Os escritores pernambucanos Nivaldo Tenório e Moisés Monteiro de Melo Neto
em recente debate acadêmico
Conto inédito de
Nivaldo Tenório
Nunca falta a ninguém uma boa razão para se
suicidar.
Cesare Pavese
Cesare Pavese
Ilustração: Rafa Camargo
Três
meses não é muito, parece que foi ontem.
Acordou
com alguém perguntando alguma coisa. Com esforço, intuiu que fosse seu nome. Todos
esperam que possamos responder a uma pergunta tão elementar. Mas não teve
jeito, ele não conseguia se lembrar, por mais esforço que fizesse, e tanto
esforço e necessidade de se livrar daquela estranheza, o resultado veio na dor
de cabeça.
Está
deitado numa cama de hospital. Há uma agulha enfiada no braço e os segundos são
medidos por gotas de soro.
Por que
veio parar ali?
Mais
tarde lhe diriam que foi atropelado.
O senhor
tem parente?
Não. Ele
não tem ou não se lembra.
Com sua
idade, o senhor deve ter netos.
Não. Ele
não se lembra; tampouco de filhos, noras ou esposa.
Não
encontramos aliança, talvez tenha se perdido na queda, talvez roubada, essa
gente o senhor sabe como é.
Ele não
sabe de nada, mas olhou para o dedo que não trazia marca nenhuma.
À noite,
sonha com um endereço, e na manhã seguinte, chama pelo enfermeiro e dita o
endereço, que é anotado num papel.
Está
chovendo quando o levam pra casa, o mês foi todo de chuva e a água é fria. A
cama não é mais confortável do que a do hospital. Uma mulher gorda ajeita os
travesseiros às suas costas. Ele não reconhece que é Rosa, a diarista.
Ela não é
de grande ajuda. Contratada há uns seis meses, segundo lhe disse, não conhecia
muita coisa além da casa.
Não me
lembro de visitas ou parentes, Dr. Alípio.
Escuta
seu nome pela primeira vez.
Além
disso, o senhor não conversa muito, mas eu não ligo. É o que ela lhe diz, satisfeita,
talvez, com Lázaro reabilitado.
Nos dias
seguintes, começou uma investigação dentro de casa. A casa que Rosa quer
fazê-lo acreditar que é sua por meio de uma lógica. A verdade é que ainda está
se familiarizando com a lógica. Primeiro o atropelamento, depois a pancada na
cabeça que causou lesão cerebral. Nada muito sério, só os sintomas que vão de
dores na cabeça à perda momentânea da memória. Depois foi a vez do hospital,
três dias de coma, acordar e conhecer Rosa. E isso é tudo. No momento é a sua
história.
Lógico
que ninguém estranhou. Não havia ninguém para estranhar. Só Rosa, mas se
houvesse eles lhe teriam dito que estava certo em procurar respostas.
Rosa não
ficou satisfeita, sabia que aquela bagunça sobraria pra ela, mesmo assim trouxe
uma a uma as gavetas.
Primeiro
da cômoda.
É nas
gavetas que guardamos coisas minúsculas, a maioria sem valor senão aquele
atribuído por nós. Cartas, fotografias e todo tipo de porcarias que a gente
acumula pela vida afora, principalmente quem já fez oitenta anos. Foi a idade
que lhe deram e não há como duvidar, está tudo lá, nos registros. Não importa.
O fato é que sua vida se transformou num quebra-cabeça incompleto. Por isso
começou a investigação. Era o mínimo que podia fazer. Juntar peças e fazer conexões
o ajudaria, pelo menos, a sair do torpor.
Aqui,
disse Rosa uma manhã, entregando-lhe algo. Esticou a mão e segurou o objeto. De
formato oval, parecia feito de prata, talvez chumbo. A peça apresenta as dimensões
de uma concha e quando segura nas mãos sente o metal frio. Prata, sem dúvida,
provavelmente uma joia de família, na certa um relógio, mas não, as partes em
concha, abertas, mostram duas fotografias antigas. Um menino e uma mulher.
Ela está de chapéu enfeitado por uma pena e traz a pele de algum animal
enrolada no pescoço. Deve ter trinta anos, sorri e posa descontraída para a câmera.
O menino não tem mais de seis anos, é magro, está de pé e encara desconfiado o
fotógrafo. Usa uma espécie de sapatilha e o par de meias brancas encontra a bainha
da calça ou bermuda pouco abaixo do joelho. Olhando as fotos, não consegue
evitar a sensação de estar vendo os dois pela primeira vez.
Além do
porta-retratos, naquele dia, não encontram mais nada, nem cartas nem
fotografias. Há gente que não se deixa fotografar. Rosa está cansada, diz que
não tem mais onde procurar.
Além
disso, está quase na minha hora, e ainda preciso arrumar essa bagunça.
Continuou
segurando o porta-retratos, Rosa foi arrumar a bagunça e quando saiu, ele
estava dormindo.
Não saiu
do quarto. Não devia, havia o risco de uma lesão na coluna cervical. Ficou na
cama, e naquela primeira semana sua rotina se resumia a dormir e comer. Comer
pouco. Não gosta de comer. Não sabe se sempre foi assim. A julgar pelo físico,
sim. De todo modo não gosta de comer. Não é nada com a comida da empregada. É
uma comida como qualquer outra. Apenas isso. Não gosta de comer. Pronto. Mas
no primeiro dia que resolveu deixar o quarto, ele o fez depois de sentir o
cheiro de café que vinha da cozinha.
Tomou o café
na cozinha. Rosa fazendo que lavava a louça, atenta ao patrão.
Sua casa
é grande, com muitos quartos e mais banheiros do que vai precisar. Os móveis
são rústicos, alguns estão velhos. Imprestáveis. Também existem cômodos
vazios de paredes descascadas. A julgar por tanta austeridade, não sabe o que
vem fazendo com a aposentadoria da Universidade. É, foi professor um dia, mas
já faz tempo, segundo os papéis que achou dentro da profissional — ao que
parece, seu único documento —, que provavelmente conserva no criado-mudo, onde
também encontrou recibos de pagamentos dos serviços de abastecimento de água
e energia elétrica.
Mais do
que os móveis rústicos e aquela quantidade escandalosa de banheiros, o que
chamou sua atenção foi a estante empilhada de livros. Montes e montes de
livros, ocupando espaço e servindo de ambiente favorável ao aparecimento de
insetos. Uma herança indesejada de família — pegou-se pensando —, que
permaneceu ali durante anos por causa da superstição do herdeiro? Ele não sabia
e se surpreendia — entre tantas que não teve — aquela inquietação.
Uma
grossa camada de poeira recobria os livros na tarde em que resolveu sondar a
estante e procurar, também ali, alguma coisa que o ajudasse a lembrar. Pegou
aleatoriamente um livro e leu seu título. Aquele livro não lhe disse nada, mas
o mesmo não aconteceu com o seguinte. O título, desta vez, bem como o nome do
autor, pareceram-lhe familiares.
Não se
lembra? O senhor passa muito tempo lendo, diria Rosa mais tarde.
Era seu
primeiro progresso desde que acordou. Segurou outro livro e a memória não
falhou e outro e mais outro. Os livros que não lhe diziam nada eram, decerto,
aqueles ainda não lidos, e esta lógica lhe pareceu boa.
Uma hora
depois, Rosa retornou trazendo chá e biscoitos, e teve quase uma coisa, ao ver
a biblioteca no chão.
A estante
ocupa uma parede inteira e foi feita sob medida: seis metros de largura por
dois de altura. O ambiente é arejado por duas janelas que dão para o quintal
repleto de árvores. Além da estante, uma poltrona e mesa tipo birô são os
únicos móveis do cômodo. Rosa deixou a bandeja sobre a mesa. Ele não a viu
entrar. Afundado na poltrona, estava absorto na leitura. Desde que descobriu a
estante, algumas semanas atrás, voltou a ocupar a maior parte do tempo entre
os livros.
Rosa é
gorda, usa vestidos longos e está sempre descalça. Não sabe quais as
circunstâncias que o fizeram contratá-la. Às vezes acha que foi forçado a isso.
Afinal, não é todo mundo que aceita se empregar na casa de um velho solteiro.
Os modos grosseiros dela, sua mania de rir alto e macaquear as cantigas do
rádio foram quase motivos de demissão. Mas não conseguiu ir adiante, alguma
coisa como pudor o impedia. Tapava os ouvidos e sentia raiva, mas com o tempo,
passou. Não sabe dizer como aconteceu. Um dia incomodava e no outro — quando?
— deixaram de ser motivo de incômodo.
Também
havia o café. Adora o café que ela faz e passou a gostar das histórias que ela
conta. São histórias de gente pobre, que vive na pior. E, no entanto, contadas
por ela, fazem a gente rir.
Um dia,
Rosa não veio, teve de levar um dos filhos ao hospital, foi sua primeira falta.
Alguém ligou para avisar, ele nunca soube quem, uma vizinha, talvez. Tomou o
maior susto com o aparelho tocando.
Sua vida,
entre a leitura de um livro e outro, são páginas em branco, eventos que não se
realizaram, festas a que não compareceu, reuniões de família onde esteve
ausente. Isso é possível? Sentia vontade de perguntar a Rosa, mas ela não
saberia responder: pior ainda, podia desconfiar dele, achar que mais do que a
memória o Dr. Alípio perdera a razão.
O médico
estava certo, a memória voltaria aos poucos. Cada dia se surpreendia com uma
nova lembrança. Mas isso não foi motivo de entusiasmo, na verdade ele não
tinha nada o que se lembrar além de nomes que, no momento, só servem para
indicar túmulos no cemitério. Sobreviver aos outros não é uma vantagem, a
gente fica com a sensação de que nos passaram a perna. Não é que tenha escapado
de um holocausto, nada disso, mas não teve filhos e se arrepende dessa escolha,
que durante muito tempo lhe pareceu prudência, por isso não pode se lembrar do
filho que não teve, ele agora é só mais um fantasma que o incomoda.
O menino
do porta-retratos não é ele. Não pode ser. O menino é um personagem de romance
lido há muito tempo e de quem se recorda como de um sonho. Ele é outro. Tem
pele enrugada, sofre de amnésia, tem uma biblioteca e rendimentos de
aposentado que lhe permitem pagar os serviços de Rosa.
Ontem à
noite, bisbilhotava na estante. Estava ansioso, sofrendo de impaciência. É
claro que não queria ler nada. Fazia um trabalho manual, como Rosa, queria poder
não pensar em nada, livrar-se daquela agonia: por isso pegava o livro, qualquer
um, folheava e desistia dele. Nessa ordem, sem interrupção. Alguns minutos
depois, cansado, sentou-se com os poemas de Mário de Sá-Carneiro. Mas não foi
capaz de ler e o devolveu a seu lugar, ao lado de uma novela do Hemingway. Não
sabe qual foi o critério de arrumação dos livros de que se valeu, provavelmente
nenhum. Deve ser um desses caras desorganizados, por isso não se casou, não
teve filhos e a maioria das coisas que fez, como ficar velho, não dependeu
dele. O Diário de Pavese estava naquela mesma prateleira, e não sabe se foi na
hora que o descobriu ou quando folheava suas páginas que teve mais um dos
estalos da memória.
É de
manhã quando escuta a empregada chegar. Está deitado na cama, pensando nas
lembranças da noite passada. Tem na mão uma caneta, e vem lhe tirando e recolocando
a tampa desde que acordou. Não saberia responder quantas vezes repetiu o
movimento de encaixe. Os passos de Rosa se aproximam. Pode entrar. Ela abre a
porta e o encontra com a mesma roupa de ontem.
O senhor
quer que eu sirva o café aqui?
Não. Pode
deixar.
Rosa
divide um cubículo com o marido a quem sustenta e de quem leva uma surra de vez
em quando. Teve seis filhos e o último deles, que ela não queria e por isso se
entupiu de um chá de folha miúda e amarga, nasceu aleijado. Certa vez, disse
ao patrão que o aleijão do filho foi castigo.
Quando
ela deixou o quarto, ele se pôs a procurar o telefone de um advogado, que não
sabe se ainda advoga: já era idoso naquela época. Em todo caso, é alguém que
pode ajudar. Afinal, não deve ser difícil preparar a papelada. Só não sabe o
que fazer dos livros. Talvez uma biblioteca pública. Ele pede a Rosa que o
ajude a procurar o telefone, depois vai até a janela, atraído pelo barulho da
chuva grossa, exatamente igual àquela que caía no dia em que tentou pela primeira
vez.
NIVALDO
TENÓRIO: nasceu em
Garanhuns (PE), em 1970, onde vive até hoje. Formado em Letras, é autor
de A grande torre (2002) e Dias de febre na
cabeça, pela u-Carbureto, com segunda edição pela Confraria do Vento
prevista para este ano.
Cesare Pavese (Santo Stefano Belbo, 9 de setembro de 1908 — Turim, 26 de agosto de 1950)
foi um escritor e poeta italiano.[1]
Combatente antifascista, o que lhe rendeu três anos de prisão
no sul da Itália. Nessa época, iniciou o seu
diário "O Ofício de Viver", título original "Il Mestiere
di Vivere", uma autocritica revelada em reflexões sobre a sua arte,
seus processos criativos e sobre o sentido da existência.[2]
Biografia
Cesare Pavese nasceu em Santo Stefano Belbo, nas Langhe (província de Cuneo),
tendo-se mudado ainda em criança para Turim, donde se ausentou sempre apenas
durante pouco tempo: passou um ano na prisão em Barcaleone (Reggio Calabria), comprometido por amigos
políticos; passou algum tempo em Roma em
trabalho para a editora Einaudi, da qual foi um dos mais eficazes conselheiros
editoriais; suicidou-se em Turim em 1950.[3]
A sua tese de licenciatura foi sobre Walt Whitman, e já não era um desconhecido
quando, em 1936, publicou Lavorare
stanca: tinha já publicado e continuaria a publicar estudos sobre
literatura norte-americana clássica e contemporânea, reunidos num volume (La
letteratura americana e altri saggi) publicado postumamente em 1951.
Traduziu Daniel Defoe(Moll
Flanders), Charles Dickens, Herman Melville (Moby Dick e Benito
Cereno), James Joyce (Dedalus), Sinclair Lewis, John dos Passos, Gertrude Stein e William Faulkner.[1]
Obras
·
A lua e as fogueiras (1958);
·
Antes que o galo cante (1959);
·
Ofício de viver: diário (1935-1950) (1968);
·
A guitarra quebrada: romance (1960);
·
Entre mulheres sós (196?);
·
O diabo sobre as colinas (1962);
·
Férias de Agosto (1965);
·
A praia (1965);
·
O Verão (1965);
·
Terras do meu país (1969);
·
O camarada (1974);
·
Trabalhar cansa (1998);
·
Diários com Leucó (2007).
Rafa Camargo. Ilustração aplicada.
Facilitação Visual
A Facilitação Visual é feita em tempo
real sintetizando
visualmente tópicos apresentados em palestras, workshops, planejamentos,
treinamentos, etc. Processo também conhecido como Mapa Mental ou Design Thinking.
Ilustração
A ilustração em sua narrativa visual que se adapta aos diferentes suportes,
interfaces, discursos, propósitos. Diferentes projetos ilustrados,
os quais procuro filtrar e registrar processos, vendas, interações e
personagens.
Design
O design como intenção, propósito,
desenho. Um constante destino que transforma o autor e a
relação com o ambiente projetado.
ira
entrevista com o escritor garanhuense Nivaldo Tenório
Por: Fellipe Torres -
Diario de Pernambuco
Publicado em: 17/03/2013 06:00 Atualizado em: 17/03/2016
18:37
A simpatia de Nivaldo Tenório o aproximou de autores consagrados, como
Ronaldo Correia de Brito e Raimundo Carrero, de quem recebe elogios rasgados
pelo talento e originalidade. Se por um lado o garanhuense soube se apadrinhar
nas andanças pelo Recife, foi igualmente capaz de se associar a potenciais
escribas da terra, com quem criou o zine literário u-Carbureto e,
posteriormente, selo editorial com o mesmo nome. No fim do ano passado, a
cooperativa publicou o quinto livro, Dias de febre na cabeça (112 páginas, R$
25), uma densa e obscura coletânea de contos.
|
|
Crédito: Ricardo Fernandes/DP/D.A Press.Escritor Nivaldo Tenorio lança
livro de contos Dias de Febre na Cabeca.
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Confira a entrevista na íntegra:
Como
você chegou a essa dupla carreira, de escritor e bombeiro?
Sempre gostei de ler. Não sei dizer o porquê, pois vivi em um mundo em que a literatura não tinha espaço. Nunca fui estimulado por um professor ou por meus pais, que eram semianalfabetos. Minha mãe se alfabetizou depois dos 50 anos. Mas por conta dessa minha relação com a leitura, fiz faculdade de letras.
O Corpo de Bombeiros surgiu na minha vida como um emprego, a partir da necessidade, pois era filho de pais pobres. Servi o Exército em 1989 e detestei cada minuto. Quando saí, jurei jamais sequer passar na frente de um quartel. Mas três meses depois, forçado pelas circunstâncias, estava me inscrevendo no concurso. Já estou na corporação há 23 anos, mas nunca me senti um militar, diferentemente de alguns amigos que são obcecados pela carreira, se consideram verdadeiros salvadores, guerreiros... Eu não. Me sinto um funcionário público.
E quanto ao surgimento de Dias de febre na cabeça?
Eu e dois amigos editamos um jornal de literatura, o u-Carbureto, com a colaboração de vários escritores. A partir daí, surgiu a ideia de criar um selo com o mesmo nome para lançar nossos livros. Já editamos cinco. Este já está pronto há seis, sete, oito anos. Passei esse tempo todo fazendo e refazendo os contos.
Em que momento você decidiu que deveria publicar?
Quando ouvi falar em Francisco de Moraes Mendes, um escritor de Minas Gerais que publicou dois livros de contos, em edições do autor. Fiquei curioso e comprei. Achei genial. Pensei: “se esse cara não conseguiu ser convidado por uma editora importante, como a Cosac Naify ou Companhia das Letras, quando vai ser a minha vez?“
Após tantos anos reescrevendo, está ansioso pela repercussão da obra?
Estou satisfeito, se você considerar que é um livro de contos, um formato com público menor do que o romance. Ouvi bons comentários a respeito. Também é preciso considerar que ele foi publicado por um selo independente, sem editoras por trás para fazer divulgação. O cineasta Wilson Freire está com a ideia de transformar alguns contos em curtas-metragens. Já começou a adaptar os textos.
E no Corpo de Bombeiros? Como o livro é visto entre os colegas?
É como se eu fosse ao mesmo tempo super-homem e Clark Kent. (risos) Um ou outro é que sabe. E quando sabe, julga que sou excêntrico. Também não costumo conversar sobre isso, pois tenho dificuldade para vender, para falar sobre meu trabalho.
Você é próximo ao escritor Ronaldo Correia de Brito. Ele lhe incentivou?
O conheço há alguns anos. Me apresentei a ele depois de um evento no Recife e de lá para cá ficamos nos falando. Ele tem um certo respeito por mim, sempre manda textos para eu avaliar. Critiquei bastante o último livro dele, Estive lá fora. Mandei e-mail de duas páginas dizendo que não gostei. O personagem é como se fosse o mesmo de Galileia. Além do mais, não consigo dissociá-los do autor. Não sei porque ele está me elogiando agora. (risos)
Mais recentemente, ele mandou e-mail falando bem do meu livro, e eu tive que perguntar se não era ironia, porque Ronaldo sempre foi muito duro comigo, muito reticente... dizia que estava faltando alguma coisa nos contos.
Sempre gostei de ler. Não sei dizer o porquê, pois vivi em um mundo em que a literatura não tinha espaço. Nunca fui estimulado por um professor ou por meus pais, que eram semianalfabetos. Minha mãe se alfabetizou depois dos 50 anos. Mas por conta dessa minha relação com a leitura, fiz faculdade de letras.
O Corpo de Bombeiros surgiu na minha vida como um emprego, a partir da necessidade, pois era filho de pais pobres. Servi o Exército em 1989 e detestei cada minuto. Quando saí, jurei jamais sequer passar na frente de um quartel. Mas três meses depois, forçado pelas circunstâncias, estava me inscrevendo no concurso. Já estou na corporação há 23 anos, mas nunca me senti um militar, diferentemente de alguns amigos que são obcecados pela carreira, se consideram verdadeiros salvadores, guerreiros... Eu não. Me sinto um funcionário público.
E quanto ao surgimento de Dias de febre na cabeça?
Eu e dois amigos editamos um jornal de literatura, o u-Carbureto, com a colaboração de vários escritores. A partir daí, surgiu a ideia de criar um selo com o mesmo nome para lançar nossos livros. Já editamos cinco. Este já está pronto há seis, sete, oito anos. Passei esse tempo todo fazendo e refazendo os contos.
Em que momento você decidiu que deveria publicar?
Quando ouvi falar em Francisco de Moraes Mendes, um escritor de Minas Gerais que publicou dois livros de contos, em edições do autor. Fiquei curioso e comprei. Achei genial. Pensei: “se esse cara não conseguiu ser convidado por uma editora importante, como a Cosac Naify ou Companhia das Letras, quando vai ser a minha vez?“
Após tantos anos reescrevendo, está ansioso pela repercussão da obra?
Estou satisfeito, se você considerar que é um livro de contos, um formato com público menor do que o romance. Ouvi bons comentários a respeito. Também é preciso considerar que ele foi publicado por um selo independente, sem editoras por trás para fazer divulgação. O cineasta Wilson Freire está com a ideia de transformar alguns contos em curtas-metragens. Já começou a adaptar os textos.
E no Corpo de Bombeiros? Como o livro é visto entre os colegas?
É como se eu fosse ao mesmo tempo super-homem e Clark Kent. (risos) Um ou outro é que sabe. E quando sabe, julga que sou excêntrico. Também não costumo conversar sobre isso, pois tenho dificuldade para vender, para falar sobre meu trabalho.
Você é próximo ao escritor Ronaldo Correia de Brito. Ele lhe incentivou?
O conheço há alguns anos. Me apresentei a ele depois de um evento no Recife e de lá para cá ficamos nos falando. Ele tem um certo respeito por mim, sempre manda textos para eu avaliar. Critiquei bastante o último livro dele, Estive lá fora. Mandei e-mail de duas páginas dizendo que não gostei. O personagem é como se fosse o mesmo de Galileia. Além do mais, não consigo dissociá-los do autor. Não sei porque ele está me elogiando agora. (risos)
Mais recentemente, ele mandou e-mail falando bem do meu livro, e eu tive que perguntar se não era ironia, porque Ronaldo sempre foi muito duro comigo, muito reticente... dizia que estava faltando alguma coisa nos contos.
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Crédito: Ricardo Fernandes/DP/D.A Press.Escritor Nivaldo Tenorio lança
livro de contos Dias de Febre na Cabeca.
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Sua escrita é apontada como sombria e niilista. Você concorda?
Os contos são dolorosos. Queria escrever um livro com unidade, então todos os personagens estão em uma situação limite. Sou pessimista e também ateu. Não acredito em redenção, em vida após a morte. Mas acredito no homem. Acho que não vivemos no melhor dos mundos, mas é o melhor dos mundos que foi feito até agora. Então também sou otimista, não sei.
Minha razão para escrever uma história é falar do humano. E nesse sentido não sou muito alegre. Viver é muito doloroso. Nós estamos em uma encruzilhada. Estamos fadados ao mais completo e irremediável fracasso. Um dia a gente vai ter câncer na próstata e morrer.
Há influências para a visão pessimista?
Gosto de autores como o Philip Roth. É sempre aquele inconformismo em relação à morte, à ideia de que envelhecemos e morremos. Não há saída. A existência não tem saída. Quando começamos a entender alguma coisa, ficamos velhos e decrépitos. A gente fica esperando algo melhor, mas parece que não vem. Me fascina em literatura tratar do humano, não me interessa entretenimento. Não leio para me divertir. Gosto de uma escrita densa, que desvenda o humano.
Que outras referências literárias lhe serviram?
Guimarães Rosa por muito tempo povoou minha escrita, mas consegui exorcizá-lo. Tenho até medo de voltar a ler. Ele é que nem Jorge Luis Borges, você não consegue imitar. No máximo, faz caricaturas mal feitas.
Sou obcecado pela literatura russa. Leio e releio Tolstói e Dostoiévski. Também gosto muito dos argentinos, como Borges e Julio Cortazar.
Esse é seu segundo livro de contos. Pensa em escrever obra de mais fôlego ou pretende manter o ritmo?
Escrevo pouco. Às vezes acho que alguns romancistas perdem a oportunidade de serem considerados grandes escritores. Tchecov é um dos maiores do mundo e só escreveu contos, afora uma novela ou outra. Mas por conta da pressão do mercado, há quem se dedique apenas a romances. Ninguém chega para um poeta e diz para ele escrever uma epopeia. Mas para o contista tem que chegar e dizer para ele escrever um romance.
Estou tranquilo. Nunca tentei escrever algo maior. Sou muito preguiçoso. Às vezes sento aqui e penso: "para que vou escrever? Eu vou é ler, que é melhor". Mas se um dia eu começar uma narrativa de mais fôlego e ver que dá, posso ir por esse caminho. Caso contrário, também não vou ficar frustrado.
Quem são os grandes contistas brasileiros?
Ronaldo Correia de Brito e Antônio Carlos Viana. (pausa) Assim que conheci Marcelino Freire não levei muito a sério, mas hoje também sou um leitor dele, embora seus livros não tenham nada a ver com o meu trabalho. Machado de Assis, claro, é um contista imbatível. Não gosto do Dalton Trevisan, nem consigo entender porque as pessoas gostam. Os contos dele me parecem piadas de mau gosto.
Além de ser bombeiro e escritor, você ainda atua como professor de literatura?
Sim, mas é um bico, só de vez em quando. Nunca levei muito a sério. Na verdade, o Corpo de Bombeiros é meu grande aliado, porque se trabalhasse na educação, teria que me dedicar três turnos para ganhar talvez o que ganho hoje trabalhando apenas pela manhã. Assim, tenho a tarde e a noite para ler e escrever. Se não fosse bombeiro, não conseguiria me dedicar à literatura.
Você consegue transmitir aos alunos seu gosto por literatura?
Não, nem sempre. Geralmente estar na sala de aula até me afasta da literatura. Muitas vezes eu levo para o lado pessoal a indiferença de alguns alunos. Cheguei à conclusão de que só consigo convencer aqueles estudantes que de certa forma já gostam de ler.
A maioria não leva a sério, só está preocupada com matérias mais difíceis, como matemática, química, física. Muitos deles só leram na escola, e por obrigação... então um ficou com Machado de Assis entalado na garganta, outra foi estuprada por Lima Barreto… Acaba sendo meio frustrante. Já me peguei falando sobre literatura sem acreditar no que estava dizendo.
Ter cursado letras foi uma boa opção?
Foi uma desgraça completa. Se tem uma coisa que não vi no curso de letras foi literatura. Esperava chegar na sala de aula e encontrar pessoas que se não fossem escritores, ao menos tivessem afinidade com o tema. Mas de toda a turma só eu gostava de literatura, só eu lia alguma coisa. Todos os outros estavam lá porque o vestibular era mais fácil ou por uma relação com português ou inglês.
CLARISSA LOUREIRO: RESENHA DO
LIVRO NINGUÉM DETÉM A NOITE DE NIVALDO TENÓRIO
“ Ninguém detém a noite”
espanta. E é por conta desse aspecto que está a contemporaneidade de sua
linguagem. Traz na sua estruturação arredia à leitura desatenta o traço
marcante de dizer o indizível, ou seja, o que sufoca na garganta do indivíduo
do século XXI. Neste sentido, dialoga com a primeira obra “ Dias de Febre “. Em
todas as narrativas, há uma ressignificação metafórica da noite que perde seu
sentido original para alcançar o significado da explosão do aparente equilíbrio
do estabelecido dentro ou fora dos personagens.
E ela é inevitável porque a
própria realidade dos personagens está tão doente quanto a do sujeito que a
reinterpreta enquanto a lê. E isso não pode ser dito se não através do
constante uso de lacunas a serem preenchidas pelo leitor que vagarosamente vai
revisitando temas tão difíceis de serem afirmados e, quiçá, vivenciados nos
dias de hoje. HIV, Câncer, Incesto, Suicídio, Demência, Envelhecimento
reprimido, homossexualidade reprimida, família destruída pelo silêncio, pela
solidão, pela incompreensão da formas particulares de existir.
A noite é, portanto, o doloroso
encontro consigo mesmo e o espanto de não estar no padrão que todos de alguma
forma tentam viver. Dai, a ironia do “ciclo militar” que compõe as três
narrativas que fecham a obra. Ambas recriam a psique de militares adoecidos pelo
paradigma ditado por uma identidade controlada por uma metodologia de existir
que os molda, os castra e os desestrutura emocional e fisicamente:
“ A coruja branca” justapõe
câncer de próstata e o homicídio da coruja como uma morte da própria
sensibilidade de viver num mundo além dos paradigmas militares, num jogo
narrativo entre passado e presente em que os conceitos de memória coletiva (
grupo de militares) e memória individual ( um ex-militar) se identificam para
expressarem a solidão do homem desvirilzado no espaço onde vive. Perder a
potência é perder também um pouco da força para se construir no mundo.
“Giulia” exprime o lirismo
nostálgico do combatente de guerra, perdendo a memória de si mesmo por conta de
demência do envelhecer e poeticamente buscando na “ memória viva” de Giulia (
uma enfermeira de guerra) um “ lugar de memória” de uma existência
espontaneamente vivida na juventude e, paradoxalmente, na guerra. E, então, o
enlouquecer é uma forma de achar-se além do planejado. E a beleza do gesto da
esposa é a compreensão dessa busca além dos grilhões da família, talvez numa
das mais belas declarações de amor da obra.
“ Além da noite” é por si só, a
maior explosão do livro em que desvenda a hipocrisia de militar entediado com
os afazeres de gabinete, reinventando o tesão pela ação bélica em prostíbulos
em que possui meninas que jamais sua esposa foi capaz de parir, numa pedofilia
contaminada por todos os receios do homens e mulheres do séculos XXI.
Acredito que com esses três
contos, NIvaldo, de fato, consegue discutir uma dos temas mais atuais na
literatura: a identidade como um processo relacional com o outro, o tempo e o
espaço. E faz isso com a coragem de trazer o que dói no homem de hoje como um
ingrediente necessário para essa construção em eterna construção em
desconstrução.
E isso só pode ser feito
através de uma linguagem que se abre a ressignificações plurais sem deixar de
abrir mão de usar intertextos canônicos como a presença do “Ateneu” de Raul
Pompéia para discutir a homossexualidade reprimida em “ O Internato” ou a
beleza do revigor sexual do idoso a partir de uma relação com uma bela jovem
cujo adormecer ao seu lado é mais forte do que o próprio ato, como se nota em “
Memória de Minhas putas tristes” de Gabriel Garcia Marquês. O diferencial no
romance de Nivaldo Tenório é dor incontida que faz seu desfechos serem abertos
como um rio que nos corta, afoga e dilacera.
Entrevista – Nivaldo Tenório
Dias de
febre na cabeça (2012)
THIAGO CORRÊA – Em 2002, você apareceu na
literatura com o livro A grande torre,
depois reapareceu ao vencer o concurso Osman Lins de Contos. Nesse período
entre o livro de estreia, o prêmio e Dias
de febre na cabeça, o que mudou na sua visão da literatura?
NIVALDO – Com
exceção do prólogo, onde tento justificar a falta de unidade do livro,
recorrendo à torre de babel, como metáfora de confusão, e talvez um conto ou
dois, de resto não gosto do livro, e quando digo que andei roubando exemplares
das bibliotecas, para queimar, juro que não estou fazendo tipo. A grande torre
precisaria amadurecer mais. Sua publicação, portanto, foi precipitada, e me
arrependo, mas devo dizer que aquele escritor não mudou muito desde 2002.
Quando falo que já era o mesmo escritor, refiro-me a ideia que fazia e faço da
literatura. Naquele tempo eu já era o leitor de Borges, lendo e me
surpreendendo com as semelhanças que o argentino tem com o nosso Machado de
Assis. Eu já era o escritor que condenava o diletantismo, eu já me cobrava uma
atitude mais profissional e sabia que para fazer literatura de verdade o
caminho não era outro senão aquele apontado por Ernesto Sabato, de que é
preciso ter uma obsessão fanática pela criação ou nada de importante será
feito.
TC – É possível fazer relações entre o seu
livro de estreia e o Dias de Febre na cabeça?
Quais?
NIVALDO – Não.
N’A
grande torre, os contos foram reunidos (por isso a metáfora da
torre de babel, uma canhestra tentativa de justificar sua falta de unidade) num
livro por causa de um projeto, que um amigo nosso, o jornalista Roberto
Almeida, desenvolveu junto à Fundarpe. A intenção era publicar autores de
Garanhuns. Foi assim que peguei carona e publiquei os contos. Dias de febre na
cabeça é outra coisa, foi pensado como um livro. Os contos reunidos constituem
uma unidade, trabalhada e retrabalhada ao longo de muitos anos.
TC – Dias
de febre na cabeça é um livro bem pesado, com histórias que
sufocam, que trazem um tom pessimista, repleto de traições, suicidas, acidentes
de trânsito. De onde vem esse pessimismo?
NIVALDO – Não
sei se a palavra correta é pessimismo ou realismo. Acho que tem a ver com o meu
temperamento e como encaro as coisas. Existir é bom, mas não deixa de ser
doloroso. Quando as coisas estão mais ou menos arranjadas é tempo que a velhice
se instalou e com ela a doença. Vivemos a vicissitude da temporalidade e sobre
isso nada podemos fazer. Mas isso não quer dizer que não gosto da vida, que não
sou alegre e arriscaria dizer até que sou feliz. Veja os suicidas, muitos deles
se mataram porque não estavam satisfeitos com a vida que levavam. Preferiram a
morte a ter que viver como desgraçados. Ninguém pode dizer que não gostavam da
vida, acho que foi por isso mesmo que se mataram. Veja o exemplo de Hemingway.
E eu gosto da vida, por isso acredito na ciência e na ética e que é nosso dever
construir um mundo melhor. Minhas preocupações nascem daí, da minha visão
pragmática das coisas, não necessariamente pessimista. Não gosto das fantasias
delirantes, feitas para nos tapear, mentiras bem arranjadas que se por um lado
infundem medo, por outro nos confere consolo. Precisamos de consolo porque
vamos morrer, e em nome disso incorremos em improbidade intelectual. Comigo
isso não funciona, dispenso essas histórias, as delirantes fantasias que
incluem paraíso, eternidade e deus-pai-todo-poderoso. Não sou niilista. Gosto
da vida, aqui e agora, por isso mesmo sou realista, talvez um pouco pessimista.
Temo que me alonguei, mas é preciso dizer outra coisa, como leitor construí ao
longo dos anos a minha biblioteca pessoal, nela encontro os livros com os quais
me identifiquei. Nesses livros fazer literatura e sondar o humano se confunde,
e nenhum deles pintou para mim um mundo cor de rosa. Sem querer me comparar a
eles, você poderia fazer essa mesma pergunta a Dostoiéviski, Kazantzakis,
Machado de Assis, Fitzgerald, Céline, Thomas Mann, Faulkner, José Saramago e
tantos outros.
TC – Ao ler Dias
de febre na cabeça, a realidade se faz bem presente, em alguns
contos você dá pistas de onde surgiram suas ideias, sugere que essas histórias
de fato ocorreram. Como é esse processo de transformação de fatos reais em
ficção?
NIVALDO – Lá
em casa, na casa do meu pai, eu costumo dizer que quem deveria ser o escritor
da família era o meu irmão Ivaldo. Eu fico impressionado com os detalhes da
nossa infância que ele não esqueceu: nomes de pessoas e episódios banidos da
minha memória, na dele se conservam intactos. Quanto a mim me lembro das coisas
com dificuldade, tudo é sempre muito fragmentado, e quando aproveito uma coisa
e outra para escrever uma história, ela acaba sendo outra coisa, diversa
daquela que deu origem. Então é assim que acontece, como o arqueólogo que
encontra um pedaço de vaso enterrado na areia e imagina o vaso inteiro, a
realidade de fato me fornece alguns pedaços de personagens, cenários e
histórias que transformo em contos.
TC – Uma coisa que me chamou atenção no livro
é a maneira como você desenvolve suas histórias através de sugestões, sem
explicitar que houve uma traição, nem que tal personagem cometeu suicídio. Por
que essa opção de escrever quase por negação?
NIVALDO – Porque
para mim é justamente isso que diferencia o mero registro da realidade da
criação literária. Explicitar é querer convencer o outro de um fato. A
Literatura não deseja convencer a ninguém de um fato. Não existem fatos. Mas
existem as coisas além dos fatos, e isso só pode ser sugerido.
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