Moisés Monteiro de Melo Neto e Jorge Dubatti, no VI Congresso Internacional Sesc de Arte/ Educação
O argentino Jorge Dubatti, criador da Escola dos
Espectadores, lançará o livro "O teatro dos mortos: introdução a uma
filosofia do teatro", pelas Edições Sesc São Paulo. Sua proposta de uma Filosofia do
Teatro permite empregar um conjunto de conceitos válidos para a compreensão das
práticas cênicas em sua des-delimitação e complexidade: a distinção entre corpo
social e corpo poético, convívio e zonas de experiência e subjetividade, teatro
de "estados" e a possibilidade de pensar as poéticas como espaços de
tensões ontológicas que deslocam as noções de "representação" e
"apresentação". Ele,em seu empenho por traçar uma filosofia do
teatro, é ensaísta,o crítico e teórico
argentino Jorge Dubatti reconhece que, assim como a Arte em geral, o teatro
passa por um processo de “desdefinição” com a emergência de acontecimentos
artísticos fronteiriços desde o início do século XX; contudo, apesar dessa desdelimitação com outras artes e com a
vida, Dubatti identifica ainda “uma singularidade na teatralidade que é sua
estrutura matriz” e que o diferencia de outras manifestações culturais também
fundadas na representação, como o cinema, a televisão e o jornalismo. Essa
singularidade é “o resgate do convívio”, ou seja, “a reunião sem intermediação
tecnológica – o encontro de pessoa a pessoa em escala humana” em uma “encruzilhada
espaço-temporal cotidiana”. Dubatti propõe, então, uma definição ontológica da
composição interna do teatro. Segundo ele, o teatro é conformado pela tríade
acontecimento convival, acontecimento poiético
e expectação, necessariamente associados. Portanto, o convívio deve estar
associado à poiésis, que é o material
artístico e sua criação, portanto, necessariamente poiético, ainda que possa ou não ser ficcional, trata-se de um
duplo frente à realidade e não necessariamente sua negação. Nas palavras de
Dubatti, a “produção de um ente poético, dotado de traços ontológicos
singulares, a partir do qual se produzem processos de semiotização que nunca se
completam ou se esgotam” (2007, p. 89). E a essas duas dimensões se soma a
expectação: o campo de constituição do espaço de percepção do espectador, onde
o teatro enfim se constitui como tal, mas não sem os outros dois fatores
anteriores. Em síntese, o teatro “é a produção e expectação de acontecimentos poiéticos corporais em convívio”. Na
entrevista abaixo, realizada em fevereiro de 2014, no Centro Cultural de la
Cooperación, localizado no centro da cidade de Buenos Aires, o teórico
argentino relaciona sua ontologia teatral às possibilidades de dramaturgias conviviais, à crítica de teatro e à
necessidade de uma mudança de paradigma na pesquisa sobre teatro cartografada
que o entenda não como linguagem tão-somente, mas também como acontecimento.
Olha esta fala dele: “O conceito de dramaturgia se ampliou enormemente, do
ponto de vista do sujeito produtor, do sistema de referência, da edição etc.
Acaba de sair no Chile um trabalho meu sobre esse tema. Dentro dessa ampliação,
entraria o que podemos chamar de dramaturgias conviviais. São aquelas
dramaturgias que, seja pela liberdade que tem o ator para interagir com os
espectadores ou pela imposição do convívio sobre o material da cena,
produziriam um caso particular. Digamos que o ator deixa de ser uma simples
tecnologia do diretor para transformar-se em um gerador de acontecimento
convivial, que implica produção de dramaturgia. Nesse sentido, creio que a
dramaturgia convivial é vivida todo o tempo, inclusive nos espetáculos em que o
ator está determinado a cumprir com um determinado protocolo de representação
do texto ou a cumprir com as instruções de um diretor, porque o convívio produz
modificações. Se alguém medir a duração de uma obra em cada sessão, verá que
nunca é a mesma. Por outro lado, há mudanças na ordem dramatúrgica não só pela
dinâmica de convívio, mas também pela dinâmica de produção de poiésis – a
poiésis produtiva, segundo a terminologia da Filosofia do Teatro. Nesse
sentido, há de se distinguir dois tipos de dramaturgias conviviais. Um tipo
seria aquela que é natural do acontecimento convivial e vai acontecer sempre,
mesmo que o ator trabalhe com quarta parede e se isole do mundo, essa
dramaturgia vai estar em funcionamento. Outro tipo são casos muito particulares
de distintas poéticas que trabalham com o que podemos chamar de uma
“dramaturgia do ator em convívio”, no qual o ator interage permanentemente ou
aproveita os estímulos. É como na Commedia dell’Arte ou no teatro de rua ou em
algumas poéticas particulares. Na Argentina, temos a poética do clown, da
improvisação e da comicidade, que são muito abertas à dramaturgia da produção
de convívio a cada noite. Há vários grupos que têm essa poética instaurada. Um
caso que eu nomearia como exemplar é do La Banda de la Risa, que trabalha com
uma margem muito forte de dramaturgia convivial, modificando permanentemente as
apresentações com estratégias que são muito parecidas com as da Commedia
dell’Arte, como o canovaccio e a construção de lugares inesperados dentro dessa
dramaturgia. O que creio é que o específico do teatro, seu núcleo central, é o
ator. Há cenas neotecnológicas em que se produzem combinatórias, mas o que não
se pode subtrair é o ator. Ele verdadeiramente é o gerador da ação, da poética
e do acontecimento. a dramaturgia é o olhar do espectador. Então eu poderia,
neste momento, estar olhando para você e pensando nesta entrevista como uma
obra de teatro. Não. A poiésis teatral diz que se trata de uma ética dialógica,
uma política dialógica. Quando alguém vai ao teatro, vai compartilhar com
outro. Não está fechado em seu próprio crânio. Uma ética dialógica seria
entrarmos em acordo de que eles (os atores) vão produzir poiésis e nós vamos
observar e nos integrar numa poiésis convivial. Essa é a grande diferença entre
uma definição geral de poiésis e uma definição específica do teatral. Caso
contrário, o teatro perde sua singularidade. É claro que existem zonas de liminaridades,
cruzamento e perda de limites. Mas a singularidade (do teatro) é haver uma
“figura de ação” que comece a produzir poiésis e, a partir daí, detonar todo o
mecanismo. Essa figura é o ator. É claro que há uma grande variedade de
poéticas e, dentro de uma ética do científico (estou trabalhando muito esse
tema), tenho que valorar e respeitar todas as poéticas. Chamo de cânone da
multiplicidade. Um artista pode dizer o contrário: só é arte o que eu faço. Mas
um cientista não pode fazer isso. Se sou investigador, tenho que reconhecer
tudo que está acontecendo e aceitar que há muitas formas de fazer teatro. Mas
há algo interessante que é um núcleo de teatro, com estabilidade, que provém da
Antiguidade e segue vigente. O acontecimento é efêmero, mas a memória não. Há
uma memória do teatro que segue funcionando e teria a ver com esse núcleo
central. O núcleo fundamental, como disse Grotowski e também Peter Brook,
estaria dado no sistema de convenção do século V a.C, com a tragédia e a
comédia gregas e os mimos romanos. Nesse sentido, gosto muito de usar a palavra
teatro. Muitos perguntam por que não falar em “artes cênicas”. O problema com
as artes cênicas é que todo mundo se apropriou da palavra cena: a sociologia, a
literatura, as artes digitais. Eu teria que separar artes cênicas conviviais e
não conviviais. A palavra teatro, usada no sentido de origem, não o moderno,
implica todos os elementos dessa estabilização da linguagem teatral que
continua vigente até hoje. Teatro significa lugar, um mirante, onde alguém vai
ver algo que aparece. Por outro lado, há a atividade de olhar. Portanto, na
palavra teatro estão inscritos o território, o objeto observado e o observador.
Voltando ao núcleo, as combinatórias são infinitas, especialmente depois do
choque das vanguardas, muito estimulante para se ler a História [do teatro].
Por que não sustentamos que o primeiro ator foi Homero? Ali havia convívio,
poiésis e expectação. Se fizermos todo esse protocolo de regresso à História e
voltarmos a pensar nos processos, além da multiplicidade aparece um elemento
irrenunciável, que é o ator. Há um grande dramaturgo argentino, Mauricio
Kartun, que diz: o teatro é um corpo. O que está dizendo é: o teatro é um corpo
de um ator que produz acontecimento e estabelece uma ética dialógica com o
espectador. Nesse sentido, creio que as luzes, a cenografia, a música, são
todos elementos muito importantes, mas são acessórios porque, como diz
Grotowski, poderíamos tirá-los e o acontecimento se produziria. Então, eu
instalaria dois corredores teóricos. Um seria de quantas possíveis
combinatórias há dentro das linguagens teatrais: infinitas. E outro corredor
teórico seria o que não pode faltar no acontecimento teatral: a reunião dos
corpos viventes produzindo poiésis em convívio, onde haja geração corporal de
poiésis e expectação. Seriam duas pertinências diferentes, como dizem os
estruturalistas. Por isso, no fundo, a dramaturgia convivial é constitutiva do
teatro. Em alguns casos pode ser sistêmica, porque se busca estimular esse
convívio, em outros casos não, mas ainda assim está presente.
Nós
temos armado uma epistemologia do teatro baseada na ideia do teatro como
linguagem. Uma ideia da linguagem como um corpo que produz signos e que são
expectados por outro corpo que produz sentidos através desses signos. Toda a
teoria básica é a da comunicação. Mas há outra coisa que é importante e é
justamente a convivialidade. O grande problema em que nos encontramos é que há
de se armar uma epistemologia da convivialidade, não da linguagem, porque a
linguagem não necessariamente é o que ocorre no acontecimento. Se estou
observando um corpo que produz acontecimento, de golpe me abstraio porque o
relaciono com alguma coisa e deixo de perceber os signos. Onde fica a teoria de
que houve comunicação ou que esse signo produziu recepção em mim? Nesse
sentido, temos que reinstalar um campo epistemológico, que muitas vezes foi
tapado pela vontade de certeza da semiótica. Por exemplo, leio um texto,
analiso os signos desse texto e os projetos ao funcionamento do espetáculo,
pensando que foi isso que se passou. A epistemologia do convivial implicaria
ver como fracassa a linguagem. Beckett disse: tenta de novo, fracassa de novo,
fracassa melhor. Tenho que ver onde fracassa a teoria semiótica porque é aí que
estou entendendo a singularidade do teatro. Tenho que poder pensar o
acontecimento pelo que ele é, não pelo que deveria ser enquanto linguagem
semiótica. Não digo que não há linguagem, mas que, no acontecimento, há muito
mais que linguagem. E o acontecimento, como pertence à cultura vivente, implica
categorias epistemológicas muito importantes, como a categoria do perdido, da
ignorância – porque há coisas que vou ignorar. Trabalho com espectadores todas
as segundas, na Escola de Espectadores, de março a novembro, e estou disposto a
não saber o que se passou porque o acontecimento é muito mais intenso do que os
relatos posteriores ou uma estatística. Uma coisa que me parece muito
importante - e estamos tratando de aprofundá-la - é aceitar que o acontecimento
teatral nos enfrenta com um limite.
Uma
coisa importantíssima é começar a ter categorias que reconheçam a realidade do
acontecimento, como a categoria do “teatro perdido”. Quando vou falar do teatro
como crítico, eu falo no passado, não no presente. Estamos falando do perdido,
mesmo que o tenhamos visto há dez minutos. Isso implica em primeiro lugar que,
a partir dessas categorizações, formulemos do que podemos falar e do que não
podemos falar. Quando reconhecemos aquilo do que podemos falar, aparece um
monte de questões que se instalam em certos parâmetros. Eu tenho, como crítico,
dez grandes parâmetros que têm a ver com um trabalho sobre auto-observação e
observação do acontecimento. Trabalho muito com a ideia de auto-observação, o
relato do que passou comigo. O acontecimento em princípio é um laboratório de
auto-observação tanto para o artista quanto para o espectador e para os
técnicos. Há de se habilitar o lugar do técnico. Na Argentina, agora chamamse
técnicos-artistas, porque se reconhece que estão fazendo algo muito importante
para a poiésis. A técnica é tão protagonista quanto o trabalho do ator e do
espectador. Então, auto-observação e construção de discursos sobre essa
auto-observação, tanto pelo espectador, quanto pelo técnico e pelo artista.
Começam a aparecer categorias, observações históricas, regularidades, reflexões
de todo o tipo sobre as conexões com a história e o comportamento. Mas tudo
isso baseado no reconhecimento de uma ignorância. A ignorância qual seria? O
objeto se perde. Estudar um vídeo não é estudar um acontecimento. Tem-se que
estar dentro do acontecimento. E outro tema muito importante é a
excepcionalidade do acontecimento. Posso entrar no teatro drogado, feliz no meu
mundo, e o espetáculo me parecer maravilhoso porque estou disposto a que seja
maravilhoso. Ou o contrário: entro após uma má notícia, de que estou doente,
não sei, estou desesperado e odeio o espetáculo porque o relaciono a isso. São
muito importantes as categorias da auto-observação, da autodisciplina, da
autoconfiança. E algo tão importante quanto é alcançar um lugar
trans-subjetivação como espectador, não apenas o subjetivo. Está muito
relacionado à ideia da morte: se eu não estivesse hoje aqui, a apresentação
igualmente estaria acontecendo. Posso abstrair a minha própria presença e pôr
em jogo a observação, não como um sujeito afetado por ela, mas como algo que
está acontecendo na minha ausência. Isso implica um exercício epistemológico.
No teatro nem tudo é subjetivo. Se estou sentado e a meu lado uma senhora está
morrendo de rir, posso observar isso como uma instância objetiva do
acontecimento.
O
convívio é um objeto de estudo evanescente, absolutamente imprevisível. Muitas
vezes é difícil predicar algo sobre esse objeto. Então aparece uma pergunta
epistemológica interessante: quais são os limites de conhecimento do convívio
enquanto objeto? Dentro dessa grande pergunta há uma em particular que seriam
os estudos dos processos de convívio. Podemos dizer que cada convívio é
absolutamente diferente de outro. Posso encontrar regras de regularidade, mas
talvez o mais interessante não seja a regularidade, mas aquilo que o convívio
muda. Espetáculos que me interessam muito, vejo-os mais de uma vez. É
impressionante não só como eu mudo na relação com o acontecimento já tendo
visto o espetáculo uma vez, mas também como muda o acontecimento pela nova
composição do público e pelo estado dos atores. Isso já foi muito dito: a
apresentação nunca é a mesma. Mas há de se produzir categorias. Temos que
partir da ideia de que estudar os convívios implica estudá-los
micropoéticamente. Não vou estudar todos os convívios porque não poderei estar
lá. Se, dentro de todos esses convívios, seleciono um, aí estarei estudando uma
micropoética em particular. Questiono muito as observações dos críticos – e me
incluo – valorando um espetáculo pelo que se passou numa apresentação com
outros críticos [na plateia]. Há que se poder nomear certos critérios. Tenho
pelo menos dez grandes critérios: efetividade, historicidade, poeticidade etc.
Mas o mais importante é o micropoético: reconhecer cada convívio e cada
acontecimento como único e singular e não necessariamente representativo dos
outros. Há algo que contradiz a investigação: tratamos de generalizar algo que
não se pode generalizar. A relação está dada por uma circunstância, um momento,
uma tensão de relações absolutamente micro, não esse modelo abstrato. Por isso
sempre que estudamos o convívio peço aos espectadores que digam que dia foi, em
qual apresentação, se esteve presente ou não, sobre qual vídeo está trabalhando
e que esclareça que está trabalhando sobre um vídeo porque é uma observação
extremamente relativa. Sinto que, de tudo que se escreveu sobre teatro,
trabalhou-se sobre generalidades, sobre sistemas. E a sensação é que nos
acontecimentos essas generalidades não necessariamente estão presentes. Por
exemplo, fui a uma apresentação em que espectadores aplaudiram de pé e depois
ouvi de outra em que os espectadores dormiram, saíram na metade. Estamos
falando do mesmo objeto? São dois objetos diferentes: um convívio e outro
convívio.
Tive
uma entrevista com um grande pesquisador francês que levei à Universidade de
Buenos Aires, e ele disse aos alunos: “Porque vocês viram Planchont...”. Não.
Ninguém viu. Ele me olhou: “não conhecem Planchont?” Chegou um momento em que
me disse que não poderia prosseguir. Eu lhe disse para falar de teatro, não das
obras que ele viu, porque eles falariam das obras que eles viram. Uma
cartografia radicante implica conhecer a própria territorialidade e estabelecer
diálogos de conexão com França, Alemanha, com todo lado, mas a partir do que se
conhece, dos acontecimentos. Não tenho porque estar falando de Bob Wilson, vou
falar do que vejo esta noite e daí vou produzir pensamento e me conectar com
toda a bibliografia mundial. Essa é uma mudança muito importante porque
começamos a reconhecer que temos que falar do que se passa e não do que deveria
estar passando. Falei disso com o Lehmann em Porto Alegre, num encontro sobre
Bertolt Brecht, conversamos nos almoços, caminhando pela rua. Disse-lhe: “o
conceito que você trabalha de pós-dramaticidade não me serve para pensar o
teatro de Buenos Aires, o teatro que eu vejo não é o que você diz”. E ele me
respondeu uma coisa muito sensata: “Eu nunca falei do teatro de vocês, estou
falando do que eu vejo lá”. Isso me parece muito importante, devemos começar a
falar de coisas concretas, e claro, depois ouvir atentamente ao Lehmann para
ver se o que ele diz tem a ver com o que vivemos. Nos congressos, muitas vezes,
sinto que estamos vendo uma coisa e falamos de outra. Acabamos de ver uma obra
de teatro em que há personagem, história, dramaticidade e, depois, analisamos
esse espetáculo falando de pós-dramaticidade e morte do personagem. Não tem
nada a ver com o que vemos. A América Latina tem uma missão agora: começar a
falar do que se passa nos teatros locais. Tenho que falar de Buenos Aires. E
você tem que falar do teatro do seu lugar. E, claro, conhecer toda a
bibliografia mundial.
Jorge Dubatti traz, em O Teatro dos
Mortos, uma proposta de conceitualização para as artes cênicas, partindo do
princípio do teatro como acontecimento, algo que acontece e em que se dá a
construção de sentido. Partindo desta perspectiva, o autor considera o teatro
como um conceito que inclui a dança, o teatro de animação, a performance, o
novo circo, a narração oral, o clown, stand up, entre outros acontecimentos que
compreendam o convívio, a poiesis corporal e a expectação. Ele defende a
utilização do termo 'teatro' a partir da sua concepção etimológica, derivada da
palavra grega "théatron" que "incluem, direta ou indiretamente,
territorialidade, convívio, poiesis, expectação, os acontecimentos inevitáveis
do acontecimento da cultura vivente que estudo" (pág. 20)
Teatro, portanto, em sua
definição pragmática, "é a zona de acontecimento resultante da experiência
de estimulação, afetação e multiplicação recíproca das ações conviviais,
poéticas e expectatoriais em relação de companhia. É o espaço de subjetividade
e experiência que surge do acontecimento de multiplicação
convivial-poética-expectatorial" (p.37).
Essa abordagem ampliada do
teatro coloca, para mim, a questão sobre a necessidade de falar especificamente
das artes circenses na minha pesquisa e, mais ainda, sobre a necessidade de
definir de alguma maneira o que são as artes circenses contemporâneas. A
perspectiva de Dubatti, no entanto, é filosófica e não leva em consideração os
aspectos sócio-políticos que compreendem a identificação de um fenômeno. É
inegável que o circo existe, as artes circenses são assim nomeadas, existe um
grupo social que se identifica como artistas circenses e um espetáculo que se
caracteriza como tal.
Se, em relação ao conceito
teatro ele enfatiza a importância de uma definição, já que a filosofia do
teatro tem como caminho para o conhecimento justamente perguntas ontológicas
como 'o que é o teatro/ o que acontece no teatro/ o que há no teatro', etc,
porque não teria importância a definição do que são as artes circenses? O autor
inclusive cita a frase do diretor mexicano Luis de Tavira que diz que "só
o teatro é teatro, porque, se tudo fosse teatro, nada seria teatro"
(p.30). Partindo do mesmo princípio, podemos derivar dessa mesma lógica a
afirmação de que 'só o circo é circo, porque se tudo fosse circo, nada seria
circo'. Apesar de poder depreender essa afirmação, dentro do sistema conceitual
proposto por ele não vi a necessidade de entender as artes circenses separadamente
do conceito mais amplo de teatro. Dentro da minha pesquisa, entretanto, essa
identificação é imprescindível, por comportar uma localização desta linguagem
em um contexto acadêmico, social e político.
As ideias propostas por
Dubatti em sua filosofia do teatro trazem ainda, elementos para abordagem das
poéticas dos processos criativos os quais estou me propondo a pesquisar. Mais
do que analisar os processos à luz dos termos propostos, Dubatti propõe um
sistema de ideias que serve de base e pressuposto para qualquer pesquisa do que
ele compreende como teatro. Inclusive a sua noção de uma historicidade que
inclua a inclusão da concepção de teatro a qual está se levando em
consideração. Para Dubatti, "pode-se compor uma história do teatro a
partir da história das poéticas, sua comunidade e sua integração em
cânones" (p.68). Isso me provocou no sentido de incluir na minha pesquisa
sobre a concepção de teatro que a circula, fazendo com que as poéticas
pesquisadas possam contribuir para essa história, um dos meus interesses na
pesquisa.
Outra vantagem da filosofia
do teatro, como apresentada pelo autor, é a de introduzir "algumas
condições fundamentais para a pesquisa ou pressupostos inevitáveis",
dentre eles a perspectiva do teatro como trabalho, práxis. Sendo trabalho,
"as teorias do teatro devem ser confrontadas com suas práticas, porque o
que se passa no mundo das práticas teatrais não é necessariamente o que se
passa no plano abstrato do pensamento" e, além disso, "deve ser
pensado não apenas como por meio da observação de suas práticas mas também do
pensamento teatral de artistas, técnicos e espectadores que é gerado sobre/ a
partir dessas práticas" (p.85). Esses pressupostos contribuem bastante com
a minha pesquisa, inclusive na assertividade da escolha metodológica. Até o
momento incluí artistas e técnicos como minhas principais fontes e pretendo
também incluir o espectador, como fontes de material para um percurso indutivo.
Essas foram algumas das
relações que pude fazer em uma primeira leitura de 'O Teatro dos Mortos'. A
obra, no entanto é muito interessante para qualquer pesquisa em artes cênicas
pois coloca de forma clara a distinção e definição de conceitos frequentemente
utilizados, contribuindo para a problematização e reflexão sobre conceitos
essenciais para a reflexão. (Julia Henning)
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