor na cultura brasileira”.
(Alberto da Cunha Melo).
Quando
o Grupo de Jaboatão — Alberto da Cunha Melo, Domingos Alexandre, Jaci Bezerra e
José Luís de Almeida Melo — aportou nas páginas do Diário de Pernambuco (1966),
sob a entusiástica tutela do grande poeta e crítico brasileiro César Leal,
outros escritores já haviam merecido a acolhida do Mestre. Como na formação de
uma onda que precisa de dois fluxos para se formar — o impulso de retorno e o
de chegada — estes se somariam a um processo aglutinador contínuo de
convivência e produção literária que desaguava também nas páginas mimeografadas
das antologias de Elói Editor (1967). São essas publicações recebidas com
incomum euforia, pela crítica pernambucana e pelo público em geral, que
levariam o geógrafo e historiador Tadeu Rocha a registrar o aparecimento da
" mais nova geração literária da metrópole do Nordeste", e a nomeou
de Geração 65. O IMC presta também, nestas páginas, uma homenagem à
sensibilidade desses intelectuais, somando a esse trio o exemplo maior de
convivência fraterna, com todos da Geração 65, que foi a grande poetisa
pernambucana Celina de Holanda. Antônio Campos. As reuniões se davam em
locais como o extinto Departamento de Extensão Cultural da UFPE, Fundação Joaquim
Nabuco, Bar Savoy, Livro 7 e outros pontos da boemia e de efervescência
ideológica – debatia-se a produção literária nacional e local e teciam-se
críticas a estética sulista. César Leal, o líder natural, cujo marco inicial
foi dado nas páginas do Diário de Pernambuco, com a publicação dos primeiros
poemas em 1966. Destacamos aqui a obra de Alberto da Cunha Melo. (Jaboatão –
PE, 1942 - 2007), poeta, editor, sociólogo, jornalista. Participou da geração
65 e foi um dos fundadores da Edição Pirata. BIBL.: Círculo Cósmico. 1966;
Oração pelo poema. 1969 ; Noticiário. 1979 ; Yacala, 1999 .
Lucila
Nogueira
(Ensaio publicado na REVISTA
ENCONTRO (ano 17. Nº 17. 2001) do GABINETE PORTUGUÊS de LEITURA em PERNAMBUCO e na Revista
eletrônica LeMangue)
Lucila Nogueira nasceu no
Rio de Janeiro em 30 de março de 1950. Pequena ainda,veio para o Recife,onde
estudou e formou-se em Direito.Cursou
mestrados dessa ciência,como também o de Antropologia.Foi promotora pública e
exerceu outros cargos ligados à sua profissão.Desde jovem dedicou-se às
artes:piano,violão,acordeom e principalmente literatura,sua fonte de testemunho
no mundo.
Em
1978 publicou o seu livro de estréia: Almenara
pela Civilização Brasileira. Livro cheio
de uma poesia em que o amor,a
preocupação com o social e com os temas transcendentes do espírito,chegando a
atingir o plano do metafísico,se aliam a um verso caudaloso e forte,de
envolvente originalidade.A autora sonha,põe-se ao lado dos mais fracos e
oprimidos e deslinda os mistérios do amor.É Lucila a consumir-se em poesia: “Eis-me aqui/sorvedouro estelar lúcido e
breve.//Corrosiva alegria(...)barro aceso e convulso sob a neve(...)revolvida,torcida,esbraseada//labareda
incessante que se atreve/mas que a abismos se sabe condenada” (em “Presença”).
Veio depois,pela mesma
editora, o segundo livro: “Peito
Aberto”(83)Um certo despojamento expressional e os acentuados
aspectos formais,marcam esses “primeiros”
poemas que,também,deflagram um clima uma atitude de amor e revolta.Como
no poema “Na Morte do Colega Pedro
Jorge” :
“Sozinha agora as filhas acalenta/e ao pó tu já regressas sob o
mármore./Tanta sabedoria inventa o mundo/-como escapar do mundo ninguém
sabe.//Sozinha agora as filhas acalenta/e elas inda te esperam a cada
tarde.../Só uma pena intimida os assassinos:/explicar tua ausência a essas
meninas”.
Nesses poemas
pressentimos a força poética que Lucila
alimentaria: “Atravessar o fogo
ternamente/o corpo azul cercado pelas brasas/em cada poro o ferro
incandescente/tendo no olhar a exaltação das águias //melhor que ser fantasma
de si mesmo/besta na sombra,ombro recurvado /num desespero de albatroz
vencido/por ambições terrenas e fugazes”.
“Desde
o princípio o mundo era pequeno/e o caminho da escola muito grande/andava a
pasta a farda e no recreio/sonhava raptada por ciganos//dançando na fogueira a
saia em leque/a estrada o carro alegre a
caravana//desde o princípio o mar era sem termo/nas mãos as linhas soltas do
destino/e no sapato escuro os remoinhos/acesos para sempre no meu sangue”(em “Infância”).
“Meu
pai morreu na tarde de um domingo(...)partiu da enfermaria sem
saída(...)queimei todas as velas nessa morte(...)abrindo em minha carne uma
outra sorte”.
Vieram seus outros livros: “A
Dama de Alicante”.Neste livro Lucila dedicou-se à recriação mítica e simbólica
de si mesma “associada à memória proustiana que emerge de poema e que entre
passado e presente faz ressurgir a infância,o amor,o sonho,a vida diluídos em
mescla de sombra e luz numa realidade (ou irrealidade) mágica.Fusão lírica de
elementos díspares ,tom personalíssimo,sem autobiografismo,expondo sentimentos
e emoções universalizando-os,sem ter que,necessariamente,os assinar como
exclusividades suas.”,disse José Rodrigues Paiva em ensaio sobre o
livro.
“Sei me vestir de tola,se
preciso/como essa antiga dama de Alicante/inda que ao fim só reste o que eu
ensino/cama-de-gato que aprendi criança.//Sei me cobrir de frágil,de
improviso/sob o furor de um cavaleiro andante/e as chaves da cidade
conduzindo/pedir que permaneça por encanto.//Filtros de amor,doce paixão de
abismo/navegaram meu olhar com esta dama/alegre que,misteriosamente/um dia
suicidou-se em Alicante.”
Já em “Quasar”(87)Lucila nos dá o
a medida do nível já alcançado na construção de sua obra poética. “Equilíbrio na estrutura,adequação na
linguagem ,tão rica de significados e sugestões.Ao dom de prever que, na
antiguidade clássica,era atribuído aos poetas,acrescenta a autora,pelo milagre
da integração cósmica,o dever de dar testemunho,antes que o fogo nuclear instale
o caos”,disse Waldemar Lopes.
“Formalmente bem construído,mas
o que lhe dará o fermento da perenidade é essa dor humana,esse sonho
traído,esse vôo alucinante.Em `Quasar´ é o destino do Homem que lhe ensombrece
os olhos”,sugeriu Potyguar Mattos.
“Quasar” já foi chamado de “um longo poema ecológico”.
É a vez de “Livro do Desencanto”: o cotidiano como principal assunto,num
tom instantâneo e confidencial por meio
de versos simples e diretos,algumas vezes irônicos e invariavelmente
melancólicos.Construção lapidar do poema convergindo para o clímax no último
verso,como ápice de vertiginosas obsessões: “O corpo é o caminho da virtude/e a
loucura da alma faz sentido”; “as víboras só cruzam com as víboras/e os
pássaros se entendem com os pássaros”; “no mundo tudo é palco e personagem/com
máscara não há o que se discutir”; “faz de conta que o verso é como um rio/apagando os insultos de tua
face”.
Em “Imilce”,poema para quatro vozes: um discurso íntimo de uma família
marcada historicamente pela grandeza,pela traição de que foi vítima o seu
herói,figura maior da antiguidade,e pela
derrota que os atirou para o lixo da História depois de Aníbal ter
derrotado Roma.
A mulher de Aníbal enlouquecida,a dramaticidade da paixão que os uniu. “A atualidade do drama de Imilce e Aníbal é
garantida pela intemporalidade dos
sentimentos representados e, ainda, pela focalização ideológica(a sua luta é
vista como um combate contra a hegemonia
imperial,a globalização romana,antepassado claro da pax americana)”. Acentuou Francisco
Soares(poeta,crítico e Professor de Literatura da Universidade de Évora.
No livro “Ilaiana” –Enigma de Elche, vemos a confirmação existencial e
material de uma imagem nominada em
sonho.Durante o percurso concreto e geográfico dessa realidade sonhada vão
emergindo a saudade mítica e o referencial histórico-onírico de uma arqueologia
étnica de alma.É o sonho em sua estrutura metafórica,o enigma proposto.A Dama
de Elche é um monumento.Numa visão nostálgica,uma noção utópica vai então sendo
evocada em suas variantes de identidade cultural num périplo fantástico onde
uma Deusa Feminina faz valer a sua voz imemorial,sua lei poética ecoada
milenarmente. “Um livro de emblemas
produzidos como antídoto ao estigma de
banalidade”,sugere a autora.
Em “Ainadamar”,publicado pela Oficina do Livro,Lucila levanta sua voz: “Ouro americano para as guerras/ o ouro
americanos para as dívidas/ tantos anos de lutas e guerrilhas /e canhões e
cabrestos e caudilhos//esta virgem de prata é insolente/ seu brilho é um
ultraje ao povo índio/ tão puro e ingênuo na floresta/ assassinado no
colonialismo”.
Nossa poeta dedicou-se também à tradução de poesia,tendo alguns volumes
inéditos de poemas de Emily Dickinson,Paul Éluard,entre outros.
Descendente de
portugueses e espanhóis,sua poesia bem encarna o sonho romântico do latino,a
revolta e a esperança das raças do Novo Mundo.
Poemas são como castelos
de areia que alguns destroem/ constroem
à beira-mar deste oceano chamado realidade.Em
praias calculadas ou selvagens sob a égide de uma abóbada avermelhada,mistura
de crepúsculo e aurora.Aos que lêem ou ouvem tais poemas ,resta a imaginação
para recriá-los nos próprios
moldes,adaptando-os de acordo com suas
situações pessoais(ou coletivas).
A construção do “castelo”
de Lucila Nogueira traz uma inegável influência mediterrânea.Suas mulheres são
“despachadas”,atravessam barreiras e , poderíamos cruzar mais algumas
fronteiras, dizer que as mulheres sugeridas por Lucila (em seus textos) lembram
ancestrais Valkirias ,prisioneiras de um estranho destino.
Suas palavras são ornamentais pedras de transparência
multicor,sobre um metal antigo,ou um negro veludo de textura indefinível.
Poesia vem do grego poíesis
(ação de fazer,criar,alguma coisa).E é tema dos mais controversos nos estudos
da literatura.Platão e Aristóteles bem o disseram.Quando tratamos então de
separar poesia de prosa,o trabalho redobra,alucina:os domínios mesclam-se.
II
Em seu novo livro, “AMAYA”(102
páginas.Editora Bagaço,Recife), Lucila Nogueira quebrou dogmas mais uma vez.
Investindo numa linha
intimista, investiga a alma humana e
os mistérios femininos.
Na tentativa de
redimensionar as palavras, a poeta tende a uma sintaxe que lhe é peculiar.
Pontos,vírgulas e
concordância vão se encaixando pouco a pouco no seu conceito de expressão
poética. Atreve-se.
Sua subjetividade
sobrepõe-se num xadrez transcontinental
que alterna cálculo e loucura.Iluminando.Plasmando.Catalisando essa fragmentada
visão que temos da estrada terrestre rumo ao cosmo.
Se confrontarmos poesia e
prosa neste novo livro de Lucila,e quisermos traçar parâmetros que aprisionem
gêneros vamos nos deparar com o verso,que de
modo algum pertence só a poesia, e com o parágrafo,que também não é exclusividade da prosa.(há verso
sem poesia e poesia sem verso).
O conteúdo:eis a chave
das portas que une prosa e
verso. Na poesia de Lucila,o jogo de metáforas,exposto dramaticamente
evidencia uma mulher cujas raízes estão fincadas em terreno ambíguo.
Sua complexidade é prato
cheio para manuais literários.Os motivos histórico-geográficos e o
lirismo intenso parecem encontrar o ponto de ebulição .Como no poema “Canção das Torres do Oeste”: “Vi na
Catoira /o teu drakkar/Tuas asas de viking(...) vai meu barco de vidro/ a te
buscar/Inda te espero em Pontevedra”. Ou em
“Soída” (sim,seus títulos continuam enigmáticos): “Barco de couro /sobre
as rias/um escudo de espelhos/sob o sol/ no oco do meu sonho/ sem
palavras(...)Sonâmbula nos lagos/e
florestas/mordo a casca da árvore fatal/
a última esperança /vem do mar/ saudade soledade/soída”. É verdade que a extração do sentido e o sentimento poético poderiam ser mais simples aos olhos pernambucanos
médios.Mas Lucila parece não fazer
concessões,propositalmente. Eis a esfinge poética em desafio.
“eu ressurjo /do século
catorze/tua praia/converto em precipício/Todos notam/que estamos
diferentes/chamam paixão/ na terra a esse enigma/a minha língua/toca teu
avesso/e sem prazer/o que fazer da vida?//um toque basta/e dá-se o
arremesso/que pede mais e mais/todos os dias/todos notam/que estamos
diferentes/basta uma nota/e muda a sinfonia//vem logo ao meu país/deixa os
menires/é fácil levitar/nos arrecifes(
in “Diougan”). Se o leitor se aquieta quando recebe uma das chaves para um enigma, “Os
menires são homens/encantados/quem os deixou assim /ninguém traduz...”, Lucila
logo propõe outros: “olha as pedras/em busca do
passado/dorme em furna galega/o rei Arthur//onde está minha mãe/pergunto
às árvores/no bosque de eucaliptos/sem fim//cavalgo toda a noite /Zobiana/na
esfera de cristal/ de Taliesin” (in
“Zobiana”).
Hermetismo?
Paradoxalmente em meio a
indecifráveis,esfíngicas peças (poemas) encontramos um escritora simples:onde o
emotivo-rítmico –conceptual,pulsando,entrega-se ao leitor.
A artilharia luciliana
tem como alvo ,a lógica.E ,sob fogo cerrado,ou conduzindo avassaladora onda em
tempestade,ela ,condutora de emoções,forja um hoje eterno,rompendo com as
noções do ontem e do amanhã,princípio e fim.Busca incessante,narrativa
convulsiva. “coração de poeta/pobrezinha/ brincando de casinha/a soluçar(...)
vem me ver/porque não me cabe a vida/preciso/de tua praia a me guardar”(in “Não
me cabe a vida”)..
Seus escritos permeiam-se
num não-enredo.Clímax e anticlímax.Tecem a sua subjetividade poética.Sua aventura,poética.”A
fada chora/anunciando a morte/e vive para sempre/sobre os montes/os outeiros os
lagos/e riachos/a fada dorme/dentro do carvalho//eu a vejo/no cume do
penhasco/no fluxo e refluxo /das marés/no cinturão/das ondas sobre o abismo/a
fada / ao vento da manhã//vem vestida de verde/na neblina/vem vestida de
verde/na neblina/vem vestida de verde /sobre a ria/vem vestida de
verde/fantasia/e se esconde nos hórreos/da Galiza” (in “A fada chora”). A
alquimia,fusão de elementos da natureza , está presente nas conjurações de
Lucila.
Como contadora de
histórias em AMAYA(41 poemas e 7 “contos poéticos”),ela usa a escrita como
bisturi para sangrar os limites entre
autora e narradora.Suas concepções éticas vão criando a “nova máscara”.A
imaginação abrindo trilhas num
imprevisível universo narrativo em lúdico esconde/revela.Disfarces de
sentimentos que explodem desnudando mais ainda abismos ,escancarando-se em personas que vão,aos trancos e barrancos desvendando
a pseudo-realidade deste nosso
mundo e,criando um novo mundo, paralelo e também abissal.Acrescentando-nos uma
dimensão nova no olhar.
“Deito-me entre os visigodos e te recordo cem anos
antes na Porta de Toledo enquanto Recife ainda brilha em meu pescoço o reflexo
da estrela de David.O cálice do século XII derramou vinho verde entre as coxas
ocultas pela saia colada de veludo escuro que se confunde na camurça da
sandália repicada de strass.Eu te dizia que sou dark e essa chuva
no carvalho arrasta a sílaba excessiva para a lâmpada de vidro enquanto
camélias iluminadas deslizam sobre o rio Neva e as altas aves do Aleph passam
em revoada na curva do caminho excitadas pelo som da fada louca tocando
violino.”
Como salientamos antes:estranha pontuação.Estranha sintaxe ,essa da
nossa,dama de Alicante.
Esta nova dimensão que a poeta
instaura nos permite confundir
sujeito e objeto.
A estrutura da sua obra
calca-se em incalculável gama de
prismas:
“Porque naquele tempo o amor era como um
príncipe bêbado e forçosamente hindu ele era como a voz rouca de Dioniso
fazendo soar as teclas do piano austríaco abandonado na passarela vermelha de
um carnaval de plumas na rua do Bom Jesus.
Saí pelo ancoradouro embriagada arrastando
candelabros escarlates no rio de letreiros luminosos enquanto a chuva batia no
bico duro daqueles seios ardendo sempre de tanto amor.Todos eram demais e não
sabiam mas quando tu pegaste forte eu me surpreendi tímida e até hoje estou fugindo entre palmeiras entre as estradas líquidas do
vinho e do néon.
Digo que continua urgente a ilusão deste momento
acometido de inenarráveis confissões.Utopia
presa na cartilagem úmida,quando tua boca recobrir o seio seremos então,as duas
outras faces de uma mesma única possessão,como uma estória colada na outra
enquanto se lambe o lacre da carta escrita na infância que uma água subitamente
morna quase apagou.”
Estendamos
nosso olhar sobre a obra de Lucila Nogueira, a que Recife,tórrida cidade do
Brasil nordestino,abriga.Ela nos convida mais uma vez a novos pólos.Sejamos
extremos junto com essa poeta-feiticeira.Juntemo-nos com ela: poeta ficcionando-se, querendo dominar
–homem/ natureza/ tempo e história
Poderia
ser uma poesia mais penetrável .porém a sibila invoca outros espíritos,que nos
tomam de assalto.E,de certa forma,enfeitiçam leitores, como cristais
energéticos.
Marcus Accioly
(Ensaio publicado na revista LeMangue)
Poeta e professor de
literatura,o pernambucano Marcus Accioly(que no ano 2000 assumiu a cadeira
deixada por João Cabral de Melo Neto na Academia Pernambucana de Letras)
lançou é autor do poema épico “Latinomérica”(Editora
Topbooks.620 páginas.R$ 49).
Falar do gênero épico não
é tarefa fácil.Epopéia vem do grego “épos”(verso) + “poieô” (faço) e se refere à narrativa em
forma de versos,de um fato grandioso e maravilhoso que interessa a um povo.É
uma poesia objetiva,impessoal.Um narrador fala do passado(verbos no pretérito).
“A Ilíada” e a “Odisséia”(ambos de Homero) são nossos maiores referenciais no
gênero,e são seguidos de perto pela “Eneida (onde Virgílio narra os feitos
romanos).Há também “Os Lusíadas”(Camões), “O Paraíso Perdido” ((Milton),
“Orlando Furioso”(de Ludovico Ariosto,Itália) e ainda os árcades brasileiros
“Caramuru” e “O Uraguai”.
Uma coisa em comum : a
questão do herói coletivo,como em “Os
Lusíadas” (o povo português).
Geralmente um épico divide-se em cinco
partes:proposição(tema e herói são apresentados),invocação(o poeta pede
inspiração),dedicatória,narração e epílogo.
Accioly,59 anos,que
podemos rotular de poeta da geração 65,
é autor de livros como:”Cancioneiro”(68), “Nordestinados”(71), “Xilografia”
(74), e “Sísifo” (76),dentre outros, há muito vinha esboçando uma epopéia
nos moldes de um Homero
nordestino do século XX.
São 34 anos de profissionalismo
literário:13 publicações e 10 prêmios nacionais.Já foi comparado a Apollinaire
e tido como poeta clássico por sua reinterpretação dos mitos do passado,pela
crítica italiana Luciana Stegagno Picchio. E agora este lançamento:uma aventura
problemática,se considerarmos que são rimas forçadas na tentativa de glorificar uma terra dominada por
estrangeiros: a América Latina,que aparece no texto através de um jogo de trocadilhos e numa grandiloqüência
,digamos assim, tragicômica.
O que percebemos através da leitura do longo
poema, é uma terra sonâmbula caminhando
entre a infantilidade e a demência,guiada por heróis derrotados como
Zumbi,Guevara e Tiradentes.
Marcus cita nomes como:
Tatcher,Pinochet,Reagan que aparecem misturados com poetas e políticos que vão
dos latinos aos africanos através das 590 páginas do texto(incluindo o
apêndice) .O poema em si tem 535 páginas e termina com uma página preta onde em
letras brancas lemos: “Bilhete aos surdos-mudos do poder/(a solidão do poder x o
poder da solidão)/a serpente do sistema/presa à presa a presa extrema/abocanha pela cauda/a cabeça da
palavra//a palavra mais serpente/sente a goela no seu dente/que mortífero
envenena/a cabeça/do sistema” (!)
O apêndice (30 partes)
procura explicar a feitura do poema,sob
ângulos pré e pós colombianos e cabralinos.
Protesto?Insatisfação? O
poema começa com uma carta”aos cegos do poder”(que anuncia o 3º milênio) e
segue tropeçando entre neologismos(Latino+ Homérica=Latinomérica) e citações.
Curiosidade:não há
nenhuma vírgula no poema,ao contrário dos parênteses que pululam.
Sim.Marcus valoriza nossa
cultura,mas,dizer que o colonizador “castrou de nossa boca o sexo dos nossos
idiomas primevos” ou que “chupamos do
sexo ou da boca do conquistador a nossa língua”,é uma licença poética forte.Sem
contar o tom emocional(deslumbrado?) que permeia a narrativa com ares
regionalistas.
Ao modo de Borges,Accioly
parece dizer que “A América Latina é uma ficção”(o que não caberia numa
epopéia) e a dele (Accioly) só existe
porque ele a escreveu deste modo.
II
“A América precisa dos seus sons(...) perderam-se
as vozes,quebraram-se os instrumentos.Ficou uma espécie de marulho
inquietante(...) esses fragmento de voz”,sentencia o autor no apêndice do
livro(“decifro-me ou devoro-me”) e cita Maiakovski: “hoje executarei meus
versos /nas flautas de minhas próprias vértebras”.É o nordestino versejar
universalizando-se,sentindo saudade de si mesmo num reverso baudelaireano de amor
à última vista,tentando fugir da futilidade.Mergulhando numa saudade que
retroage e expecta na esperança lírica que desloca o passado e o presente para
o futuro.
III
Para justificar seu esforço épico,Accioly carrega
nas frases feitas:”A memória é a arma branca do poeta e sua arma de fogo é a
imaginação.Lembrar é fácil,difícil é esquecer,a
´deslembrança` que é a América” (este navio-continente)
Motivos recorrente sem “Latinomérica”, a infância
(da América) e a busca da identidade: o filho busca o pai,fracassando volta
para a mãe (“à vagina por onde entrou seu pai”) que é então, pela segunda vez,
violentada(“cópula com a terra”).
“Quando um mundo se vai e outro se esforça para
nascer, é que surgem as epopéias”,disse o escritor Nikos Kazantzakis.Tentando o
antilirismo para cantar nossas glórias e perdas coletivas neste lugar,onde
“estar no presente é,de certa forma,continuar no passado”, Accioly,não
transformou o neocolonialismo num pretexto para seu ato poético,mas cita
Ginsberg ao chamar os EUA de “trapaceiros mercadores” cujos principais valores
são a mentira e a ambição por
tecnologia,dinheiro e poder e que têm por princípio nunca reconhecer a própria
derrota,como no Vietnã,por exemplo. O cerne desta criação é a gigante América Latina atravancada entre oceanos
de metáforas.E o autor sugere ao leitor uma leitura não-linear do seu poema,neste Brasil,onde boa parte da poesia virou prosa.Seria
este canto poético mais bonito que a luta que nos resta? Seria possível
misturar poema e luta de Box? O poeta tenta:Transforma os “cantos” da epopéia
em “rounds” e espalha por eles seus versos decassílabos,oitava rima clássica
camoniana (paradoxo para quem pede independência cultural ?).
“Que o canto(em vez do belo) possa ser o feio/ e o
sujo(em vez do limpo) possa ser o canto/(possa o ouro ser fezes no seu
veio)/possa o mal do poeta e a dor do santo/(possa ser o vazio em vez do
cheio)/ remende o véu do ódio e rasgue o manto/ do amor(com as mesmas unhas)
que ele possa/ ser o ouro amarelo que há na fossa// (que o amor que tu sentes pel´América /seja o ódio voltado aos seus tiranos)/ah se eu pudesse contra os reis
da terra/ a saliva de sal dos oceanos”.
É história e cultura (do Canadá até a Terra do
Fogo)engajando-se,mostrando o colonizador como “bárbaro e bruto”,como se os povos americanos também
não o fossem.Há idealização e dramaticidade excessiva em Marcus como houve no
romântico Castro Alves ao falar dos
escravos.Há também trocadilhos infames e todo o poema às vezes titubeia entre a alta arte e a apelação. Mas é uma voz
poética que nos honra.Um grito,um clamor de agonia e êxtase.Foram 20 anos
compondo este poema,11 dos quais sem nenhum título lançado.
Luzilá
Gonçalves Ferreira
“Muito além
do corpo” (87) e “Rios turvos” (94) são alguns dos romances da pernambucana
Luzilá Gonçalves Ferreira, como pré-requisito para seu exame de vestibular
2003. Decisão acertada.
A autora vem lutando pela divulgação das letras femininas, com um
afã invejável, dirige inclusive um núcleo de estudos com esta temática na UFPE,
onde leciona.
E é autora de outros
romances, dentre os quais “A garça mal ferida” (93) e “Voltar a Palermo” (2002,
tem como eixo narrativo a história de Maria, uma brasileira cinqüentona, que
volta à Argentina, onde havia morado na época da ditadura militar. Na cabeça
“recuerdos” sobre um motorista de táxi, Nino, sobre quem sabia quase nada, tivera
com ele uma relação-relâmpago). Luzilá explica que se inspirou levemente no
filho de outro taxista, seu freguês. Que por um dia substituiu o pai, lá em
Buenos Aires onde ela morava. E também cavou em si própria e daí retirou a
personagem professora, que, metamorfoseada numa pessoa sedenta de amor e
novidades que busca saciar-se através de uma velha fantasia amorosa.Aqui o texto de Luzilá, como sempre é
extremamente poético. Ela tem uma intimidade total com a criação literária e
uma visão particular sobre o “feitiço” das letras. Do mesmo modo que em “Muito
além do corpo”, romance que ganhou o prêmio Nestlé em 88, temos uma personagem
que ao questionar-se, reencontra-se numa nova forma de amar, que faz com que
ela reflita sobre os intrincados caminhos da paixão. Em “Rios turvos” ela
revirou a vida de Bento Teixeira, cristão-novo (autor de “Prosopopéia”, poema
que marcou o início do Barroco na literatura nacional) e de sua mulher (um caso
que terminou em tragédia), e em “Humana, demasiado humana” ela
destrinchou/forjou a alma de Lou Andréas-Salomé (que foi amante de Rilke e
Nietzsche) em “Voltar a Palermo” ela mostra uma fêmea em busca de si mesma e de
um tempo que talvez seja reencontrado. Há passagens que nos lembram Mauro Mota: “Abri a janela e de
súbito Buenos Aires inteira foi minha, sua paisagem cinza e seus cheiros me
penetraram, como nos penetra o cheiro da pessoa amada. Era uma mistura de odores
vários, gasolina e óleo queimado, fumaça e poeira, mas igualmente perfume de
flor, beleza a se esparramar ao longo da nueve
de julho, que nome tinham aquelas árvores? Um dia eu soubera, quando
ainda não havia deixado Buenos Aires e a cidade era como uma extensão do meu
corpo”.
“MUITO
ALÉM DO CORPO” e “RIOS TURVOS”
“Muito além do corpo”
(prêmio Nestlé de Literatura Brasileira – 3º lugar, 1988, 79 páginas,
editora: Scipione) é repleto de inventividade, dando menos valor ao ambiente e
aos costumes, a autora aprofunda-se na dimensão existencial das personagens, no
caráter psicológico e social. O livro se divide em quatro partes: Tu, Eu, Ele e
Tu (Ele).
Há que se considerar
também a poeticidade enxuta, uma “interferência lírica”, como ressaltou o
mestre Adonias Filho, que “assegura por sua vez o acabamento ficcional em todas
as suas exigências literárias”.
Luzilá vai “muito além do
corpo”, até os limites da imaginação, do intimismo, buscar o reconhecimento do
ser humano, como o francês Proust, em outra perspectiva, tentou no seu “Em
busca do tempo perdido”.
É o horror e a surpresa
refrescante de uma intelectual vendo chegar o (analisado previamente e idealizado) amor.
O romance começa com a
narradora (1ª pessoa) descobrindo a ação do tempo no corpo do seu amado,
“um pouco de ventre que me comoveu (...) o vinco na testa (...) então me fazia
pequena e redonda, e o frio e a tristeza se dissolviam (...) a respiração dele
me aquecia a nuca e o coração (...) eu amo este corpo, eu amo este homem (...)
havia algo além daquele corpo, que o ultrapassava e lhe dava um sentido que tu
mesmo ignoravas. E eu: apenas pressentia”.
Quem é esse “tu”, a que a
narradora se refere? (p. 8) trata-se de uma referência a um terceiro, que pouco
a pouco vai se revelando.
“Algo mais para que o
contato com o corpo de um homem provocasse em mim aquela deliciosa desordem de
vísceras e alma, e cada vez que tentara amar só de corpo, sempre restara o
vazio no após (...) à sensação de solidão se mesclava uma leve náusea: que
fazia junto de mim aquele corpo insuficiente?” (p. 8) “contigo nunca
fora assim” (novamente a narradora aponta para um terceiro vértice).
“Homem e mulher, e cada
um se espelhava no outro semelhante, cada corpo remetendo ao outro,
companheiro”. (p. 9). “Um tácito acordo de espírito (...) macaíba em flor (...)
terra molhada”.
No Capítulo II, a
narradora apresenta sutilmente, e de modo sempre “enxuto”, seu amante, evitando
uma noção demasiado romântica da vida. E temendo a felicidade
como algo “pequeno-burguês”. Luzilá parece querer agradar ao júri que lhe deu o
3º lugar no concurso (Adonias Filho, Eduardo Portela, José J. Vieira, J.
Garbublio e Álvaro Gomes), mas ela se supera na arte de escrever e resolve
“começar do começo cronológico” (p. 13).
A narradora usa sempre o
“tu”, em vez de você e salpica o texto com frases como “amar é sempre uma
tomada de posição contra” (p. 15) ou “aquela parte de mim que por ti ardia” e
“éramos seres de exceção” (p. 16). E finalmente o nome do amado: “Mário (...)
não estou sabendo resolver tua ausência dentro de mim”. Um pouco intelectual
não? E um toque de Clarice Lispector também permeia todo o texto como uma
sombra: “tudo era pesado e misterioso (...) então não mais eras Tu e sim um Ele
escorregadio” (p. 22).
Há um individualismo
pressionando o relato amoroso: “Preciso me encontrar a sós comigo mesmo”, e o
discurso do outro: “que tua figura não se interponha entre mim e o que posso
viver às vezes”.
Então a narradora fala da
paralisia do seu amado.
A 2ª parte do livro
(“EU”) dialoga com Cecília Meireles: “também não sei em que espelho ficou
perdida minha outra face (...) quem é essa que assim me fita?”, a narradora
atribui ao astigmatismo não ter se visto assim antes (humor). “A gente deveria
possuir vários nomes”, nova referência a poetas: Fernando Pessoa, Mário de Andrade:
“Eu sou trezentos”. Há também existencialismo: “sou tantas (...) neste corpo
que carrego há mais de quarenta anos”. E o toque feminino: “Mulher é
coisa complexa (...) bicho monogâmico (...) agora seu maridinho chegou, meu
amor” (p. 29). E retoma: “Quarenta anos foram precisos para chegar a isto, e,
toneladas de alimento e amor e tanta literatura”, aqui uma nota autobiográfica:
a menina-moça Luzilá funde-se com a quarentona narradora na paixão pelos
livros: “a fala silenciosa dos que haviam partido tantos anos antes” (p. 31). E
trabalha a metalinguagem, questionando-se sobre “o fazer” do livro. (p.
31).
Outro poeta é citado
nesta 2ª parte: Drummond (p. 32): “Amor é privilégio dos maduros” e Romain
Roland: “o cúmulo da dor confina com a libertação” (p.33)
Luzilá é poética. A
narradora rememora a infância: episódio da declaração de guerra (Brasil x
Alemanha) e medo do mundo acabar: “sentada na escuridão, eu chorei pelos lírios
que nunca floresceriam (...) naquela noite eu aprendi a primeira lição sobre o
limitado poder do amor” (p. 37)
Há também um toque de
James Joyce, num discurso direto/indireto onde o fluxo de consciência
transcorre como “as frutas que boiavam na água, caindo ploc ploc ploc” (p. 38)
E veio o episódio do
bodinho (nome: em flor, enflor),
que a narradora ganhou quando criança, e que a machucou quando cresceu, “amor
às vezes maltrata” e que foi vendido para abate. “Todo o mundo vai ter que
morrer um dia. E de repente o mundo todo virou uma coisa triste, uma prisão e
ninguém podia sair de dentro dele” (p. 40)
Há uma certa confusão
sobre “usina” (p. 40) e “engenho” (p. 43) na narrativa que mergulha de repente
nas histórias paralelas ao núcleo central do romance. “Causos” da juventude da
narradora nos típicos lugares do interior de Pernambuco.
Chegamos na última parte
do livro: “Ele”, que começa assim: “Dia de São João”, íamos nos encontrar à
noite (...) olharíamos balões no céu: (...) copinhos de canjica (...) ramos de
ingá (...) lembrava uma paisagem de Post,
e o céu estava azul. Fizeram fogueira”. (p. 53)
Há metáforas como “um
silêncio equívoco esticava os fios do telefone, feito açúcar de alfenim”, que a
narradora usa para introduzir o tema da separação do amado, naquela mesma noite
de São João em que fora ao cinema e conhecera o outro: “em silêncio nos amamos
por séculos (...) estranha foi a volta para ti, depois daquele encontro com
ele” (p. 57) e a narradora conta ao amado como é bonito seu novo amor: “deve
ser, teu rosto resplende”, responde ele (p. 59)
Vem a ruptura, que Luzilá
trata poeticamente.
“O corpo é metáfora de
nós, sinal evidente de algo mais profundo (...) meu existir efêmero e eterno”
(p. 60)
E a narradora também é
brega: “Te amei como ninguém te amou querida, de ti o menor gestor adorei”
(citando “perfídia”) ao descrever o choque da separação e o bilhete, “não me
procura, por favor, teu”, que o outro deixara. E vem um texto muito bonito
sobre os amantes verdadeiros que se separam: “partiste e ficou em mim aquela
parte de ti que só a mim pertencia e que está colada em mim, como uma segunda
pele. Como fiquei em ti, e disso o sabias: que te indo, eu te acompanharia,
menina acocorada e quietinha em algum lugar de ti, a te espiar, a te amar de
longe, a te dar a certeza da impossível solidão, eu em ti, eu do teu corpo” (p.
61)
Luzilá repete as mesmas
metáforas (p. 29 e 62): “transmudados em sombras esfumaçadas...”
A narradora se entrega a
um jovem vinte anos mais jovem e ele diz: “amo suas rugas e seu cansaço”. E ela
pensava: “envergonhava-me quase, de não poder lhe ofertar a pele de pêssego
(...) seus dedos refaziam o caminho que o tempo abrira no canto dos meus olhos,
no vinco da testa, ao lado dos meus lábios, as marcas de tanto sorriso, tanta
dor, tanta vida” (p. 64)
Há um
“deslumbramento” subjacente: “eu voltava
aos quinze anos e ele era o meu primeiro amor (...) o nosso amor era o perfume
do amor”.
Luzilá é sereia e nos
encanta com sua poesia.
Há também um toque
daqueles romances típicos dos anos 70: um caleidoscópio psicodélico que numa
página junta Freud (“machista”), Woody Allen (“genial”), Bethânia (um “sarro”),
uma calabreza e mais dois chopinhos (p. 68)
Sobre o seu “segundo
homem” no livro, a narradora compara: “Ele quase com a duração de um relâmpago,
passou em minha vida, deixando-me encandeada” (p. 69), ou: “amor meteoro” (p.
70)
E o corpo termina só, “a inenarrável
solidão dos seres sobre a terra” (p. 71). E “tu sob a terra, onde já não chegam
cores, nem perfumes nem sons (p. 72)
O “tu” parece ser tanto o
amante, quando o leitor de Luzilá: “Eu te amo, tu do outro lado” (p. 73)
“Tua mão buscou a minha.
Aproximei minha face de ti,
– Queria teu perdão,
falaste.
– Te amo, respondi” (p.
79).
Luzilá não precisa turvar
águas para parecer profunda. Ela tem autenticidade verbal. Seu romance é como a
ponta de um iceberg: faz-nos supor o que não se escreveu. O familiar nela
torna-se fonte de estranhamento. Joga com o leitor, surpreende-o com pequenas
armadilhas, busca sua cumplicidade ao mesmo tempo oferece fruição
estética. Com ela mergulhamos num universo feminino poético essencial
fascinante, insinuante, compacto, sugestivo.
Em “Muito além do corpo”,
ela tece e destece, qual
Penélope, as tramas de dois amores entrecruzados, às vezes meio neobarroca,
na sua paixão por Bach, nas comparações entre as fontes da vida e a morte (p.
60) , no êxtase.
Criou um romance
(novela?) moderno, cheio de impulso vital. Tentativa de conjurar passado e
presente num texto sintético e denso, imagem a imagem, balançando entre o corpo
e o espírito.
Luzilá, pernambucana que
soube buscar no silêncio da palavra a força da linguagem.
A UPE (antiga
FESP) está de parabéns ao escolher esta autora como básica para seu exame de
admissão 2003.
Os Rios Turvos
“Do amor não vi
senão breves enganos...” formadores dos Rios
Turvos da minha vida.
“Um único amor
amara ... vinte anos, dos trinta e sete de sua vida e só preocupações, invejas,
sobressaltos. Um ciúme tão grande que melhor seria se não tivesse amado, mas
viver sem amor ninguém pode, “é doce o mal que nos causa uma mulher.”
O romance Os Rios Turvos, narrado em 3a pessoa, lembra a função documental que teve a
arte. Trata-se da vida do autor do poema épico Prosopopéia: O português Bento
Teixeira, portanto uma biografia (do nosso primeiro poeta) que se mistura à
ficção. O tema da obra nada mais é do que a trajetória amorosa do
português Bento Teixeira com a
brasileira natural do Espírito Santo Filipa
Raposa, a grande paixão de sua vida e a responsável por seu destino
trágico: a própria mulher o denuncia ao Tribunal do Santo Ofício acusando-o de
judeu e mau cristão e ainda instiga outras pessoas a fazerem. Vai trair o
marido por várias vezes, obrigando-o a morar em lugares diferentes da
Paranambuco (Pernambuco) do início da colonização.
O apetite sexual
da esposa era sabido de todos. Desde adolescente tinha uma malícia natural:
Seduzia – com seus olhos belos e verdes até os padres nos confessionários.
Bento via-se obrigado a constantes mudanças: Olinda, Igarassu, nas terras de
João Paes no Cabo, freguesia de Santo Antônio. Neste último lugar, havia
pouquíssimos homens, mas Filipa consegue trair o marido com o frei Duarte
Pereira, vigário da freguesia de Santo Agostinho e único homem do lugar.
Ao chegar ao
engenho de João Paes no Cabo, pensou que ia controlar a mulher, mas esta era
mais esperta e dormira com o padre Duarte muitas vezes (mesmo já mãe de dois
filhos) sem que o marido desconfiasse.
Uma das situações
mais humilhantes para Bento foi quando a esposa o traiu com um mulato, crime
repugnante na época.
Bento Teixeira era
filho de pais humildes e cristãos-novos. Seria, portanto, um dos filhos
desgarrados de David cuja família abandonou Portugal por conta da perseguição a
judeus. Apesar da pobreza dos pais, Bento ao chegar ao Brasil, na Vila de
Salvador na Bahia, foi ajudado pelo bispo Don Antônio Barreiras que lhe ensinou
latim e o iniciou nas artes. Leu os gregos tais como Ovídio, Aristóteles.
Conseguiu estudar no colégio da Companhia de Jesus e fazer algumas amizades que
lhe foram úteis mais tarde como testemunhas contra as pressões da Santa
Inquisição.
Sem pensar que era
um gesto herético Bento traduziu, a pedido do sobrinho Antônio Teixeira, do
latim para o português o livro DEUTERONÔMIO, livro da Torá, que Javeh ditara a
Moisés – conforme afirmava sua mãe cristã-nova. Porém esta missão caberia
apenas à Igreja. Leu livros que figuravam no Index e acabou, pelos colegas,
sendo denunciado ao visitador, mas não foi logo preso. Tornou-se alvo predileto
da Inquisição e de alguns padres por ele criticado.
Bento esteve um
período no mosteiro de São Bento, para onde chega com carta de recomendação.
Ensina latim,
aritmética e poesia para sobreviver. Revela-se fiel aos princípios da igreja
para livrar-se da Inquisição, mas não deixa de criticá-la: “(...) almeja
escravos para a lavoura.” p. 49 este seria o propósito da Igreja, pensava
Bento.
Embora não fosse
exímio escritor (às vezes criticado pela própria Filipa), Bento fazia sonetos e
trovas. Escreveu um poema épico – PROSOPOPÉIA – à semelhança de Camões homenageando o governador da
capitania de Pernambuco, Jerônimo de Albuquerque. Seus escritos, no entanto,
não tinham a espontaneidade dos versos de Filipa.
A esposa gostava
de ler à noite. Ficava com o marido. Liam Gil Vicente, Salomão, Camões, Ovídio,
Catulo. Para a esposa, Bento mostrara seus escritos e a ela dizia de sua dificuldade
para escrever, fato que não ocorria com Filipa. Às vezes a dificuldade de Bento
era usada por Filipa para xingá-lo, outras vezes ela o ajudava.
Apesar de tudo que
fizera Filipa Raposa (as traições constantes que levou Bento a assassiná-la)
Bento – após a morte da esposa – sentia falta dela, afinal “era uma parte dele
que morria. Ele que não soubera o que era amor. Não amou o pai – homem
rude, austero, exigente; a mãe que o obrigou a ser judeu; nem mesmo aos
dois filhos, cópias de Filipa, “a raposa atenuada em felinos.” Tudo seria
diferente se ele não fosse um Pinto, um cristão-novo e ela não fosse uma
Raposa, uma cristã-velha? Quem saberia dizer?
Quando matou
Filipa, Bento confiou seus filhos a João Paes – dono das terras onde morou em
Santo Agostinho. Escreve-lhe e lhe explica sobre tudo que fizera por causa da
esposa. Foge para Olinda – o mosteiro de São Bento, onde ficaria (até que a
Inquisição o pegasse) escondido.
Antes de morrer,
ainda agonizando ao receber o golpe de faca de Bento, Filipa pediu que o marido
pegasse em uma gaveta do quarto um maço de cartas – poemas que ela escrevera
(ou os amantes escreveram para ela?). Durante a fuga para Olinda Bento os
perde. Lê apenas alguns poemas, quase nada.
No mosteiro de São
Bento, o poeta ganhou a inimizade de Frei Damião por desafiar o religioso nos
seus argumentos espirituais e por denunciá-lo aos outros padres dizendo que o
referido frei freqüentava a casa de mulheres casadas como Isabel Raposa e Ana
Lins. Por tal feito compra um inimigo declarado.
Em 12 de agosto de
1595, recebeu ordem de prisão. Começam os julgamentos e Bento prepara
documentos para sua defesa.
Em 22 de outubro
de 1595, é mandado a Lisboa como acusado do Santo Ofício por praticar heresias,
ter o sangue daqueles que mataram a Cristo.
Ao redigir os
documentos, para se defender das acusações, exibe seu conhecimento. Usa
citações eruditas, textos latinos. Quando interrogado pelos inquisidores,
sempre se diz inocente, mas acaba cedendo às imposições do tribunal: reconhece
sua culpa. Renega e abjura de suas ações e crenças visando à liberdade que não
vem e Lisboa torna-se seu grande cárcere. Em julho de 1600 morre e um ano
depois a Santa Inquisição concedeu licença para que se publicasse, em Lisboa, a
primeira edição de Prosopopéia.
Bento morreu
pensando na sua Filipa de olhos verdes e cabelo de fogo. A Filipa adolescente
que lia com ele Ovídio, Gil Vicente, os poemas de amor de Salomão:
“Beije-me ele com
os beijos de sua boca porque é melhor o seu amor do que a própria vida. Vive
sem amor! se um deus me falasse assim, eu recusaria, tanto é doce o mal que nos
causa uma mulher.” – Razão da sua vida e da sua morte. – E morre sorrindo como
um pequeno judeu após ter feito sua oração. Morreu pensando no que poderia ter
sido e não foi.
Observamos na obra
Os Rios Turvos os intertextos que enfatizam, sobretudo, a temática do amor: Ovídio
aparece tantas vezes como epígrafes dos capítulos, o Ovídio degustado por Bento
e Filipa em seus serões; Camões de Sôbolos Rios, o Camões dos breves enganos:
“Do amor não vi senão breves enganos”; o intertexto bíblico, na história dos
judeus, na comparação de Bento a Jonas ‘a caminho de Nínive, o grande mar’ (p.
195), nas citações latinas; nos poemas encomiásticos (escritos por Bento) onde
confessava o mistério de um Pai, um Filho e um Espírito Santo e por fim na
Prosopopéia aquele longo poema que escrevera em Paranambuco, Pernambuco e os
versos à maneira de Camões que lhe vinham sempre à mente:
“Cantem, poetas, o
Poder Romano
Submetendo Nações
ao jogo duro...” (p. 209)
Filipa Raposa,
cristã-velha e Bento Teixeira, cristão-novo dois seres tão diferentes, unidos
pelas águas dos Rios Turvos do amor, um amor que nem eles conseguiram perceber
na sua inteireza ou até mesmo nas suas contradições.
Destacamos ainda
nas brigas de Filipa com o marido (quando ela ao ler os textos dele percebia
versos inteiros de outros poetas) uma preocupação com o fazer literário, os
caminhos complicados da criação poética percebidos pelos protagonistas. Bento
chega a discutir sobre a habilidade de Gil Vicente para compor os versos de Auto
da Alma:
“Alma humana,
formada / de nenhuma cousa feita.” (p. 23) “Eu e tu, Filipa para dizermos estas
cousas, utilizamos todas estas frases (...) Gil Vicente o diz em sete
vocábulos.” (p. 23)
Um relato
dramático para falar da vida, do amor, do desejo, da inveja, das contradições,
do poder da igreja, da morte, enfim, coisas da vida de um cristão-novo do
século XVI brasileiro e sua mulher uma cristã-velha. Uma recriação que não
esconde o aspecto social do primeiro século da formação do nosso país.
Regina Vilaça
Conheci
Regina na faculdade ,na década de 80,e nosso amor pela literatura nos uniu e
manteve essa chama acesa através de mais de dez anos.Gostamos de viajar e de
escrever. Somos professores.
Maria
Regina de Fraga Vilaça nasceu no mesmo lugar que eu: na Conde da Boa Vista, principal
avenida do Recife ,em 22 de março de 56,sob o misterioso signo de
Áries,como eu.Cursou Filosofia na UFPE.Em 77 foi para São Paulo e integrou a
geração dos poetas que vendiam seus livros mimeografados.Participou do grupo
teatral de Otto Prado.Cursou Letras na
USP e em 80 foi para a Europa. De 81 a 88 lecionou inglês em Angola,na Líbia e
no Sudão. Voltou para o Recife em 88 e concluiu o curso de Letras.Em 92 volta A
Líbia e em 94 fixa residência na Bélgica,onde leciona.
“Entre Julhos e Agostos” é o nome do seu romance publicado em
Pernambuco, pela editora Bagaço(1998),dedicado ao seu marido e seus dois
filhos.
Regina
tem delicadeza até na voz.Tem jeito de perfume francês:pequenas gotas de
transcendência a envolvem.
Quanto
ao romance,trata-se de uma narrativa estilhaçada por uma polifonia estranhamente harmônica.
Júlio,Augusto
e Diana dividem a vez de narrar.Ela ,uma garota que faz teatro(uma
peça infantil, e ensaia “Calabar”
de Chico Buarque e Ruy Guerra sob a direção de Fernando Peixoto)e trabalha num
hotel em São Paulo(o Excelsior) .Júlio é um professor que contrai um vírus
conhecido na época como a praga gay .Augusto
é um aventureiro que divide o apartamento com os dois,vai trabalhar na Nigéria
e engravida Diana durante as férias.
São
personagens simples,seres humanos esmagados na suja São Paulo,onde o anonimato
às vezes é uma bênção.
A autora
conduz seu romance com rédeas curtas,ao modo de Oswald de Andrade no que se
refere à linguagem telegráfica que deixa quase sem fôlego o leitor mais
sentimental.
“Júlio,Augusto, Agosto,três horas da madrugada,de
nada,morta madrugada, de ilusões.
Sinto doer o corpo. O Utopia gostoso e quentinho-
macarronada para três- o garçom sorriu,anotou(...)
-Quem paga? Eu não tenho um puto”
Assim
começa a história deste “triângulo escaleno” (o de lados desiguais), os dois
homossexuais e a garota interrompida.
O
caleidoscópio vai logo expondo bares e
lugares da velha Sampa no fim dos desbundados anos 70 .
Há
vários tipos de letras compondo o livro,o que imediatamente conduz o leitor a
“compartimentos”,escaninhos labirínticos
numa trama onde os diálogos são entrecortados por discursos interiores.
Entre o
lirismo e a sensualidade brincalhona,a esperança vai se equilibrando
trôpega,indecisa,delirante: “Vazia
escuridão.Ouço águas.Não quero dormir mais,não quero. È preciso vigiar,esperar
acordado,neste quarto vazio,nesta luz fraca(...)suor que não acaba,águas,meus
olhos pesam,tenho que esperar,hão de me conceber,olhos
abertos,espero(...)excito-me,acaricio o órgão tenso,desisto,volto-me,descubro a
ponta de uma estrela pelas janela entreaberta e não consigo ver o céu”.
São
Paulo aparece como um “estegossauro” claricelispectoreano que engoliu o verde. Verde, que só
será revelado novamente num relâmpago que ilumina os olhos de uma estátua do
caçador de esmeraldas ,numa rua.
Pressentimos
um pulsar intermitente . Entrelinhas compulsivas.Efervescência de bilhetes e
bebedeiras.Somos espiões convidados pelos personagens que viveram a farra do
fim da ditadura militar, o renascer da democracia,o processo de anistia, a
abertura política do Brasil.Cacos dos anos de chumbo brasileiros.”Tudo
policromático”
É uma
viagem sacudida.
“Cortinas
vermelhas semi-abertas por trás das samambaias derramadas”:as imagens,os filmes
da época (“Se segura malandro”, “Amacord”,
“1900” -em duas partes),as músicas (Bee Gees, Pink Floyd, Rick Wakeman),despertam saudades em quem viveu a
virada para os anos 80.
O
escritor Paulo Caldas refere-se ao livro de Regina deste modo: “Desprezei as minúcias literárias e sofisticações da mesma ordem e
concentrei as atenções na concepção do
tema, no desenvolvimento da trama e no envolvimento do leitor com o texto(...)
o ritmo(...)cortes ágeis(...) a sensação de medo ante o desconhecido(...)toques
de sensualidade ,longe dos apelos eróticos”.
Concordo
com Paulo e acrescento que Regina teceu sua narrativa como uma colcha de retalhos de emoções ,um patchwork
pós-moderno: “música
impregnando os poros doídos da paixão”.
É a batalha cotidiana de quem está
começando a lutar pela vida e
tentando definir seu espaço na sociedade, no mundo: “beijavam-se,Deus não podia ser contra o Amor,tudo é tão natural(...)
na penumbra trêmula...we are young and free”.
“-Olha,eu tenho uma boa notícia.Vou dar aulas de
inglês e francês num curso novo que abriu”, diz Júlio.Augusto estava indo para a Nigéria com um contrato
de um ano nas mãos.
Taco,colchões
no chão,almofadas,samambaias,fogão de duas bocas,café solúvel: “Júlio dormia nu com a perna sobre Augusto”.
Diana “maternalmente beija-os
embriagada de vinho e ilusões”. É como se a realidade fosse só um filme ao qual “assistimos
sentados(...)de vez em quando emocionados,mas sempre pensando que no fim as
luzes vão acender” .
Fala-se
de revolução, a geração 70 no Brasil ansiava por isso. “A Revolução individual não muda nada” .Divididos entre o positivismo e o esoterismo (“é preciso controlar o gozo dos sentidos.Sexo é ilusão e assumir o
feminino e o masculino é iludir-se duplamente.Gozar a v8ida sexual é como sugar
o próprio sangue”) os personagens vagam e vão parar tanto dentro da
burocracia quanto nos banquetes do movimento Hare Krishna ou em
terreiros de macumba em
Salvador. E saem pela Avenida Paulista, se embriagam no Bexiga suam no palco e
num sexo abafado num Brasil agônico: “Mas
que esperança? A Globo
vive distribuindo fantasia, `Santos´ faz milagres em prêmios todos os
domingos”.
“Diana entre mim e Augusto na cama desforrada(...)o
seu perfume de alfazema,leve e pesado”: É como se fosse a Diana do pastoril profano- entre o
cordões azul e encarnado.
Há
momentos de “viagens”,como na página 70,quando Júlio encontra um “krishna”
jovem,viril e feminino de “nádegas
gordas e alvas,cabelos em caracóis,lábios grossos e sensuais,unhas pintadas,no
meio das águas,sorrindo e convidando-o(...)mas Oxum emergia
medonha,morta de ciúmes,bela e fria,afastando-o”.
Sempre o
“triângulo escaleno” :dois
juntos e um partindo.~Lados desiguais de um mesmo desenho.
Mesmo
lançando mão,às vezes de uma linguagem “chula” ,Regina é refinada ao conduzir o
leitor num passeio dantesco ,onde analisa as instituições sociais como
família,igreja e política.
É sexo e
amizade entre edifícios modernos,mansões neomouras, neocoloniais em decadência:
“São Paulo não quer saber quem eu
sou,nem o que faço(...)não nos cobra nada.Só o aluguel,o condomínio,o
transporte,os sanduíches com coca-cola,cafezinhos corridos e motel”.
Há humor nas
entrelinhas: “Será que existe o deus
do café? Se existisse seria muito venerado aqui,assim como o deus da
oportunidade”.
São
capítulos-pílulas,como este:
“-Telegrama?!
-Chega no carnaval.
-Mas ele vinha antes.
-Passa pela Alemanha primeiro.”
E
discursos radicais: “Abre as pernas,
Brasil, quem serão os próximos a te foder?” ,numa referência aos
militares entreguistas. É o carnaval em São Paulo: a escola de samba “Vai-vai saindo(...) e a maioria dos
paulistas dançando sentados”.
As
letras de Regina são como o cheiro do café misturando-se frustrado ao sabonete
Alma de Flores,como os meses de julho e agosto ,quando ela vem ao Brasil
dividir seu amor conosco.Ela fala da dor e do vazio,de amigos que se vão para
nunca mais.Tenta compreender a solidão e assim compôs este romance como uma pintura de estranhas manchas roxas pontuando
a vida e a morte em aleluia profunda e magnética.
“Não chore mais ,Diana”, diz Júlio: precisamos de esperanças, “esperanças meu Deus de minha infância,Deus
que me ensinaram a amar e a temer,é esse Deus onipotente e misericordioso que
desejo agora,eu quero acreditar em milagres(...) queria que não tivesse chovido
tanto.Meus olhos saltam a janela e adivinham a folhas novas,verde-claras,e
descobrem as minúsculas flores brancas mal desabrochadas,e imaginam o
cor-de-rosa”
É uma última carta, escrita num
retiro espiritual de convento distante. Quanto ao filho de Diana e
Augusto,Julio,que assumiu a criança como fruto do triângulo, que ele acha
perfeito,diz: “Ensine-o a dançar.”
Gilvan
Lemos
"O Anjo do Quarto Dia"
O romance “O ANJO DO QUARTO
DIA” do escritor pernambucano de São
Bento do Una, Gilvan Lemos (Editora Globo.Porto
Alegre.l98l) é composto de humor, ironia, psicologia. O ESTILO Gilvan Lemos é
refinado com expressões bem trabalhadas .A narrativa é o que poderia se chamar
de engajada, termo atualmente em desuso. O autor é especialista em entreter o leitor com uma prosa que cativa
por sua riqueza vocabular e sintaxe acadêmica , unindo tudo isso,
paradoxalmente , à maneira simples que os habitantes do interior pernambucano
têm no seu linguajar. Logrador ( nome fictício, no dicionário você encontra os
significados : que engana, lugar de gado) é o nome da cidade onde os habitantes
vivem à mercê de uma família(os Rezendes, cujo patriarca se chama Orico Gonçalves Rezende, e seus
filhos são : Josias- filho de Sara, Jesonias de Nice, e Jason de Deolina. Nesta ordem. O último filho é o
primeiro a ser tocado pelo anjo, na verdade o filho de uma artesã do povo, uma
excluída: Ana , filha de pais ricos que por Ter engravidado de um negro teve
seu bebê morto e assim enlouqueceu. Diziam que Ana tinha parte com o
"Demo". Ela vive num lugar
afastado da cidade e, numa noite de chuva, recebe a visita de um homem
misterioso que a engravida . Nasce um menino "bem feitinho", louro ,
de olhos azuis. Este menino ela esconde da população. O menino morre jovem e se transforma numa espécie de
"Anjo vingador".
Depois do
“toque”, quatro dias depois , Jason morreu. . Foi a primeira vítima da
consciência( o anjo é reflexo dos que têm contato com ele).
A falta de escrúpulos dos políticos e a hipocrisia
parecem ser os alvos favoritos do narrador deste “Anjo do Quarto Dia”.
Gilvan é impiedoso em expor o ridículo em suas
diversas modalidades. Quer seja o da prostituta Piranha (que tinha este apelido
dado por se pai ,pois quando era criança comia tudo e não deixava para ninguém)
que tenta encarnar a Madalena-
arrependida, no caso que envolve “um
santo “ , neste caso de São Codó, a
prostituta chega a dizer comicamente que
a levassem aos “leões” ou à “fogueira” .
A narrativa expõe a fragilidade do catolicismo e da igreja protestante diante
da corrupção generalizada do poder político. Há um quê de ceticismo e fascínio
entre a fé do povo: tanto no que se refere aos que vão à igreja protestante,
cujo controle pertence a Orico ( trocadilho
com "o rico"- riqueza),que distribui comida, atraindo assim
aquelas bocas famintas e miseráveis que estão, literalmente, morrendo de fome,
e , por outro lado, os que vão à igreja católica , ligados à ignorância , um
povo que só serve para ser massa de manobra , controlados por interesses
escusos e mortais, como os de Orico, que de limpador de fossa passou a
chefe político influente, e assim quer seus filhos e netos, nem que para isso
tenha que cometer assassinatos, que recebem apoio da polícia, como foi o caso
do assassinato de Amísio ,filho do juiz de Direito , Anísio, que termina se suicidando de desgosto
quando vê seu filho Amísio (mistura de Anísio, pai, e Amélia, a mãe- típico de
Pernambuco: misturar dois nomes num só)
morto a tiros dentro da própria casa, , enquanto Orico, mandante do crime ,dava uma festa para
os pais do intelectual (Amísio) que ousou denunciá-lo em pasquins
“subversivos”, aqui Gilvan envereda na selva dos “anos de chumbo” brasileiros.
Amíso é o típico herói de esquerda , mas não escapa
da crítica ferina que Gilvan imprime na
sua visão de mundo.
Amísio utilizara- se dos escritos de um poeta
fracassado de 50 anos que vive às custas
de sua tias, o poeta , romancista, jornalista Codó, que traumatizado com o fato de Amísio haver " surrupiado
"seus escritos que expunham os vexames e fofocas de Logrador, cai doente e morre na cadeia virando assim estandarte da revolta
popular, logo abafada por Orico ,que
além de alcoólatra é pedófilo, adora
menininhas de treze anos . Costuma violentá- las. A cidade é complacente
com seu chefe.
O outro
intelectual, personagem que não merece
muito destaque na narrativa, é
Gonçalo Guerreiro, “ a glória da cidade”
, Amísio o detesta porque de poeta do povo, Gonçalo passou a compactuar com a
família Rezende.
A última das
esposas de Orico, é Deolina , aceita as
vontades do velho Orico, que queria viver mais noventa anos pois seus
filhos de tão fracos , parecem que foram “trocados no ninho” , pois não tinham
sua força. O anjo também aparece para
Jesonias, segundo filho de Orico que morre no quarto dia.
Preocupado,
Orico manda prender todas as criancinhas
louras com sete anos de idade. Não adianta, pois o anjo aparece para o
próprio Orico e para o seu primogênito, Josias .
Orico morre e Josias termina de modo patético,
temendo a maldição , a gritar no quarto
dia: “ se eu amanhecer vivo distribuo
minha riqueza com os pobres (...) se alguém me salvar da morte, hoje, faço
desse alguém o homem mais rico do mundo, me guardem, me garantam, não deixem
que eu morra hoje, distribuo minha riqueza, não deixem que eu morra hoje, não
deixem que...” .
Estas são as
últimas palavras da narrativa de l68 páginas. Dezenove capítulos
2 . “OS PARDAIS ESTÃO
VOLTANDO”
Conversando com Gilvan, ele me contou como surgiu o
título deste romance: Um tio seu tinha problemas com pardais na sua varanda e
conseguiu afastá-los por algum tempo. Certo dia
o sobrinho visitando- o ia
responder como era o título do
livro que acabara de escrever, quando percebeu
a presença das aves indesejáveis
e disse : "Olha tio, os pardais
estão voltando". Sorriu consigo mesmo e o livro ganhara novo título.
Neste romance de Gilvan Lemos (Editora Guararapes. Recife , 1983)
destacam-se os seguintes personagens :
FÁBIO MOREIRA - Escritor da fictícia cidade de Bentuna (Na verdade o romance analisa São Bento do
Una, cidade do interior de Pernambuco, onde Gilvan nasceu). Tem seu
romance editado, e reconhecido nacionalmente , enquanto sua vida pessoal
desmorona com a morte do pai, um casamento infeliz, e uma falta de
perspectivas, que o narrador insiste em dizer que as coisas do mundo são estúpidas, a exploração dos miseráveis
feita pela minoria rica. Fábio funciona
como eixo de uma narrativa perspicaz e audaciosa. Gilvan sugere paralelo entre
sua carreira e a do seu personagem de
maneira magistral. Além de perder a mãe e o pai, torna-se avô. Tem a sensação
de ter “perdido” seu tempo. Apanhava do
pai quando criança. Não conseguia se
“ajustar”. Admira o pai, acha-o com “cheiro de pai” (“muito macho”)-
(pág. 139).
REGINA -
Esposa que Fábio preferiria morta, por não compreendê-lo. Acusa o marido
de “ciúmes”, e só permanece com ele até,
o casamento da filha dos dois, Leninha , com quem vai morar e ser “avó”.
MAURO -
Bancário comedido que está em Bentuna para descobrir mais coisas sobre
seu pai , Lucas Prado, professor da Universidade Rural morto nos anos da Ditadura
militar. Mauro pensa em , talvez, escrever um livro sobre isto, já que não se
relacionava tão bem com a mãe. Esta relação pai- mãe- filhos- netos é um campo
fértil nestes dois romances de Gilvan. Verdadeiro ninho de cobras.
LENINHA- É
com este diminutivo que percorre toda a narrativa. O “gato de Leninha”, o “casamento de Leninha”. O pai não
vê muita graça nela. A filha de Fábio e Regina, pronto.
RITA -
Empregada atrevida de Fábio. As primeiras linhas , e as últimas, são
citações aos seus perfumados lilases, que plantara, e estavam desabrochando.
Cheia de piadinhas, confira na página 91 a maneira como ela trata o patrão,
como se ele fosse um fraco.
BENÍCIO VIANA -
Um “caga na cueca” (atenção para a linguagem usada por Gilvan: isto
acontece com Suassuna e com Raimundo Carrero, o uso de termos populares),
fingiu-se estudante de Direito no Recife, morando numa pensão na rua da
Imperatriz e com prostitutas e farras
demoradas. Desmascarado pelo pai enganado apanhou ali mesmo. Preste atenção: Era
Benício que molhava o xerém com álcool , para embebedar e matar aqueles
pássaros terríveis, símbolo da vilania , como eram os que trouxeram tais bichos
para o Recife , são como símbolos dos “norte-americanos europeizados “ como bem
fica explícito na página 121.
TIÃO - Motorista de “morcego”, seu caminhão que suga dinheiro de tanto
quebrar, é com este caminhão que Tião,
junto com Edeson, filho de um tal Zacarias, saquearam Bentuna tirando dinheiro dos corruptos e
entregando para a população, incitando-os à revolta.
SEU-JOÃOZINHO-
Fazendeiro que rouba incentivos fiscais. É assaltado por Tião e pelo cabo Edeson, num trecho cômico do
romance. Está ligado a figuras da repressão militar. É ridicularizado na
narrativa.
EDESON-
Ex-cabo. Filho de um miserável trabalhador desamparado ao lado de sua
companheira,que depois de ter trabalhado durante toda a vida, não tem
direito aposentadoria. Revoltado
Edeson saqueia , distribui o dinheiro
com o povo, o pai não quer, e sai da narrativa assim . Já seus, pais, são
presos, não agüentam a vergonha e morrem.
Ainda sobre "Os Pardais Estão Voltando"A ação de “Os pardais...” transcorre nos “Anos
de chumbo” (O Estado golpista brasileiro pós-64). O narrador critica a mediocridade da cidade interiorana de
Bentuna. Com seus típicos cidadãos
conservadores e ignorantes, mesquinhos em seus hábitos e costumes: Época do
presidente Castelo Branco (“abaixo Deus, ele”, diz um dos
moradores ( P -34). O povo é acostumado : “ Não há quem lhes arranque da
goela seca uma palavra de revolta” (P- 35).
A narrativa não- linear em sua pulsação irônica , marca o tédio crescente de Fábio
,suas indecisões e conflitos como escritor e como povo. O comunismo surge como
pano de fundo( A famigerada Lei de Segurança Nacional) , e os brasileiros “ no
maior dos apertos vem com gracinhas fazendo chacotas da própria desgraça”
(P-86). “Quem neste país não se ilude
com carnaval, futebol e piadas, já arribou ou está preso” (P-87). Em Gilvan, a
revolta está acima de “esquerdas” ou “ direitas” .
É cômico ao
falar da palidez de um gato. É irônico ao referir-se ao povo de Bentuna: “tudo
buona família” (P-93), “não se sentia tanto a morte de uma batizada, com o céu
garantido, situava-se bem melhor do que
na Terra , neste vale de lágrimas
contaminado” (P-94). Traça paralelos entre Bentuna e o Recife(P-95) : “esta
mania de descobrir parecenças...”.
São muitas
as tramas ao redor de Fábio , o que aproxima
“ Os Pardais...” de uma novela
com seus múltiplos personagens. O
Realismo Fantástico(ou Mágico), espécie
de literatura do absurdo recurso muito utilizado pelo colombiano Gabriel Garcia Marquez, é criticado por
Gilvan ferozmente como modismo (P -124).
Uma das
passagens mais pitorescas do romance
talvez seja o ritual que precede a primeira relação sexual de Fábio: o
pai o examina num banho de açude e decide encaminhá-lo a uma prostituta
(P-140).
Outro
trecho de destaque : o que diz respeito
PADRE ALBERTO, que é chamado pelo povo de “homossexual comunista” por defender a
justiça social e questionar determinados
valores. O padre é agredido com duas pancadas na cabeça, drogado com éter e
colocado , nu, na cama de uma prostituta, desiste de Bentuna com a fé abalada.
No
capítulo l6, o primeiro parágrafo trata da mudança na paisagem depois de
uma “chuva boa”. Fábio é um homem perdido
no meio das incertezas, incapaz de encontrar novo rumo” (P.l65) . “Hoje que me
embaraço para realizar um romance, voar mais alto em sua realização(...)tenho
saudade do tempo em que desejava ser um grande homem para escrever belos
romances” (P-l67).
Nas
últimas linhas do romance (capítulo l7) , o discurso de Fábio confunde-se com o
do narrador: “Quando os lilases
plantados por Rita perfumaram agressivamente a primeira noite do seu
desabrochar...” (Rita sua empregada. É exatamente assim que começa “Os pardais...”
, também). “Puxou do cigarro uma longa tragada. Olhou o que tinha escrito.
Botaria uma vírgula depois de ´lilases`, outra depois de ´Rita`? Aquele
´desabrochar` também estava chato, muito chato. Riscou-o” .
Assim
encerra-se a narrativa : numa espécie de recomeço.
3. “Vingança de Desvalidos” (ensaio publicado na revista LeMangue)
Lançado pela
editora Nossa Livraria (Recife),o romance “Vingança de Desvalidos do pernambucano Gilvan Lemos,vem carregado de
significados.O mais importante deles é a
revolta que o autor exibe desde o rompimento com sua antiga editora, a Record,
e a ousadia de enfrentar o conservadorismo ao exibir uma narrativa repleta de explosões popularescas de personagens cujas
falas tecem-se no vocabulário (e universo) do “baixo calão”. Mais uma vez o
cenário é Pernambuco, especificamente o
Recife.
O personagem
central, de origem humilde, é o advogado Jorge, menino de origem humilde,
mimado pelos pais e abandonado pela mulher (Jane),que o considerava um bobo.
Os amigos de
Jorge são “Os Três Lascados”, paródia aos três Mosqueteiros de
Dumas:Noronha,Manuel e Cardoso. Desvalidos,como Jorge que é empregado de um
advogado cheio de falcatruas nas ligações com Brasília,o Agnaldo,disposto a ser
senador,presidente,governador de Pernambuco,qualquer coisa que queira,pois
Agnaldo te poder em Brasília.
Manuel,o
português,rouba senhoras na boca do caixa eletrônico.Uma delas,quando ele é
preso,cheia de tesão,livra-o das grades e oferece-lhe casamento. Ele
aceita,apesar de ter caso com Rita Cascuda,uma comerciante do Mercado de São
José,uma negra pobretona gostosa.Noronha,sempre sem um tostão e Cardoso é um
aposentado,vítima de FHC.
Os três
lascados marcam ponto na Leiteria Cristal,no centro do Recife.
Agnaldo
representa os ladrões de Brasília,colarinho branco,capazes de qualquer
coisa,dispostos a qualquer fraude.
Honestidade é
um jogo vulgar,que o(s) narrador(es) deste romance espicaçam num torneio
verbal onde,
desespero,ironia,miséria,tédio,frustração e humor,entrelaçam-se inseparáveis.
A
habilidade de Gilvan ao conduzir
diálogos,misturando-os ao discurso do narrador,é marcada por um niilismo
impressionante,estonteante,aterrador,hilário.
Sua visão
cáustica da vida e da realidade do nosso país é de tirar o fôlego.
“Há de chegar
o tempo em que o homem terá vergonha de ser honesto”,sentencia Rui Barbosa
(ridicularizado por Gilvan) na epígrafe dos “Desvalidos”.
“Galeguinhos”
e mulatos,pobres e ricos,estrangeiros e brasileiros,nordestinos e sulistas:as
dicotomias pululam numa espécie de maniqueísmo proposital que funciona como
antídoto contra o sistema que oprime.
A miséria
absoluta,relativa,abstrata,concreta.O não ter nada para comer e engolir capim.A
hipocrisia das colunas sociais,o imperialismo,o sexo,o álcool,o Governo,tudo é
alvo da metralhadora giratória do mestre de São Bento do Uma,que exibe seu
vigor,sua ira e assim propõe sua vingança:através das letras,dos comentários
ácidos,raciocínios letais,e,se pergunta sobre o pobre que aceita as
injustiças,conformado: “viver para ele era aquilo?Nunca teria tido uma
aspiração de vida?”
“Vingança de
Desvalidos” é um romance que congela a era FHC em lâminas de desespero
histérico,que se resolve às gargalhadas
e muxoxos diante do horror insolúvel.
São
aposentados e ativos vendo seu padrão de vida despencar até os abismos,esgotos,
de uma sociedade maluca ,guiada pelos Estados Unidos,que impregna nas pessoas a
falta de iniciativa.Paralisa a revolta.Várias vezes o romance faz crer que nunca uma revolta
popular,uma revolução, daria,ou
deu,certo Brasil.
A questão
familiar é estraçalhada pelo filho impotente,pelo casamento
fracassado,tedioso,pelo sexo torturante.
Em vários
momentos encontramos passagens escatológicas: “semeei de tártaro,purgante de
cavalo,o bolo comemorativo e as taças de champanha disponíveis sobre a
mesa.Antes disso avisei aos velhos: não comam bolo,nem bebam champanha.Pouco
depois a desgraça estava feita,era gente graúda cagando e vomitando de fazer
dó”.
Em outras
partes: “o cacete naquelas alturas (...) meu pau soluçava úmido de ansiedade.Jane
(mulher de Jorge) estertorava,serpenteava,molhava-me a cara com o suco de sua
boceta (...)e um filho,Jane,que tal um filho?-Pra me deixar de briga
quebrada,peitos de porca?(...) Pra fazer dele o que seu pai fez com você?(...)
num país onde o presidente,ministros,senadores,deputados,vereadores e
auxiliares,todos,roubam(...)o comendador Cheira Co e o desembargador Lambe
Pica(...) Têca Bunduda, Margô Peituda e
Glory Peidoreira, Artuzinho(ansiando por
uma churumela grande e grossas para socar no traseiro),todos posando para os
cronistas sociais(...) já viu algum empreendimento brasileiro que
preste?(...)você não se revolta vendo tanta safadeza por aí,os mais ricos
sempre botando nos mais pobres?(...) Monstros compondo-se e descompondo-se
pelos caminhos tortos de suas vidas mesquinhas(...)cobras(...)bichos como
confiar em gente rica?É tradição no Brasil governar contra o povo(...)
políticos denunciados nada sofrem(...) o Brasil fodeu-se nos últimos anos.As
dívidas externas e internas tornaram-se
absurdas(...) se eu pudesse botava uma bomba atômica no centro do Brasil,matava
todo mundo,morria também,mas ao lado dos outros não me importava(...)só vence
na vida quem for desonesto, vigarista”.
No meio disto
tudo uma fábula: o empresário Ojac, anão com pênis enorme,que é pai de
Djorge,cuja mãe teria “um bocetão do tamanho duma jaca aberta”,está entregando o Brasil para os Estados
Unidos.Em troca Ojac vai crescer e ficar do tamanho de John Wayne.Só que quando atinge tal tamanho, seu pênis
encolhe e fica do tamanho de uma
castanha.Para conseguir o que quis ele privatizou as estatais entregando-as aos
ianques.Ao voltar para o Brasil é pressionado pelos withoutlands e morre.
O Recife
descrito por Gilvan é um lugar empestado por miseráveis.Reconhecemos uma cidade
que apesar de completamente decadente ainda apresenta sinais de beleza,porém
está agonizando num labirinto de hipocrisia crepuscular e triste.
Num
Brasil cujas vidas são guiadas pela TV
“com suas novelas sem fim(...)amores
falsos,repetidos,copiados dos filmes classe b do cinema norte-americano,a
prender o povo em casa,chateado mas escravo de suas tramas ridículas”.
O grito do
autor é o mesmo que está preso nas nossas gargantas reprimidas.
“Me dê cinco
que eu chupo seu pau”,diz uma garota de sete anos,a um dos personagens do
romance,ilustrando a degradação a que chegamos.
“Tenho que
roubar”,pensa outro e mais um acostuma-se com a masturbação atiçada pelo
sabonete Phebo: “ainda tinha chance de vingar-se,embora apenas em pensamento”.
É um jogo de
metáforas gritantes.Gilvan mandou os pudores burgueses para o inferno.
E ataca:“pior que o sertão,só o sertanejo”.
Índios? “Bestas dançando a dança do cachorro(...) da onça(...)do jacaré(...) da
pomba mole”!
“Nunca
devemos ter papas na língua,tampouco deixar de esculhambar este país.É mesmo
uma avacalhação,dá preguiça,merece ser extinto do concerto universal”.
Joça e
Alicinha,pais de Jorge ,são pessoas honestas
que por acaso são assassinadas por um miserável, vítima da sociedade,o Regabofe.
Ojac,o pai de
Djorge,é a nação brasileira:nascida em 1822,a “independência”,e morta em
1999,época em que foi escrito o romance,ou 2001,em que foi publicado.
A ironia
continua: “pretendo fazer a Campanha de Incentivo à Mortalidade Infantil(...) mulher pobre
prenha?Leva-se ela à maternidade e lá mesmo os médicos dão fim ao feto ou
ao recém-nascido”.
O folclore
também é alvo para Lemos:”pobre no Brasil adora lantejoulas e paetês(...)e tome
bumba-meu-boi,chegança,pastoril,reisado,maracatu(...)um povo
feio,maltratado,caricaturado de rei,rainha,princesa.Uns poetas,ditos populares
pretensiosos como os diabos,exibindo-se na maior empáfia possível(...)pra
mim,chega(...) Escracho o Brasil para ver se o povo desperta”.
Nada escapa
aos olhos do autor.Tradição do cinema nacional?Chanchadas?”Ordinário e
primário,sem pé nem cabeças,imitando canhestramente
o que nos vinha de Hollywood.Todo ator brasileiro imitava um de Hollywood
Oscarito fazia pena,copiando os cacoetes de Carlitos”.
O Brasil
aparece como um personagem”desamparado,infeliz,buscando a proteção do pai,que
se transforma num Deus inatingível.Eu,decrépito”.E os tiros continuam:”São Paulo é para
Pernambuco o que os Estados Unidos são para o Brasil(imperialista) (...) tenho
nojo até dos hinos patrióticos,quando ouço,desligo o rádio.E canto tira Pirrita
teu marido do fuá,ou aquela cantiga que dizia à meia-noite no calor da foda...
É mais saudável”.
Não,Gilvan
Lemos não está para meias-conversas.Está jogando duro. Se é para morrer,é
melhor cair atirando.
“Judeu?Um
povo que elege um Deus só para fazer o que não presta em nome Dele,ou com o Seu
perdão”.
CPI do
narcotráfico?É formada pelos mesmos que investem no mercado das drogas.
Academia
Brasileira de Letras?É só subornar que até Jô Soares pode parar lá.
O presidente
da república?”Só persegue funcionários públicos do baixo escalão,protege os
graúdos”.
E os
personagens terminam concluindo: “se Deus não der a dor a gente esquece Dele e
não reza(...)vá,coma esta bruaca,já estou afolozado mesmo(...)são coisas da vida.Estamos sujeitos a tudo”.
Resta-nos a Vingança de Desvalidos,que somos.
-O ESTILO GILVAN LEMOS: Gilvan Lemos, autor de
linguagem expressiva e vigorosa das mais possantes nos anos 60/80 do nosso
insosso panorama intelectual brasileiro, é legítimo herdeiro da prosa Regionalista da geração de 30, revitalizando-a com sua contemporaneidade e seu estilo .
Características:
· Espontaneidade nos diálogos.
· Segurança ao fixar ambientes e tipos.
· Cria climas densos, dramáticos,
misteriosos.
· Critica a passividade do povo do
interior diante da opressão.
· Não se preocupa muito com a chamada
“cor local” , isto é descrição de paisagens, o que só é feito para
integrá-las ao lado da construção
psicológica das personagens.
-
Zomba
de "estrangeirismos”, e mesmo dos intelectuais do “sul”
-
Critica
a esquerda e a direita num ceticismo que atinge
até o anticlericalismo.
Livros publicados:
NOTURNO SEM MÚSICA - Romance ,
Ed. Nordeste, Recife /l956 . Prêmio Secretaria de Educação de Pernambuco.2ª
edição pela Ed. Bagaço, Recife 1996.
JUTAÍ MENINO - romance, Edições O
Cruzeiro, Rio/ 1968. Prêmio Orlando Dantas, Diário de Notícias , Rio . Prêmio
Olívio Montenegro UBE -PE . 2ª edição pela Ed. Bagaço , Recife / 1995.
EMISSÁRIOS DO DIABO - romance, Ed. Civilização Brasileira ,
Rio/1968).Prêmio APL . 2ª edição, Editora 3, São Paulo / 1974 , incluído na
coleção Literatura Brasileira Contemporânea. 3ª edição- Ed. Mercado Aberto, Porto
Alegre /1987.
O DEFUNTO AVENTUREIRO - Contos,
Ed. Universitária, Recife/ 1974. Menção honrosa do Prêmio José Lins do
Rego , da Ed. José Olympio, Rio.
A NOITE DOS ABRAÇADOS - novelas , Ed. Globo , Porto Alegre/ 1975.
OS OLHOS DA TREVA - romance, Ed. Civilização Brasileira, Rio/
1975.. Menção honrosa do Prêmio José
Condé , Recife. 2ª edição - Círculo do Livro, São Paulo /1983.
OS QUE SE FORAM LUTANDO - contos
, Artenova , Rio/ 1976.
O ANJO DO QUARTO DIA - romance, Ed. Globo, Porto Alegre/ 1976.
Prêmio Érico Veríssimo. 2ª edição - Ed Globo, São Paulo/ 1981).
OS PARDAIS ESTÃO VOLTANDO
- romance , Ed. Guararapes , Recife/ 1983.
MORTE AO INVASOR- contos . Ed. Francisco Alves, Rio/1984.
A INOCENTE FACE DA
VINGANÇA- contos , Ed. Estação
Liberdade, São Paulo/ 1991.
O MAR EXISTE- novelas ( incluídas no livro acima).
ESPAÇO TERRESTRE- romance, Ed.
Civilização Brasileira , Rio
1993.
ENQUANTO O RIO DORME-
novela, Ed . Bagaço , Recife/ 1993. (Uma das novelas de "A noite Dos
Abraçados" ).
CECÍLIA ENTRE OS LEÕES -
romance, Ed. Bagaço, Recife/1994. 2ª edição, pela mesma editora, em 1998.
NEBLINAS E SERENOS-
novelas , Ed. Bagaço, Recife 1994. ( duas novelas de "A Noite dos
Abraçados"). 2ª edição 1995.
A LENDA DOS CEM- romance, Ed Civilização
Brasileira, rio/ 1995.
MORCEGO CEGO- romance,
Ed. Record, Rio/1998.
Ariano Suassuna
“Eu vi a Morte, a
moça Caetana,/ com o manto negro, rubro e amarelo./ Vi o inocente olhar, puro e
perverso,/ e os dentes de Coral da desumana / Eu vi o Estrago, o bote, o ardor
cruel(...) Ela virá, a Mulher aflando as asas,/ com os dentes de cristal,
feitos de brasas (...) só assim verei a coroa da Chama e Deus, meu Rei, /
assentado em seu trono do Sertão”.
Ariano Suassuna
(Sonetos: “A Moça Caetana” e “A Morte”)
Uma análise da
obra teatral de Ariano Suassuna nos faz mergulhar nas nossas origens culturais.
Num recuo positivo em direção às sucessivas fontes que nos fizeram quem somos
hoje: misto de regional e universal.
Os primeiros
colonizadores trouxeram para cá a cultura européia, transmitida oralmente.
Assimilada pelos nordestinos, desenvolveram-se as influências ibéricas e
mediterrâneas.
Uma das
influências que Ariano sofreu foi a dos escritores Gil Vicente, português, e do
espanhol Calderón, ambos homens de teatro na época das grandes descobertas.
Suassuna pratica o entrecruzamento de textos, adaptando várias obras populares
(do cordel ao teatro europeu) ao seu modo. Conserva a língua popular, mas, com
grafia e correção gramatical eruditas. Prepara o espectador para uma moral conforme
o cristianismo. É muito comum em suas peças a cena de um “juízo
final”(juiz-acusador-defensor-réu).
Além de usar
textos alheios, recriando-os, Ariano pratica a intertextualidade, refazendo
cenas de suas peças(exemplo: “O auto da Compadecida”) e enxertando-os em outras
(em “A pena e a lei”).
Suas fontes vão de
Shakespeare até a Bíblia. A intertextualidade (“comunicação entre textos”) era
prática comum desde a Idade Média. Ariano a mantém, utilizando o cordel, o
bumba-meu-boi, o mamulengo e também mistura o popular ao erudito (Cervantes,
Moliére), fazendo tudo às claras, muito bem explicado em prefácios, palestras e
aulas.
PEÇAS PRINCIPAIS:
O AUTO DA
COMPADECIDA (1955): Como sabemos, um “AUTO” é o teatro medieval de
alegorias(pecado, virtude, etc.). Personagens como santos, demônios. É um
teatro de construção simples ,ingenuidade na linguagem, caracterização
exacerbada e intenção moralizante, podendo conter o cômico. Para escrever esta
peça, Suassuna baseou-se em folhetos populares - primeiro e segundo atos
baseiam-se em, respectivamente, “ O Enterro do Cachorro” e “A História do
Cavalo que defecava dinheiro “, textos de Leandro Gomes. O terceiro ato é uma
mistura de “O castigo da sabedoria”, de Anselmo Vieira e “A peleja da alma”, de
Silvino Pirauá Lima. A invocação de João Grilo à Maria e o nome “Compadecida”
também são inspirados em textos populares. João Grilo é o herói picaresco,
passou fome e mente para ganhar o que quer, seu amigo Chicó também é mentiroso.
A infidelidade da mulher do padeiro, a mesquinhez deste, o anticlericalismo e o
cangaço são analisados por Suassuna num julgamento presidido por Maria, Jesus
(negro) e atiçado por uma figura diabólica. No final, João Grilo volta à vida
depois de morto.
A FARSA DA BOA
PREGUIÇA (1955): Escrita em versos livres, tem trechos cantados. Cita a Bíblia
e Camões, poeta da Renascença portuguesa. Cada ato tem uma certa independência
um do outro (“O peru do cão coxo”, “A cabra do cão caolho” e “O rico
avarento”). A inspiração de Suassuna desta vez recai sobre a arte do mamulengo,
teatro de bonecos do Nordeste, com suas pancadarias e mestres, sua trama
simples, como por exemplo, o patrão sempre é culpado. A história do diabo que
quer levar uma mulher e um homem para o inferno. A exploração do homem pelo
homem. A falta de caridade , a preguiça, a prova imposta à mulher, a vitória,
seres celestiais disfarçados de pedintes e seres infernais oferecendo o pecado
são temas que mais uma vez nos remetem à referida simplicidade medieval que
apontamos no início deste estudo.
O CASAMENTO
SUSPEITOSO (1957): É uma comédia de costumes. Trata do tema casamento por
dinheiro. A ação se passa na casa da matriarca de uma família, dona Guida.
Travestimentos, cenas de pancadaria e sátira aos membros da igreja e da justiça
compõem esta peça. Cancão (figura tomada emprestada do bumba-meu-boi) é o
empregado esperto e também faz lembrar alguns personagens das comédias de
Molière (autor de comédias, francês).
O SANTO E A PORCA
(1957), o casamento da filha de um avarento. O “santo “ em questão é Santo
Antônio e a “porca” é um cofrinho, símbolo do acúmulo de dinheiro (tão protetor
quanto o santo).
A PENA E A LEI
(1959): Aqui Suassuna reaproveitou cenas de seus textos “Torturas de um
Coração” e da “Compadecida”, numa encenação que vai do boneco irresponsável ao
ser humano pleno diante de Deus (Benedito, Mateus, Cheiroso e Cheirosa
intensificam o cômico). A peça diverte mas também analisa as questões sociais:
trabalho na usina, reivindicações dos trabalhadores, companhias estrangeiras,
fome, prostituição em cenas curtas e de muita movimentação. A preocupação com a
moral está sempre presente e o trágico é diluído pelo cômico . São personagens
estereotipados. Suassuna também se utiliza das cantorias nordestinas.
RESUMINDO: a
comédia da antigüidade, o teatro religioso, a arte popular do Nordeste e seus
folguedos são as salutares influências deste mestre das letras que é o
paraibano Ariano Suassuna, Ex-aluno do Colégio Americano Batista do Recife (dos
10 aos 15 anos, uma fase de sua vida que sempre recorda com saudade), professor
de Filosofia, foi secretário de cultura do governo Arraes e que também é autor
de três romances: “Fernando e Isaura” (sobre um amor impossível”,), “Romance
d´A pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e Volta” .(Ed. José Olympio.
RJ. 1970), sobre um poeta que na década de 30 sonha em escrever um épico
nordestino e acaba preso como comunista e “História d´O Rei Degolado nas
Caatingas do Sertão: Ao sol da onça Caetana”, suas lembranças de infância e do
pai, mescladas num sertão mítico.
Ariano é fundador
do MOVIMENTO ARMORIAL , reafirmando no nordeste a influência ibérica, africana
e indígena.
A musicalidade dos
textos de Ariano é agreste. Sua poesia rebrilha à luz ardente do Nordeste.
“Não faço
distinção entre a cultura popular e a erudita. A cultura brasileira, a cultura
popular brasileira, não está ameaçada . Ela é resistente. Estão tentando
matá-la, mas não conseguirão”, diz Ariano e nos convida ao deleite com pérolas
do cancioneiro ibérico, a arquitetura africana, as cores da África, textos de
José de Alencar, de Aluízio Azevedo. E é no Romanceiro popular que Ariano mais
se inspira. Nas novelas de cavalaria, nos amores incríveis, nos heróis
picarescos (zombeteiros) que permeiam as histórias que o povo conhece. Ele
chega a usar um mesmo texto várias vezes como base para sua recriação. “A
novela da Renascença é picaresca. O personagem principal é a Fome”. Emigra para
o Brasil o herói pícaro ibérico, o astucioso que difere do opressor que é o
lado ruim. Ao comentar o Brasil antes de Cabral, Ariano reafirma nossa cultura
milenar: “Existia teatro indígena antes da chegada dos jesuítas. É absurdo
centralizar a origem do teatro. O teatro japonês não nasceu na Grécia. Tem
outra origem. O teatro indígena é um teatro de máscaras e excelentes figurinos
e enredos fascinantes que envolvem sua religiosidade. Eu queria que um cineasta
brasileiro fizesse com este tipo de teatro brasileiro o que o cineasta japonês
Kurosawa fez com o antigo teatro japonês, o teatro Nô e com o Kabuki. Injustiça
social não é base para a arte popular. Ela também não é primitiva. Os violeiros
vêem televisão, os artistas populares transformam as informações universais em
linguagem com temática local. Temos que fortalecer nossa cultura”. Para isso,
Ariano usa seus conhecimentos de Filosofia, História e Literatura, trabalhando
o belo de forma dialética, unindo-o ao cômico misturando o espírito intelectual
com a esperança no homem, fundindo nossa herança barroca com um espírito
neoclássico.
Análise do
“Romance d´A Pedra do Reino” (1970): Ariano recheia seu livro “Romance d´ A
Pedra do Reino” com humor malicioso e exibe sua perícia na selva das palavras.
Mistura nobres e pobres num processo criativo ímpar. Os colonizadores do Brasil
aparecem como bravos que tiveram coragem de matar para estabelecer novos rumos.
Ariano traz para a narrativa suas experiências com o teatro e a poesia, brinca
com a metalinguagem, expõe os “mistérios” da criação. O tema central do romance
são as artimanhas de Quaderna e a trágica história dos seus antepassados na
cidade de São José do Belmonte, interior de Pernambuco. Ariano, através da
narração em primeira pessoa (Quaderna), descreve paisagens e situações
alucinantes, reinventa a cronologia, adapta fatos históricos à sua ficção (a
magia das grandes navegações, as cruzadas, os romances de cavalaria, as
revoluções. Se Alencar foi exuberante mas não ousou exibir um herói picaresco,
Ariano, com seu Regionalismo natural, busca as interseções entre o popular e o
erudito, misturando a poética aristotélica com Romantismo e buscando o êxtase
criativo num realismo que alguns intelectuais rotulam de mágico, fantástico. O
encatatório, o mítico, o exótico vão delineando o espaço criativo que traça o
painel do sonho de uma monarquia de esquerda, sonho que Ariano alimentou
durante algum tempo. Obcecado em criar uma epopéia nordestina, o narrador
torna-se cômico e o recurso Deus ex machina (sobrenatural) surge para resolver
as inquietações da alma que perturbam a raça humana. Outro mito recorrente é o
sebastianismo.
Podemos até
arriscar em julgar o discurso de Ariano como um discurso maniqueísta que recusa
a polifonia. Mestre na arte literária, ele criou um herói bufão numa espécie de
circo fantasioso e hedonista em busca de um sentido, de dignidade, num
emaranhado de “causos” alinhados por uma escrita competente que se utiliza do
pictórico (xilogravuras) para reforçar seu discurso que, no fundo, transforma o
interior de Pernambuco numa espécie de Camelot da caatinga, onde humor e
malícia unem-se ao ingênuo, à lenda do cavaleiro que enfrenta as instituições
(representadas no texto pelo Corregedor) e o imaginário supera o racional na
reinvenção do passado histórico, através da alquimia verbal típica de Suassuna
que rompe a linearidade, enxertando a todo instante várias tramas secundárias à
narrativa central, numa colagem que redimensiona a obra em pequenos contos. O
julgamento de Quaderna é a espinha dorsal do texto que vai buscar nos poetas
populares (cordel e emboladores) suas referências. Depois de trair seus amigos
covardes, Quaderna busca a imortalidade através da Literatura, quer ser
fidalgo. Quer louvar sua estirpe. Tenta reiventar Homero, a sua Odisséia é
através do Atlântico nordestino e sua Ilíada tem como palco o sertão, ali está
a Onça Caetana (a morte, a vida, o amor, a nacionalidade). Seres fantásticos
pululam ao lado de personagens estilizados numa narrativa explosiva recheada de
situações absurdas.
Ascenso Ferreira
Pernambucano
nascido em 1895 na cidade de Palmares, Ascenso Ferreira faleceu em Recife no
ano de 1965.
Inicialmente preso
aos moldes parnasianos, assumiu o modernismo em 1922 e em 1927 lançou seu livro
de poemas “Catimbó”; em 1930 foi a vez de “Cana Caiana”. Em 1951, uma edição
luxuosa contendo as duas obras citadas e um terceiro livro “Xenhenhém”, além de
um disco com melodias para os poemas.
São poemas que
pedem um público ouvinte, daí dizer- se que sua poesia é mais para ser recitada
e ouvida do que impressa e lida.
Quem não ouviu
Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar seus poemas,
não pode fazer idéia das virtualidades verbais nelas contidas, do movimento
lírico que lhes imprime o autor. Assim, em ‘Sertão´, quando ele começa:
‘Sertão! - Jatobá ! / Sertão! - Cabrobó ! / - Ouricuri!´.
A palavra ‘sertão´
é pronunciada em voz de cabeça, como um prolongado grito de aboio, ao passo que
‘Jatobá´ e ‘Cabrobó´ caem pesadamente do peito, sinistramente escandidas
(separadas), evocando desde logo a caatinga. E o resto vem vindo quase
sussurrando, um recolhimento quase religioso (...), um sortilégio evocativo
tanto pelo ritmo como pela musicalidade.
De repente, eis
que o poeta abandona o verso livre, o vozeirão catastrófico e assume o tom
dançarino, a cadência de quem vai pastoreando reses mansas: ‘Lá vem o vaqueiro,
pelos atalhos, / Tangendo as reses para os currais / Blém... blém, cantam os
chocalhos / Dos tristes bodes patriarcais.´
Esta passagem sem
preparação do verso livre para os metrificados constituem a característica da
forma tão pessoal de Ascenso.
‘É lamp ... é lamp
... é lamp ... / É Virgulino Lampião ... / E O urro do boi no alto da serra, /
para os horizontes cada vez mais limpos, / tem algo de sinistro como as vozes /
dos profetas anunciadores de desgraças ... / - O sol é vermelho como um tição!
/ - Sertão! / Sertão!´.
“Ver e sobretudo
ouvir Ascenso, é viver intensamente no mundo dos mangues do Recife, do massapê
e das caatingas, das cavalhadas, pastoris, maracatus, vaquejadas (...) Ascenso
identificou- se com o homem do povo de sua terra mesmo quando este é o cangaceiro
que a fatalidade mesológica (do meio onde vive) marcou com o estigma do crime”,
afirmou o recifense Manuel Bandeira. O Sertão estava no sangue de Ascenso.
O poeta perdeu o
pai aos 7 anos, numa cavalhada. Sua mãe, que fora abolicionista , foi sua única
professora durante anos.
Dos sonetos e
baladas, madrigais, até a poesia brincalhona, foi um passo. O “primeiro
Ascenso” cismou com o Modernismo de São Paulo, mas aproximou-se de Mário de
Andrade e, claro, de Manuel Bandeira.
Com Gilberto
Freyre, Joaquim Inojosa e Joaquim Cardozo fundamentaram o Regionalismo
Modernista em Recife.
Se o modernismo
paulista aderia aos modelos franceses e italianos, o recifense aproveitou
somente o verso livre, o humor, a linguagem coloquial, enfim, pouca coisa das
vanguardas de além-mar.
“O freguês que não
bebe não é bom cristão! / Peia nele, mestre Mateu!´ / E o coro canta em
profusão: / `Se a aguardente era o diabo, pra que bebeu? / Se o copo era
grande, pra que encheu!´ (...) Se a mulher era o diabo, pra que bebeu / essa
jurema que é o beijo seu!“.
“Cana Caiana” é um
frege que lembra música popular, embolada. Uma poesia “estranha e doce” de um
poeta “legítimo”, como disse Luís da Câmara Cascudo, que relembra: Ascenso dava
risadas de “acordar os defuntos de Santo Amaro” (cemitério de Recife).
“- Viva o
arco-íris (...) Vamos pegá-lo (...) fugiu ... / a chuva fina tem carícias de
morte ... / Fugiu ... / Para o sul? Para o norte / - Quem sabe! / Desapareceu
... / Além ... /Vida-Arco-íris também ...” (in “Arco-Íris “ do livro
“Catimbó”).
Os engenhos de
“fogo morto”, os maracatus, a sensualidade da mulher pernambucana, a culinária,
a lua, o mar, o frevo, tudo isso mistura- se na poesia deste poeta de Palmares,
cujo ritmo é contagiante.
“O sino bate, / o
condutor apita o apito, / solta o trem de ferro um grito, / põe-se logo a
caminhar... / - Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende / Vou danado
pra Catende / com vontade de chegar / Mergulham mocambos / nos mangues
molhados, / moleques mulatos, / vêm vê-lo passar. / - Adeus, - Adeus /
Mangueiras, coqueiros, cajueiros em flor, / Cajueiros com frutos / já bom de
chupar ... / - Adeus, morena do cabelo cacheado! / (...) Mangabas maduras, /
mamões amarelos (...) o Pai- das Mata! (...) a casa das Caiporas! (...) Meu deus!
Já deixamos a praia tão longe ... / No entanto avistamos outro mar ... (...)
Cana-caiana / Cana roxa / cana-fita/ todas boas de chupar” (in “Trem das
Alagoas” de “Cana- Caiana”).
Manuel Bandeira
O livro “Estrela
da Vida Inteira” é, na verdade, um conjunto de livros do poeta recifense, um
dos mais ternos do Brasil, Manuel Carneiro de Sousa Bandeira(1886-1968). São
eles: Cinza das Horas (1917): Nele podemos perceber que o poeta, vindo da
tradição simbolista e parnasiana,mantém com ela profundos laços e caminha,
paradoxalmente, para uma ruptura dessa tradição. “O que tu chamas tua paixão /
É tão somente curiosidade. / E os teus desejos ferventes vão / Batendo as asas
na irrealidade ... / Curiosidade sentimental / Do seu aroma,sua pele. / Sonhas
um ventre de alvura tal, / Que escuro o linho fique ao pé dele(...) E acima
disso, buscas saber / Os seus instintos, suas tendências... / Espiar-lhe na
alma por conhecer / O que há sincero nas aparências.” (trecho de “Poemeto
Irônico”)
Carnaval (1919):
Muito bem recebido pela nova geração da época e por parte da crítica
especializada. “É um livro sem unidade. Sob pretexto de que no carnaval todas
as fantasias se permitem, admiti na coletânea uns fundos de gaveta, três ou
quatro sonetos que não passam de pastiches parnasianos, e isto ao lado das
alfinetadas dos `Sapos´”, disse o poeta. O poema “Os Sapos” é uma sátira ao
parnasianismo e foi lido por Ronald de Carvalho durante a Semana de Arte
Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922. O poema seria considerado
uma espécie de hino nacional dos modernistas. Outro poema deste livro: ”Na
velha torre quadrangular / Vivia a Virgem dos Devaneios ... / Tão alvos braços
... Tão lindos seios... / Tão alvos seios por afagar...” (em “Baladilha
Arcaica”).
O Ritmo Dissoluto
(1924): Neste livro Bandeira começa a explorar mais sistematicamente a
simplicidade popular e um certo prosaísmo. É um livro,como o próprio poeta via,
de “transição entre dois momentos de sua poesia”. “A doce tarde morre. E tão
mansa / Ela esmorece, / Tão lentamente no céu de prece, / Que assim parece,toda
repouso, / Como um suspiro de extinto gozo / De uma profunda, longa esperança /
Que, enfim cumprida, morre, descansa ...” (em “Felicidade”).
Libertinagem
(1930): Com a publicação deste livro,pode-se dizer que a poesia de Bandeira
amadureceu definitivamente, no sentido de uma liberdade estética. Além disso, o
poeta consolidou sua temática existencial e explorou com mais freqüência as
cenas e imagens brasileiras. Poemas que se transformaram em clássicos: “Não Sei
Dançar”, ”Pneumotórax”, ”Poética”, ”Evocação do Recife”, ”Poema tirado de uma
Notícia de Jornal”, ”Teresa” e “Vou-me Embora para Pasárgada”.
“Uns tomam éter,
outros cocaína. / Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. /Tenho todos os
motivos menos um de ser triste. / Mas o cálculo das probabilidades é uma
pilhéria...” (em “Não Sei Dançar”). “Recife / Não a Veneza americana / Não a
Mauritstadt dos armadores das Índias Ocidentais (...) Mas o Recife sem história
nem literatura / Recife sem mais nada / Recife da minha infância” (em “Evocação
do Recife”).
Estrela da Manhã
(1936): Bandeira tinha 50 anos quando, sem encontrar editor, publicou 50
exemplares na marra (papel doado e impressão custeada por subscritos). Alguns
músicos interessaram-se por seus textos, como Jaime Ovall e Radamés Gnatali,
entre outros. Em 1945, o poeta compôs as letras para uma série de canções, a
pedido do maestro Villa-Lobos, que queria composições tipicamente brasileiras
para serem cantadas em ocasiões festivas. Foram reunidas com o nome de Canções
de Cordialidade (“Trem de Ferro”, ”Berimbau”, “Cantiga”, “Dona Janaína”, ”Irene
no CÉU”, ” Na Ruia do Sabão”, “Macumba do Pai Zuzé”, “Boca de Forno”, “O Menino
Doente” e “Dentro da Noite”, publicados em outras obras.
“As três mulheres
do sabonete Araxá me invocam,me bouleversam,me hipnotizam. / Oh, as três
mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde! / O meu reino pelas três
mulheres do sabonete Araxá! / Que outros, não eu, a pedra cortem / Para brutais
vos adorarem, ”Ó brancaranas azedas, / Mulatas cor da lua vem saindo cor de
prata / Ou celestes africanas (...) Meu Deus, serão as três Marias? / A mais
nua é doirada borboleta / Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava
pra e nunca mais telefonava / Mas, se a terceira morresse ... Oh, então, nunca
mais a minha vida outrora teria sido um festim”. (em “Balada das Três Mulheres
do Sabonete Araxá”)
“Modelo de uma poesia
lírica a que se mistura IRONIA e mesmo o sarcasmo. A poesia evolui num certo
sentido humorístico, num certo sensualismo (Canção das Duas Índias “Entre estas
Índias de leste / E as Índias ocidentais / Meu Deus que distância enorme /
(...) Sirtes sereias medéias / Púbis a não poder mais...” Balada das Três
Mulheres do Sabonete Araxá, as mulheres que hipnotizam o poeta, as mulatas cor
da lua, as celestes africanas, “as prostitutas, as declamadoras, as acrobaras
ou as Três Marias?), um erotismo que parece não se concretizar, pois as
mulheres, as duas índias são comparadas às inacessíveis praias – o humor
amargo” à maneira dos ingleses Oscar Wilde e Lord Byron”.
O eu-poético começa
procurando a estela da manhã “Eu quero a estrela da manhã” – O que seria afinal
essa estrela? Abre-se aqui um campo de interpretações (texto aberto) – e
termina encontrando apenas a estrela Vésper (o ocaso, o fim da tarde será o fim
da vida? “Vésper em cuja ardência não havia a menor parcela de
sensualidade”. Quer a estrela-d’alva, a
rainha do mar, quer apenas ser feliz e poder descansar. O eu-poético se sente
só e sua busca parece resultar em nada” (...) gritava o seu nome três vezes /
Dois grandes botões de rosa murcharam / e o meu anjo da guarda quedou-se de
mãos postas no desejo insatisfeito de Deus.” A saída parece nunca existir, fato
que se repete em Conto Cruel. O pai que sofria de UREMIA toma injeção de sedol,
mas não consegue dormir e “Jesus-Cristinho” nem se incomoda com os apelos.
A amargura do eu-poético,
a sua solidão deixa-se notar no poema Marinheiro Triste. Compara sua vida com a
do marinheiro. O poeta é uma pessoa amargurada, de uma amargura “nobre e
funda”, uma tristeza consciente (assim como a do poeta da “vida inteira que
poderia ter sido e que não foi”.) O destino do marinheiro, seu lugar seguro é o
navio (“o feroz casco sujo amarrado ao cais” para onde volta mesmo sem saber se
será feliz (deveria voltar bêbado?). Ao marinheiro restará no mínimo) o horizonte imenso”, mas ao poeta nada
restará. Talvez a morte. Morte que contempla em Momento num café ao olhar um
esquife que passava.
No percurso da busca, o
eu-poético faz reflexões sobre o beco. O beco que aprendeu a cantar num dístico
(poema de dois versos).
A temática social (pouco
freqüente nos textos do poeta) aparece também na prosa poética Tragédia
brasileira e em Rondós dos Cavalinhos. Veja que o crime ou a tragédia brasileira
– o assassinato de Maria Elvira – ocorreu na rua da Constituição (será que
poderemos remeter aos crimes, assasinatos na época da ditadura?). Maria
representa a gente do povo e Misael trabalha para o governo – Ministério da
Fazenda. Metaforicamente ele é o Governo e ela é a prostituta (Bandeira tem
admiração especial pelas prostituídas – por ser uma excluída?). Para José de
Nicola, Misael, num gesto populista, comprou Maria Elvira (= povo) com algumas
coisas (pseudo paternalismo), o mesmo que fez Getúlio Vargas antes de preparar
o golpe de Estado (governo populista), comprou o povo a fim de garantir-se no
poder. Vale destacar que quando o crime ocorreu, Maria Elvira morava na Rua da
Constituição e Misael já era um sujeito, “privado de sentimentos e inteligência”.
Na Constituição estariam algumas contradições?
Como esse poema foi
escrito na década de ‘30 – a era Vargas – talvez a Tragédia Brasileira tenha
uma ligação com o momento político que vivíamos.
Vale destacar que
Bandeira mexeu com a estrutura da tragédia à maneira dos gregos pois os
personagns pertencem a uma classe que não é dominante, ou seja, é gente do
povo.
Já em Rondó dos
Cavalinhos o poeta se mostra mais irônico, sarcástico ao falar (indiretamente)
do Brasil político, um Brasil distante do elemento sensível: “O Brasil
politicando, / Nossa! A poesia morrendo...”
A metrificação curta, o
ritmo leve aparecem principalmente em Cantiga (pentassílabos – redondilha
menor). O ritmo leve das brincadeiras infantis é exibo também com Boca de Forno
(intertexto) e Trem de Ferro. Neste último, podemos perceber a língua errada do
povo’, ‘língua certa do povo’, ou seja, o jeito de o brasileiro falar, como
falamos, como somos. O recurso da polifonia a permitir a voz do outro no texto:
“Oô... / Quando me prendero / no canaviá / Cada pé de cana / Era um oficiá / Oô
... / menina bonita / Do vestido verde / me dá tua boca / Pra matá minha sede /
Oô ... / Vou mimbora voi mimbora / não gosto daqui / nasci no sertão / sou de
Ouricuri / Oô ...”
Além dos temas desenvovidos
por Bandeira (a família, a morte, a infância no Recife, o Rio Capibaribe)
podemos destacar a preocupação do poeta com os outros: “os mendigos, os meninos
carvoeiros, as prostitutas, os carregadores de feira-livre, as ‘pálidas
crianças, tristes, asiladas, os meninos sem amor de mãe que viviam de caridade,
em vestes tristes como mortalha. As Irenes pretas, os Joões gostosos, as flores
muchas da vida a cobrar do eu-poético esperanças. Flores Murchas é um poema que
funciona como um canto de solidariedade ao povo, um povo que também precisa da
Estrela da Manhã.
Bandeira é ainda o poeta
das lembranças: a infância, o Recife, Juiz de Fora e suas manhãs, suas
“jabuticabeiras cansada de doçura, o cineminha namoriqueiro, o parque
senhorial, os bondes dando sem pressa voltas vadias, o primeiro sorriso da doce
província de Minas Gerais. O poeta em Declaração de Amor lembra o poeta Mauro
Mota na busca do tempo na Farmácia, um tempo “tão de dentro deste Brasil”.
Lira dos Cinqüenta
Anos (1940): Publicação de emergência, o primeiro convite que o poeta recebeu
de uma casa editora. Bandeira candidatou-se à Academia Brasileira de
Letras.“Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada /Ribeirão trepidante e de
cada recosto / De montanha o metal rolou na cascalhada / Para o fausto
d´El-Rei,para a glória do imposto / Que resta do esplendor de outrora? Quase
nada: / Pedras...templos que são fantasmas do sol- posto.” (em “Ouro Preto”)
“Vi uma estrela
tão alta, / Vi uma estrela tão fria! / Vi uma estrela luzindo / Na minha vida
vazia / Era uma estrela tão alta! / Era uma estrela tão fria! / Era uma estrela
sozinha/Luzindo no fim do dia” (em “A Estrela”)
“Lapa - Lapa do
Desterro -, / Lapa que tanto pecais! / (Mas quando bate seis horas, / Na
primeira voz dos sinos, / Como anunciava / A conceição de Maria, / Que graças
angelicais!” (em Última Canção do Beco”) Belo Belo (1948): Esse título foi
tirado de um poema da Lira dos Cinqüent´Anos. Numa edição posterior, de 1951,
foram acrescentados alguns poemas. “Vamos viver no Nordeste, Anarina. /
Deixarei aqui meus amigos, meus livros, minhas riquezas, minha vergonha /
Deixarás aqui tua filha, tua avó, teu marido, teu amante. / Aqui faz muito
calor. / No Nordeste faz calor também. / Mas lá tem brisa”. (em “Brisa”)
”Belo belo minha
bela / Tenho tudo que não quero / Não tenho nada que quero / Não quero óculos
nem tosse / Nem obrigação de voto (...) Belo belo / Mas basta de lero-lero /
Vida noves fora zero” (em “Belo Belo”)
Mafuá do Malungo
(1948): Publicado na Espanha por iniciativa de João Cabral de Melo Neto. Mafuá
significa feira popular, malungo é um africanismo, significando companheiro.
Nesse livro, Bandeira faz jogos com as primeiras letras das palavras, faz
também sátiras políticas, brinca “à maneira de” outros poetas.”
“Olhei para ela
com toda a força. / Disse que era boa. / Que ela era gostosa, / Que ela era
bonita pra burro: / Não fez efeito (...) Virei pirata (...) Então banquei o
sentimental (...) Escrevi cartinhas (... Perdi meu tempo: não fez efeito. / Meu
Deus que mulher durinha! / Foi um buraco na minha vida. / Mas eu mato ela na
cabeça: / Vou lhe mandar uma caixinha de Minorativas, / Pastilhas purgativas: /
É impossível que não faça efeito!” (em “Dois Anúncios”: “ I - Rondó de efeito”)
Opus 10
(1952-1955) A expressão do título vem do universo da música. A palavra latina
Opus indica genericamente obra, composição, e o número indica a posição de
determinada peça num conjunto de composição do autor. Nomeando um livro seu a
partir de uma expressão tomada no universo da música, Bandeira ressalta a
importância da música e da musicalidade em sua obra.
“Como em turvas
águas de enchente / Me sinto a meio submergido, / Entre destroços do presente /
Dividido,subdividido, / Onde rola, enorme, o boi morto (...) Morto sem forma ou
sentido / Ou significado. O que foi/Ninguém sabe.Agora é boi morto” (em “Boi
Morto”) “Grilo toca aí um solo de flauta. / - De flauta? Você me acha com cara
de flautista? / - A flauta é um belo instrumento. Não gosta? / - Troppo dolce!” (em “O Grilo “).
Estrela da Tarde
(1960) reeditado em 1963,com novos poemas. É a maturidade do poeta completo que
Bandeira já é ao tempo deste livro,onde ele tanto retorna ao soneto tradicional
(reinventado na sua poética),como se utiliza de recursos gráficos –talvez
inspirados nas vanguardas contemporâneas-na montagem de poemas como “O Nome em
Si”.
“Vejo mares
tranqüilos, que repousam, / Atrás dos olhos das meninas sérias. /Alto e longe
elas olham,mas não ousam / Olhar a quem as olha, e ficam sérias” (em “Variações
Sérias em Forma de Soneto”).
Lira do Brigadeiro
“Depois de tamanhas dores, / De tão duro cativeiro / às mãos dos interventores,
/ Que quer o Brasil inteiro? / - O Brigadeiro! (...) Brigadeiro da esperança, /
Brigadeiro da lisura / Que há nele que tanto afiança / A sua candidatura? / -
Alma pura! (...) Abaixo a politicalha! / Abaixo o politiqueiro! / Votemos em
quem nos valha: / Que nos vale, brasileiro? / - O Brigadeiro! (...) O
Brigadeiro é católico (...) Comunga, mas não comunga / Com os impostores ateus
/ E os ricos do Estado Novo: / Comunga só com o seu Deus / E com o povo! (...)
- Não voto no militar; voto no homem escandaloso. / - Ué, compadre, quem é o
homem escandaloso? / - O Brigadeiro (...) Não zunzuna / Nem não fala atoamente;
/ Será nosso presidente / Estava no seu destino / Desde que ele era tenente /
Desde que ele era menino”
OUTROS POEMAS. “O
SUPLICANTE - Padre Nosso, que estás no céu santificado seja o teu nome. Venha a
nós o teu reino. Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. O pó
nosso de cada dia nos dá hoje... / O SENHOR (interrompendo enternecidíssimo) -
Toma lá,meu filho. Afinal tu és pó e em pó te converterás!” (em “Sonho de uma
noite de coca”)
“Casa Grande &
Senzala” / Grande livro que fala / Desta nossa leseira / Brasileira / Mas com aquele
forte / Cheiro e sabor do Norte / - Dos engenhos de cana / (Massangana!) (...)
Se nos brasis abunda / Jenipapo na bunda, / Se somos todos uns / Octoruns / Que
importa? E lá é desgraça? / Essa história de raça, / Raças más,raças boas (...)
É coisa que passou / Pois o mal do mestiço não está nisso. / Está em causas
sociais, / De higiene e outras que tais: / Assim pensa,assim fala / Casa Grande
&Senzala. / Livro que à ciência alia / A profunda poesia / Que o passado
revoca / E nos toca / A alam de brasileiro, / Que o portuga femeeiro / Fez e o
mau fado quis / Infeliz!”.
João Cabral de Melo Neto
Nascido em Recife, João Cabral (1920-1999) descende de senhores de engenho, onde passou a infância e recebeu grande influência. No Recife, jogou pelo time Santa Cruz. É primo de Gilberto Freyre e de Manuel Bandeira. Foi para o Rio de Janeiro em 1942 e em 45 ingressou na carreira diplomática. Seu primeiro livro Pedra do Sono foi publicado em Recife e é composto por poemas curtos em versos regulares e brancos. “Pedra” simboliza sua obsessão pela ordem e clareza. “Sono” é conotação para a poesia que o escritor quer transformar em objeto numa linguagem despretensiosa, coloquial, irônica. Há neste lançamento influência das vanguardas (surrealismo, cubismo, semana de 22,etc.), como detectamos no poema “Noturno”: “o mar soprava sinos/ os sinos secavam as flores/ as flores eram cabeças de santos/ minha memória cheia de palavras/ meus pensamentos procurando fantasmas/ meus pesadelos atrasados de muitas noites”. Em 45, publica O Engenheiro, poemas (“máquina de comover”) com projeto geométrico de construção, rigor. Dedica-o a Drummond e faz referências a Miró, Picasso, Mondrian. Além de metapoesia, há limpidez na linguagem, preocupação com a disposição gráfica das estrofes. Em 47, surge Psicologia da Composição (com “Fábula de Anfion” e “Antiode”). A “fábula” é poema narrativo onde o anti-herói livra-se da emoção. Anfion construiu ao som de sua lira, a muralha de Tebas. Em 1950: O Cão sem Plumas, escrito em Barcelona, denuncia a realidade nordestina também no poema “O Rio”(em 1ª pessoa,com técnica dos romanceiros ibéricos) onde o eu-lírico é o próprio rio. Engenhos, usinas, trem, afluentes, misturam-se na viagem do sertão ao mar. Morte e Vida Severina é de 1956: o narrador em primeira pessoa nos conta (em forma de auto de natal-pernambucano) sua trajetória de desilusão e desgraça do sertão pernambucano até o Recife. Sua condição severina (severa, vulgar) cujo único consolo é o nascimento de uma criança (que presencia no final do poema). Em Paisagem com Figuras (56), compara o norte da Espanha com a paisagem nordestina. Quaderna (60) é antilírico e composto por quartetos rimados. Dois Parlamentos (61) parodia a gratuidade e a recorrência da fala dos políticos institucionais, distanciados da realidade (“Congresso no Polígono das Secas” e “Festa na Casa Grande”). Em Serial (“Terceira Feira”), de 1961, encontramos poemas compostos em série, ultrapassando o lirismo e a musicalidade. Como característica: busca da forma, e lucidez severa da composição. Educação pela Pedra (66) é coletânea que expõe a “depuração” atingida pelo poeta num processo rigoroso e sistemático, comparável à resistência / consistência da pedra. Museu de Tudo (76) é composto por poemas que diferem da simetria habitual do autor (por isso seu rigor eliminou tais poemas dos livros anteriores). Escola das Facas (80) “poemas pernambucanos”, Cabral retoma a preferência pela simetria. Há notas memorialistas e a 1ª pessoa (sem despersonalização, eis a diferença). Em 82, publica Poesia Crítica, cujo tema é a criação poética. É o artista a refletir sobre a própria arte. Em 84 surge O Auto do Frade, um poema para vozes. Como Morte e Vida Severina, este também é para ser lido em voz alta. O tema é Frei Caneca, mentor da Confederação do Equador (movimento republicano em Pernambuco), executado em 1825, por ordem de Pedro I. O poema retoma o último dia do líder carmelita. O povo o vê caminhando para a morte:
“-Ei-lo que vem
descendo a escada, degrau a degrau. Como vem calmo.
- Crê no mundo,e
quis conserta-lo.
- E ainda crê, já
condenado?
- Sabe que não o
consertará.
- Mas que virão
para imita-lo.” Em 85 e 87, respectivamente são publicados Agrestes e Crime na
Calle Relator. Ficou o senso de medida e a expressão sem excessos ou derramamentos,
a despoetização do poema que, longe da retórica, concentra a emoção dando à
palavra espessura, concretude. Mais qualidade do que quantidade. Cada uma com o
máximo de conotação possível. Emoção passando pelo crivo da precisão,
humanitariamente: a presença do humor numa “concepção objectualista”. Um verso
substantivo e despojado, que nos deu uma nova perspectiva do discurso lírico.
Até hoje, a nos seguir, está o cão sem plumas (=pêlos) arrastando ainda
detritos das casas grandes & senzalas. Prosaico, lírico, polirrítmico,
severo e pícaro. Violentando o horizonte nordestino com sua forma dura. A palo
seco: sem guitarra, sem mais nada. Só a lâmina da voz, sem tempero ou ajuda.
Com sua chama nua sobre o fio de cobre. Ferro contra pedra. Ferro contra ferro.
O rio como um cão vivo. “O que vive não entorpece / o que vive fere (...) viver
é ir entre o que vive...” Ariano disse que João Cabral é parte da formação e
manutenção da identidade nacional. Haroldo de Campos o considera um dos maiores
poetas do Brasil. A Espanha e os EUA já o reverenciaram. Cabral resmunga: “Me
considero um marginal na poesia luso-brasileira. Como foram Sousândrade e
Augusto dos Anjos.” Nosso poeta resgatou o homem,como o Barroco resgatou Deus.
Numa literatura que busca o “engajamento”. Em 1968, assumiu a cadeira deixada
por Assis Chateaubriand na Academia Brasileira de Letras. Em 53, acusado de
comunista, passou algum tempo afastado da carreira diplomática. Cabral negou a
experiência de 22. Augusto de Campos disse que ele não tinha “antecedentes” (só
“conseqüentes”). “A poesia concreta não depende de mim”, sentenciou Cabral do
alto dos seus oito livros de poemas e dois autos dramáticos. Em prosa, lançou
estudo sobre Juan Miró. “Plantas franzinas em ambiente de rapina”, foi como descreveu
os camponeses da zona da mata pernambucana. O nordestino é marcado pela
paisagem.
Chico Science e outros poetas do Movimento Mangue (“A Cena
Recifense dos anos 90”)
“Eu já me disse uma vez/ Minha
jangada vai voar [...] Eu vou morar depois do mar/ Deixo saudade pra vocês
[...] Num banho, a consciência se afogar de uma vez/De cor e cheiro as águas
mudarão eu sei/ Mas estarei longe demais/ Eu vou morar do Mar pra lá”
Jorge dü Peixe
Quando o mundo começou a ficar conectado por transmissores, muita gente
profetizou que as diferenças culturais estariam com seus dias contados.Hoje,
depois de tantas décadas de aldeia global essas previsões não podem mais ser
levadas a sério.Muitas diferenças já desapareceram, é claro.Mas novas
diferenças, produtos da voracidade com que os povos do Terceiro Mundo
incorporam a tecnologia ocidental, surgem todos os dias, modificando todas as
fronteiras.A pobreza dos seus criadores não tem tanta importância: vale mais
ter sua fome canalizada na direção da antropofagia cultural certa.Isso não quer
dizer que vivemos num planeta de igual oportunidade para todos.O Brasil é um
país de famintos.Um país que (como já disse Gilberto Gil) só reconhece raiz se
for de mandioca.Um país que para saciar sua eterna fome, pode até misturar
maracatu rural com heavy metal.Tudo isso com molho de caranguejo mutante.Do
mais profundo mangue.
Hermano Viana
I - Fusão Cultural: um entre-lugar chamado Recife
Neste ensaio comentaremos algumas idéias do crítico
indo-britânico Homi K. Bhabha, professor na Universidade de Chicago, expressas
no livro “O Local da Cultura” (Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001),
doravante citado como OLC, que trata das questões hibridismo cultural,
pós-colonialismo e nação, pós-estruturalismo, semiótica, psicanálise, enfim: a
questão cultural e suas “fronteiras”, da produção de signos, identidade hoje,
tradição recebida versus produção de identidades minoritárias. Usando este
texto como referência faremos então uma análise do fenômeno Chico Science,
artista que deu nova feição à cultura pernambucana nos anos 90 do século
passado ao criar, junto com outros artistas de Pernambuco, o chamado Movimento
Mangue, também conhecido como Manguebeat ou Cena Recifense. Este movimento
fundiu as tradições culturais com as inovações contemporâneas.
O pernambucano Francisco
de Assis França, Chico Science (1966-1997), reativou a força cultural das
minorias destituídas como o camelô, os emboladores, os batuqueiros,
transformando sua arte no que Bhabha chamaria um “espaço de intervenção”, um entre-lugar, vivenciando as
“fronteiras do presente”, rompendo a escuridão e a asfixia que Recife usava
para matar as inovações culturais, tornando visível/audível o
assassinato/esquecimento do que parecia estranho, ou ia de encontro à cultura
tradicional, tanto a de raiz como a Acadêmica. O Movimento Mangue foi um
projeto executado por jovens que popularizando a arte dos marginais escancarou
as portas do mundo multicultural, rompeu tabus ao mesclar a luta social no
Recife com um tempero ianque da cultura hip
hop (grafite, break e rap), rock, literatura beatnik, soul e funk numa verdadeira antropofagia cultural. Um
esquema novo e mais barulhento para o samba, uma pisada diferente para o
maracatu, um mote novo para o repente.
O Movimento
Mangue foi contemporâneo da queda do muro de Berlim, do fim da União Soviética,
da falência momentânea da política de esquerda e do novo processo de
globalização do “inferno capitalista”, da ascensão de Fernando Henrique Cardoso
ao poder e do boom do consumismo brasileiro. A inevitável
explosão do CD e da mídia através da internet, sistema que os integrantes do Mangue
usaram até a exaustão para executar e divulgar o seu trabalho, época em que
chegaram ao Recife as lanchonetes da cadeia McDonald´s e os sinais da MTV.
Tempo do governo de Miguel Arraes em Pernambuco e seu incentivo à cultura
popular (assunto polêmico que mereceria um estudo à parte), tendo Ariano
Suassuna como Secretário de Cultura e o escritor Raimundo Carrero como
Presidente da Fundação do Patrimônio Histórico de Pernambuco (FUNDARPE).
Science é um exemplo típico de fusão de várias
culturas e da busca de um entre-lugar para
desenvolvê-las. Como DJ conheceu músicas de todo o mundo e soube extrair deste
imenso caldeirão um material que, remixado aos ritmos como
embolada, coco, samba de roda, frevo, maracatu, ciranda, caboclinhos, e tendo
como inspiração os versos do cordel, repente ou mesmo aos pregões, linguagem
utilizada pelos camelôs e por uma gama muito variada de recifenses de baixa
renda, da periferia, se transformaria num ritmo e em textos inovadores, cheios
de vigor despertando toda uma geração que teve sua expressão castrada durante
os anos de chumbo da ditadura militar e pelo imperialismo interno promovido
pelo eixo Rio- São Paulo que nunca foi muito generoso quando se trata de
divulgar outra imagem do Nordeste que não seja comédia, folclore, cangaço e/ ou
miséria. Science mistura algo dos movimentos punk e hip hop para uma nova visão
destes estereótipos.
A proposta do Movimento Mangue não era a de ser um
fenômeno “circunstancial” sem futuro: desde 1991 seus integrantes começaram a
se estruturar em forma de pesquisa que ia desde a leitura dos livros do
sociólogo Josué de Castro e passava pelas experiências psicodélicas dos anos
60, realidade virtual, física quântica, design, mídia, desenho animado,
histórias em quadrinhos, televisão e cinema comercial (a assim chamada
“midiotia”).
Com o
lançamento de um release/Manifesto, ao modo das famosas vanguardas européias, e
mesmo as nacionais com raízes na Semana de 22, acelerou-se a ousada empreitada.
O grupo Chico Science e Nação Zumbi, o CSNZ, assina então um contrato com a
Sony Music e assume a linguagem dos excluídos sistematizado-a num clima que
anunciava o final do milênio: “a gente não veio do nada [...] o som que nós
fazemos é universal [...] percebi uma identidade entre o rap e a embolada [...]
comecei a pegar velhos discos de maracatu e rapear em cima”, disse Science em
entrevista ao jornal O Globo, em 31 de março de 1994 (in TELES, 1997).
Science ganhou este apelido pelo fato de
adorar fazer experiências com músicas e com a linguagem. Vejamos um pequeno
exemplo destas “experiências” neste trecho numa letra de sua autoria, Da Lama ao Caos, do CD homônimo:
Posso
sair daqui para me organizar/Posso sair daqui para me desorganizar/Da lama ao
Caos/ Do caos à lama/um homem roubado nunca se engana/ O sol queimou a lama do
rio/ eu vi um xié andando devagar/ vi um aratu pra lá e pra cá/ vi um
caranguejo andando pro sul/ saiu do mangue e virou gabiru/ Oh Josué, eu nunca
vi tamanha desgraça/Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça/ Peguei o
balaio, fui na feira roubar tomate e cebola/ lá passando uma veia, pegou a
minha cenoura/ai minha veia deixa a cenoura aqui/ Com a barriga vazia / não
consigo dormir/ E com o bucho mais cheio comecei a pensar/ que eu me
organizando posso desorganizar/ que eu desorganizando posso me organizar...
(CSNZ, 1994)
Como podemos facilmente detectar a tessitura do
discurso de Science, e assim será com outros poetas do Movimento Mangue, é
calcada em palavras que fazem parte do cotidiano da população recifense de
baixa renda que vive nesta região onde os rios se encontram com o mar (xié, aratu, caranguejo, balaio, feira, lama, gabiru, mangue como metáfora
de diversidade). São pescadores, pequenos comerciantes, desempregados, e muitas
vezes vivem de pequenos furtos. Daí expressões maliciosas e cheias de
trocadilhos como “Uma véia pegou a minha cenoura/ai, minha véia, deixa a cenoura aqui”. Nota-se o humor na linguagem dúbia da
“cenoura” e, é claro, a pronúncia e grafia de certas palavras procuram se
aproximar do jeito de falar, e escrever, de uma boa parte da população do
Recife. Há na letra acima uma referência à teoria do caos e ao sociólogo
pernambucano Josué de Castro, do romance Homens e Caranguejos, lido avidamente por Chico. Josué soube como poucos traçar um perfil da
pobreza em Recife. A política no Movimento Mangue se faz presente nas letras
das bandas ligadas ao movimento como, por exemplo: Devotos, Faces do Subúrbio,
Nação Zumbi, Mundo Livre s/a, Sheik Tosado, Mestre Ambrósio, Expresso 4 Oito,
Paulo Francis Vai pro Céu, Matalanamão, Textículos de Mary, Dona Margarida
Pereira e os Fulanos e outras. Racismo e outros horrores sociais foram cantados
com força em letras pungentes ou denunciados em irônicos manifestos que
expuseram a negação da liberdade, a expressão da nossa inferioridade forçada,
os reflexos da violência. Analisemos alguns exemplos. A letra de Maracatu de Tiro
Certeiro de Jorge du Peixe, incluída no CD Da Lama ao Caos
O sol é
de aço, a bala escaldante/ tem gente que é como barro/ que ao toque de uma se
quebra/outros não!/ ainda conseguem abrir os olhos/ e no outro dia assistir TV/
Mas comigo é certeiro meu irmão/ Não encosta em mim que hoje eu não tô pra
conversa/ Seus olhos estão em brasa/ Fumaçando! [...] Não saca a arma não - a
arma não?/ Já ouvi, calma!/ As balas não mais atendem ao gatilho, já não mais
atendem. (CSNZ, 1994)
Balas que não mais atendem ao gatilho, gente que se quebra e gente que
sobrevive para assistir TV, a impaciência de quem não agüenta mais nem ser
tocado, sob um sol causticante numa terra que parece não ter lei. Olhos em
brasa e a emergência: “A arma não?”. A vida bandida do cotidiano recifense
aparece assim transposta para o entre-lugar poético de uma cidade recriada e o
maracatu em vez de um brinquedo transforma-se em ameaça de violência iminente,
um tiro certeiro, mais alvoroço no caos. A violência é tema de várias letras
dos mangueboys, como esta:
É um
pássaro?É um avião? Não! Socorro!Fujam! Cada um por si, é um míssil
desgovernado!/ Ele vem em nossa direção!-Cuidado! Ele foi fabricado no
quartel general da salvação.../Algo me
alvejou. Ai, olha o sangueiro irmão (...) É bom rezar todo dia, fera.Para a
gente não virar alvo de uma missão humanitária aliada/O incansável super-homem
em sua nova versão/nos faz sentir saudade dos precários tempos do
esquadrão...(MUNDO LIVRE, 2000)
Desta letra de Fred Zero Quatro e Goró, Super Homem Plus, destacamos a crítica às “missões humanitárias” da terra do
“super-homem” (EUA). Fred é jornalista e ao lado de Renato L alicerçou a cena
junto a Science. Sua poesia, quase sempre acompanhada por um cavaquinho, fala
do Recife em forma de denúncia. Uma cidade explorada por forças capitalistas
internacionais e por corruptos locais que sacrificam “nossa soberania num altar
obscuro e tenebroso”. Em vez do humor picaresco, como o do Malungo Chico, aqui
percebemos uma amarga ironia, como podemos perceber no trecho do Manifesto Partindo para o
Ataque, incluído no encarte do CD Por Pouco:
Todos
sairemos às ruas para exigir nosso direito à vida digna e à liberdade.
Expulsaremos do poder os sanguessugas- clientes submissos das corporações,
consórcios e instituições financeiras transnacionais- que em quase quatro
décadas nada fizeram senão mentir, conspirar, hipotecar nosso suor para pagar
dívidas imorais, ilegítimas, impagáveis; espoliando todo o nosso patrimônio e
recursos naturais, sacrificando nossa soberania num altar obscuro e tenebroso-
montado pelas grandes potências neo- imperialistas na forma de organizações e
acordos draconianos de comércio internacional-, responsável por um criminoso e
inconseqüente Arrastão Global (MUNDO LIVRE, 2000)
“Dívidas imorais, ilegítimas, impagáveis”, o que Fred sugere parece ser
uma moratória seguida de uma revolução contra os “neo-imperialistas” do
“comércio internacional”. É um discurso que não deixa de ser panfletário,
maniqueísta, porém no meio da estagnação em que se encontrava a lírica da
música jovem local tornava-se interessante.
II- Um Corpo Coletivo
A poesia de Chico é de um tipo mais conciliador que a de Fred:
Eu sou
um caranguejo e estou de andada/só por sua causa, só por você /E quando estou
contigo eu quero gostar/e quando estou um pouco mais junto eu quero te amar/e
aí te deitar de lado como a flor que eu tinha na mão/ E a esqueci na escada só
por esquecer [...] prometo meu amor vou me regenerar/ oh Risoflora! Não vou
mais dar bobeira dentro de um caritó [...]e em vez de cair nas tuas mãos
preferiria os teus braços/ e em meus braços te levarei como uma flor/pra minha
maloca na beira do rio... (CSNZ,1994)
As palavras aqui também evitam o vocabulário do
colonizador e se aproximam do discurso das classes menos favorecidas, buscando
ali sua inspiração como é caso desta romântica
composição de Science, “Risoflora”, onde o homem é identificado com o animal, o
caranguejo, e a mulher com uma flor. Lembremo-nos que a cidade do Recife foi
construída praticamente em cima do mangue e que Risophora Mangle é o nome científico de um determinado tipo de vegetação do manguezal.
Poeta e musa podem ser metáfora do cidadão e da cidade-natureza. A maloca na
beira do rio seria então o caramanchão onde o idílio pós-moderno se consumaria
em alquimia e Recife ressurgiria transformada em Manguetown. Mas nem tudo nela
é doçura e as núpcias do poeta com a cidade-mangue podem ser bruscamente
interrompidas, pois a miséria se faz presente e exige uma postura, coloca o
eu-lírico em xeque:
Porque
no rio tem pato comendo lama [...] e a lama come mocambo e no mocambo tem
molambo/e o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio dia/o
carro passou por cima e o molambo ficou lá/molambo eu, molambo tu/é Macaxeira,
Imbiribeira, Bom Pastor, Torreão, Ibura, Ipsep, Casa Amarela, Boa Viagem,
Genipapo ,Bonifácio, Santo Amaro, Madalena, Boa Vistas, Dois Irmãos, é o Cais
do Porto, é Caxangá, é Brasilit, Beberibe, CDU, Capibaribe e o Centrão/ Rios, pontes e overdrives-
impressionantes esculturas de lama/ mangue mangue, mangue (CSNZ, 1994)
Surgem nesta composição, de Zero Quatro e Science
chamada Rios
Pontes e Overdrives, vários nomes de bairros
recifenses. Estes servem de cenário para o homem privado de recursos
econômicos: o molambo. O homem do povo atropelado pela máquina: “o carro passou
por cima e o molambo ficou lá”. O discurso em código: “Tem pato comendo lama”,
tão comum entre facções que resistem a uma dominação que venha do exterior.
Isto aponta para uma das características do movimento Mangue: a “brodagem”
(termo que vem de “brother”, irmão, em inglês).
Em várias composições encontraremos palavras, ou
expressões, que se fecham à leitura que as simplifiquem. Como em “Macô”:
de bamba nada/ só queres barbada/ tu tá de
terno amarelo porque tá fazendo sol/ olha que cara desarrumado/de chapéu
torto/e óculos enfeitado/ é Zé Mane/ Macô/ de zambo nada tu só quer mamata/tu só quer ficar na
minha/porque eu tô de mão cheia [...] segura esta garrafa/o gargalo já tá
feito/tais adivinhando cheia/ olha pra lá, vira a cara, não dá bola/ pega uma ficha aí/ bota lá na
radiola/ cadê Roger? (CSNZ,1996)
Esta letra chamada “Macô”, de Science e du Peixe,
foi composta inicialmente na Soparia, antigo bar no Pina, bairro do Recife,
cujo proprietário, Roger de Renor, era “brother” do pessoal do Movimento Mangue. Neste bar
havia uma radiola de ficha e Roger, durante o carnaval e outras festas, gostava
de usar roupas num estilo bem próprio. O termo “Macô”, veio de Chico que
olhando para uns garotos que fumavam maconha às escondidas imaginou que no
futuro haveria tal droga vendida em um chip de computador e os camelôs do
Recife, que têm o costume de simplificar as palavras reduzindo-as, a
anunciariam assim: “Macô!”. Como vemos, os compositores do Movimento Mangue
eram bem irreverentes.
Prestemos atenção agora a um pequeno texto de
Chico, intitulado Monólogo ao Pé do Ouvido:
Modernizar o passado/ É uma evolução musical/
Cadê as notas que estavam aqui?/ Não preciso delas! Basta deixar tudo soando
bem aos ouvidos/ o medo dá origem ao mal/ O homem coletivo sente necessidade de
lutar/ O orgulho,/ a arrogância, a glória/ Enchem a imaginação de domínio/ São
demônios os que destroem o poder bravio da humanidade Viva Zapata!Viva Sandino!
Antônio Conselheiro/ Todos os Panteras Negras/ Lampião sua imagem e semelhança/
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia (CSNZ, 1994)
A música e as palavras estão unidas na mensagem de
Science e seu projeto da Manguetown/ Nova Recife, destemida e brincalhona,
antenada com o hip hop, com o rock, o punk, a cibernética e tendo dentro de si
um passado com o qual podia alimentar sua luta naquele angustiante final de
milênio e, principalmente, aberta às mudanças. Além das metáforas radicais
(homem-caranguejo, homem-molambo) e anárquicas (“a minha cenoura”), como vimos
anteriormente, surgem também louvações àqueles ícones revolucionários como
Zapata e Sandino (México e Nicarágua), Panteras Negras (EUA) que se mesclam à
mítica lembrança do Conselheiro e seu projeto (Canudos) e Lampião. As palavras
orgulho, arrogância e glória aparecem nesta lírica de maneira intrigante,
exploradas o mesmo contexto que busca estabelecer uma identidade grupal:
Recife/ Mangue, um emolduramento ao mesmo tempo
estético e histórico em face ao imperialismo e neocolonialismo (inevitáveis?).
Os integrantes do Movimento Mangue não eram despolitizados, faziam constantemente alusão ao controle econômico e sócio-cultural
exercido sobre Recife, porém tais práticas culturais oposicionistas, para
subverter a ordem estabelecida pelo sistema, tinham que se mesclar ao que eles
chamavam midiotia (produtos “idiotas” da indústria cultural local, nacional e global)
para serem mais facilmente deglutidas, assimiladas. Promoveu-se então uma
mistura de signos.
Ao utilizarmos o estratagema da linguagem, da teoria, devemos evitar que
esta se exceda na reafirmação do poder erudito, e esquecer que o Manguebeat foi
antes de tudo um fenômeno poético multicultural e, até certo ponto, popular.
Mesmo assim busquemos em Bhabha o referencial para esta parte do nosso estudo:
“Não passará a linguagem da teoria de mais um estratagema da elite ocidental
culturalmente privilegiada para produzir um discurso do Outro que reforça sua
própria equação conhecimento-poder?” (OLC. p.45)
O Movimento Mangue traçou meio às cegas uma tática
para a transformação social, um jogo de metáforas. Trata-se de um discurso
caótico, matriz produtiva que define o social e o torna disponível à mudança, à
troca discursiva, ao dissenso, à alteridade e outridade numa espécie de
negociação
de instâncias contraditórias e antagônicas [...] contra uma visão primordial
direita ou esquerda, progressista ou reacionária [...] numa ênfase à
necessidade de heterogeneidade [...] a dupla inscrição do objetivo político não
é a mera repetição de uma verdade geral sobre o discurso introduzido no campo
político” (OLC.p.51-53)
numa
negociação nada piegas, onde os despossuídos usaram
os meios (a mídia) das pessoas de posses e através da fantasia (o “homem-
caranguejo”) fundiram jovens ricos e pobres, (in)felizmente como no futebol e
num carnaval (bakhtiniano, no sentido da polifonia) transformando a relação
entre o ator social (miserável) e a multidão (Recife) num processo coletivo
catártico que combatia de certa forma a irracionalidade da ideologia.
Ao rever o fenômeno Mangue, observamos uma espécie
de idealismo, de engajamento em relação à luta contra a dominação cultural,
quer viesse de outros países ou mesmo do eixo Rio- São Paulo, imposta sob a
forma de colonialismo interno. O trabalho dos integrantes do Manguebeat
desembocou numa re-historização. Através da
mistura desenvolveram uma nova construção discursiva da realidade social, que
se realizou no Recife no campo das diferenças culturais, e não da diversidade
cultural, pois culturas não poderiam ficar intocadas pela “intertextualidade de
seus locais históricos, protegidas na utopia de uma memória mítica”. (OLC.
p.63). Ao recriar seu lugar, unindo passado-presente e futuro e rompendo
fronteiras, o Movimento Mangue encaixa-se na fundamentação proposta por Bhabha
que num contexto distinto afirmou: “Nenhuma cultura é jamais unitária em si
mesma, nem simplesmente dualista na relação do Eu com o Outro [...] todos
pertencemos à cultura da humanidade” (OLC. p.65).
III – Brotos do Mangue
Analisemos agora uma letra de Chico Science que se transformou num
sucesso:
A Cidade.
O sol
nasce e ilumina as pedras evoluídas/que cresceram com a força de pedreiros
suicidas/cavaleiros circulam vigiando as pessoas/ não importa se são ruins nem
importa se são boas/A cidade se apresenta centro das ambições/para mendigos ou
ricos e outras armações[...]a cidade se encontra prostituída por aqueles que a
usaram em busca de saída/ ilusora de pessoas de outros lugares / a cidade e sua
fama vai além dos mares/no meio da esperteza internacional [...] sempre uns com
mais e outros com menos/a cidade não pára, a cidade só cresce/ o de cima sobe e
o de baixo desce/eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu/tudo bem
envenenado, bom pra mim e bom pra tu/pra gente sair da lama e enfrentar os
urubu/num dia de sol Recife acordou/com a mesma fedentina do dia anterior
(CSNZ, 1994)
Recife é o palco destes brotos do Mangue.A Cidade
como imensa escultura de lama. Mangue como símbolo de diversidade cultural.
Caranguejo/ animal da água e da terra. O hibridismo se apresenta a cada signo
proposto por Science e seus companheiros. O avesso e paradoxalmente reforço de
um cartão postal. Avesso porque os habitantes são suicidas, vigiados num
sistema onde quem é ruim é igual a quem é bom, pois tudo são “armações” numa
cidade “ilusora”, “prostituída”, injusta, ameaçada por “urubus” e pela náusea
provocada, dentre outras coisas pela “fedentina”. O reforço do cartão postal
surge com o poeta recorrendo às suas raízes para compor seu experimento
inovador: uma embolada, um maracatu que , como o sol que nasce, possa iluminar
“as pedras evoluídas”, as construções da cidade.
A sociedade capitalista e as transformações
experimentadas pelos integrantes do grupo Mangue desencadearam um processo
histórico inédito de renascimento cultural, onde a produtividade, as relações
sociais romperam com a fixidez, e isso refletiu numa gama de produtos
culturais, influenciados pela nova tendência. No cinema tivemos filmes como O Rap do Pequeno
Príncipe Contra as Almas Sebosas documentário
sobre o músico Garnizé, do grupo Faces do Subúrbio, e sobre o “marginal”
conhecido como Helinho (que seria assassinado na prisão pouco tempo depois do
lançamento do filme). Outro longa-metragem produzido em Recife, e influenciado
pela “estética Mangue”, foi O Baile Perfumado, direção de
Paulo Caldas e Lírio Ferreira, com trilha sonora de Chico Science, Fred Zero
Quatro, Siba (do grupo Mestre Ambrósio), Lúcio Maia (do CSNZ) e Paulo Rafael,
que teve enorme repercussão nacional, coisa que há muito tempo não acontecia no
Nordeste. O leitmotiv do filme é uma visão inovadora da história do cangaceiro
Lampião e da sua amada Maria Bonita que, no filme, aparecem indo ao cinema,
consumindo produtos importados e dando festas. As imagens do filme seguem uma
estética pouco convencional, misturando várias técnicas e serviu como
referencial do novo cinema recifense. É reverenciada uma das últimas tomadas do
filme que mostra Lampião triunfante sobre um canyon do rio
São Francisco. Mais recentemente tivemos Amarelo Manga, com
roteiro de Hilton Lacerda e direção de Cláudio Assis, um filme que mostra a
saga de alguns desvalidos do Recife em ângulos e textos que lembram versos dos mangueboys. Um filme com trilha sonora de alguns componentes dos fundadores do
Movimento Mangue: Lúcio Maia e Jorge du Peixe (da Nação Zumbi) e Fred
Zeroquatro, que aparece tocando seu famoso cavaquinho num boteco do Pátio de
Santa Cruz e mencionando Osama bin Laden, terrorista apontado como um dos
responsáveis pelos atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA.
Podemos falar também da influência do Movimento
Mangue na moda, nas criações de Eduardo Ferreira e outros estilistas. A
propósito a indumentária de Chico Science, a do grupo que o acompanhava e de
muitos outros integrantes do Mangue deve ser destacada: eram muitas vezes
roupas e acessórios comprados em camelôs: óculos, anéis, colares, pulseiras,
chapéus, sapatos, sandálias.
Na escultura e pintura podemos detectar a
influência do Movimento Mangue nas obras de Evêncio Vasconcelos (“Mangue
Building”) e Félix Farfan. Também na dança tivemos as coreografias de Sonaly
Macedo e Mônica Lira, que foram descritas pela jornalista Ivana Moura do Diário
de Pernambuco, em julho de 1998, da seguinte forma:
O
crescimento de atitudes urbanas nas ruas do Recife, em sintonia com outros
recantos jovens do planeta, do clima festivo de quem tem pressa de conquistar
espaços, dos anseios que pulsam numa mudança vertiginosa de mentalidade.
Postura contemporânea da urgência de viver o presente.Influenciada pelo
Manguebeat, uma patola na terra e uma antena no ar, a nova gramática da dança é
a cara de Pernambuco.A expressão é mais agressiva, em conexão com o bailado das
ruas, usam techno, capoeira e caboclinho para construir sua estética.(in NETO,
2000, p. 81-82)
Na área de vídeo um dos destaques vai para o
cineasta, e então crítico de cinema do Jornal do Commercio, Kleber Mendonça
Filho, que na realização de Enjaulado reuniu boa
parte da Cena Recifense na trilha sonora. No teatro duas peças poderiam ser
citadas como “influenciadas”, de certa forma, pelo Movimento Mangue: O Príncipe das
Marés, com figurino de Eduardo Ferreira
e Pata
Aqui, Pata Acolá, adaptação do livro de Edmilson
Lima, feita por Sidney Cruz com direção de José Manuel.
IV- Manifestados
De acordo com uma pesquisa feita por um instituto
norte-americano, Recife aparecia no final dos anos 80 como uma das piores
metrópoles do mundo em qualidade de vida. Foi para reverter este quadro maldito
que se ergueram os “caranguejos com cérebro”, como se nomeavam os líderes do Movimento Mangue, os jornalistas Fred Zero Quatro e Renato Lins, e,
é claro, Science. Eis um trecho do Manifesto lançado e publicado no encarte do
CD Da
Lama ao Caos, que fora anteriormente distribuído como press release por eles e que é uma espécie de ápice das idéias que vinham
desenvolvendo desde 1991:
A planície costeira onde a cidade do Recife
foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século
XVII, a (ex) cidade maurícia passou a crescer desordenadamente às custas do
aterramento indiscriminado e da destruição dos seus manguezais.Em
contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de progresso, que
elevou a cidade a posto de metrópole do Nordeste, não tardou a revelar sua
fragilidade. Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história para que os
primeiros sinais de esclerose econômica se manifestasse no início dos anos 60.
Nos últimos 30 anos a síndrome da estagnação aliada à permanência do mito da
´metrópole`, só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos
urbano[...] ao maior índice de desemprego do país [...]Um choque rápido, ou o
Recife morre de infarto![...] O que fazer para não afundar na depressão crônica
que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo deslobotomizar e recarregar as
baterias da cidade?Simples! Basta injetar um pouco da energia na lama e
estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife... (CSNZ, 1994)
Detectamos aqui a preocupação com o meio ambiente
degradado pelos séculos em nome de uma “cínica noção de progresso” que resultou
numa “esclerose econômica” que deixou o Recife à beira de um “infarto” no
início dos anos 90. Aí vem a ironia, típica da poesia de Fred: restava
“deslobotomizar” a cidade, isto é reverter uma metafórica lobotomia praticada
por aqueles que jogaram-na na “miséria”.
O Movimento Mangue, ou a “Cena”, surge então
rompendo tratados e traindo ritos: “Gente como Ariano Suassuna” transformou a
cultura popular em “peça de museu”, eis o tom da fala de Fred, que alfineta:
“ninguém estava ouvindo os discos de Alceu Valença”. Isso foi dito depois da
morte de Science:
Em
primeiro lugar o movimento Mangue nunca teve a proposta de derrubar qualquer um
dos artistas que vieram antes de nós.Em 91 e 92, ninguém estava ouvindo os
discos de Alceu Valença. Antes da gente, ninguém tinha ouvido falar em qualquer
tipo de cena musical formada em Recife. A palavra cena era usada para se
referir a outros locais como Londres, Jamaica [...] Antes a cultura popular era
tratada apenas como material para estudo acadêmico, uma verdadeira peça de
museu, por gente como Ariano Suassuna, que se comportava dessa forma bem antes
de ter um cargo político [...] O Movimento Mangue foi mais como uma
cooperativa, trouxe esta coisa de fugir do folclore de se cantar o tempo
inteiro as ladeiras de Olinda.O lance do Mangue foi quebrar com os ripongas,
romper os feudos armoriais, com esta coisa conservadora (Jornal do Commercio,
15/03/2000).
Apesar da relutância, Ariano, de certa forma,
enquanto era secretário de Cultura de Pernambuco (1995/1998) autorizou a
liberação de verbas para que os grupos do Movimento Mangue pudessem se
articular melhor. É histórico seu encontro com Chico Science, quando afirmou
dentre outras coisas que ele deveria se chamar Chico Ciência e não Science e que a mistura maracatu e
música norte-americana desvalorizava/minimizava a importância do maracatu. O
grupo de “ripongas” ao qual Fred se refere poderia incluir muitos outros que
tentaram, em Recife, lançar uma tendência, como Geraldo Azevedo e o grupo Ave
Sangria, nos anos 70. Fred os acusa de envelhecer sem se atualizar e completa
seu discurso apontando os “feudos armoriais”, uma ironia, é óbvio, dirigida ao
academicismo escritor paraibano criador do Movimento Armorial, de tentar
transformar a cultura numa “peça de museu”. A representação do Recife que se
exigia, ou se propunha, naquele momento teria que passar, quase que
necessariamente, pela iconoclastia, pela mistura, ruptura e negociação, para a qual o poeta
performista–mor, Francisco de Assis França parecia estar bem preparado.
V- Um passeio no mundo livre
Na letra de Cidadão do Mundo, Science exprime o estado de alerta em que vivem os menos favorecidos
e injustiçados que só contam com a esperteza e com o próprio corpo para se
defender:
A
estrovenga girou/passou perto do meu pescoço/ corcoviei, corcoviei/ não sou
nenhum besta seu moço/a cena parecia fria/ antes da festa começar/ mas logo a
estrovenga surgia/ rolando veloz pelo ar/ eu pulei, eu pulei/ corri no coice
macio/ só queria matar a fome /no canavial na beira do rio (CSNZ, 1996)
São os instintos básicos que precisam ser saciados.
Os habitantes da cidade de Science vivenciam a emergência e riem quando podem
enganar a morte, a fome a maldade. Em Etnia ressurge a
questão do cidadão marginalizado que sai misturando tudo que pode para tentar
se salvar. Isto provoca no poeta um texto que é um verdadeiro jogo de rimas e
questionamentos sociais.
Somos
todos juntos uma miscigenação/e não podemos fugir da nossa etnia Índios,
brancos e mestiços/ Nada de errado em seus princípios [...] samba que sai da
favela acabada /é hip hop na minha embolada/é o povo na arte/ é a arte no povo/
não é o povo na arte de quem faz arte/com o povo/ maracatu psicodélico [...]
berimbau elétrico...(CSNZ, 1996)
Novamente a crítica aos acadêmicos e políticos que
usam a arte do povo para atingir seus interesses particulares. Chico e o
movimento Mangue se colocavam ao lado do povo numa nova perspectiva de
expressão cultural que incluía uma revisão inclusive da produção cultural fruto
da diáspora africana e sua mistura com a cultura européia e indígena nas
Américas. O popular é reinventado: Um maracatu psicodélico e um berimbau
elétrico e o samba indo de encontro com a embolada, o repente e seu
afro-hispânico irmão, o rap do movimento hip hop. Propunha-se uma
arregimentação de correntes de libertação pop em nome da revitalização das
forças expressivas de uma cidade cujos canais de representação praticamente só
eram usados para a repetição e a representação psíquica da realidade social
apresentava mitos destruídos do narcisismo negro e da supremacia branca. Onde o
preto escravo fora representado como sendo constituído pela inferioridade em
relação ao branco descendente do senhor de engenho, onde o índio só aparecia
como exótico folclore ou carnavalesco caboclinho num processo neurótico onde as
diferenças eram mascaradas como homogêneas numa cidade à beira do caos, atolada
na lama da passividade atávica.
No disco lançado pelo
Mundo Livre Por Pouco,
novamente o articulador da geração Mangue (Cena Recifense) Fred 04 fala da
fronteira entre o México e os EUA: a “lei” e o “desejo” – de justiça social, de
integração e da vontade de destruir esta visão imperialista do modelo
colonizador que quer apresentar o “colonizado” como um imbecil degenerado e a
colonização como uma reificação, indo de encontro ao que Bhabha chama de
“metonímia da presença” (OLC.p. 135): a diferença entre usar a cultura
norte-americana e ser americanizado. Vamos analisar outro trecho do manifesto Partindo para o ataque- Missão 4, escrito
por Zero Quatro e publicado no encarte do CD Por Pouco:
Antes que nos joguem a todos em favelas,
nos matem a mingua ou simplesmente nos trancafiem em presídios sob qualquer
pretexto para camuflar as taxas de desemprego e exclusão, como fazem na
América; antes que entreguem o que sobrou da Amazônia e dos mangues, ocuparemos
nosso lugar, reconquistaremos o espaço que nos foi tomado pelas onipotentes
tiranias privadas, graças a nossa própria secular omissão. Canalizaremos para
as ruas toda a paixão e energia coletivas dos sambódromos e grandes estádios
lotados nas ensurdecidas finais de campeonatos. Sem violência e sem rancor, mas
com amor-próprio, alegria e autodeterminação.Esta será a nossa missão. (MUNDO
LIVRE, 2000)
Parece que a alternativa para fugir da favelização
seria o encarceramento do pobre que não tendo emprego entra na contravenção. Os
excluídos do Recife seriam nisso igualados aos marginalizados norte-americanos.
Sobre todos estes miseráveis e até por sobre os remediados brasileiros pairaria
a ameaça da desterritorialização
que adviria da tomada da Amazônia pelo capitalismo selvagem e a especulação
como um todo, das “tiranias privadas” que se aproveitando da nossa “secular
omissão” drogariam as massas com mais samba e futebol. A isso tudo os
deserdados da Manguetown propunham a Não-violência, o não rancor, a valorização
do amor-próprio, a alegria e a “autodeterminação”. Para alguns isto pode soar
como conformismo e alienação, mas Science já declarara na sua letra Um
Passeio no Mundo Livre:
Eu só quero andar pelas ruas de
Peixinhos/ andar pelo Brasil/ ou em qualquer cidade do mundo/ sem ter
´sociedade´ [...] andar pelo mundo livre” (CSNZ, 1996)
Destituído do poder econômico restava ao poeta a liberdade. Mais uma
vez é citado o bairro popular de Peixinhos, parte da região metropolitana do
Recife. Observamos a valorização de um lugar marginalizado pelas classes
dominantes. Há também a idéia do eu-lírico vagando no espaço poético da cidade,
o seu “mundo livre” onde a “sociedade”, que aparece citada entre aspas no
original, nada mais seria do que um conceito a ser retrabalhado.
VI- O fetiche do Mangue: a catarse coletiva enquanto o mundo explode
Um ritmo meio misterioso embala a letra de Jorge du Peixe e Chico
intitulada Corpo de Lama:
Este corpo de lama que tu vê /é apenas a
imagem que soul/ este corpo de lama que tu vê é apenas a imagem que é tu/que o
sol não seque os pensamentos/mas a chuva mude sentimentos [...] eu caminho
[...] ouvindo a música dos trovões [...] seu rosto parece com as minhas idéias”
(CSNZ, 1996)
Novamente a metáfora da lama, fetiche do mangue,
como constitutiva do sujeito como um todo orgânico que se movimenta na
metrópole-mangue. A psicodelia acentuando a exacerbação dos sentidos, como faz
a aguardente com os sentidos do bêbado, vai unindo pedaços da realidade,
fragmentos de percepções diversas (“seu rosto parece com as minhas idéias”), e
um tanto quanto abstratas, onde a realidade, assim recomposta, metamorfoseia-se
em arte, em poesia (e música) pop. O eu-lírico, vitimado pela pobreza
transcende e surrealiza o meio em que está inserido, como em outra
letra na qual Science exalta a animalidade provocada, também, pela miséria, o
zoomorfismo. É o que pressentimos nesta composição intitulada Manguetown, onde o autor desabafa numa espécie de
catarse coletiva:
Estou enfiado na lama/ é um bairro
sujo/onde os urubus tem casas/e eu não tenho asas [...] andando por entre os
becos/andando em coletivos/ninguém foge ao cheiro sujo/da lama da Manguetown
[...] à vida suja dos dias da Manguetown /Esta noite sairei/vou beber com meus
amigos e com as asas que os urubus me deram/ ao dia/ voarei por toda a
periferia... (CSNZ, 1996).
Recife é a Manguetown onde o corpo de lama se movimenta,
reinventando-se, metamorfoseando-se. Homem caranguejo/mutante, com as asas de
urubu. Estranha imagem. Metáforas de um mundo duplo: caranguejo (terra/água)
junta-se à imagem de um a animal voador
ligado à podridão. O sujeito da periferia, um excluído apropria-se da sua
cidade, do seu lugar, reinventando-o. Ficção, misto de desenho animado, e história
em quadrinhos, como já sugerimos. Esta composição ganhou vida num clipe com
tendências psicodélicas dirigido por Gringo Cardia.
No primeiro CD do Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ), Da Lama ao Caos (1994), há no encarte uma “explicação” para
o fenômeno dos “homens- caranguejos”: uma fábrica de cerveja foi construída
sobre um mangue.A água extraída dali para a produção da bebida provocava nos
consumidores uma estranha mutação. A idéia é de Hilton Lacerda e Hélder Aragão,
que assinam os desenhos do encarte onde se encontra também o manifesto Caranguejos
com cérebro ao qual já nos referimos
anteriormente.
Há algo de
dúbio no fetiche em que se transformou o movimento Mangue. Buscando respaldo
nas idéias de Bhabha nós diríamos que “Ele imita as formas de autoridade ao
mesmo tempo em que as desautoriza” (OLC.p.137). Há uma carnavalização: os
habitantes da cidade são mostrados como atores de uma nova Cena tendo como
teatro de guerra a Manguetown,
a nova Recife. Revolta e indignação contra o velho sistema de injustiças
sociais transmuta-se em obras de arte onde a criatividade suplanta o ódio e a
inércia, superando-os em busca do novo que inspirasse e revolucionasse.
O Movimento
Mangue não negava as diferenças do Outro: subvertia-as e através da polifonia
redimensionava as questões ideológicas levando-as a extremos onde o picaresco
exercia sua função de crítica e diversão. Está na letra de Chico, Enquanto o Mundo Explode:
A engenharia cai sobre as pedras/um
curupira já tem seu tênis importado/não conseguimos acompanhar o motor d
história/mas, somos batizados pelo batuque e/apreciamos a agricultura celeste/
enquanto o mundo explode/nós dormimos no silêncio do bairro/fechando os olhos e
mordendo os lábios (CSNZ, 1996)
A(s) voz(es)
recifense(s) aparecia(m) através de uma vívida concepção, uma forte crença, um
poder de sentimento vivo questionando a autoridade cultural que queria naquele
momento o holismo, a metonímia,
a parte pelo todo e não o respeito às diferenças. Se a autoridade queria
homogeneidade num momento em que o mundo se estilhaçava na internet e a
globalização exigia novos rumos, os mangueboys apontavam para uma direção onde
o local se ressaltasse e aí fosse introduzido o global, o transnacional.
A linguagem,
esta monumental esfinge, propôs ao Recife o seu enigma e Chico resolveu o
enigma da linguagem: o fato dela ser ao mesmo tempo interior e exterior ao
sujeito falante e só poder ser manipulada quando furando as “zonas de controle
ou de renúncia de recordação e de esquecimento, de forma ou de dependência, de
exclusão ou participação”, como sugere Bhabha, citando Edward Said, ao
referir-se à problemática da “hermenêutica da mundanidade” (OLC. p.210) ou como Julia Kristeva, que definiu a nação como: “um poderoso
repositório de saber cultural que apaga as lógicas racionalistas e
progressistas da nação canônica” (OLC.p.216). Pois foi neste repositório, neste
controle versus renúncia de recordação e esquecimento que se forjou a nova
representação do sujeito recifense. O curupira com “tênis importado”, pés para
trás e rosto para frente no “batismo do batuque” apreciando a “agricultura
celeste enquanto o mundo explode”. No silêncio do bairro tramou-se a nova
engenharia que colocaria novamente a cidade no mapa.
A discussão se dava
dentro do Recife e ao mesmo tempo colocava a cidade como eixo de uma polêmica
que envolvia um momento do planeta: a falência da antiga política de esquerda e
o estremecimento do neoliberalismo. O entre-lugar
que surge a partir daí, o entre-meio,
o empowerment das minorias, a
possibilidade de uma intervenção, o desafio aos conceitos “totalizadores”.
Partindo desse lugar híbrido,
Science sugeriria novas formas de sentidos e estratégias de identificação. O
Recife que todos conheciam só apresentava modelos desgastados pela exploração
do pobre e a humilhação dos que eram “diferentes”. O modelo como todo tinha que
ser destruído e uma nova cidade imaginária, como uma espécie de Canudos virtual
teria que ser erguida às pressas no meio daquela emergência de fim de milênio.
Surge a Manguetown: saída da mais imunda lama, lama esta que também teria que
se metamorfosear em medicinal rapidamente. Os habitantes não poderiam olhar
para si mesmos como representantes do antigo regime, teriam que se perceber
transmutados, daí a fantasia dos “homens-caranguejos”, criada pelos mangueboys. A “contaminação” que veio
da ingestão das águas do mangue, da baba dos caranguejos, como sugere Hilton
Lacerda e Hélder Aragão, no já citado encarte do CD Da Lama ao Caos. (CSNZ, 1994)
Numa perspectiva pós-colonial, diríamos que o movimento Mangue foi uma ruptura com
a sociologia do subdesenvolvimento/dependência e revisou as pedagogias
nacionalistas/ nativistas “que estabelecem a relação do terceiro mundo com o
primeiro em uma estrutura binária de oposição (OLC.p.241) “reconhecendo
elementos transnacionais, mesmo que nessas nações não esteja a homogeneidade.
O movimento
Mangue forjou o “homem-caranguejo” (Science) o sujeito “esclarecido” no
confronto com a ética (honra/culpa) e a estética (pré-moderno e pós-moderno).
Ressaltaram-se as “diferenças” e a linguagem da comunidade cultural recifense,
precisava ser repensada: “o mangue” é/foi heterogêneo. Saindo da “esquerda” e
buscando explorar outras “etnias”. Daí o rap, funk, dub, a cultura hip hop,
misturarem-se à embolada nordestina, ao maracatu e outros ritmos pernambucanos.
Era também a política de interferir na identidade e no antagonismo
social.Subversão e revisão.
O caranguejo: metáfora
que perverteu o seu contexto subjacente. O projeto Mangue seria como um
terceiro elemento, uma espécie de filtro, entre o poeta e seu “interlocutor.
Foi este “projeto”que tornou Chico, o “agente”, um representante de um “efeito coletivo” na era do capitalismo
tardio multinacional (das transformações globais do capital). O poeta Chico
parece-nos buscar um novo significado para sua cidade na temporalidade nervosa
do “transicional” ou na
emergente “provisoriedade”
daquele momento de transformação do globo, parecia querer incluir Recife em um
projeto teórico que cindiria e duplicaria
o discurso analítico
no qual ele, artista, está incrustado, à medida que a narrativa de
desenvolvimento deste capitalismo tardio se defronta com sua persona
fragmentada pós-moderna [...] e os processos de diferença cultural que estavam
inscritos no ‘entre-lugar’ (dissolução temporal que tece o texto global)
tornaram possível a expressão do alcance global da cultura [...] a arquitetura
do novo sujeito histórico que emerge nos próprios limites da representação para
permitir uma representação situacional por parte do indivíduo daquela
totalidade mais vasta e irrepresentável, que é o conjunto das estruturas da
sociedade como um todo [...] entre-meio entre as exigências do passado e as
necessidades ao presente [...] de modo que o futuro se tornaria (mais uma vez)
uma questão aberta, em vez de ser especificado pela fixidez do passado, permitindo às identidades marginalizadas ou
minoritárias, um modo de agência performativa [...] e o olho de tormenta é nada
menos do que o próprio sujeito-de-classe como sugere Bhabha referindo-se
a um determinado tipo de posicionamento artístico (OLC.p.298-302).
Chico Science, poeta da
periferia recifense, seria este “sujeito-classe” da periferia universal,
apropriando-se do mundo através de um discurso que usava basicamente a
linguagem popular: a dos excluídos da sua aldeia. Mesclando o hip-hop assim com
a embolada, deu novo formato mostrou novos caminhos para o processo criativo do
rap, cuja criação de letras, às vezes na base do improviso e falando sobre a
questão das “diferenças”, não era novidade para os poetas repentistas do Nordeste
que já fazem isso há muito tempo. Isto num momento em que a nova economia
global
ainda
não permitiu que suas classes se formassem de maneira estável e, muito menos
que adquirissem uma verdadeira consciência de classe como analisou Frederic
Jameson (in Bhabha p-302).
Servindo como avatar dos
“novos tempos”, Science é exemplo de que a classe social de baixa renda, e, é
claro, uma parcela dos outsiders
recifenses, pelo menos teve o direito à expressão. Que rumos a sua poesia teria
tomado se a morte não tivesse interrompido sua carreira no auge do sucesso em
1997 é o que nos perguntamos nesta parte do nosso estudo.
VII- Por
uma questão de classe...
A nova ordem
imposta pela globalização e pelo neoliberalismo capitalista de final de milênio
empurrou nossos artistas para um processo onde tinham que ser incluídas as
diversas formas de se repensar o Recife, na qual televisão rimasse talvez com
solução e não só com alienação e repetição de modelos falidos da propaganda do
Rio, São Paulo ou Hollywood. Onde o morro, a ladeira, o córrego, o beco, a
polícia e o ladrão sejam questionados sobre coragem, dinheiro e bala, inocência
e banditismo por pura maldade ou como “Questão de Classe”, nome desta letra de
Chico:
Há um
tempo atrás se falava de bandido/ há um tempo atrás se falava em solução/há um
tempo atrás se falava em progresso/ Há um tempo atrás eu via televisão/
Galeguinho do Coque não tinha medo da perna Cabeluda/ Biu do Olho Verde fazia
sexo com seu alicate/ Oi sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela/a polícia
atrás deles e eles no rabo dela/acontece hoje acontecia no sertão/ quando um
bando de macaco perseguia Lampião/ E o que ele falava hoje outros ainda falam/
´Eu carrego comigo: coragem ,dinheiro e bala´ / em cada morro uma história
diferente/que a polícia mata gente inocente/ e quem era inocente hoje já virou
bandido/pra poder comer um pedaço de pão
todo fodido/banditismo por pura maldade/ banditismo por necessidade/banditismo
por uma questão de classe! (CSNZ, 1994)
Novamente
temos o espaço geográfico redimensionado (urbano/ rural. Favela/sertão) e a
situação da injustiça social sendo questionada na poesia de Science. Seu
discurso inclui nomes de marginais famosos como Biu do Olho Verde, Galeguinho
do Coque, Lampião e até uma lenda
urbana recifense: a perna Cabeluda. Todas as informações são colocadas
como fragmentos em um caleidoscópio onde se reorganizam formando novas imagens
de uma sociedade que lembra a colcha
de retalhos, sugerida como definição para a (agonizante?) cultura
pós-moderna que marcou o final do século vinte. Fazia-se urgente uma
renegociação das diferenças e das fronteiras entre o local e o global, as
margens e o centro. A questão da pluralidade demográfica precisava ser
revista/revisitada.
A questão
cultural no Recife em sua ansiedade insolúvel, fronteiriça, híbrida em
articular seus problemas de identificação em uma temporalidade estranha,
disjuntiva que parecia ser ao mesmo tempo, o tempo do “deslocamento cultural” e
o espaço de intraduzível”, deparou-se com um marco indubitável: o poeta
Francisco de Assis França, o Chico Science, cujo discurso tratava de visualizar
uma tentativa de consciência de classe.
Os
colonizados se recusam a aceitar ser membros de uma sociedade civil de súditos;
conseqüentemente, eles criam um território cultural marcado pelas distinções do
material e do espiritual do externo e do interno (OLC. p.316 - 317).
Era preciso
então demonstrar solidariedade entre as etnias e entre as diferenças como um
todo que de certa forma confluiam para o ponto de encontro da história no
processo de identificação, nas negociações da política cultural e o Recife
identificou-se com a mordacidade, o exagero caricatural, a mistura de embolador
e camelô, colagem pós-moderna de Science, espécie de hiato entre o passado e o futuro.
O Manguebeat tornou-se
conhecido mundialmente e ele, o malungo, como ele gostava de ser chamado,
distraído passeando pela sua Manguetown
parecia um personagem picaresco de Mário de Andrade, de Manuel Antônio de
Almeida, de Ariano Suassuna (!), Molière, Cervantes, Gil Vicente. Todos sabiam
que só existe uma maneira de demonstrar felicidade repentina: rir!
De certa forma Chico usou o
humor e a mordacidade para contestar a miséria do cotidiano dos pobres no
Recife.Fez da sua cidade um entre-lugar.
Exibiu a problemática das injustiças sociais
e do progresso tecnológico e multicultural
num Brasil que estava de pernas para o ar como num Grand Guinol. Foi de si mesma que a sociedade recifense riu.De
sua identificação com as mazelas do malungo.Daí
uma purificação através do ídolo, dessa espécie de super-herói questionável em
que se transformou Chico Science. O cotidiano foi assim redimensionado com a
consciência prévia de que problemas não morrem com belas palavras. Era preciso
ter bala na arma e coragem de atirar. O Movimento Mangue foi como um sudário a
expor certas coisas que, como num jogo de cabra-cega, a sociedade prefere
ocultar sob o tapete e se deixar guiar por uma realidade manipulada por
oráculos enlouquecidos, como a televisão, por exemplo.
Science representou o papel de
“malungo” (africanismo que significa “companheiro”) esperto tentando vender a
idéia de que a tristeza é para a sabedoria o mesmo que o riso é para a
ignorância.O falar recifense em seus erros e acertos, o exagero, a utilização
das tradições na demolição das fronteiras
culturais, a brincadeira e a
crítica foram suas oferendas a esta deusa tirânica que é a sociedade
brasileira, ainda tão ligada a um cotidiano determinista onde o poeta buscou
justificar-se enquanto outridade,
existindo em sua diferença num labirinto de referências onde o horrível foi
tragado pelo hilariante, e esta hilaridade construiu e desconstruiu o Recife numa obra de arte multicultural.
Sonhos não vencem guerras. O
Movimento Mangue venceu porque foi à luta, impôs-se enquanto linguagem, como
fenômeno que hoje serve de referência, de espelho, de um determinado modo de
viver em Recife. Algumas sementes das árvores dos manguezais podem flutuar no
mar ou no rio por muito tempo e florescer noutro lugar, entendemos que a
semente desta Cena ainda
produzirá muitos brotos.
Chico Science encontra Josué de Castro:
Recife sob o signo do homem-caranguejo
Citado nas letras de
Science e em depoimentos que o poeta registrou na mídia, o cientista e
professor Josué de Castro, recifense morto em 1973, é o autor do romance
Homens e Caranguejos (1966) o qual foi lido por Chico com avidez
enquanto formulava o conceito mangue. Este romance descreve o cotidiano de uma
comunidade erguida num manguezal do bairro de Afogados, Recife na primeira
metade do século XX. São pescadores de caranguejos, pessoas que tiram do mangue
seu sustento. Suas casas construídas com o massapé, madeira e palha do local e
sua principal alimentação os caranguejos, até as crianças eram criadas tomando
mingau feito com o caldo (o “leite da lama”) destes bichos que “fervilhavam”
nas margens do Capibaribe.
Seres humanos
feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos. Seres
anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homem e meio bichos [...]
parados como os caranguejos na beira da água ou caminhando para trás como
caminham os caranguejos [...] habitantes dos mangues [...] dificilmente
conseguiriam sair do ciclo do caranguejo, a não ser soltando para a morte e,
assim, afundando-se para sempre dentro da lama [...] essa fossa pantanosa onde
aguarda o Recife (CASTRO: 2001, p. 10-11).
A visão de Josué é ao
mesmo tempo perturbadora e dinâmica. Expõe a fome de um povo que ao mesmo tempo
brinca com o bumba-meu-boi, o pastoril, o maracatu e outros folguedos
(p. 113) planejam uma revolução que tome a cidade das mãos dos ricos poderosos
e dos políticos, mostrados como hipócritas e ladrões. O mangue aparece
antropomorfizado:
agarrando-se com unhas
e dentes (...) gamas fincadas profundamente no lado [...] cabeleira verde [...]
braços numa amorosa promiscuidade [...] luta constante com o mar como se fossem
trapos de ocupação” (ibid. p. 12).
Este clima de mangue vivo
onde o vegetal, mineral e animal se confundem influenciou profundamente as
concepções de Chico e Fred 04. O próprio manifesto “Caranguejos com cérebro” é
calcado neste tema, este ninho de lama que Josué comenta: “onde brota o
maravilhoso ciclo do caranguejo” e onde
O bumba-meu-boi era
apenas um pesadelo de faminto sonhando com boi-fantasma, que cresce diante dos
seus olhos compridos, mas cujas carnes desaparecem de baixo das apalpeladas das
suas mãos... (ibid. p. 21).
A representação do Recife
nesta obra influência de João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardozo e
Ascenso Ferreira. Ele descreve o cotidiano daqueles que migraram de sertão
e da zona da mata para o Recife e aqui se misturaram aos miseráveis da
metrópole.
São balaieiros carregando
frutas e verduras, que vivem entre mosquitos e urubus, rostos magros, morenos,
olhos negros e profundos, na Comunidade de Aldeia Teimosa onde alguns sonham
com a revolução do proletariado. Lembremo-nos que quase 40 anos depois, em
2003, 54,9% da população do Recife ainda morava em favelas segundo o Jornal
do Commercio (GÓIS, Ancelmo.“Recife-Favela”, Jornal do Commercio.Cad.
1, pág. 2, 29.09.03) –. Segundo pesquisa do Ibam / Banco Mundial.
Corrosiva e às vezes
sarcástica, a ironia do autor mistura-se ao lirismo de um final onde o menino
João Paulo integra-se repentinamente à luta armada e desaparece no meio do
combate à beira do mangue, às margens do Capibaribe, em seu desejo de
libertação no meio daquele cheiro frio de lama podre, de terra morta em
decomposição. E o narrador conclui:
São heróis de um mundo à parte. São membros de
uma mesma família, de uma mesma nação, de uma mesma classe: a dos heróis do
mangue (ibid. p. 43).
A palavra “nação” e este
senso de comunidade com espírito revolucionário deve ter incendiado as idéias
de Chico e seu ideal de representação do Recife. Muitos pescadores de
caranguejos no romance cobriam-se de lama com a finalidade de fugir dos
mosquitos. No clipe da música “Maracatu atômico” Chico e a Nação Zumbi aparecem
cobertos de lama, como numa alusão aos pescadores do mangue. Ouso de
neologismos também serviria de inspiração a Science, por exemplo: verbo
“jiboiar”, ao se referir a capacidade da jibóia de engolir “um homem inteiro” e
passar um mês digerindo-o (p. 61). Chico cria o verbo (neologismo)
“urubuservar” na introdução de “Maracatu de tiro certeiro”, na parceria com
Jorge du Peixe (CSNZ, 1994). Outro ponto em comum seria a zoomorfização: homens
e bichos se confundem na narrativa de forma implacável. Science vai resgatar
isto também em sua obra, só que forma menor naturalista e mais caricata. Os
mocambos, descritos por Josué, aparecem também na lira scienciana como símbolo
da moradia, do pobre no Recife.
Enquanto Josué opta por
uma visão pessimista, o trabalho de Science, é, de certa forma, quixotesco. Os
monstros contra os quais investe suas armas são produtos tanto da realidade
quanto da sua mente e na sua obra encontramos o ser metamorfoseado. Se os
heróis de Josué são frustrados, os de Science celebram a vitória sígnica:
A façanha de ser
prova: consiste não em triunfar realmente – é por isso que a vitória não
importa no fundo -, mas em transformar a realidade em signos. Em signo de que
os signos da linguagem são realmente conforme às próprias coisas [...] o poeta
é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas,
reencontra os parentes subterrâneos das coisas” (FOUCAULT: 2002, p. 64-67).
O mangueboy Chico e as
personagens do lugar-mangue recriado por Josué parecem se articular num mesmo
contexto de realidade mágica e desgraçada. Ambos tateiam em busca de saída e de
fazer a linguagem romper seu parentesco com a realidade opressora e terminam
criando uma alegoria, instaurando um pensamento novo. E assim surge uma
reviravolta cultural na cidade do Recife, marca-se um estilo, uma época, um
período, uma ruptura, uma descentralização, um deslocamento. Algo que rompesse
estruturas arcaicas. Hoje analisamos o Mangue já com um certo distanciamento
daquele período, mas é possível detectar onde deu-se a ruptura e quais as suas
possibilidades. Vejamos o que Foucault argumentou sobre esta questão da divisão
da cultura em períodos:
Pretende-se demarcar
um período? Tem-se porém o direito de estabelecer, em dois pontos do tempo
rupturas simétricas, para fazer aparecer entre elas um sistema contínuo e
unitário? A partir de que, então, ele se constituiria e a partir de que, em
seguida, se desvaneceria e se deslocaria? [...] que quer dizer inaugurar um
pensamento novo? [...] uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra
coisa e de outro modo [...] o problema que se formula é o das relações do
pensamento com a cultura. (ibid., p. 69).
A ruptura que podemos
observar nos estudos de Josué aponta para a desigualdade econômica como
responsável pelo fenômeno social da fome numa época em que se acreditava que
ela resultava do acelerado crescimento populacional desproporcional ao aumento
dos recursos naturais, já Science e outros poetas do Manguebeat lutavam por
romper com os feudos culturais que estagnavam Recife com seus discursos
reacionários. Josué foi deportado pela ditadura nos anos 60, mas seu legado
serviu de base para os mangueboys que sedimentaram sua luta e unindo estas
idéias à música e à poesia no início dos anos 90. Letras como “Rios, pontes e
overdrives”, “Antene-se”, “Da lama ao caos”, “Risoflora”, “Manguetown”, “Corpo
de lama” e outras são exemplos do que estamos afirmando. Elas se aproximariam o
que Foucault questionou como sendo “ruptura”, inauguraram o “pensamento novo” e
buscaram novas relações entre o pensamento e a cultura.
A cultura popular foi
sacudida pela nova Cena. O governo logo percebeu que seria conveniente apoiar
os mangueboys. Inicia-se a fase das negociações. O antigo regime parece querer
cooptar a nova revolução, mesmo olhando-a meio de banda. E Science inicia
negociações com Ariano Suassuna, dialoga com Alceu Valença. Nos
moldes do antropólogo Renato Ortiz a tradição e modernidade mesclam-se no
Brasil, país onde a ruptura nunca se realiza plenamente nem deixa de ser
tentada, como aconteceu nos anos 60 com a Tropicália e o Cinema Novo.
A movimentação
política, mesmo quando identificada como populista, impregnava o ar, impedindo
que os atores sociais percebessem que sob os seus pés se construía uma tradição
moderna (ORTIZ: 2001, P. 110).
Como ressaltamos antes, o
Mangue, em plenos anos 90, ainda ressaltava ícones como cangaceiros e reforçava
mitos como o do nordestino ser um tipo desengonçado, mas não é uma poesia, nem
uma música, que expresse conformismo, ou que demonstre uma unidimensionalidade
das consciências. É uma postura construtiva que surge no auge do poder da
indústria cultural sobre as massas, o final do século XX. Fala de conflitos e
exige a luta dos desfavorecidos numa sociedade que pode ser vista sob diversos
ângulos. A ação é considerada na poesia do mangue como foco central na
orientação dos comportamentos, estimula-se a realização das vontades e a
retomada do espaço público.
Uma
posição mais extremada é certamente a de Adorno, quando descreve a sociedade de
massa, como um espaço onde praticamente não existem mais conflitos, uma vez,
que a luta de classes deixa de existir e a própria possibilidade de alienação
se torna impossível. Sociedade marcada pela unidimensionalidade das
consciências, o que reforça a integração da ordem social e elimina a expressão
dos antagonismos (ibid. p. 150).
O Mangue carrega consigo
a idéia de libertação que não se vincula a uma classe específica, embora o
universo poético centre-se nos pobres, mas na mente de todos. Propõe a
transformação da própria concepção do que é cultura, justamente numa época de
mudança de parâmetros na economia global com o fim da Guerra Fria.
Marcada pelos estigmas da
contracultura a poesia de Science exibe o ridículo e o êxtase do ser e anda na
corda bamba entre o racional e o irracional. Como entender essa discrepância?
Minha tese é de que Science propôs a redefinição desses e outros conceitos. Sua
arma, como Barthes tanto sugeriu como sendo a melhor para se revolucionar, foi
a linguagem. E Chico usou a língua do povo do Recife. Como Josué foi buscar nas
camadas de baixa renda da população da cidade o motivo da estagnação dessa
metrópole-lama.
II
De algum
modo, a representação do Recife uma obra de Science comprovou o primado do
significante sobre o significado, da significação sobre a representação, da
semiose sobre a mimese. Não se buscava a realidade e sim autonomia da língua em
relação à realidade, o signo em fragmentada relação com o seu objeto, como se o
referente não existisse fora da linguagem e dependesse da interpretação.
Detectamos função poética colocando em evidência o lado palpável dos signos e
tornando evidente que o poeta selecionou e combinou de modo particular e
especial as palavras para daí obter um ritmo, que lhe era intuitivo. Chico
escutou muitos tipos de música e tinha aptidão nata para trabalhar a linguagem
de forma musical. Por ter tido contato com comunidades de baixa renda como as
de Peixinhos, Rio Doce, Ilha do Maruim e outras do Grande
Recife, ele absorveu o linguajar, a sonoridade e aproveitou-se da psicodelia
para ressaltar o inusitado das imagens. Recife perdia o peso do ser, se
esvaziava e se enchia tornando-se diferente a cada verso como se existisse no
mundo numa hora estranha onde ontem, hoje e amanhã se confundiam.
No trabalho
poético com o signo lingüístico, o significante Recife é substituído às vezes
por “Manguetown” como num rompimento de um contrato e a celebração do novo
signo como meio de superar ou resolver uma dificuldade. A esperança é camuflada
pelo gozo de ser expresso na exploração máxima da sonoridade das vogais,
alongando-as e interpretando as palavras como se houvesse uma exclamação após
cada uma delas. O senso de espetáculo e/ou festa parecem impregnar cada uma das
composições. Um atrevido arrebatamento é posto em ação. O “real” da vida ou o
que seria o “referencial” transformado em linguagem torna-se aventura
festejada.
Ao comentar os textos de Barthes
e Mallarmé, o professor Antoine Compagnon comenta algo que em
muito se assemelha com o nosso estudo sobre Science:
Barthes
cita, em nota, Mallarmé para justificar essa exclusão da referência e esse
primado da linguagem, porque é exatamente a linguagem, tornado-se, por sua vez,
a protagonista dessa festa um pouco misteriosa, que se substitui ao real, como
se fosse necessário, ainda assim, um real. E na verdade, salvo se conduzirmos
toda a linguagem a onomatopéias, em que sentido ela pode copiar? Tudo que a
linguagem pode imitar é a linguagem: isso parece evidente (COMPAGNON: 2001, p.
101).
Poesia e realidade
transformadas em produtos comerciais onde o que parecia imitado não eram os
habitantes do Recife, mas a ação deles, o modo como eles se expressam. Muito
mais o artefato sonoro-poético produzido pelo “imitador” (Chico) do que o
objeto imitado, o homem pobre e a cidade estigmatizada. No arranjo que o poeta
faz não importava mais se sua interpretação era fruto do engajamento ou da
alienação. A natureza, o lugar, a poesia, a cultura e a ideologia parecem de
tal forma estar amalgamados, que, olhar o que aconteceu no Recife de Chico
Science faz-nos muito mais pensar no que poderia ter acontecido. O
absurdo poeta-caranguejo era persuasivo ao desconstruir antigos
conceitos de representação da cidade ou da “terra dos altos coqueiros / de
beleza soberba estendal”, da “nova Roma, de bravos guerreiros / Pernambuco /
imortal, imortal” como está na letra do livro de Pernambuco, cujo autor é Oscar
Brandão da Rocha.
Por isso não abordamos
Science com uma aparelhagem estruturalista: optamos pelos estudos culturais,
por analisar a postura do poeta diante de um contexto que lhe era adverso e
como ele reverteu esta situação através da blague, do humor afrociberdélico
numa particular interpretação daquele momento, o final do segundo milênio, os
anos 90 na Manguetown, provocando nova ilusão ao substituir a realidade pela
sua representação.
São paradoxais as
relações da poesia de Chico com o Recife: não podem ser definidas nem como
miméticas nem como antimiméticas. A cidade recriada parecia com a anterior
depois de teatral metamorfose. Seria impossível, neste caso, eliminar
totalmente a referência, mas a urbe aparece como alucinação, ficção, ilusão
poética como num show de mágica: “sumiu”, “voltou” mas não é a mesma: é um
truque. Havia relações, agenciamentos, mas era o Recife como se fosse outra
cidade e o habitante transforma-se em turista acidental ou espectador de si
mesmo, ouvinte da própria história que parecia só existir por estar sendo
recontada daquele modo. Eis o valor heurístico, o valor da arte de inventar: a
representação scienciana surge como ápice de um século que em Recife foi
marcado pela procura da própria identidade (Regionalismo e o Movimento
Armorial do paraibano Suassuna que se desenvolveu nesta metrópole), um
projeto controverso e cheio de perspectivas numa era onde a cibernética
popularizou-se.
Com a digitalização e
seus efeitos de onipresença e onividência (graças à ubiqüidade do sujeito nas
redes telemáticas), ser e estar não são verbos que possam mais se colar
semanticamente, (como na língua inglesa). A identidade desenraiza-se, libera-se
de suas contenções físicas localizáveis num espaço determinado e aceita
possibilidades inéditas de heterogeneização ou mesmo de fragmentação [...] a
consciência do sujeito assim como as relações intersubjetivas não podem deixar
de ser afetadas [...]Os
corpos tornam-se vulneráveis à irradiação viral dos signos, e as identidades
podem ser produzidas como um bem de mercado, ou então como qualquer figuração
delirante na realidade sintética do ciberespaço (SODRÉ, 1996. p. 178-179).
E a “figuração delirante”
na obra de Chico envolve as tradições e a literatura locais misturando-as, como
viemos afirmando, com a tecnologia nos anos 90, que atingira as massas de forma
avassaladora e a internet que ajudou a estabelecer novos parâmetros na mídia.
Os mangueboys puderam contar já com estes recursos que se encaixavam com a
proposta da cidade reinventada, agora virtual e pronta para ser despachada para
qualquer lugar do mundo onde houvesse acesso à rede. Colaram o que viam com o
que ouviram dizer:
Este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que
sone
este corpo de lama que
tu vê
é apenas a imagem que
é tu
[...] eu caminho como
aquele grupo de caranguejos
ouvindo, a música dos
trovões
[...] há muitos
meninos correndo em mangues distantes
[...] essa rua de
longe que tu vê
esse mangue de longe
que tu vê
é apenas a imagem que
é tu
(CSNZ, 1996)
Nesta letra de Science
chamada “Corpo de lama”, além da liberdade gramatical a liberdade de
interpretar os signos como se fossem almas ou até ritmos musicais (a imagem que
“soul” – “alma” em inglês e um “ritmo” de música). A “música dos trovões”, que
os caranguejos escutam é uma referência ao romance de Josué de Castro Homens
e Caranguejos, no qual, aproveitando-se que os caranguejos ficavam
desnorteados em dia de tempestade com trovões, os homens forjavam barulhos para
simular esta situação e capturá-los assim. O “Corpo de lama” também é
referência aos pescadores do mangue, metonímia de determinada população
miserável da Manguetown que agora parece sem o cheiro na mídia. Com o
mangue e seu aparato tecnológico a cibernética se instala na cultura recifense
definitivamente: Recife caiu na rede, comunhão entre homem e máquina. A
transmissão de um indivíduo de um lugar para o outro deixa de ser uma hipótese.
Tanto a
proteína (humana) como o metal (máquina) seriam transcendidos pela realidade de
informação, suscetível de transmissão eletrônica [...] a mutação se daria pelo
acoplamento do corpo humano a dispositivos maquinais [...] montagem de
personalidades combináveis [...] ritmo [...] a identidade viabiliza-se como um
jogo de signos realizados por imagens, que circulam aceleradamente, de forma
contagiante, à maneira de um processo viral [...] simulacros que se incorporam
aos sujeitos, criando outro tipo de relação com o mundo físico. (SODRÉ, 1996,
p. 173-174).
O “contágio”, ao qual se
refere Sodré, era justamente a proposta do mangue. Do mesmo modo que os
habitantes/consumidores da Manguetown se transformaram em caranguejos ao beber
cerveja feita com água do mangue, com baba de caranguejo, transformando-se em
seres mutantes. A contaminação sígnica:
O indivíduo atribui-se
o nome que deseja e pode neste mesmo ato inventar e viver uma identidade
alternativa [...] superação da realidade corporal primitiva [...] que no fundo
seria pura desordem e falta de razão [...] multifacetado, o sujeito, que se
define como suporte permanente de traços acidentais, depara com a sedução
imagística e assiste à relativização da permanência pela mobilidade veloz das
máscaras, das variadas posições de indivíduos-atos, inerentes à pessoa [...] é
tentador buscar na ficção científica inspirações utópicas [...] de mutações
psíquicas e corporais” (SODRÉ, 1996. P. 175-177).
Mauro Mota
Mauro Ramos da Mota e Albuquerque nasceu em 1911, no
Recife, com raízes em Nazaré da Mata (norte da região canavieira de PE). Em
1970, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Viveu muito tempo nas
feiras, nas ruas com gente do povo, com os senhores de engenho da região. (a
vida regulando-se pela safra da cana, festas, procissões e feriados cívicos).
Estudou no Recife (Colégio Salesiano). Formou-se em Direito (1937), mas
dedicou-se ao jornalismo. Estreou em livro em 1952 com Elegias, temática do autor. Com esse livro conquistou o “Prêmio
Olavo Bilac” da Academia Brasileira de Letras. Foi prestigiado pela crítica
como grande poeta, principalmente como lírico de grande potencial
verbal e extraordinária imagística. Mauro produziu
também em prosa crônica, folclore, estudos de sociologia regional e geografia
sempre usando um discurso claro, nítido e elegante apesar do apóio científico.
Mauro conseguiu misturar poesia e ciência sem comprometer a exposição objetiva.
Foi professor, Diretor do Diário de Pernambuco, Diretor-Executivo do Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (1956/1970). Foi membro da Academia
Brasileira de
Letras e da Academia Pernambucana de Letras. Tem
poemas traduzidos em inglês, francês, italianoe castelhano.
As Elegias de
Mota denunciam o melhor do poeta. Ele se descobre pela dor e, atravésdela,
revela sua riqueza melódica. Usou da forma clássica e do ritmo interior. O seu
canto de desalento concentrou-se em imagens e ritmos de um grande poeta. “Dor a sua que não roda como o moinho sentimental de Casimiro de
Abreu, mas que se expande em música de um Schumann, no mais fungente recordar do amor desfeito”. (José
Lins do Rego in Diário de Pernambuco,
Recife, 29 de janeiro de 1953).
As lembranças são muitas. Coisas e pessoas cercam o
poeta e a relação dele com elas nunca é neutra. A poesia possibilitou ao poeta
Mauro Mota o reviver em outra dimensão, um tempo e um espaço. O que aconteceu é
chamado pelo poeta. Na prosa as coisas fluem de modo
mais trivial, mas o senso poético o domina. Mota é o
poeta de cotidianos suburbanos, o tradicionalista que se soma ao regionalista.
Cantou a mulher amada que, praticamente, viu morrer em
seus braços, bela e jovem, em elegias clássicas. Cantou as tecelãs humildes,
subúrbios humildes, cotidianos brasileiramente humildes.
Identificou-se profundamente com as raízes mais raízes
da vida de sua cidade, de sua província, de sua região, de seu país. Isto tudo
em palavras poéticas distantes das convencionais ou poemáticas.
Os doces, pacatos, tranqüilos subúrbios de cidades
provincianas, mas especificamente do Recife: “Recife rica de subúrbios
franciscanamente simples e naturais,” “brasileiras casas de porta-e-janela ou
de pequenos chalés”. Os subúrbios revividos com melancolia:
Rua Real da Torre
Ó Rua Real da torre,
que mistérios ocultais
nos chalés mal-assombrados
que aos fantasmas alugais?
Nos cemitérios e sítios?
nas casas de telha vã?
nos crepúsculos pousados
nas copas dos flamboyants?
Um cheiro de moça noiva
chega dos velhso jardins.
ressurgem tranças com ramos
de resedás e jasmins.
Os vizinhos nas calçadas
logo depois do jantar.
Cadeiras de lona se abrem
para as almas conversar.
O passado é ativado, iluminado pelo sol da atenção e
se faz presente na poesia.
A casa (espaço) para Mauro Mota é o núcleo central das
recordações, ponto de partida para uma poética de adesão ao espaço e ao tempo.
Pela recordação o eu-poético toda o que há de mais profundo na casa. Esta é o
“abrigo”, “proteção”, “ninho de lembranças”, “integração dos pensamentos e
sonhos”: continuação do colo materno, algo vivo no poeta:
Mudança
“Não ficaram na mudança nem o pé de sabugueiro
e o cheiro dos cajás, os passos da mãe no corredor,
a noite, o medo do papa-figo, as sombras na parede.
A casa inverte a missão domiciliar, sai da rua.
A casa agora mora no antigo habitante.”
Ao falar da casa o poeta a reconstrói intelectualmente
e emocionalmente. Ele a refaz. Não é a mesma em que viveu, mas a que sente. A
casa, as vozes, os chalés...
A casa
“Debruço-me de fora
onde havia a janela.
Nuvem ou caixa extinta?
Lá estou como eu era.
Que pássaro imigrante
pousa na cumeeira?
Que neblina umedece
as paredes aéreas?
Quem me chama ou me leva
quando o espaço transponho?
só o verde das heras
sobre as vozes e o sonho.”
Os Inquilinos
“Nos quartos da casa
moram os fantasmas
dos avós
inquilinos, mais
que a gente, têm medo
de ficar sós.”
A gaveta
“Torço a chave.
Geme
a gaveta.
Remos na fotografia
o passeio de canoa
no domingo fluvial.
O soneto do estudante,
a certidão, a receita,
o anel sem dedo.
Luciana na caixa verde,
batem nos dentes de leite
os bombons pelo Natal.
O livro dos endereços
(Para onde, agora?)
O telegrama chama.
Torço a chave.
Geme a gaveta.
(O aperto de mão da luva sem mão)”
Lembrança
Tua lembrança chega esta noite
depois de percorrer longos caminhos do espaço
rompidos pelas músicas da distância.
Sinto a alma toda aberta, pura, branca, horizontal,
tua lembrança pousando
suave e leve
como o azul cai do céu na superfície estática das
águas.
Como uma sombra de criança num jardim.
Como uma réstia de luar desce da clarabóia e pousa no
rosto pálido de uma moça doente.
Ceia
“Revemos a família antiga em volta
desses cacos de louça do quintal.”
Cheiros
“O cheiro dos jasmins, do cajueiro, da alfazema,
da cozinha (café torrado, charque assada)
o cheiro da Lindalva,
(banho de chuveiro, sabonete)
do peixe frito na esquina do Colégio,
da loção do cabeleireiro José Mateus,
do extrato no lenço do almofadinha Jonas Garcia”.
A casa, os sobrados, os chalés, as ruas são relicários
do passado que abrigam e conservam o que o tempo destruiu. Mesmo assim, esses
espaços preservam sua fidelidade ao vivido, morada dos fantasmas, dos que se
foram: Os jardins e o cheiro de moça noiva de outrora...
Um transeunte noturno fechando a janela do oitão...
Rua morta
“Longa rua distante de subúrbio,
velha e comprida rua não violada pelos prefeitos,
passo sobre ti suavemente neste fim de tarde de
domingo.
Sinto-te o coração pulando oculto sob as areias.
O sangue circula na copa imensa dos flamboyants.
Tropeço nos passos perdidos há muito nestes areais,
Onde as pedras não vieram ainda sepultá-los.
Passos de homens que jamais voltarão.
Ó velhos chalés de 1830,
eterniza-se entre as paredes o eco das vozes de
invisíveis habitantes.
Mãos de sombras femininas abrem de leve janelas do
oitão.
Há um cheiro de jasmins e resedás
que não vem dos jardins abandonados,
mas dos cabelos dos fantasmas das moças de outrora”.
É na casa extinta que o poeta encontra com ele mesmo.
Neste espaço onde ela existiu, ele se coloca à janela não mais existente. Se
tudo foi demolido, resta ao poeta olhar de fora para dentro. E o poeta se revê
na casa:
“Debruço-me de fora
onde havia janela
nuvem ou casa extinta?
Lá estou como eu era.”
A casa destruída... O poeta e as lembranças, o
receptáculo de imagens e de tempo. A casa muitas vezes “personificada” pelo
poeta.
O poeta, pela poesia, refaz a casa dos avós num
diálogo com ele mesmo. A voz da saudade. A voz que ativa um momento histórico e
também social, voz cheia de emoção:
Doçura Nazarena
“Vinha dos bangüês a doçura dos ares,
pregões de cocada, alfenim, caramelo.
Doçura de mel de engenho com farinha,
das aulas de catecismo, do canto das moças no coro
das novenas, da flauta de Targino.
Doçura do piano de Celina, tocando valsas vienenses e
valsas de Alfredo Gama,
das tardes de domingo.
Doçura do Xarope Peitoral Nazareno,
“infalível na cura das tosses rebeldes
e da tuberculose pulmonar.”
Soneto muito Passadista
Na Ponte da Madalena
Que lembrança ficou para mim do sobrado
da madalena? (vai passando o rio atrás)
Na frente, o jasmineiro e, no oitão, carregado,
o pé de fruta-pão e de sombras cordiais.
Na cumeeira Luís de Camões instalado.
O avô de fraque, a avó entre os jacarandás
da sala, na varanda, ou querendo, ao seu lado o neto,
de qualquer peraltice capaz.
Desta inclusive de mexer nas coisas mortas
as valsas de subúrbio, o oratório, a novena.
Que lembrança ficou do sobrado onde havia
Teresa? Neco, prenda o cachorro e abre as portas,
porque me chamam, nesta noite, à Madalena,
o jasmineiro em flor e o piano da tia.
Os sobrados recifenses, - paisagem que encontrou os
viajantes e artistas – o cais, o banho no Capibaribe (naquele tempo, o rio não
era depósito de detritos!), a água transparente do Capibaribe. O poeta funde o momento
atual com o distante. Relembra as pessoas e os objetos (móveis) familiares que
por sua vez parecem ter alma, vida:
Penteado
Vertical a asa ereta aberta em leque,
era uma grande borboleta preta
presa, a marrafa no cocó da avó.
O poeta olha as coisas com olhar desinteressado e as
coisas respondem preenchendo a imaginação do poeta. O mundo dele parece começar
junto das coisas. O mais simples objeto pode abrir para o poeta um mundo: a
escova, a parta, o vidro de dentifrício, o espelho (“Quem bate do outro lado /
dessa porta? Quem chama? / Que substância mora / no cristal e no estanho?”), os
sapatos (“Pendentes os dois cordéis / como dois nervos expostos / que se enxertam
nos meus pés, / não os levo, eles me levam (...) são barcos nas poças d’água, /
esquifes dos pés defuntos...”), o guarda-chuva, a cesta, os balões, enfim as
palavras- dispostas num microcosmo – sugerem mais do que descrevem.
“Cadeiras e sofás, consolo e jarra:
camas e bules, redes e bacias, o guarda-louça,
tetéias, mesa, aparador, fruteira,
a cesta de costura, o papagaio,
a cafeteira, o cromo da parede,
o jogo de gamão, as urupemas,
o álbum, o espelho, o candeeiro belga.”
Enumeração, palavras seqüenciadas que ganham sentido
unidas à intenção do poeta.
São um convite à imaginação, ao sonho, à viagem a um
passado que poderia também ser o passado do leitor. O poeta coloca “cadeiras” e
quanta coisa esse objeto evoca “sinhazinhas conversando, senhores gordos
discutindo a safra da cana-de-açúcar e a política do presidente da
província...” Restos de corpos (que ali sentaram) desaparecidos. Lembranças de
escravas a limparem essas cadeiras, ou outros móveis. A cadeira da avó, a
cadeira das visitas... (quantas associações podemos fazer!) A vida provinciana,
uma história, uma época, o dia-a-dia que
o mundo da cana-de-açúcar pôde proporcionar.
Os objetos do passado não estão mortos, são fontes de
evocações, apoderam-se do espírito do poeta.
A memória, a saudade também aparece num jogo
contrastante entre a voz fria do leiloeiro e a voz do poeta entre parênteses no
poema LEILÃO.
“– Quanto dão? Quando dão?
– Quem dá mais?, grita mais o leiloeiro.
– Esta bengala de castão de ouro!
(Onde anda sem levá-la o dono antigo?)
– Esta arca colonial!
(Falam dedicatórias de retratos, falam cartas de amor, a voz trancada).
– Esta mobília de jacarandá!
(As visitas na sala, o pai, a mãe, a irmã, a avó
cochila no sofá.)
– Este faqueiro de prata!
(Cruzados os talheres, as mãos cruzadas.)
– Esta cômoda do século XIX!
(Soluçam as gavetas; dentro delas, cheiro de roupa branca
e de alecrim).
– Esta louça azul de Macau!
(A fumaça (da sopa?) na terrina.
Na borda (asa quebrada) desta xícara
os vestígios dos lábios da menina.
Quem tira as rosas que a moça bota
nos jarros de opaline do consolo?
E a moça fresca dentro deste espelho
do toucador do quarto de dormir?
– Quem dá mais? Grita mais o leiloeiro.
Bate o martelo, bate aqui, dói longe.
O leiloeiro faz parte do mundo concreto, grita, é
vendido. O poeta fala baixo, evoca um espaço que existiu... O leiloeiro está
preocupado só com o valor material; o poeta com o valor simbólico dos objetos e
com as pessoas, antigos donos. A indiferença do leiloeiro contrasta com a dor
do poeta e esse passado só é vencedor porque o poeta o eternizou em poema. Para
Mota as coisas sentem (tristeza, solidão, alegria, compaixão, raiva,
inquietude): “A fonte
canta”, “o vento grita”, “O cacto chora”, “o
candelabro faz acrobacias”, “a trepadeira vem à janela, pensa.”
O poeta questiona ainda o fim do homem, seu futuro
caminho, o para onde do ser e das coisas:
O galo e o catavento
“(...) O cata-vento gira, e o galo mudo, esculpido em
folha, só no aéreo
poleiro, também gira, gira, gira.
Ventos catados pelo cata-vento
tentam levá-lo. O galo, todavia,
não vai. (Come as rações da ventania).
Estica, às vezes, o pescoço de aço
– para onde? Cego e preso, pelo espaço
O que procura?”
“O livro dos endereços
Para onde agora?” (A gaveta)
“Afinal, para onde fui
o dia nos levaria?” (Litania do Amanhecer)
“Adeus, meus amigos, parto
sem saber para que porto.” (A partida)
O poeta em “Diálogo com Carlos Pena Filho” conversa
com o morto num tom quase prosaico. A morte é vista por Mauro Mota sempre de
forma diferente:
“– Carlos, foste há um ano?
– Nem me lembre!
Nesse julho de chuva não me fui.
Estou. Meu calendário, é de setembro
da mesa do “Savoy”: Caio, Zé, Rui.
(...)
– Carlos, de que mais?
– Da lagoa do carro
– E o sangue e a tua
ida (para onde?) que hoje um ano faz?
– O remo é azul, azul é o passaporte
Vejo-me. Hoje me vi. Navego. Pára
a canoa no Cais de Santa - Rita.
– Quem morre no Recife engana a morte.
Se criei, no azul, os meus azuis, foi para
esta cidade que me ressuscita.”
O poeta conversa com o morto, rejeita a idéia de obedecer
a convenções ante a morte (choro, rezas, velas...)
Das coisas simples o poeta traz um passado feliz:
Doce, Doçura
Cana cana canavial engenho
Cabaço de caldo, cabaço de mulata.
A aula de Dona Alice,
– Mel, plural meles
– Eu melo, tu melas, ela mela.
A coleguinha Marta Melo,
melado de tinta, melado de giz,
cavalo melado, mel com farinha,
melífluo, melifluidade.
Diálogo das Grandezas do Brasil: A galinha precursora
da química industrial na colônia:
“A qual acaso voando com os pés cheios de barro úmido
se pôs sobre uma forma cheia de açúcar, e naquela parte onde ficou estampada a
pegada se fez todo o círculo branco donde se veio a entardecer o segredo e
virtude que tinha o barro para embranquecer, e se pôs em uso.”
(...)
A avó, de noite, Salve Rainha:
Bendito o fruto do vosso ventre, ó clemente, ó
piedosa, ó doce”...
Doce docíssima dulcíssima Dulce.
Rolete de cana caiana na festa da igreja e na estação
do trem tabuleiro de alfenim (...)
castanha de caju confeitada (...) pão doce da padaria
de Seu Odilon, os bombons da venda de Toinho Vieira.
Doce doçura, longe doce.
Toda chave da poética de Mauro Mota parece ser o
TEMPO: A água, a chuva, o rio, o tempo na farmácia. Tempo passagem que ele
aceita naturalmente, raros são os momentos de desespero.
Calendário
Hoje será ontem
amanhã e amanhã
menos seremos.
Tempo da Farmácia
As cores nos boiões, calomelanos,
o jacaré das rolhas, elixires,
os chás, o peixe da “Emulsão de Scott”,
dietas, língua de fora, Chernoviz,
o xarope da tosse, a queda, o galo,
o braço na tipóia, a camomila,
a letra do Doutor, frascos e rótulos,
o medo de injeções e bisturis.
O banco das conversas, as pastilhas
de malva e de hortelã, o mel de abelha,
a cobra na garrafa, o almofariz.
O termômetro, a febre dos meninos,
o tempo sem remédio na farmácia
as doenças da infância, a cicatriz.
O tempo foge e o poeta gostaria de vê-lo eternizado.
Nele estão os amigos, a amada morta, a família:
“O piano do sobrado de
azulejo
e a moça tocando a valsa do
mês de maio,
a mãe, a esposa, as rosas
na jarra azul abrindo
os ponteiros
como uma pinça
extraindo
as horas felizes do relógio
da sala,
não se foram sós, foram
levando a tua vida fugitiva”.
A chuva, a água, o rio sugerem a passagem do tempo. A
visão do rio nas cheias carregando baronesas e bichos mortos. Como ser poeta no
Recife sem falar no rio? (Bandeira, Joaquim Cardozo, João Cabral).
Chuva de Vento
“(...)
(As biqueiras da infância, as lavadeiras
correm, tiram as roupas do varal,
relinchos do cavalo na campina,
tangerinas e banhos no quintal,
potes gorgolejando, tanajuras,
os gansos, a lagoa, o milharal).
De onde vem essa
chuva trazida
na ventania?
Que rosas fez abrir?
Que cabelos molhou?
Estendo-lhe a mão: a chuva fria.”
Os elementos da natureza são simbólicos, testemunham o
passado. O homem é um
eterno viajante, viajante até de si próprio
(Itinerário).
O Companheiro
Quero deixar-me longe. Separar-me
de mim. Abandonar-me. Ser-me estranho.
Parto, mas, onde chego, me reencontro.
Despeço-me de novo e me acompanho.
A Viagem
Esse vaivém, essa
viagem, sem pousada,
que, apenas começa,
tem de ser terminada;
que, apenas termina,
continua por onde
o menino transita
do menino para o homem,
por onde o homem póstumo
em sua casa entra
cinzento. (Chega e volta
quando a Amada o afugenta.)
Itinerante
Vou em busca do ter-ido
Desapareço no espaço
Fico de novo perdido.
Procuro-me, e não me acho.
O Poeta do Social
Mauro Mota, ao falar das pessoas, mostrou simpatia por
personagens à margem davida, os humildes:
A Construção
“(...)
Vem vindo José Maria,
o amarelinho de São Bento
do Uma, sem genealogia.
Vem montado no jumento
saiu da escola (não tinha livros nem fardamento.
Aprendeu a ler sozinho.)
Oh, que infância sem infância,
essa de José Maria!
(...)
Vem vindo José Maria
vem de São Bento do Uma,
vestido de roupa cáqui
e de botinas reiúnas.
Puxa ainda o seu jumento,
Remexe nos caçuás.
Carrega barro e madeira
para a construção que faz
com alicerces na poesia
dos desesperos rurais.”
Em louvor de uma estenodatilógrafa
No papel-lâmina, deslizam
estenógrafos sinais,
os semoventes bacilos
das doenças oficiais.
Corre o carro, gira o rolo,
as teclas batem, baquetas
de marimbas sobre a escala
das folhas tamanho ofício,
voz do Estado nas primeiras,
eco nas segundas vias,
da máquina saindo cheias
de cicatrizes e veias
Sangue no papel carbono
coagula-se nas cópias
das palavras esmagadas,
migrantes da fita nova.
Nos dedos, há a nostalgia
do piano e a contradição
ver, no teclado, a oficina
de frases frias e pão.
O protesto social vem carregado de emoção em A tecelã.
É uma adolescente que partindo
para o trabalho deixa:
“Chorando na esteira”
seu “filho de mãe
solteira”,
levando consigo a marmita,
“contendo a mesma ração
do meio de todo dia
a carne-seca e o feijão.”
E ao descrever o trabalho da operária, assemelha-o ao
próprio trabalho:
“os fios dos teus cabelos
entrelaças nesses fios
e outros fios dolorosos
dos nervos de fibra longa
(...)
A multidão dos tecidos
Exige-te esse tributo.
Para te nem sobra ao menos
Um pano preto de luto.”
Os animais nos poemas de Mauro Mota não aparecem por
acaso. Eles refletem o universo infantil do poeta: (O pássaro por exemplo é
visto como o animal que elabora seu próprio caminho, rompe as distâncias
infinitas.
Elegia nº 6
Irrevelada angústia da última hora:
tantas frases de amor não foram ditas,
e silenciosamente foste embora
para as grandes distâncias infinitas.
Pássaro ou anjo que distante mora,
inquietas asas pelo céu agitas.
Voltas e pousas suavemente agora
dentro das minhas solidões aflitas.
Voltas, e eu fico em dúvida se pousas,
tal a ternura com que vens e a calma,
tão leve como o espírito das coisas.
Chegas, após vencer longos caminhos,
com a pureza que vive só na alma
das rosas virgens e dos passarinhos.
O boi de barro é também o boi real e “outro boi”, não
apenas o que fica na estante. Ele é também um boi telúrico. Ele é também coisa
e “as coisas só existem em função do olhar do homem exercido sobre elas”. O boi
na simbologia medieval significa paciência, resignação, espírito de sacrifício.
É um boi verde vidrado
acuado em cima da estante.
É um boi desenterrado
telúrico e ruminante.
Quem o desenterrou foi
Abelardo em Tracunhaém
No barro da beira-rio
estava escondido o boi
desgarrado do rebanho.
Feito do gado anterior,
de estrume e de capim seco,
é este boi ruminador.
(...)
comeu do pasto e foi pasto,
misturou-se com o chão
para nascer no roçado,
oculto na plantação,
dando marradas no vento
da várzea pernambucana,
esse boi de chifres doces,
chifres de cana-caiana.
Toca o chocalho. O mugido
do boi de barro enche a sala
(Cresce a grama no tapete).
Pego no boi ele racha.
O poeta falou ainda do galo (O Galo e o Catavento), do
touro (Slide Chileno), da potranca (A Potranca), da ovelha (Pastoral), das
andorinhas (As Andorinhas), do cão (O cão); falou das frutas: jaca (Jaqueira),
dos cajus (Natureza viva e morta de cajus).
A poética de Mauro Mota é de adesão a um tempo e a um
espaço, canto de amor às suas raízes, sua primitividade que ele eterniza no
poema.
“O cotidiano, o flagrante
do dia-a-dia, o fragmento
emotivo, colhidos por Mauro ganham
força poética sem perda daquela simplicidade chão. O poeta desrealiza o trivial (aparente) para
fazê-lo poesia”, diz Ivan Cavalcanti Proença.
O lápis sobre a mesa
estático.
O sono mineral,
o sonho oblongo.
O lápis sobre a mesa,
o olho no bico.
O papel branco,
a solidão.
O lápis sobre a mesa
estático,
o sonho oblongo
da mão.
(O Lápis)
Mauro Mota é um jeito de sentir “coisas, gente,
bichos, paisagem, tempo”, enfim as lembranças de toda uma vida, conseqüência do
mexer nas coisas mortas (os sobrados, as mobílias, os acontecimentos
religiosos) como também fez Carlos Drummond de Andrade.
Mota pertenceu à juventude vanguardista. Em seus
primeiros poemas observam-se versos livres, linguagem coloquial, linguajar e
informação regionalistas e o poema piada. Prosaicos, refletem a cor local.
Publica suas Elegias
em 1952. Talvez a morte da esposa tenha ativado sua veia lírica. Mesmo
aqui continua a empregar o verso livre regionalista do modernismo de 22. dos 36
poemas que compõem as Elegias 16 são sonetos (influencia da geração de 45). O
tema das Elegias é a morte e o
passado.
Elegia nº 8
As mãos leves que amei. As mãos, beijei-as
nas alvas conchas e nos dedos finos,
nas unhas e nas transparentes veias.
Mãos, pássaros voando nos violinos.
Abertas sempre sobre os pequeninos,
mãos de gestos de amor e perdão cheias.
Mãos feitas para construir destinos
no céu, no mar, nas tépidas areias.
As mãos que amei em todos os instantes.
A carícia das mãos que iam colhê-las
eram as rosas que colhiam antes.
Se parecem dormir não as despertes.
As mãos que amei, que desespero vê-las
Cruzadas, frias, lânguidas, inertes!
Além das Elegias
(1952), Mota publicou “Epitáfios” (59), “O galo e o catavento (62) e “Canto
Ao Meio” (64). Em crônica: “Capitão de fandango (59). Estudos/ensaios: “Roteiro
do Cariri” (52), “São José do Nordeste” (52), “Paisagem das secas” (58),
“Geografia Literária”(61), “Imagem do Nordeste” (61) e “Estrela de Pedra:
Delmiro Gouveia, civilizador de terras, águas e gentes” (61).
Mauro Mota faleceu no Recife a 22 de novembro de 1984.
Carlos Pena Filho
No ponto onde o mar se
extingue e as areias se levantam
cavaram seus alicerces
na surda sombra da terra
e levantaram seus muros.
Depois armaram seus flancos:
trinta bandeiras azuis
plantadas no litoral.
Hoje, serena flutua,
metade roubada ao mar,
metade à imaginação,
pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa.
extingue e as areias se levantam
cavaram seus alicerces
na surda sombra da terra
e levantaram seus muros.
Depois armaram seus flancos:
trinta bandeiras azuis
plantadas no litoral.
Hoje, serena flutua,
metade roubada ao mar,
metade à imaginação,
pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa.
(Carlos Pena Filho)
Carlos Souto Pena Filho
nasceu no Recife, em 17 de maio de 1929. Fez seus primeiros estudos em
Portugal; formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito
do Recife. Em 1947, publicou seu primeiro poema, Marinha, no Diario de
Pernambuco. Seu primeiro livro, Tempo de Busca, reunindo poemas e sonetos, data
de 1952. Três anos depois, viria o segundo, A Vertigem Lúcida, premiado pela
Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Pernambuco. Memórias do Boi
Sarapião, um longo poema, foi publicado em forma de livro, em 1957, com projeto
gráfico e desenhos de Aloísio Magalhães. Em 1959, lançou o Livro Geral,
reunindo sua obra poética, com o qual ganhou o Prêmio de Poesia do Instituto
Nacional do Livro (INL). Compositor, fez músicas em parceria com Capiba ( A
Mesma Rosa Amarela; Claro Amor; Pobre Coração e Manhã de Tecelã) e com outros
autores. Morreu em conseqüência de desastre de carro, no Bairro de São José, no
Recife, em 1 de julho de 1960. Seu último poema, Soneto Oco, havia sido
publicado, dias antes (26 de junho), no Jornal do Commercio.
Para Fazer um Soneto
Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere um instante ocasional
neste curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial
Ai, adote uma atitude avara
se você preferir a cor local
não use mais que o sol da sua cara
e um pedaço de fundo de quintal
Se não procure o cinza e esta vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse
antes, deixe levá-lo a correnteza
Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza
ponha tudo de lado e então comece.
Os poemas do seu Livro
Geral, são os mais conhecidos do poeta. Na poesia urbana misturam-se desempenho
poético e consciência estética (no início praticou um lirismo clássico). Quanto
à sintaxe, ao léxico, fonética , o seu estilo sofreu poucas mudanças no curto
intervalo de tempo em que escreveu sua obra. Em esparsos momentos notamos
ruptura com formas tradicionais. É adepto do soneto. Alguns estudiosos apontam a “multiplicidade diccional do autor” em sua
relação à estética da Geração 45 e o “ponto de inflexão onde essa dicção se
individualiza”, quando ele vai ao encontro das formas populares.
Giberto Freyre
"DONA SINHÁ E O FILHO PADRE"(NOVELA-1964) .
Gilberto de Mello Freyre nasceu e morreu no
Recife (1900-1987). Estudou na infância com franceses e ingleses e no Colégio
Americano Batista, Recife. Formou- se em Ciências e Letras. Especializou- se em
Ciências Políticas e Sociais nos EUA . Cursou Mestrado e Doutorado na Universidade de Colúmbia. Em 1926 lança com outros intelectuais nordestinos o
"Manifesto Regionalista", onde defende os valores desta região e em
1933 ficou famoso com a publicação de "Casa Grande & Senzala ",
uma análise da formação da formação do povo brasileiro(nordeste). Pelos títulos
dos seus livros, temos uma idéia do caráter de sua obra:
"Guia prático,
histórico e sentimental do Recife"(34),"Sobrados e
mocambos"(36), "Nordeste"(37), "Conferências na
Europa" (38), "Açúcar: algumas receitas de bolos e doces dos engenhos
do nordeste" e "Olinda: 2º guia prático , histórico e sentimental da
cidade brasileira" ilustrado por Manuel Bandeira (39), "Um engenheiro
francês no Brasil" e " O mundo que o português criou" (40),
"Região e tradição", ilust. Cícero Dias (41),"Ingleses"(42)
"Problemas
brasileiros de antropologia"(43), "Perfil de Euclydes e outros
perfis" (44) , "Sociologia: introdução ao estudo dos seus
princípios"(45), "Interpretação do Brasil"(47)"Assombrações
do Recife velho"(55) , ""Arte, ciência e trópico"(62),
"O escravo nos anúncios de jornais
brasileiros do século XIX "(63), "Recife , sim! Recife, não!"
(67), "Brasil, Brasis, Brasília" (68), "Nós e a Europa germânica"(
71), "Alhos e bugalhos" (78), "Heróis e vilões no romance
brasileiro" (79), "Gilberto poeta: algumas confissões" e
"Poesia reunida"(80), "Ferro
e civilizações"(88) e outros , dentre os quais a novela "Dona Sinhá e o Filho
Padre" de 1964.
Gilberto queria chamá-la de seminovela . O
livro ganhou nova edição em 2000 pela Ediouro Publicações do Rio de Janeiro(254
páginas) e foi selecionado pela Universidade de Pernambuco, para o exame de
seleção de entrada(vestibular 2001). Ele se pergunta: "Afinal o que estou
escrevendo é ensaio ou romance? Dissertação ou novela?"(Página 63). É o que
chamamos metanarrativa (o narrador
questiona-se)
Vejam: Novela é uma narrativa curta, próxima
da realidade. Surgiu no início do século XX a antinovela , espécie de
abstracionismo literário, sem
personagens ou trama. Na década de
setenta Clarice Lispector publicou "Água Viva", nesta linha.
Já o que Gilberto propõe é algo semelhante ao cubismo (estilhaçar a realidade).
Dickens, Thomas Mann, Tolstoi, Proust e
Melville, são alguns escritores que inspiraram Freyre a misturar realidade
histórica com subjetivismo, como fez
Defoe na Inglaterra do século XVIII com ""Jornada do Ano da
Peste" e "História da Peste". Mas o mestre de Apipucos(local de
sua residência-Recife) apoia-se até em
manuais técnicos e científicos da polícia moderna: "São técnicas que
aplicadas à pesquisa histórica e sociológica, podem podem resultar em
descobertas decisivas, à base de indícios que supram os documentos completos". Daí os
experimentos freyrianos como "Casa Grande & Senzala (de 1933) e este "Dona Sinhá" , que de certa
forma, analisa a formação de padres no nordeste.
Já o ultra-realismo que Gilberto esboça ( ao
modo de Raul Pompéia de "O Ateneu") ou o seu neo-naturalismo ( que é
como Ariano Suassuna chama o regionalismo modernista do tipo praticado José
Lins do Rego de "Fogo Morto")
nos fazem lembrar a deliciosa prosa de
Guimarães Rosa, que tentou como ninguém esboçar/reconstituir o caráter
psicológico da personalidade brasileira.
Se procurarmos o enredo de "Dona Sinhá
e o Filho Padre" , ou buscarmos profundidade na criação dos seus
personagens , nos depararemos com uma trama frágil, com personagens
superficiais . Cubisticamente: os personagens são como "coisas/
pedaços" que formam um painel da formação da sociedade recifense na
segunda metade do século passado.
O tom de saudosa evocação do Largo de São
José(Recife), dos carnavais, dos vultos históricos como Nabuco e Dom Vital é
filtrada por uma ótica que beira a irreverência.
O cheiro de munguzá , tradicional nas manhãs
de Domingo daquela época, os pescadores, a praia, a Casa de Banhos sobre os
arrecifes, um passeio de jangada nas
águas "tanto azuis, quantos verdes do litoral pernambucano", quando O
Recife visto do alto- mar parecia
"pequeno como uma cidadezinha de presépio" (pág-89).
Este livro é uma "aventura
inovadora", uma "noveleta" , até certo ponto picaresca pelo tom
"brincalhão " do narrador. Por exemplo ao falar das fezes dos
franceses , diz serem das mais podres que apareceram no nordeste. Comenta o
tamanho do pênis de Nabuco, descreve alguém caricaturando Dom Vital num desfile
do carnaval de 89, trata o personagem principal (José Maria) como se fosse uma
"Sinhazinha" , caricaturando-
o até na hora da morte.
Se fosse um cordel um bom título seria
:"A estória de Dona Sinhá e seu Filho Padre e o Seu Amigo
Afrancesado" .Cujos personagens são:
SINHÁ- Uma "Iaiá loura "com "remoto
sangue ameríndio" . Afrancesada, estudou no tradicional Colégio de São
José, das irmãs Dorotéias , interna, no Recife. A sala dela lembra um teatro de
arena e o bairro onde mora , São José,
parece "uma aldeia simples e modorrenta, cenário de teatro pobre". É
mãe de José Maria, fez promessa que se ele escapasse de uma diarréia, quase
fatal, tornaria- se padre. Da tradicional
família Wanderley.
JOSÉ MARIA- No colégio foi
brilhante, menos nas "contas". Estudou para ser padre seguindo a
promessa da mãe, morreu tísico antes de ordenar-se. Sentiu amor platônico por
Paulo que o defendia na escola. Sem Paulo, J.M. teria se tornado um pederasta
passivo, talvez. Foi muito mimado em casa pela mãe viúva, que o tinha como um
santo: "um meninozinho- Deus" (p-98), e pelas negras que o
paparicavam demais. Fascina- se quando ouve falar em Iemanjá.
INÁCIA- Negra de
confiança da casa de Dona Sinhá.
JOÃO GASPAR- Irmão e
Sinhá. Tenta fazer de José Maria , um macho , para que ele assuma a fazenda
Olindeta, engenho da família, já que apesar de mulherengo, Gaspar não tem
filhos.
O NARRADOR- Apesar de não ter nome, é apenas "parente dos
Wanderleys", (talvez seja o próprio Freyre) . Sua maneira de narrar é
personalizada, coloca-se como participante dos acontecimentos , servindo de
interlocutor em diversas partes da novela.
PAULO TAVARES- Médico .
Nutriu uma espécie de amor por José Maria, durante a adolescência de
ambos. Descobriu nele "uma graça diferente" das que encontrara nas
"mulheres de várias cores com quem
tivera relações de cama ou de esteira , sofá ou rede" e que encontrou também nas pinturas da igreja(baseada na arte
grega, tornada mística pelo catolicismo- anjos e santos representados muito
jovens.
TAVARES- Pai de Paulo .
Criava pássaros e fazia gaiolas por lazer. Negociava com açúcar. Ficas triste
quando o filho vai estudar medicina na Europa.
TEREZA- Mãe de Paulo . Já
está viúva quando o filho volta formado.
DOM VITAL- Bispo capuchinho
, politizado, enfrentou a maçonaria em Recife, não se curvou ao imperador, foi
preso. Sua história é narradas em várias páginas do livro. O
"amarelinho" do interior de Pernambuco, que sofreu num mosteiro na
França e fez-se "macho". É comparado com José Maria, frutos da
formação de padres.
LUZIA- negra verdureira
no Recife.
CHICO CANÁRIO- Branco,
marido de Luzia , prezava mais a liberdade do que o dinheiro. Vendia pássaros
ao pai de Paulo . Tratava bem de animais e era requisitado para curá- los. Foi
na casa dele que Paulo viu Joaquim Nabuco a primeira vez.
NABUCO- Abolicionista.
Mesmo caso de Dom Vital. Não é personagem da novela, porém várias páginas lhe
são dedicadas.
O livro é dedicado a Jorge Amado e a
Guimarães Rosa: "Novelistas
esplendidamente completos, cada uma a seu modo", sentencia o mestre.
O narrador diz que vai escrever a vida de um
"santo ignorado"(p-24): "Eu estava mergulhado numa aventura psíquica talvez
única(...)uma espécie de sessão de espiritismo"(25). Entre uma canjica de
São João, e o filhós do carnaval, o sarapatel, o peixe cozido bem temperado, a
feijoada, o molho de pimenta, ficamos sabendo
que o namoro de Gilberto Freyre com a ficção não é platônico, porém a
história é "senhora absoluta" de suas letras.
José Maria é analisado pela ótica
naturalista , onde sexo e perversão se confundem. Mas, para nosso "filho
padre" , Jesus "se tornaria o seu Deus e o seu homem únicos. A Igreja
tem dessas vitórias sobre a própria natureza." (32).
O livro analisa a família Wanderley(fracassados,
difamadores, admiradores de mulatas e detratores de mulatos, retardados no
pensar em sua maior parte). O narrador desabafa: " Sou um indivíduo
deformado pela preocupação sociológica com as coisas históricas" (38).
"Apaixonar- se por uma senhora com
idade de ser sua avó" , Oswald de Andrade é mencionado quando Paulo pede
Dona Sinhá em casamento, ele vê nela traços do finado José Maria (ela recusa e
pede que ele reze pelos dois).
A narrativa rompe com a linearidade e ora
vemos um José Maria criança(cometendo o "pecado africano. Feitiço.
Mandinga" com a sua "tetéia"- a masturbação) , ora adolescente
sentindo perigo e "um toque de amor
ou não sei o que de sexo"(63) no beijo na boca que levou de Paulo,
ora homem (jamais freqüentaria, como o
tio Gaspar, a Rua do Fogo, local de prostitutas. Vai para o Seminário em
Olinda).
"O filho de Dona Sinhá morreu
semivirgem(...) ele não era um lúbrico acanalhado (...) um pederasta passivo
que servisse de mulher aos ativos" (142). Vemos aqui um pouco do
Naturalismo e do escritor pernambucano Nelson Rodrigues e seu jogo de
perversões.
1889 marca o final da
narrativa. Os desfiles de carnaval no Recife onde "gente de cor pulava , saltava e cantava" com seu
"resto de alegria africana" (183) ao lado da burguesia: "A
República e a Abolição já não empolgavam os brasileiros (...) Os de Pernambuco
mostravam- se desorientados".
Há passagens inesquecíveis e poéticas nesta
novela : Como jovens num barco ao luar
fazendo serenata para as mocinhas nas varandas dos sobrados na Ponte D´Uchoa
(Recife).
O último depoimento que o narrador apresenta
é o de Frei Rosário: As palavras finais de José Maria, no leito de morte:
"Iemanjá"..."Mãe"... e baixinho: "Paulo".
"Depois
de beijado pela última vez por Dona Sinhá esboçou uma espécie de procura
de outra boca que beijasse na própria boca(...)de um violeta pálido(...) beijos
sem nenhum gosto de carne. Pelo que Frei Rosário levou aos lábios de José Maria
seu crucifixo de capuchinho . Beijando-o morreu José Maria, com Dona Sinhá do
lado (236) e partiu" agora em busca da mãe para ele eterna" (A Mãe de
Jesus?) (p-237).
Assim o narrador conclui sua
"novela".
Joaquim Cardozo
“Tarde no Recife”
Da ponte Maurício e a
cidade
Fachada verde do Café
Máxime,
Cais do Abacaxi.
Gameleiras
Da torre do Telégrafo
Ótico
A voz colorida das
bandeiras anuncia
Que vapores entraram no
horizonte.
Tanta gente apressada,
tanta mulher bonita;
A tagarelice dos bondes e
dos automóveis.
Algazarra. Seis horas. Os
sinos.
Recife romântico dos
longos crepúsculos que assistiram à passagem dos
fidalgos holandeses,
Que assistem agora ao movimento das ruas
tumultuosas,
Que assistirão mais tarde
à passagem dos aviões para as
costas do
Pacífico;
Recife romântico dos crepúsculos das pontes
E da beleza católica do
rio
.............................
CARACTERÍSTICAS:
* Domínio
das formas poéticas
*
Modernidade nas criações
* Grave e
solitário ("lento e longo", disse João Cabral de Melo Neto)
* Descreve
o Recife histórica e poeticamente
* No
início sofreu influência parnaso- simbolista
*
Influência do Expressionismo (exagero)
alemão do politizado Brecht.
Preocupação com as contradições do fenômeno urbano( participou como
engenheiro na construção de Brasília e
testemunhou a euforia da Era JK ): "Homens de todas as fadigas/ magoados
rostos doloridos".
Recusa o
otimismo ingênuo, descrê das soluções nacionalistas desconfia do nosso potencial moderno em relação bem-estar do
homem . O progresso é devastador. O urbano é abismo, melancolia.
Expõe jogo
de interesses do capitalismo (colonialismo/indústria) , escreve sobre
proletários.
Faz
referência a um tempo "saído da memória" , recuperado pela construção
da linguagem. "Feliz Dezembro! /Profusão de verdes novos/(...) como vai florido este verão!/Sombra de nuvem
corre pela estrada/(...) Vejo o subúrbios tranquiilos(...) e fico a pensar e
sentir(...) desejo de lembrar coisa esquecida".
Saudosismo
evita o caos.
Escreve
peças teatrais abordando o folclore pernambucano.
Cardozo
fala da "terra do mangue", sem "ufanismos" , nem pieguismos
:"A terra do mangue é preta e morna /mas (...)tem olhos e vê(...)olha os
automóveis que correm no asfalto(...)/ Não há
motivos, Margarida, para teus
receios./ Olha através da porta do teu mocambo à sombra da noite/imóvel/sob a
perpétua luz das estrelas frias e impassíveis/ A terra do mangue está dormindo."
COMENTÁRIO: O eu-lírico se harmoniza com a terra do
mangue e dramaticamente observa o progresso:"os automóveis que correm no
asfalto". É uma forma de dar à
"poesia regionalista" novo rumo. "Recife pontes e canais (...)/
torres da tradição, desvairadas, aflitas/ apontam para o abismo negro-azul das
estrelas...". "Ó minha triste e materna e noturna cidade/ reflete minha alma rude e amargurada".
Sobre Olinda o poeta também exalta a antiguidade , a luta, as igrejas.
Versos
livres.
Tom
profético.
Personificação(da cidade-Recife, de seres inorgânicos. Usa técnica Surrealista: "A voz das bandeiras
anuncia(...)/ tanta mulher apressada(...) a tagarelice dos bondes e dos
automóveis, um camelô gritando:- Alerta! /
Algazarra. Seis horas. Os sinos
./ Recife românticos de crepúsculos das pontes /Dos longos crepúsculos que assistiram a passagem dos
fidalgos holandeses ,/que assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas ,/
Que assistirão mais tarde à passagem dos
aviões para as costas do Pacífico. / Recife romântico dos crepúsculos das
pontes/e da beleza católica do rio." . É o imaginário pernambucano, presente/passado/futuro, testemunha dos
tempos como o poeta o é, no clímax do caos moderno, em linguagem clara e
equilibrada(quase matemática).
Jogo: Física
X Metafísica: "O trem se
desprende da história/(...) O trem atravessa rompendo a barreira do som/ Tudo
agora é silêncio (ruído branco? ) / Não corre mais, nem voa: nem vacila, nem
flutua" (Cardozo em "VISÃO DO
ÚLTIMO TREM SUBINDO AO CÉU" ).
O CAPATAZ DE SALEMA (Teatro)
Joaquim Cardoso é antes
de tudo um poeta. Foi engenheiro por acaso. Esta peça escrita em verso é
permaneado de um poético surreal encantatório discurso. Quase todos os versos
tem sete sílabas (brancos). São 3 personagens: O tal “capataz” (pescador?),
Luzia (moradora de caiçara) e a avó/madrinha dela, Sinhá Ricarda (espécie de
coro/fantasma). O mar é sugerido como personagem, ou como efeito fundamental
para a encenação, o que exigiria recursos sonoros sofisticados.
A trama é simples João, o
“capataz”, chegue na casa de taipa coberta de palha e zinco, de frente para o
mar. É tarde da noite e Luzia e a avó doente já se recolheram. Ele vem saber,
mais uma vez, por que a moça o rejeitou. Ela diz que é terra, e ele é mar. Dois
elementos que se encontram, mas não podem se unir.
A linguagem é barroco –
regionalista. A estrutura poética cria imagem fascinantes. Algo aqui mas lembre
Garcia Lorca (poeta-dramaturgo espanhol). Não se pode dizer que o texto tem boa
carpintaria teatral. Predominam as metáforas para homem;mar e mulher/ terra.
Céu, morte, noite, amanhecer.
“Vim de mares distantes
(...) tentar a última vez (...) num pedido derradeiro implorar / que me digas a
razão / Por que... me repeles”, diz João que em imagens neo-barrocas se
inflama: “Em busca da luz polar; / De tuas graças morenas”.
Joaquim, que ajudou
Niemeyer a construir Brasília, aqui parece arquiteto de um sonho. Sua policia
metafísica nos sugere o impossível dentro dos limites do real: água, areia,
ressaca, bonança, morro, nuvem.
A 2ª vez que João viu
Maria foi num dia de procissão em Recife. Vestido de renda e galão, cravos no
peito e “uma rosa em cada mão. Há chavões como “acavalo alazão” chamado
“Ideal”, ou “fazer cortesia; num dia de carnaval”.
Assim ele se define “sou
capataz/ fiscal de pesca no mar/ saber que sou capataz/ De Salema. Lá naquela /
Praia do norte, possuo / Também pequeno estaleiro / De bancos a vela/ E,
mesmo... / nasci em terras de mangue, / onde se abraçam as marés, / em cujas
águas brinquei / muitos siris apanhei”. Vemos aqui o mangue, o duplo doce /
salgado. “andei por todas as praias / Dessa costa do nordeste; / Guardei todos
os costumes / de nossa gente”. Sim, Joaquim descreve, aqui e acolá, nossos
“costumes”: comidas, etc.
Mas, Luzia não quer o
amor dele: “Sou terra escura e constante/ És o mar independente. Ora,
poderíamos buscar aqui o jogo Luzia (luz) e Salema (sal) – misturado antes com
água, depois solificado).
A mulher que recebe no
seio, humilde, “tudo que o mar rejeita. A avó/madrinha, Sinhá Ricarda, avisa:
“cuidado! Que o mar derrama... / cuidado! Que o mar rasteja.
Numa de suas lembranças
Luzia conta que teve boneca de louça na infância, que, quebrada em laços, num
delírio foi levada por “canarinhos”, ao que o capataz, de modo enigmático,
retruca: “É bem possível que à morte/ não só os vivos estejam ; sujeitos”.
Metafísico, não? Poético.
Os chavões são
inevitáveis: “Mulher sabe dar. Dar/ Vida e, portanto também / morte. Porém,
como a terra. / Ela precisa de muito / Que em si própria não tem” (aqui ela
fala de uma seca que veio do “alto sertão”, ao que o capataz / João retruca:
“aqui tenho o que te falta: / é o meu amor verdadeiro. / Mais fiel que o meu
veleiro. / Velejando em maré alta”. Ao que ela rebate: “minha terra tem marés /
marés que são de águas vivas”, e a avó: “Toda mulher é uma várzea / onde um
canavial cresceu (...) minha safra se perdeu”. A avó perdeu, viu morrer todos
os seus filhos. Ela teve pressárgios como jangadas voando à noite, cruzando com
a luz do farol. Ela própria que morre no final da peça, é tida pela neta como
um farol.
João ainda promete a
Luzia que se ela se casar com ele: “Todos os dias trarei / o peixe melhor que
encontrar” (camorins, Ciobas, garajubas, cavalas, “pernas de moça”. E “se
Casares comigo/ tua será minha lancha
(...) a minha rede de arrasto”. Mas ela recusa: “Gosto de ficar soiznha / De
nunca ser pressentida / De nunca ser contemplada / no que em mim há de mim
mesmo”. Há um pouco da solidão mística cardoziana, poética, aqui. Algo de
mestre.” E me julgo encarcerada / Por meu corpo me sentindo / A um outro corpo
algemada / Casar é louco ideal / É no querer de ser um / Somente alguém se
obter/ Que ainda é duplo e desigual / – Ilusão de achar comum / O que é
contrário e irreal”. Logo aqui Cardozo busca a musicalidade no seu Simbolismo.
Mais parece letra de música! E o enamorado (mar) responde à sua amada (terra)
“Do que te disse que não, / Não sabes dizer que sim”. Se despede dizendo que é
forte e vai levando a lembrança da roupa dela cheirando a malva-rosa e alecrim
e vai levando a certeza: há de ouvir falar de mim / E verás na noite azul / A
estrela negra anoitando / A minha sorte ruim”.
Quando ele parte a avó
morre e Luzia depois de cobri-la numa espécie de transe poético / profético
entre os últimos versos do texto teatral: “Como terra que sou (...) eu mesmo
quem te encerra;/ Quem te cobre para o fim / Morte-mãe. Morte-avó de mim/ De
mim, terra e mulher/ nem de terra nem de mar serás / Nem de vento hás de ter
véu./ Madrinha! Serás um farol/ Um farol em torno do qual / Jangadas verás
passar / Voando. Voando para além... / E este farol de tão breve / Não dá para
guiar navios (...) Mas será o bastante / Para servir de coivara / Na minha roça
perdida / Em terra inútil e cansada / Nela somente deixando / Marca de terra
queimada!.
Então a avó seria o
elemento que faltava aqui. O mar (água), a terra, ar (vento) e ela... o fogo!
(a coivara). Completada a alquimia cardoziana, Luzia sai em busca do seu
destino. Há então a sugestão de um canto e de um coro: “Vento que sempre ouvi
cantar / Vento alento da terra / Canto pranto da terra que morre / Estendida
aos pés do mar (...) ainda te ouvirei / Quando enfim tu descrever / Chovendo
água de chuva / No mar onde estarei / Vento terral / Vento Luzia!
É surreal, é poético: as
chamas envolvem o cadáver de Sinhá Ricarda.
Nelson Rodrigues
"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da
fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer
menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de
ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”, disse o
pernambucano Nelson Rodrigues que nasceu da cidade do Recife - PE, em 23 de
agosto de 1912, quinto filho dos catorze e tem como uma obra onde a morte
aparece punindo o sexo ou o sexo punindo a morte e faleceu na manhã do dia 21
de dezembro de 1980, um domingo. No fim da tarde daquele dia ele faria treze
pontos na loteria esportiva, num "bolo" com seu irmão Augusto e
alguns amigos de "O Globo". Em 1926 o expulsaram do Colégio
Batista, da Tijuca, quando ele estava no segundo ano do ginásio, por rebeldia.
O pai dele, em 1924, denunciou que os usineiros pernambucanos haviam dado um
colar caríssimo à esposa do então presidente Epitácio Pessoa. Foi preso no Rio
de Janeiro e o jornal que ele dirigia, o Correio da Manhã, foi fechado
pelo governo por oito meses. Nelson iniciou como repórter de polícia, aos treze
anos. Aos catorze anos, Nelson fez
pela primeira vez com uma prostituta para dentro de um quarto. Voltou muitas
vezes. Sempre triste, em 1928 ele vem ao Recife, a família tentava
livrá-lo da depressão em que se encontrava, apaixonado por algumas atrizes. Em
1929 viu seu irmão ser assassinado no jornal, por uma mulher que queria matar o
pai deles por denunciar-lhe a separação conjugal. A assassina foi absolvida.
Nelson casou-se com
Elza, cuja mãe, era uma siciliana, daí
algo de pernambucano e italiano nesta obra. casou-se no civil, e comemorou
tomando café com leite e torrada numa lanchonete. Voltaram para o trabalho
no Globo e deram expediente normal. em 09 de dezembro de 1942, A mulher
sem pecado foi produzida
pela "Comédia Brasileira", direção Rodolfo Mayer, foi à cena no
Teatro Carlos Gomes, Rio de Janeiro. Foram só duas semanas e não teve
sucesso de público. Em 1943 Nelson escreveu
uma segunda peça teatral: Vestido
de Noiva, referencial até
hoje para a dramaturgia brasileira. Ele escreveu também as novelas Suzana Flag e Meu destino
é pecar. Anjo Negro e
Dorotéia são duas de suas outras peças. Senhora dos afogados, Perdoa-me
por me traíres, Viúva porém honesta, Álbum, de família, Os sete
gatinhos, Beijo no asfalto, Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, Toda
nudez será castigada, Anti-Nelson Rodrigues,A serpente, estão dentre as
várias peças de Nelson que marcaram a cultura brasileira. Escreveu sobre futebol
também.
Entre 1959 e 1960,
muitos leitores acompanharam a história de Engraçadinha e sua família em
"Asfalto Selvagem". Foram publicados dois livros,
intitulados "Engraçadinha — seus amores e seus pecados dos doze aos
dezoito" e "Engraçadinha — depois dos trinta”. Ele escreveu também algumas novelas para a
TV: A morte sem espelho e Sonho de Amor", em 1964. É
autor do romance O Casamento (livro
cheio das “depravações” rodriguenas, como o incesto e orgias).
Nelson é autor da
peça Boca de Ouro que tem como enredo
as peripécias de um bicheiro do Rio de Janeiro, zona norte, que foi colocado,
logo que nasceu, numa pia do banheiro de uma gafieira, largado pela mãe,
prostituta, a quem nunca conheceu. Relativamente rico, quando adulto, na
contravenção e malícia, mandou arrancar os próprios dentes, substituindo-os por
uma dentadura de ouro.
Este anti-herói
rodrigueano " quer esquecer o cruel nascimento, aqui Nelson joga com
elementos da sua tragédia: os arquétipos, fundindo e confundindo, objetividade
e subjetividade extrema.
Muito já se falou da
representação do subúrbio, na obra deste autor: a simbologia, a psicológica com
que o autor o retrata. Rodrigues trabalha com a ruptura com a linearidade do
tempo cronológico, “encavalando” cenas, alternando-as de modo a expor sua
teoria sobre o brasileiro, ou melhor, o que é ser humano. São mulheres
histéricas, homens com idéias reacionárias e/ ou incendiárias.
Neste texto teatral, o
“Boca” representa todos os homens, e ao mesmo tempo o “Outro”, aquele em que
todo ser humano se espelha.
Logo na primeira cena, no
dentista, quando ele ordenou que o doutor arrancasse seus dentes e encomendou a
tal dentadura de ouro (de onde virá o seu nome), vemos que se trata de uma
reificação, de um projeto humano, levada às raias da obsessão e da loucura. Ele
quer dominar, ser poderoso e desmascarar a hipocrisia
humana.
Assassino, ladrão,
torturado, maníaco, crudelíssimo, busca a invulnerabilidade, diz que tem “corpo
fechado”, aos outros personagens como à dona Guigui. Os personagens, Agenor
(marido dela), o repórter, o locutor de rádio, as três grã-finas, Celeste,
Leleco (este marido desta e assassinado, depois de se mostrar canalha
também, pela própria mulher), são respaldo e reflexo do berço/ pia de gafieira,
onde quem o pariu, abriu a torneira e o batizou.
Jogado mundo hostil, em vez de medo, prefere encarnar a violência e diz superar
o papel que lhe foi dado enquanto bebê rejeitado (marca terrível para a
sociedade em que está).
Seu poder furioso
fantasia até com útero da mãe promíscua, vítima e algoz, como quase todos os
personagens que reforçam o que o nosso anti-herói representa, na sua revolta homicida.
Depois de morto,
roubaram-lhe a dentadura. Uma curiosidade sobre o Boca de Ouro: tem a ver com as Igrejas Católica
e Ortodoxa: "Boca de Ouro", mais conhecido por João Crisótomo, além de
santo, ainda acumula o título de doutor da igreja. Parece que viveu cem anos
(307 - 407 A .D.)
e, durante todos esses anos. falou tanto, pronunciou tanto sermão, tinha uma
retórica tão torrencial que, ao seu nome João, acrescentaram-lhe Crisóstomo,
cujo significado em grego é "Boca de Ouro".. Foi anti-semita e enquanto
bispo de Antioquia, pronunciou "Oito Homilias contra os judeus" para instrução e
reformação moral da cidade, segundo ele, nominalmente cristã.
Frases de Nelson
Rodrigues:
- Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhores que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém.
- Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhores que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém.
- O jovem tem todos os
defeitos do adulto e mais um: — o da imaturidade.
- A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem.
- O brasileiro não está preparado para ser "o maior do mundo" em coisa nenhuma. Ser "o maior do mundo" em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade.
- Há na aeromoça a nostalgia de quem vai morrer cedo. Reparem como vê as coisas com a doçura de um último olhar.
- Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de "ilustre", de "insigne", de "formidável", qualquer borra-botas.
- A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem.
- O brasileiro não está preparado para ser "o maior do mundo" em coisa nenhuma. Ser "o maior do mundo" em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade.
- Há na aeromoça a nostalgia de quem vai morrer cedo. Reparem como vê as coisas com a doçura de um último olhar.
- Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de "ilustre", de "insigne", de "formidável", qualquer borra-botas.
- Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível.
- Assim como há uma rua Voluntários da Pátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamente, rua Traidores da Pátria.
- Está se deteriorando a bondade brasileira. De quinze em quinze minutos, aumenta o desgaste da nossa delicadeza.
- O boteco é ressoante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele.
- A mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades.
- O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: — um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.
- Outro dia ouvi um pai dizer, radiante: — "Eu vi pílulas anticoncepcionais na bolsa da minha filha de doze anos!". Estava satisfeito, com o olho rútilo. Veja você que paspalhão!
- Chegou às redações
a notícia da minha morte. E os bons colegas trataram de fazer a notícia. Se é
verdade o que de mim disseram os necrológios, com a generosa abundância de
todos os necrológios, sou de fato um bom sujeito.
- Em nosso século, o "grande homem" pode ser, ao mesmo tempo, uma boa besta.
- O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.
- Toda mulher bonita leva em si, como uma lesão da alma, o ressentimento. É uma ressentida contra si mesma.
- Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.
- Em nosso século, o "grande homem" pode ser, ao mesmo tempo, uma boa besta.
- O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.
- Toda mulher bonita leva em si, como uma lesão da alma, o ressentimento. É uma ressentida contra si mesma.
- Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.
UMA TRAGÉDIA CARIOCA EM 3 ATOS
Já “O Beijo no Asfalto”
Nelson Rodrigues começa apresentando o perfil do delegado Cunha que deu um
chute na barriga de uma grávida e matou o feto. É ele quem vai logo a seguir se
envolver com um simulacro de escândalo que envolve um inocente (Anadir, marido
da Selminha e cunhado de Dália) que teria beijado, sob o olhar do sogro, outro
homem, vítima de atropelamento de ônibus, que morreu no asfalto.
A partir deste plot,
Nelson esbanja seu linguajar que titubeia entre o puritano e o cafajeste.
O jornalista armado
manipula a mídia e negocia com a polícia. Nelson, como jornalista, sabia como
estas coisas aconteciam. Fernando Torres, marido de Fernanda Montenegro para
quem o texto foi escrito em 1961, fez mudanças na peça, que permaneceram. A
sintaxe / a pontuação do texto é extremamente teatral. Alguns termos /
situações podem até parecer datados, mas o que temos é um gosto pela vida que
passa pelo existencialismo santreano (coisificante) e atinge o folhetim
sangrento e sensual.
O repórter amado (!)
vampiriza o beijo que testemunhou e convida o delegado para o pacto de sangue
que venderá mais jornais: “Homem beijando homem”.
Aprígio é o sogro que no
final, saberemos, é apaixonado pelo genro. Amor não declarado.
Nelson, antes, permeia as
falas com marcas líricas, como “Dália (cunhada de Arandir) entra. Adolescente
cuja graça leve parece esconder uma alma profunda). O texto tem falas como “mas
papai, olha. Hoje eu fiz ensopadinho de abóbora. A criada está de folga e eu
fui pra cozinha, papai!”, diz Seminha. O diminutivo do nome já é
propositalmente provocante: “Desde o meu namoro o senhor nunca chamou Arandir
(marido dela) pelo nome”. Ela tem um ano de casada e faz sexo com o marido
quase todo dia. Diz que está grávida e não acredita que o marido seja
homossexual. O autor nos sugere que tudo pode ser verdade num pesadelo que
lembra “o processo”, de Kajka. O pai diz que um ano é pouco para se conhecer
alguém: “pouquíssimo”, ao que ela retruca “confio mais em Arandir (que nome!)
do que em mim mesma”, que fala! O pai envenena: “Digamos que seu marido não
fosse como você pensa” e ela olha para a irmã e retruca” Dália disse que se
eu............. ela se casaria com o Arandir”. A irmã se “defende” (logo ela
que vai querer se “entregar” ao cunhado que já a vira nua, no final, “Eu estava
brincando, papai!”
Arandir é descrito como
“uma figura jovem, de uma sofrida simpatia que faz pensar num coração
atormentado e puro”. Entre a polícia, imprensa e o sofro “pervertido”, ele
sucumbe. (Termina assassinado por este de forma dramática;cômica, tragicômica).
O delegado pergunta: “É casado e não usa nada no dedo, por quê?”, “caiu no ralo
do banheiro”, ele responde “se aparecesse uma mulher boa, nua, qual seria a tua
reação? (silêncio).
Arandir, que beijou na
boca a vítima do atropelamento na Praça da Bandeira, Rio de Janeiro (onde quase
todas as obras do recifense Nelson transcorrem), diz que foi culpa do
motorista. Mas todas querem o escândalo do tal “beijo”.
Nelson é mórbido, Dália
fala do casamento da irmã: “No teu casamento eu pensei tanto na morte da
mamãe”, cunhado a tinha como um anjo,
mas ele tinha desejo carnal por ele. Há algo em Arandir que nos lembra Blanche
da peça “Um bonde chamado desejo” (T. William): “Vi um rapaz (...) ele perdeu o
equilíbrio (...) atropelado não grita (...) me abaixei, peguei a cabeça dele
e...”. A teia em torno deste trabalhador sensível o envolve e sufoca. Ele não
tem saída: a vizinha fofoqueira, os colegas de repartição, o preconceito, a
dubiedade, a mentira, tudo o arrasta para o desespero e frustração: “Toda a cidade
estava ali e viu quando eu...”.
A vizinha, D. Matilde é
uma espécie de coco, representa o juízo do povo: “Não foi o primeiro beijo nem
foi a primeira vez!”.
“O sujeito caiu de
braços, rente ao meio-fio. Teu marido foi lá e virou o rapaz. E deu o beijo na
boca”, diz Aprígio, o sogro.
Selminha passa pelo
vexame de ter de ficar nua e sofrer “abuso” num pseudo-interrogatório, o marido
foge. A viúva da vítima atropelada, uma adultera é pressionada pelo repórter a
mentir e dizer que Arandir já tomou banho com o marido dela. A cilada está
armada e a vítima, Arandir, sucumbi, é abatida num quarto de hotel por uma
sociedade preconceituosa (hipócrita) manipuladora dos fatos, tendenciosa e cruel com os fracos, que finge
seguir a ideologia cristã, mas é brutal e selvagem.
Selminha sente nojo do
beijo do marido depois de tudo que aconteceu: “A senhora nunca ouviu falar em
gilete?” (referência ao bissexualismo). Ela grita: “Seus indecentes!” Ao que o
delegado Cunha retruca: “Olha que ..... lhe quebro os cornos!” e o repórter,
Amado, diz: “Tira a roupa! Fica nua. Tira tudo!”
“O senhor não gosta de
Selminha como pai. Gosta como homem”, diz Dália. Insinuações assim são comuns
em Nelson. A espiral se afunila e as humilhações se acumulam. A razão e a
loucura, verdade e mentira se confundem: “Querem que eu duvide de mim mesmo!”,
repete Arandir: “Eu não beijaria a boca de um homem que não estivesse
morrendo”(...) É lindo. Eles não entendem. Lindo beijar quem está morrendo! Eu
não me arrependo!”
A cunhada na última cena
diz que apesar da irmã não querer mais o beijo de Arandir, ela o quer. E ele:
“Você é uma criança. Eu amo Selminha. Eu ia pedir a Selminha para morrer
comigo. Mas ela não veio”. E Dália: “Eu morreria”. Ela acredita que Arandir
tinha um caso com o morto, ele a expulsa do quartinho de hotel onde foi se
esconder.
O pai (Aprígio) dela
chega, ela foge. O sogro entra, confessa a paixão pelo genro, acusa-o de ser
amante do atropelado e o mata: “eu jurei a mim mesmo que só diria teu nome ao
teu cadáver (...) O meu ódio é amor” atira: “Arandir! Arandir! Arandir!” (cai a
luz, em resistência, sobre o cadáver de Arandir. Trevas).
Osman Lins
O pernambucano Osman Lins
é herdeiro da chamada tradição flaubertiana (perfeição e cálculo do texto).
Foram 13 anos de exercício até chegar aos contos de “Os gestos” (1957). São
6 contos (solidão é a temática principal) escolhidos por Nitrini e mais nove anos (1966) para Nove, novena
- outra transformação na sua escrita. (mais 6 contos nesta seleção de Sandra
Nitrini.
Osman no início era mais
convencional, mas não exatamente nos moldes do regionalismo de 30 – só se fosse
como a raiz machadiana de Graciliano– sondagem interior. Prefere o ético e o
épico na lapidação do texto. Seus personagens são excluídos, como em
Clarice (Geração 45): instantâneos do cotidiano (fisionomia interna) –
incomunicabilidade drumondiana. Poeta, ensaísta, dramaturgo, romancista
dedicado à perfeição, longe das repetições, Osman tem escrita elegante e
competente. Nove, Novena” pode ser entendido como ruptura não apenas dentro da
obra de Osman Lins, mas na literatura brasileira contemporânea sua leitura dá
prazer pois é literatura trabalhada e texto bem urdido. Não deveria ser
sinônimo de hermetismo, mas de atrativo à leitura. Os livros de Osman podem parecer estranhos. Em suas narrativas há ruptura com a linearidade . Ele chega ao ponto de
sugerir que o leitor escolha como vai ler. Ser leitor deste escritor nos faz um
co-autores, a perseguir pistas, montar quebra-cabeças.
Vamos fazer breves
comentários sobre os contos selecionados pela professora Sandra Nitrini:
Características do texto
de Osman:
·
As
ambientações são concebidas a partir do interior dos personagens – às vezes em
contraste com eles.
·
Frases
curtas, palavras exatas- técnica e estilos peculiares
·
Do
mesmo modo de Machado de Assis: Osman não obscurece as realidades próximas, mas
não é explicita a contextualização de época.
·
Arte
“Antimimética” estabelece-se definitivamente nestes contos. O narrador
em discurso direto-indireto, a metalinguagem, as ressonâncias de outras
expressões (símbolos, às vezes) artísticas: teatro, pintura, cinema, ou mesmo
de outros gênero, literário) como
poesia.
Contos de Osman Lins –
Seleção de Sandra Nitrini
1.
Os Gestos (1957)
“Minhas palavras morreram, só nos gestos
sobrevivem. Afogarei minhas lembranças, não voltarei a escrever uma frase”,
afirma o protagonista de Os Gestos, André na angústia de assistir a tudo
e não poder falar nada. Trata-se do horror de perceber que se está sem voz,
solitário, enclausurado, ele não poderia mais falar com as filhas Lise e
Mariana nem com a mulher ou com o visitante Rodolfo.
Seus gestos nem sempre
são compreendidos e o leitor chega à apreensão de outros personagens
A esposa é sempre fria,
vigilante, com ar de enfado, vestida de escuro e o visitante Rodolfo
sempre com roupa branca a lembrar um marinheiro. A “alva roupa de linho e o ar
de vida que desprendia”. Seu rosto tinha maçãs salientes, o semblante puro, sem
malícias.
À filha Lise – sempre atenciosa,
dedicada para com o pai , André – contrapõe-se Mariana – adolescente ,
“cega” para tudo que não fosse sua própria beleza, petulante.
Impossibilitado de falar, com movimentos
reduzidos a gestos André assiste a tudo: A paisagem exterior do céu nublado, os
pássaros esvoaçantes, a paisagem da infância, os veleiros alvíssimos, libertos
no mar (tempo da juventude que o vento se encarrega de afastar) – Tudo
consumado no tempo presente com a mudez. Ele olha a filha mais velha – Lise – e
percebe os traços do tempo: os anos definiram traços, mas não apagaram os
restos de infância na boca, nos olhos. A delicadeza da filha e a aspereza do
pai devido à mudez. Reflete também sobre o outro ser que se desprende da filha
Mariana – a transição da infância para a adolescência “O rosto era belo e se renovava,
como um ser adormecido (...) ela cruzava um limite: quando se afastasse, os
últimos gestos da infância estariam mortos.” O momento único parece
inexprimível, porém “os gestos de hoje talvez não sejam menos expressivos que
minhas palavras de antes”. A vida dos seus lhe parece mais sentida agora.
A chuva traz motivações
para imaginar, viajar ao passado, resgatar a juventude. O ritmo da chuva marca o fluir do tempo e a
intensificação e distensão da angústia de André.
2. Reencontro
Trata-se de um reencontro casual entre o narrador
e Zilda num vagão de um trem. Zilda a grande amiga de infância. Revê-la foi
também reviver o passado: “Frágil e alto muro dividia nossos quintais (...) eu
sonhando, contando histórias, declamando versos, inventando projetos; ela
escutando”. A oposição marcada na infância se faz notar. Tudo que o
narrador diz Zilda contesta. Agora adultos, era o desencontro afetivo. O
universo da incomunicabilidade se faz notar. As lembranças não têm igual valor
para os personagens. Zilda quase nada sente “Somos de temperamentos díspares
(...) essas evocações não têm igual valor para nós.” Ele lembra tudo; ela,
quase nada. A separação, com o passar do
tempo, dói mais no narrador do que em Zilda.
Uma biografia literária. Por quê? Com a morte da mãe (pouco depois de dar à luz
ao vitoriense Osman Lins), Lins ficou aos cuidados da avó paterna – Joana
Carolina – e da tia (parte de pai) Laura. Como sua vida se confunde com sua
obra, a velha do conto A Partida faz referência (direta) à Joana Carolina. O espaço onde se desenvolve a narrativa é Vitória
de Santo Antão, local onde passou boa parte da infância e início da
adolescência aos cuidados da dessa avó. Mulher de modos rígidos, mas muito amor
para dar.
O narrador decide sair do
interior e morar na cidade porque não agüentava mais os cuidados da avó, o fato
de ser o querido, vigiado. Ela era “intoleravelmente boa e amorosa e justa”,
afirma o narrador. Deixá-la era cortar o cordão umbilical e um mundo novo
encontrar, mundo necessário. A avó o
ajuda a arrumar a mala e fica organizando tudo até tarde (hábito de fazer
arrumações tardias). O narrador vai dormir e a avó vai verificar se não lhe
falta nada. Ele demora muito a pegar no sono, nasce uma alegria dolorosa, mas
adormece. De madrugada a velha ainda vem vê-lo e chora a dor da perda, cena
insuportável para o narrador que meio acordado vê tudo e não se mexe: “Ela
estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver – pensei (...)
Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz”.
O narrador prepara-se – de madrugada – para
partir, hesita em falar com a avó, mas o faz. Anda cabisbaixo pela casa “à
procura de objetos imaginários” . Não quis abraçar a avó, ele a beija apenas e
toca-lhe a cabeça. Olha para a mesa estava posta para dois e a “toalha branca,
bordada, que só se usava em nossos aniversários.” Eis o neto à procura de um ambiente
libertário. Opõe-se à avó, que a ele se dedicou com afetividade exagerada e
opressora. A casa, os objetos, o abrir e fechar das janelas, os ruídos
provocados pelo arrastar dos chinelos da avó. Tudo sintetiza a atmosfera
emocionante. Objetos carregados de história de vida, de afetividade. Tudo a
fazer a memória do menino-adolescente.
4.Cadeira de Balanço
A frieza do marido, o comportamento
autoritário, as reações mecânicas de quem acredita ser o provedor financeiro da
casa, tudo. Nunca enxergou a esposa Júlia Mariana como uma mulher, ou melhor,
uma pessoa carente de afetos, de atenção. Para Augusto caberia à esposa manter
tudo organizado, servi-lo em
tudo. E o fato de a esposa estar grávida não importava, aliás
a gravidez só o tornou mais distante da mulher: “Mais tarde, se não encontrasse
no arame (as camisas), Augusto ficaria aborrecido e haveria de perguntar-lhe o
que andara a fazer a tarde inteira” “(...) E já bastava o afastamento dele, que
aumentava sempre, desde que a cintura dos vestidos...”. Júlia Mariana temia perder o marido. Às vezes
desejava morrer para que ele sentisse remorsos. Mas sabia que o marido logo a
substituiria por outra e, assim, submete-se à frieza dos gestos, às exigências
do marido. O retrato da mulher submissa, destinada às tarefas domésticas dos
anos 50.
Mulher ociosa!?... O que
estaria fazendo a tarde inteira enquanto ele trabalhava?
· Eles quase não se falam, só gestos que põem em
relevo o exigir e o aceitar. Ao sentar na cadeira de Augusto,
balançar-se de leve, sentia-se tão bem e esquecia as coisas tristes surgidas
com a convivência. Nem se via mais ao espelho. As manchas no rosto, o ventre
enorme, as pernas inchadas a martirizá-la. Mas entende não merece isso porque
não cumpriu o seu papel de esposa. Chorava, pensara nos serviços que não
agüentara fazer, nas obrigações não cumpridas, nas exigências e frieza do
marido que, ao chegar, lhe toca o ombro – sinal de que Júlia Mariana deveria
deixar a cadeira de balanço, cumprir as obrigações e deixá-lo descansar: “Júlia
Mariana se ergueu com esforço e ele ocupou o lugar” após o ritual da chegada.
Ela: medrosa, sensível, oprimida submete-se ao marido metódico, indiferente e
dominador. Confirma-se a frieza dos gestos em oposição ao objeto-símbolo do
acalanto, do afeto, do repouso que deveria ser “A cadeira de Balanço”. A cadeira contraditoriamente é símbolo do
autoritarismo de Augusto e não do repouso desejado por Júlia. Júlia não traz em si o menor movimento de
revolta, acata a imagem da função social do marido. Ela é alvo de desprezo,
indiciado pelos gestos rotineiros de Augusto, o majestoso que nem sequer a
olha.
5. O Vitral
Nesse conto Osman acentua a idéia do
contraste mais uma vez. Matilde, mulher sonhadora, de meia idade, ingênua e
infantilizada convive com Antônio, seu marido, homem seguro e realista.
No convívio direto com os parceiros, o toque
do desencontro. Matilde tenta concentrar em um fato (com o marido) o júbilo
perdido. Sonha em aprender no vitral a “alegria” dos 20 anos de casamento, “um
retrato ameno e primaveril”. O marido
indiferente alegra a existência de tantos retratos e agora eles já tão velhos.
Matilde lembrava a infância (Tempo da Memória): a espera da alegria e o medo de
a não obter. As alegrias apenas sonhadoras.
Matilde tira a foto com o marido. Ela fica exultante na “insubstancial
riqueza daqueles minutos”. “Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir
muito”, mas o marido Antônio continuava circunspecto, alheio à alegria da
esposa. A alegria dela era, portanto, solitária, “da qual Antônio para sempre
estaria ausente.”
Para Antônio nada pode reter o mínimo de
alegria. “Nenhum vitral retém a claridade”.
Matilde aperta o braço do marido e um “júbilo angustioso jorrava do seu
íntimo” e compreende a impossibilidade de capturar esse momento, mas sabia que
o vivera: “Eu o vivi. Eu o estou vivendo” e a luz a invadiria como a um vitral.
Uma alegria solitária no fluir do tempo, na manhã do 20º aniversário de
casamento.
6. Elegíada
André (protagonista da narrativa) vivencia o
problema do idoso na moderna sociedade industrializada. A constatação da perda, da solidão. A
consciência do estar velho, o “duro silêncio que o envolve e o imobiliza”, a
lembrança de alguém que partiu e deixou suas marcas muito vivas. A dor da
velhice, a solidão. Eis o pungente e
lírico “diálogo – monológico” da personagem que assume a voz narrativa. O velho
conversa mentalmente com sua mulher morta, durante o velório, confinado na mais
pura expressão do discurso interiorizado, no qual se entrelaçam rememorações
(tempo da memória) valorizadoras das miudezas do cotidiano vivido com sua
parceira e queixas e constatações do descaso com que é e será tratado pelos
filhos e netos: “Meus filhos agora acham que os superiores são eles; que devem
governar-me (...) é um modo de mostrar que me amam”.
Também os netos, “não me querem como eu
desejava”. Estes “quase nunca eu os levo a passeio, (...) não consigo unir-me a
eles”. Muitas vezes os netos trocam segredos, falam uma língua diferente do avô
e não o levam a sério, “troçam de mim”.
O avô é visto não com consideração, mas como ser infantilizado, incapaz,
sujeito a monitoramento e ordens. A
perda da esposa e também a perda de alguém com quem compartilhar as memórias. É
não ter com quem falar as coisas triviais.
Osman Lins – com o tema da velhice –
introduz o mundo sensível, a realidade concreta. Destaca o contraste entre o
universo interior do personagem e o espaço externo. Desnuda o estado emocional
e afetivo do protagonista André. Cria uma tensão que implica postura reflexiva
e não mera constatação. Um gesto simples da mulher, mas observado e sentido
pelo marido, o desejo de prolongar a lembrança do outro. Uma dor vasta,
desalentada, profunda de um velho sem a sua “metade”.
Em todos os contos de Os Gestos há um fio
condutor quer plano dos elementos da narrativa (relação entre
personagens, espaço, tempo e ponto de vista) quer no plano do discurso,
caracterizado por frases curtas, palavras precisas, o captar profundo da
condição humana.
Nove Novena (1966)
1. Os Confundidos
Buscas, perseguição,
inquietações, num girar e voltar sempre
ao mesmo ponto: um texto na forma de diálogo conflituoso.
Um casal, o antagonismo
verbal:
“ Estou cansada. Quase meia-noite
Continuo de férias, posso acordar tarde.
Mas eu, não. Afinal que importa? Suporto
bem uma noite sem sono. Tenho passado outras.
É uma alusão a mim?
Talvez.”
A narrativa às vezes nos
confunde. Quem é ele? Quem é ela? O desentendimento entre os confundidos se faz
notar logo no início da narrativa. A briga se desenvolve em um curto espaço de
tempo: É uma relação baseada na desconfiança. O marido relata o desenrolar do
ataque de ciúme doentio ao se encontrar só em casa, enquanto a mulher
trabalhava. “De repente, vejo-me sozinho. E recomeço...”
Há uma mistura de revolta, loucura e
lucidez. A mulher reage às desconfianças do marido e em meio à briga emerge,
reflexões sobre “quem eu sou?” (perda de identidade), o amor, a monotonia da
vida, a impossibilidade de se conhecer o outro.
O marido reflete: “A
solidão, para mim, era o mesmo que um rival.”
A mulher não agüenta ter somente poucos instantes de tranqüilidade:
“Somos. Como dois corpos enterrados juntos, roídos pela terra, os ossos
misturados. Não sei mais quem sou.” “Isso não é amor. Não se perde a identidade
no amor.” Para ela o amor deveria ser o
reencontro da identidade perdida. Tudo, ao contrário, é terror, aflição e
desamparo. Perdeu o ânimo, a força, a voz. Também não sabe mais quem é, face a
tantas desavenças.
O marido confessa seus ataques de ciúme. Suas
perseguições, inquietações. Tudo que enfraquece a relação amorosa. O ciúme só
aumentou o distanciamento entre marido e mulher. A confusão, a instabilidade
amorosa acabou enfraquecendo a mulher que já nem sabe quem é mais.
Todo o percurso do ataque do marido é
relatado e fragiliza a esposa que não aceita a desconfiança e então diz: “Por
que não suspeitar (dela) quando estou presente? Pode estar aqui, comigo, nua e
pensando noutro homem.”
O marido prefere não aceitar essa hipótese.
Ele pensa nas semanas que passaram bem. Todos os mal-entendidos resolvido. Os
anos todos que lutou para consolidar tudo, o ciúme arrasta-o. O casal já não
sabe mais quem é: “É novamente o silêncio, espesso, amortecedor, palha e
serragem entre objetos de louça.”
Estão confusos, angustiados, a relação
fragmentada: “Estarei envenenado? Estaremos então envenenados?”
A mulher passa a viver o mesmo drama do
marido, no estar entre a lucidez e a loucura: “pode ser que também eu esteja
(envenenada) (...) se não sei mais quem sou.” Mas o dia, a rotina os chamam: “
– É mais de meia-noite”. Eis o voltar sempre ao mesmo ponto e nada se resolve.
“Um de nós levantou-se, ou irá ainda
levantar-se, entreabrir a cortina, olhar a noite. o rumor dos veículos,
continuando, ascenderá – ascendeu? – das avenidas girando na sala (...) as
estrelas vibrando, parecendo abaladas pelo rumor da cidade que não dorme.
Estamos de mãos dadas, qual destas mãos arde? Olhemos a parede vazia.”
Neste trecho a seqüência temporal subverte a
lei da cronologia. O tempo é colocado como indefinido. Não se sabe também se é
o homem ou a mulher que fala. Dos objetos da sala é feito um inventário e
ressaltam-se detalhes. Das ações humanas destacam-se as fragilidades.
As fragilidades das condições humanas, as
dissonâncias nos relacionamentos pessoais, no espaço doméstico e na estrutura
social.
2. CONTO BARROCO OU UNIDADE TRIPATIDA
Consiste
na missão de um homem que é encarregado de matar um certo José
Gervásio, sem saber o motivo.Ele entra em contato com uma mulher com quem
José teve um filho e pede que lhe mostre
a vítima. Ela aponta-lhe a vítima .O assassino mantém um relacionamento
sexual e afetivo com a delatora e se despede dela em 3 versões
•
Ele é procurado pelo pai da vítima, por
ela ou ainda pela negra também em 3 módulos diferentes.
objetivo – fazer o rapaz desistir do crime
O ASSASSINATO é consumado em 3 versões
1ª
versão – A NEGRA MORRE
2ªversão
– UM HOMEM MORRE
3ª
versão – O PAI MORRE
o núcleo histórico espalha-se por 5 segmentos: cada
segmento focaliza um momento preciso da história, como se fosse um quadro
(configuração também de um retábulo)
2ª módulo: na igreja de congonhas
1ª variante: - a mulher (negra)
aponta José Gervásio subindo a ladeira.
2ª variante: durante um enterro em Ouro Preto.a negra
toma o braço de um homem
3ª variante: junto ao chafariz da igreja em Tiradentes: a negra mostra José Gervásio
ao assassino. O ex-amante da negra (José
Gervásio) é apontado em 3 situações e cidades diferentes (Congonhas,
Ouro preto, Tiradentes)
Há
uma multiplicidade de estórias a partir do núcleo central da ação do assassino.
Ele cumpre ordens do patrão sem saber o porquê. O tema é o absurdo da
condição humana. Os personagens são indicados por substantivos – perdem a
identidade civil
- o assassino - a negra - o pai. Só a vítima é designada pelo nome José Gervásio. O texto privilegia nas suas 3 versões : o ambiente onde se desenrola a traição e o momento que antecede a traição. Devemos levar em consideração o aspecto pictórico do texto) bem como a disposição geométrica das figuras . O enterro nas ruas de ouro preto. coberto de fitas roxas, que ondulam ao vento frio da tarde, o atáude sombrio e prateado, sobre a ladeira de pedras, entre as portas fechadas, balcões, telhados velhos.”
- o assassino - a negra - o pai. Só a vítima é designada pelo nome José Gervásio. O texto privilegia nas suas 3 versões : o ambiente onde se desenrola a traição e o momento que antecede a traição. Devemos levar em consideração o aspecto pictórico do texto) bem como a disposição geométrica das figuras . O enterro nas ruas de ouro preto. coberto de fitas roxas, que ondulam ao vento frio da tarde, o atáude sombrio e prateado, sobre a ladeira de pedras, entre as portas fechadas, balcões, telhados velhos.”
Há o tom insólito, enigmático, opaco, chama a atenção do
texto sobre si mesmo, a leitura decifradora de partes do texto desloca o tema do crime para o final do
texto.Osman com trechos insólitos trava ou retarda a transparência de segmentos
narrativos lineares.
3.PASTORAL
Baltasar é um adolescente que carrega o peso de ser filho de
uma mulher que abandonou o marido por outro homem. Hostilizado pelo pai, pelos
irmãos, exceto por Balduíno Gaudério, e por Joaquim, um parente afastado. Ele vive sufocado no ambiente
familiar, exclusivamente masculino. só o padrinho lhe dá atenção.
A
narrativa é composta por 20 parágrafos. Cada parágrafo corresponde a um
quadro. a justaposição dos quadros (sucessão do 20 parágrafos) configura um
retábulo. Há descontinuidade sintagmática, entretanto a seqüência
cronológica se faz notar pela evolução do fio narrativo e pela presença de motivos
remissivos a cenas anteriores. O final de cada parágrafo coincide com um corte.
-
no 7ª e 8ª quadros, ocorre a cena de fuga da mãe de Baltasar
(únicos parágrafos que se encadeiam sem ruptura).
- o 7ª parágrafo – termina com a fala do padrinho, através de um discurso indireto livre, sobre a mãe de Baltasar . Nesse parágrafo (7ª), desencadeia-se o programa narrativo de Baltasar.
- o 7ª parágrafo – termina com a fala do padrinho, através de um discurso indireto livre, sobre a mãe de Baltasar . Nesse parágrafo (7ª), desencadeia-se o programa narrativo de Baltasar.
OBS.:
a figura da égua canária representa o preenchimento de
um espaço afetivo vazio (o nome canária traz em si a idéia de liberdade) e a
idéia de liberdade
Baltasar recebe canária do padrinho constitui a base sobre a
qual se funda a narrativa. A seqüência de enunciados
narrativos aparece no conflito de Baltasar com os cavalos destinados a
desvirginarem canária
a narrativa como um todo – são 20 módulos truncados que
minimizam o teor dramático de pastoral, além de valorizar sua instância
discursiva. A castração do cavalo, feita por Baltasar
significa a 1ª manifestação concreta de desafio – por parte de Baltasar – à
família. Ele luta pela preservação do objeto do seu desejo (= a égua canária). O ato da castração em si ocupa um trecho
relativamente curto, num contexto
dominado por enunciado descritivos, com uma linguagem poética, fundada
no jogo de cores e na utilização de comparações e metáforas.
4.O PÁSSARO TRANSPARENTE
O conto “O pássaro transparente” as
nove fases da vida da personagem (da infância à fase adulta): fracasso de um
homem que se submete à família ao casar com uma mulher escolhida pelo pai
(Eudóxia). Aqui o monólogo interior une-se ao narrador em 3ª pessoa. O homem
reencontra uma pintora (amiga de adolescência) e detecta nos seus quadros um
pássaro transparente que lhe chama atenção. O foco narrativo parece ser o
esqueleto do tal pássaro. E o conto joga com os elementos externo e interno:
com o discurso direto/ indireto livre.
5.RETÁBULO
DE SANTA JOANA CAROLINA
O conto é calcado em DOZE
MISTÉRIOS que correspondem, por exemplo,
aos signos do Zodíaco. Este princípio de organização do retábulo,
através da qual se amplia a história de uma mulher que vive em Pernambuco,
insere a narrativa no “TEMPO MÍTICO – CIRCULAR” das constelações
celestes, religando-a a dimensões cósmicas. As doze horas seriam eternas e,
paradoxalmente, efêmeras.
No PRIMEIRO MISTÉRIO temos o nascimento de Joana Carolina como
ornamento a representação do espaço astronômico do Universo e ela é
inserida numa dimensão cósmica. Ela nasce no 7ª signo do zodíaco –
Balança: Equilíbrio entre o mundo Solar e a manifestação planetária e
representaria a igualdade universal,
justiça, equilíbrio pessoal e social.
Também marcada por incessante busca de HARMONIA com os homens e
com a natureza, luta contra a sociedade hostil.
No SEGUNDO MISTÉRIO figuram a CASA e a CIDADE. Estes espaços
estão carregados de SIMBOLOGIA CÓSMICA que marca a vida INDIVIDUAL e COLETIVA.A
casa e a cidade bem como o 1ª mistério são regidos pela INVISÍVEL
BALANÇA. A casa impede que o homem se perca na vastidão da Terra, graças à
proteção das paredes externas e do teto. A cidade (agrupamento de casas)
CONSTRÓI o AQUI. A CASA e a CIDADE exprimem uma SIMBOLOGIA que entra no circuito dos ORNAMENTOS
CÓSMICOS da narrativa e serve de contraponto ao espaço CEMITÉRIO (Nesse espaço de morte, se dá o EVENTO FOCALIZADO NO QUADRO Joana Carolina
no início de sua adolescência tinha 2prazeres:ACOMPANHAR ENTERRO DE CRIANÇA e
BRINCAR COM ESCORPIÕES).
SIMBOLOGIA:
O movimento da VIDA e da MORTE está nas entranhas dos COSMOS, no jogo dos
espaços dos ornatos e do corpo da
narrativa. A MORTE DA CRIANÇA NO INÍCIO DA VIDA enfatiza a
dicotomia VIDA X MORTE. O ESCORPIÃO é animal negro que foge da
LUZ. Sugere a evocação dos tormentos e dramas da vida até o ABISMO DO ABSURDO,
DO NADA e da MORTE. JOANA CAROLINA AO CONTRÁRIO DO PRESIDENTE DA IRMANDADE DAS
ALMAS e de sua mãe, convive harmonicamente com os escorpiões (que EVOCAM A
TRAJETÓRIA PENOSA DE JOANA CAROLINA. CONOTA TAMBÉM A SUA RELAÇÃO SOLITÁRIA COM O COSMOS).
•
No TERCEIRO MISTÉRIO há o
INTERCÂMBIO entre O ESPAÇO TERRESTRE (PRAÇA) e o DIVINO (TEMPLO). OS MOTIVOS DO 3ª ORNAMENTO – A PRAÇA e o TEMPLO REMETEM A LUGARES DE ENCONTRO DO HOMENS ENTRE SI E
DOS HOMENS COM A TRANSCENDÊNCIA. A
COMUNICAÇÃO COM DEUS SE dá pelo espaço (TEMPLO) e pela IMAGEM DOS FOCOS DE
ARTIFÍCIO, LANÇADOS PARA O ALTO, NA DIREÇÃO DAS TORRES. BEM COMO PELO ESPAÇO
HORIZONTAL DA PRAÇA. Aqui SE DÁ o encontro de JOANA CAROLINA com JERÔNIMO JOSÉ
(futuro marido). Numa procissão (cerimônia religiosa em praça pública). O
espaço do Sagrado (PROCISSÃO) e do
Profano (PRAÇA) prenuncia a união carnal e transcendente.
No QUARTO MISTÉRIO temos a representação
sensível do manto invisível da terra. Seqüência de metáforas, ornamentos que
remetem ao AR. (um dos 4 elementos da natureza). Figuras espalhadas na
parte superior do quadro evocam as diferentes funções desempenhadas pelo AR.
O eixo
central do 4ª MISTÉRIO é a morte de Maria da Glória e a doença de Álvaro e Nô,
filhos de Joana Carolina (DOENÇA – MORTE – DETERIORIZÇÃO – ANIQUILAMENTO DA
VIDA)
No QUINTO MISTÉRIO entendemos a ÁGUA
como outro dos 4 elementos da NATUREZA considerada PASSIVA e FÊMEA
– em oposição ao ar (ativo, masculino) – constitui o NÚCLEO TEMÁTICO DO 5ª
ornamento (coincide com o SIGNO DE AQUÁRIO). O DISCURSO DESSE ORNAMENTO GIRA EM TORNO DA NATUREZA
AMBÍGUA, MISTERIOSA e INAPREENSÍVEL DA ÁGUA. TEMÁTICA DA ESSÊNCIA INATINGÍVEL
da água indica não só A PERSONALIDADE FUGIDIA DO MARIDO DE JOANA
CAROLINA (homem de gestos inesperados) bem como as SURPRESAS que a vida
(imprevisível) apronta para JOANA CAROLINA e sua FAMÍLIA (desde dificuldades
econômicas até a morte de JERÔNIMO JOSÉ)
No SEXTO MISTÉRIO penetramos àas atividades
de caça e pesca (sexto ornamento) marcadas pela VIOLÊNCIA DO HOMEM, que vara e
dilacera os animais da terra e do mar para atender à sua necessidade de
sobrevivência. MAS, MESMO ASSIM, o homem sucumbe à ação
devoradora da MORTE. A VIOLÊNCIA
E O ANIQUILAMENTO, inscritos na ordem da natureza, encontram suas ressonâncias
significativas na esfera social da MICRONARRATIVA do SEXTO MISTÉRIO. O OBJETO CENTRAL DO 6ª MISTÉRIO consiste nas ameaças e dificuldades de ordem
moral e social infligidas a Joana Carolina pelo filho do dono da fazenda de
Serra Grande, onde ela trabalhava. Joana Carolina Não se torna objeto de
“caça e pesca” do filho do dono da fazenda. Não se torna “presa” dele. O filho
do fazendeiro sucumbe à ação silenciosa de Joana Carolina. Joana transforma o
filho do dono da fazenda. “TIVE-LHE
ÓDIO, DURANTE ALGUNS ANOS. COM O TEMPO, O ÓDIO FOI PASSANDO, VEIO UMA
ESPÉCIE DE ENLEVO, TALVEZ DE GRATIDÃO. ACABEI
ACHANDO QUE JOANA CAROLINA FOI MINHA TRANSCENDÊNCIA...”(p.105)
No SÉTIMO MISTÉRIO, O SÉTIMO
ORNAMENTO centra-se na atividade do FIAR, TECER e COSER,
iniciando uma fase mais recente da civilização humana e remetendo a todo o ato
criador do homem. Micronarrativa emitida por Laura, filha de Joana Carolina.
Fala da vida adversa de Joana durante 7 anos, 7 meses e 7 dias em Serra
Grande. Laura prenuncia um mundo mais tranqüilo com a mudança para o
Engenho de Queimadas. Joana faz toalhas de crochê para vender na cidade. É também
tecedeira e fiandeira. Joana MANTÉM-SE FIEL ao espírito de
SOLIDARIEDADE com os homens e a
Natureza
•
No OITAVO MISTÉRIOO o mundo
agrícola (ligado á cultura da cana-de-açúcar) no qual vivem Joana Carolina e
sua família – Indica mais um CICLO DA CIVILIZAÇÃO HUMANA em que a subsistência
do homem dependia do trabalho da terra. A cultura canavieira e os engenhos.
Joana vive no meio agrícola e sofre (como os trabalhadores da terra e dos
engenhos) as violências e as explorações – FRUTO DE UMA SOCIEDADE DISTORCIDA.
EVOCAM-SE AS IMAGENS DA TERRA, DOS INSTRUMENTOS, DAS PESSOAS, DOS ANIMAIS. AS
CONDIÇÕES CLIMÁTICAS desfavoráveis da Região Nordeste e as relações SOCIAIS
(hierárquicas e opressivas), bem caracterizadas de uma sociedade latifundiária:
O FILHO DO SENHOR DO ENGENHO DE SERRA GRANDE impõem condição para emprestar ou
alugar o carro de bois (esse carro transportará
o corpo de Totônia) ele quer que Joana Carolina ceda ao seu desejo
obsessivo e se entregue a ele.
No O NONO MISTÉRIO, o nono ornamento celebra o poder cosmogônico da palavra. Alude ao signo
de GÊMEOS sob o qual se desenrola a micronarrativa desse mistério. Joana Carolina transforma em amigos e
guardiões os perseguidos de Miguel e Cristina e cria uma situação favorável ao
casamento dos dois jovens. O signo de GÊMEOS simboliza a POLARIDADE SEXUAL (o
prenúncio da relação amorosa entre Miguel e Cristina)
No DÉCIMO MISTÉRIO: “AS
CALOTAS POLARES, AS ÁREAS TEMPERADAS E O ARO EQUATORIAL, EXALANDO AINDA O BAFO
DAS BIGORNAS. CONTINENTES E ILHAS...”. As
imagens, evocadas pelas palavras que compõem o Décimo ornamento, remetem à terra,
outro elemento básico da natureza. Faz-se alusão ao SIGNO de CÂNCER através da
referência ao Outono. Esse ornamento prenuncia a velhice de Joana Carolina –
que já se encontra no outono de sua vida. O caranguejo, ANIMAL QUE REPRESENTA O
SIGNO de câncer – é utilizado metaforicamente na descrição do fenômeno da
velhice (em geral). Mais uma vez Osman vai se valer de símbolos na narrativa,
para caracterizar personagens e situações. Olhem este que abre o próximo
parágrafo:
“A
velhice é feito um caranguejo, não envelhecemos por igual. Ela vai estendendo,
dentro de nós, suas patas. Às vezes,
começa pela espinha, outra pelas pernas, outra pela cabeça. Em mim, começou
pelos sonhos: dei para sonhar, quase todas as noites, com as pessoas de
antanho. (Em Joana, esse caranguejo estendeu de uma vez as suas patas.
Atacou-lhe os rins e o rosto...)”
•
No DÉCIMO – PRIMEIRO MISTÉRIO: O ornamento do DÉCIMO- PRIMEIRO MISTÉRIO encerra o ciclo dos quatro
elementos da natureza. Apresenta
sob a forma de ADVINHA. O FOGO, embora este simbolize a vida, conota com
ênfase a MORTE. “O que é
que é? Leão de invisíveis dentes, de dente é feito e morde pela juba..”.
O FOGO “devora tudo” nada recusando a
seus molares caninos e incisivos.” . Ornamento: O LEÃO – IMAGEM QUE SIMBOLIZA VIDA E MORTE. Vemos a
extrema-unção de Joana Carolina.E nós deitamos na rede
de relações semânticas entre o ornamento e a micronarrativa se que se teceu
pela morte e pelo tema do Fogo que conota LUZ, CHAMA, VIDA
e AMOR. Joana Carolina mesmo na hora da morte apresenta uma aura que a
diferencia de todos os outros seres humanos e a MITIFICA: a morte não a apaga
Joana Carolina continua sendo uma chama.
O DÉCIMO- SEGUNDO MISTÉRIO está centrado
no enterro de Joana Carolina. O ornamento tem por motivo principal o CEMITÉRIO.
A micronarrativa é enunciada pela VOZ COLETIVA. O ornamento está
embutido ao longo do discurso e indicado por cores como VERDE – BRANCO e CINZA
que colorem o melhor vestido com o qual Joana é enterrada (“MADRESSILVAS
BRANCAS e FOLHAGENS SOBRE FUNDO CINZA”). Este mistério celebra com um TOM
ÉPICO A COMUNHÃO DE JOANA CAROLINA com os homens e a natureza (INTEGRAÇÃO
COM O UNIVERSO).
A INTEGRAÇÃO
É REITERADA NUMA LINGUAGEM POÉTICA e SE DÁ:
POR UMA VOZ COLETIVA
PELA ENUMERAÇÃO DE SUBSTANTIVOS PRÓPRIOS NO PLURAL
que sugerem a união entre os homens do povo. O uso de símbolos gráficos
carregados de sentidos extr-lingüísticos (observe):
TODA HUMANIDADE PARECE ACOMPANHAR JOANA CAROLINA AO
CEMITÉRIO:
“ (Áureos
e Maria, Benedito e Neuza, Chicos e Ofélias, Dalvas e Pedros, Elzas e
Quintinos)”
•
Enumeração de nomes e sobrenomes remetem à natureza
e ao cosmos.
- A 1ª enumeração dos nomes dos acompanhantes do
enterro de Joana Carolina contém, em uma LINGUAGEM CIFRADA ,
A REFERÊNCIA AOS 4 PONTOS CARDEAIS E AO SIGNO DE VIRGEM:
EVANGELISTAS - MONTES – ARCOS de MARCOS e NORTE
QUE EVOCARAM - LUCAS de SUL
AS 4 DIREÇÕES DO -
MESATEUS de MATEUS
ESPAÇO CÓSMICO - ESTE e JOÃO ORESTES DE JOÃO e OESTE
Acompanhantes do Séqüito – Fúnebre (remetem a
elementos da natureza e acidentes geográficos: LAGOS- RIBEIROS – ROCHAS –
PEDREIRAS – MONTES – SERRAS ). OS NOMES DE ALGUNS MORTOS (remetem às
diferentes espécies de madeiras utilizadas para fazer caixões) e os CEDROS e
CARVALHOS, NOGUEIRAS e OLIVEIRAS, JACARANDÁS e LOUREIROS. Com os elementos da
natureza – animais, plantas, árvores, flores e campos – Joana se dissolverá na
terra.
Ivana Moura revê Osman Lins
por Moisés Neto
Ivana Moura, jornalista e
crítica teatral do Diário de
Pernambuco desde 1989, lançou o livro Osman Lins: o Matemático da Prosa, pela coleção Malungo
(Recife: FCCR, 2003. 114 p.). obra na
qual Osman reaparece para seus contemporâneos. Ela define seu trabalho como “um
livro que se vale da memória afetiva de várias pessoas”. Ela teve pouco mais de
dois meses para elaborá-lo.
O livro, mais informativo
do que crítico, é dividido em cinco partes: na primeira, “Tempo de Plantar”, a
autora aborda a infância e adolescência de Lins em Vitória (PE): “Eu queria
deixar minha casa, minha avó (...) estava farto de ser vigiado, contemplado,
querido” (p17). Sua mãe morreu quinze dias depois do seu nascimento. Houve
complicações no parto. Não sobrou nenhuma foto dela. Ele não teve festinhas de
aniversário, destaca Ivana, que em certas partes do seu texto usa táticas de
investigação psicológica, mas ao modo tradicional do jornalismo: com
distanciamento. Osman foi criado
entregue a si mesmo. Uma figura que a autora destaca é a do tio, Antônio
Figueiredo: tocava violão, contava história, fazia repente... “era profeta”,
fazia “garrafadas”, está representado em O
Fiel e a Pedra, na figura de Bernardo Vieira de Cedro( p 30). Sobre seus
modos podemos anotar: “Osman era refinado a ponto de calçar os sapatos na hora
de almoçar” (p 31).
Na segunda parte, “Arma
Literária”, Ivana ressalta o depoimento do escritor pernambucano Gilvan
Lemos: “O leitor brasileiro tem preguiça de pensar e gosta de ler coisas
bem fáceis, bem claras. A literatura de Osman apresenta certa dificuldade,
porque ele usa muitos signos, muitas coisas inventadas. Então por isso, ele
talvez não tenha adquirido popularidade” (p 35). “Atuamos numa sociedade em que o conjunto é
hostil ou indiferente ao nosso trabalho”, disse Osman, que queria ternura,
reconhecimento.
A perspicácia da Moura
está, dentre outras coisas, na concatenação das idéias e numa escrita ágil e
implacável. É rápida no gatilho ao selecionar depoimentos e segue uma ordem
interior que rompe com a linearidade e esmiúça detalhes que assim vão se
tornando imprescindíveis. Por exemplo: quando relembra que certa vez o avião em
que Osman viajava ia caindo e ele não pensou na família nem nos amigos, somente
isso: “Este avião não pode cair, porque eu ainda não terminei meu livro!”. E
aqui a autora ressalta: a literatura “estava acima dele mesmo” (p 40).
Na terceira parte, “O Teatro de Osman Lins”, a
autora dá relevo a opinião de Lins sobre a própria dramaturgia: “Escrevo para
teatro como escrevo poesia, isto é, sem considerar-me rigorosamente um
dramaturgo ou um poeta” (p 48).E sobre como os outros viam suas peças Ivana
exibe o depoimento de Pedro Bloch, sobre Lisbela: “Teatro normal, compreensível, humano, cheio de verdade
e beleza (...) Nordeste com simplicidade adorável de sua gente, costumes
regionais pitorescos, linguajar curioso”(p 45). Como o livro é menos crítico e
mais expositivo, o texto ensina para neófitos que antes de escrever Lisbela, Osman escrevera O Vale do Sol, Os Animais Enjaulados e O Cão do
Segundo Livro. Em 1963 é encenada A
Idade dos Homens. Entre 1969 e 1970 há outras peças como Mistérios das Figuras de Barro, Auto do Salão do Automóvel e Romance dos Três Soldados de Herodes
(peças em um ato).Inclui depoimentos “inéditos” como o de José Pimentel, encenador em Recife,
que dirigiu o “Auto do Salão...” e o autor não gostou. Ivana entrevistou
Pimentel que também reclamou da tentativa de “intromissão” de Osman, na sua
direção (p 72).
Na penúltima parte do
livro, “Sagração da Palavra”, mais curiosidades:
a autora revela que Osman torcia pelo Clube Náutico Capibaribe,
do Recife, e decepcionou-se a ponto de nunca mais torcer por time nenhum; nem
pela seleção brasileira. Comenta também a separação no primeiro casamento que
gerou suas três filhas. A separação é atribuída ao fato da primeira mulher não
incentivá-lo como escritor. Osman também dizia que sua obra reflete em parte
“revolta dos filhos contra seus pais (...) e representa metafísica e método” (p
81).
Na quinta e última parte,
“Cerimônia do Adeus”, Ivana Moura reproduz o depoimento de uma filha de Osman,
Ângela: “papai morreu de câncer”, ele voltou em sonho e avisou a filha que ela
devia se tratar do mesmo mal. Ela salvou-se assim. Já pesquisadora Leda
Alves, viúva de Hermilo Borba Filho, escritor amigo de Osman,
declara para Ivana que: “Osman passava muito tempo lendo e se dilacerando com
uma palavra” (p 86). Osman morreu no dia do aniversário de Hermilo.
E La Moura conclui seu texto citando Marcel Proust: Só há
uma maneira do artista servir à sua pátria: sendo essencialmente artista”. E o
que passa nesta obra é que Osman assumiu esta postura.
O Fiel e a Pedra
Romance do pernambucano
Osman Lins
O fiel e a pedra foi
publicado no Rio de Janeiro e premiado pela União Brasileira de Escritores.
Como ocorreu com os livros de Osman Lins publicados anteriormente, esse romance
foi muito bem recebido pela crítica, sensibilizada pelo fato de o autor
desbravar caminho próprio na tradição do romance regionalista do nordeste,
afastando-se do recurso ao pitoresco, à cor local, ao folclore e à sensualidade
e realizando-se no registro do romance ético e épico. Com O fiel e a pedra
Osman Lins mostrou-se capaz de rivalizar com os melhores escritores da geração
anterior.
O ano de 1961 é um marco na biografia de Osman Lins, no sentido de que o solo de seu trabalho literário, intelectual e cultural que vinha sendo semeado e regado pacientemente e a duras penas dá frutos viçosos, não só pelo reconhecimento de suas qualidades, mas também por atingir público mais amplo.
A partir de então, o ficcionista não precisará mais se submeter a concursos, embora, como dramaturgo, Osman Lins venha a ser ainda agraciado com prêmios (em 1965, dois lhe são conferidos : Anchieta, da Comissão Estadual de Teatro, de São Paulo, pela peça Guerra do cansa-cavalo, que seria publicada dois anos depois e que, em 1971, inauguraria o Teatro Municipal de Santo André); Narizinho, também , da Comissão Estadual de Teatro, pela peça infantil Capa Verde e o Natal .
O ano de 1961 é um marco na biografia de Osman Lins, no sentido de que o solo de seu trabalho literário, intelectual e cultural que vinha sendo semeado e regado pacientemente e a duras penas dá frutos viçosos, não só pelo reconhecimento de suas qualidades, mas também por atingir público mais amplo.
A partir de então, o ficcionista não precisará mais se submeter a concursos, embora, como dramaturgo, Osman Lins venha a ser ainda agraciado com prêmios (em 1965, dois lhe são conferidos : Anchieta, da Comissão Estadual de Teatro, de São Paulo, pela peça Guerra do cansa-cavalo, que seria publicada dois anos depois e que, em 1971, inauguraria o Teatro Municipal de Santo André); Narizinho, também , da Comissão Estadual de Teatro, pela peça infantil Capa Verde e o Natal .
Referindo-se a O fiel e a
pedra, Osman Lins diz que este romance corresponde a uma “plataforma de
chegada e de saída”, encerrando uma fase de sua ficção em termos tradicionais.
Essa mesma expressão pode ser aplicada para o ano de 1961, a partir de uma
visão global de sua biografia.
Meu pai, descendente de
senhores cujas terras, dizem, iam do Cabo de Santo Agostinho até bem perto do
Rio Real, na fronteira das Alagoas, tinha uma pequena alfaiataria. Alfaiate é
uma bonita profissão. Quase toda profissão manual é muito bonita. Só que, em
geral, dá menos dinheiro que a de senhor de engenho. Esse homem desposou uma
mulher que não cheguei a conhecer e que veio ao mundo, parece, com único
encargo de ser a minha mãe. Cumprida essa tarefa, morreu, um ano depois de
casada. Coisa estúpida. Sempre achei que isso me dava uma espécie de
responsabilidade. Morreu aquela garota para que eu nascesse. Não podia fazer de
minha vida uma trouxa, um papel servido, jogá-la por aí. Nunca vi um retrato
seu _ ela não gostava de fotografias, embora conste que fosse bonita. Parece
que o fato me marcou, O tema aparece em O Fiel e a Pedra, em Nove, Novena (na
história "Perdidos e Achados") e o herói de Avalovara anda pelo mundo
feito um doido, buscando o que não perdeu.
A solidão e a estreiteza
dos meus primeiros anos, atenuados pelas presenças de Laura, irmã de meu pai
(que é, transfigurada, a Teresa de O Fiel e a Pedra), e da minha avó paterna,
Joana Carolina, cuja vida agreste e, por assim dizer, simbólica, narrei em
outro livro, foram ainda compensadas pela presença de um homem como não houve
muitos no mundo: Antônio Figueiredo. Para quem não o conheceu, isto é apenas um
nome. Para mim, é tudo o que pode sonhar o coração de um menino. Lá está ele,
transformado, também em O Fiel e a Pedra, com o nome de Bernardo Vieira Cedro,
vivendo aventuras muito semelhantes a algumas que enfrentou realmente. Vivia
contando histórias. Foi ele o meu primeiro livro, meu iniciador na arte de
narrar, assim como a velha Totônia foi a primeira influência literária do José
Lins do Rego.
O Fiel e a Pedra começou como novela e depois
virou um romance. Como e quando você determina o gênero? Poderia definir o que
é o conto, a novela e o romance? É razoável persistir o gênero literário na
literatura contemporânea?
Devemos conceder maior amplitude à pergunta que leva a essa controvertida questão de gêneros, indagando, por exemplo, o que se entende por ficção. Que devemos entender por ficção? Acho ser a fixação, através da palavra escrita, e com ênfase na aparência das coisas, pelo autor decompostas e reorganizadas, de uma visão pessoal do mundo, não raro absurda e quase sempre insólita, que no entanto se confunde, sob a pressão do gênio do escritor, com o universo onde todos habitamos. A designação do gênero me parece acadêmica, não importa. E as existentes nem sempre satisfazem. Designei os trabalhos de Nove, Novena, por exemplo, como narrativas.
Parece que a sua obra está dividida em duas fases: a primeira, até O Fiel e a Pedra, e a segunda, iniciando com Nove, Novena, onde a estrutura, a arquitetura do romance, passaria a ser sua preocupação primordial. Você concorda?
O sentido não é esse. Há uma coisa engraçada. A trajetória verdadeira de um indivíduo, de um artista, de um escritor, quando é exercida superficialmente, se esclarece à primeira vista. O autor dá uma direção declarada ao que ele faz, e essa direção é oferecida facilmente aos contempladores. Quando essa atividade é exercida de maneira mais profunda, ela pode provocar uma compreensão exatamente inversa.
O Fiel e a Pedra representa o ponto para o qual converge tudo o que fiz antes e o ponto de onde parte o que vim a fazer depois. É uma plataforma de chegada e de saída, mas num terreno bem mais amplo que apenas o estrutural. Trata-se da travessia, como escritor e como homem de um limite ficcional e político. Meus livros anteriores a Nove, Novena realmente estão mais distantes dos outros no tratamento e na visão geral das coisas. Acontece, porem, que Nove, Novena, em absoluto, não os nega. Ao contrário, através daqueles livros, daquela plataforma, caminhei para Nove, Novena e para as obras que o sucederam, acompanhando minha própria trajetória no mundo, minhas buscas, minhas conquistas. Podemos ver, por exemplo, que em O Visitante o mundo exterior quase não existia, enquanto que em Nove, Novena quase só existe o mundo exterior. É uma contradição? Não. Caminhei da interiorização de O Visitante, através de O Fiel e a Pedra, para a exteriorização, a plasticidade de Nove, Novena. E é natural que assim fosse. Só com a maturidade adquire o ficcionista a coragem para olhar de face o mundo exterior, as coisas materiais, o concreto. Escrito, quando eu chegava aos quarenta anos, Nove, Novena exprime de um modo claro o momento dessa conquista, a travessia daquele limiar. Em O FieI e a Pedra temos um problema de afirmação pessoal (um homem de classe média enfrentando um senhor de terras).
Devemos conceder maior amplitude à pergunta que leva a essa controvertida questão de gêneros, indagando, por exemplo, o que se entende por ficção. Que devemos entender por ficção? Acho ser a fixação, através da palavra escrita, e com ênfase na aparência das coisas, pelo autor decompostas e reorganizadas, de uma visão pessoal do mundo, não raro absurda e quase sempre insólita, que no entanto se confunde, sob a pressão do gênio do escritor, com o universo onde todos habitamos. A designação do gênero me parece acadêmica, não importa. E as existentes nem sempre satisfazem. Designei os trabalhos de Nove, Novena, por exemplo, como narrativas.
Parece que a sua obra está dividida em duas fases: a primeira, até O Fiel e a Pedra, e a segunda, iniciando com Nove, Novena, onde a estrutura, a arquitetura do romance, passaria a ser sua preocupação primordial. Você concorda?
O sentido não é esse. Há uma coisa engraçada. A trajetória verdadeira de um indivíduo, de um artista, de um escritor, quando é exercida superficialmente, se esclarece à primeira vista. O autor dá uma direção declarada ao que ele faz, e essa direção é oferecida facilmente aos contempladores. Quando essa atividade é exercida de maneira mais profunda, ela pode provocar uma compreensão exatamente inversa.
O Fiel e a Pedra representa o ponto para o qual converge tudo o que fiz antes e o ponto de onde parte o que vim a fazer depois. É uma plataforma de chegada e de saída, mas num terreno bem mais amplo que apenas o estrutural. Trata-se da travessia, como escritor e como homem de um limite ficcional e político. Meus livros anteriores a Nove, Novena realmente estão mais distantes dos outros no tratamento e na visão geral das coisas. Acontece, porem, que Nove, Novena, em absoluto, não os nega. Ao contrário, através daqueles livros, daquela plataforma, caminhei para Nove, Novena e para as obras que o sucederam, acompanhando minha própria trajetória no mundo, minhas buscas, minhas conquistas. Podemos ver, por exemplo, que em O Visitante o mundo exterior quase não existia, enquanto que em Nove, Novena quase só existe o mundo exterior. É uma contradição? Não. Caminhei da interiorização de O Visitante, através de O Fiel e a Pedra, para a exteriorização, a plasticidade de Nove, Novena. E é natural que assim fosse. Só com a maturidade adquire o ficcionista a coragem para olhar de face o mundo exterior, as coisas materiais, o concreto. Escrito, quando eu chegava aos quarenta anos, Nove, Novena exprime de um modo claro o momento dessa conquista, a travessia daquele limiar. Em O FieI e a Pedra temos um problema de afirmação pessoal (um homem de classe média enfrentando um senhor de terras).