Não sei o que é o foco prioritário
ao escrever sobre alguém, sempre quero saber mais e nunca penso em parar de
escrever sobre o que gosto. François Dosse, em O Desafio biográfico, foi um dos que me serviram de inspiração para
escrever esse livro, mas meu estilo é outro, bem diverso ao dele. Os planos de
fundo que escolho são bem peculiares, nas escolhas dos meus ângulos fujo dos
lugares comuns dos biógrafos.
Meu livro nada tem de oficialesco, limpo, chapa branca. Desde
dois mil e quinze o STF liberou biografias não autorizadas, pois bem, comecei
aí a escrever biografias. As biografias que escrevi são amálgamas.
MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO, autor da biografia de José Francisco Filho e do romance pernambucano Palimpsesto
CALEIDOSCÓPIO
A TRAJETÓRIA DE JOSÉ FRANCISCO FILHO
TRANGRESSÃO NO PALCO E NA VIDA
Uma
pop-biografia de um artista recifense: como J.F.F. subiu ao palco, foi
professor universitário e se manteve com a cabeça erguida, com amor, humor,
dignidade, aventuras, gozo, sangue, suor e lágrimas
(biografia
escrita por Moisés Monteiro de Melo Neto)
Duvido de autores que dizem não
praticar uma escrita rica de amálgamas. Busquei construir uma narrativa viva,
mas não criando cenários, episódios, tensões, revelando vínculos, contextos de
épocas diferentes, diferentes ensinamentos. No calor da escrita, quis saciar
minha curiosidade. Ressaltar coisas vividas. É literatura, história e um pouco
de jornalismo, mas é também arqueologia do saber, do fato criativo, fértil.
Sugiro mais do que eu digo. É um texto de cunho biográfico, mas eu não evitei
as licenças poéticas ao organizar as informações colhidas sobre J.F.F.
De tudo que coletei, busquei o mais
fluido e colorido possível. Sou mais autor do que biógrafo, claro. Não fiz
louvação ingênua, nem desconstrução do folclore teatral do provinciano Recife.
Meus amálgamas são misturas, movências. Houve mesmo prazer em
trabalhar na investigação sobre. J.F.F. e fiz surgirem, ressurgirem vozes
incontroladas, adormecidas. Heródoto (autor da história da invasão persa da Grécia,
ocorrida no final do século V a.C., conhecida simplesmente como As histórias de Heródoto),
ele foi colocado como o pai da história.
Muitos biógrafos buscam as
particularidades das personalidades dos indivíduos, sem ressaltar nem
qualidade, nem defeitos. É mais ou menos isso: criei apenas um amplo mosaico.
Não sou um retratista de alma. Olhei pra J.F.F. como se fosse para um espelho,
na verdade como uma sala de espelhos. Não era uma cronologia de fatos, o que eu
buscava. Deixo isso aos jornalistas.
Ah, as biografias...só no final do
século dezessete o termo biografia (isso
é uma biografia?) surgiu no dicionário da Europa. Sabemos que na Escola dos Annales, na França (1929),
Luciene Febre e Marc Bloch desprestigiaram o gênero biográfico. Queriam mais
interpretação do que numeração de fatos. Escrevo pelo gozo da transgressão.
Jacques Le Goff escreveu a biografia de São
Luís e colocou em xeque as relações que existem entre a história
vivida, a história "natural", senão "objetiva", das
sociedades humanas, e o esforço científico para descrever, pensar e explicar
esta evolução, a ciência histórica.
Fala-se de micro-história. Será que é isso que
estou fazendo ao contar episódios da vida de JFF? O historiador usa binóculo, o
biógrafo lupa. Desertificaram a vida dos nossos astros do teatro recifense.
Estou aqui para repovoar a de um deles. Sou um pesquisador e um sonhador, meio
pedra e meio sonho. Quando eu entrevistava as pessoas que conviveram com o
J.F.F., eu estava biografando parte da vida dessas pessoas também, jamais
querendo fazer pedagogia moral. Não queria uma biografia seca, mas apaixonada.
Escrevo sobre quem ou o que me fascina. Da massa caótica que reuni, ressurgiu
um novo J.F.F.
Não tenho pretensões de historiador: sou
apenas contador de histórias e gosto de romper com a ordem cronológica, sempre.
Gosto de apagar rastros, maquiar esforços, exaltar a nobreza atemporal. Escrevo
sobre um diretor, mas percebo os seres e as coisas ao seu redor: ele não
existiu no vazio histórico, no vácuo Trata-se de uma articulação com todos e
tudo. Também não quero usá-lo como recheio de um sanduíche. Tentei não deixar
mais de cinco parágrafos sem mencioná-lo. Sentei-o no centro.
Por que uma pop biografia? Pop
também significa sem preconceitos, fugindo das armadilhas das biografias
tradicionais, da “nobreza acadêmica”, mas elaborada, também, mesmo que
paradoxalmente, a partir determinada tradição e de olho na indústria cultural. Trabalhamos
a partir de fontes usuais e dos conteúdos do gênero biografia, mas com um olhar
mais contemporâneo, defendendo a experimentação dialógica com a construção
literária no sentido político e cultural.
Buscamos, nessa biografia de J.F.F., estampar formas da cultura que
marcaram sua vida cotidiana, artística, afetiva, profissional, tendo em vista algumas
formas de pensar e viver das pessoas que constroem seu tempo, devolvendo mais
poder ao leitores e leitoras, para que sejam mais livres, talvez, integrá-lo às
suas vidas.
Pierre Bourdieu alcunhou como ilusão
biográfica uma espécie de ficção de si, apoiada em instituições
de totalização e de unificação de si que direcionam a atribuição de sentidos e
a busca de coerência aos acontecimentos considerados, pelo narrador, como mais
significativos na história de sua vida, fiz isso.
Não quis explicar as coisas
retrospectivamente. Encontram-se aqui os elementos que compõem a peça central e
os personagens, mas a vida em si ninguém pode expressar. Também não gozo aqui
da mesma liberdade que tenho quando escrevo ficção. Num misto de vida e
literatura J.F.F. se ergue, se reconstrói. Sou como um artista mais ou menos
sob juramento. Numa espécie de ilusão controlada. Busquei sinais, indícios,
resquícios. Garimpei buscando a essência das minhas descobertas. Procurei
aquilo que não se conhecia, ou não se lembrava, sobre o biografado, mas que
poderia defini-lo para outras gerações, também.
A primeira parte do meu trabalho foi
uma espécie de fichamento. Essa minha mania acadêmica, mas só para meu
controle. Resolvi não expor explicitamente tais referências aqui. Substituí a
ordem linear por um encadeamento diferente.
Algumas vezes eu voltava a um ponto da vida do biografado que parecia já
estar resolvido em outra parte. Lembrar que todo discurso, parte de um lugar e
serve a uma causa. Objetividade e imparcialidade são mitos? Era o que eu me
perguntava.
Tratei de ouvir o outro lado. A
busca documental era vertiginosa. A heteroglossia (a diversidade social
de tipos de linguagens, produzida
por forças sociais tais como profissão, gêneros discursivos, tendências
particulares e personalidades individuais) bakhtiniana. Múltiplas falas
de um mesmo sistema linguístico. Isso me assombrava nas variadas visões de
mundo possíveis dentro das várias épocas vividas pelo meu objeto de pesquisa.
Todos
temos várias faces, misturamos tantas informações. Será que eu conseguiria a
face compósita desejada para expressar a trajetória do biografado, captar sua
personalidade integral?
Busquei
nas entrevistas com J.F.F. o que seria nele a escrita de si. E quis transcrever
isso aqui nesse livro. Lembrando que o hoje tem maneira própria de selecionar
os fatos e visões do ontem. Às vezes se dão as distorções inconscientes, as
falsificações deliberadas (que não deixam de ser parte da verdade). Fantasias também são realidades que podem ser
interpretadas, os silêncios são testemunhas que não falam.
Escalei as muralhas da intimidade zefrancisquiana
sem feri-las sem me intrometer procurei não interiorizar as hesitações, não
interromper as hesitações e silêncios dos meus entrevistados (como Ivonete Melo
e Romildo Moreira, por exemplo). Eu não queria
bancar o invasor. Sempre entendi as variantes para cada história.
Percebo
que a memória individual é bem seletiva possui falibilidades, criatividade,
flexibilidade, as lembranças sofrem mudanças e redescobertas interpretamos as
lembranças à luz do que veio depois, das necessidades posteriores. Surgem as
reconstruções variadas, as sacadas posteriores, os códigos podem ser alterados
e existem, também, as lembranças fabricadas, o que não era o caso.
Às vezes ao me debruçar sobre o material
colhido sobre J.F.F., eu espantava-me com o óbvio. Mas o que me excitava a
imaginação não era a obviedade
era para o que isso apontava: a possibilidade de novas pistas Sentia-me um
poeta do detalhe. Eu não pretendia analisar criticamente certas evidências,
pois sabia que no fundo de tudo aquilo estava a teatralidade do meu biografado.
Era mais como se eu estivesse organizando um painel, orientado
um jogral, juntando provas para um processo. Eu enfronhava-me no espírito da
trajetória de J.F.F. É isso: como se eu “calçasse os sapatos” dele, no sentido que
os norte-americanos usam
essa expressão.
Eu
queria oferecer ao leitor cenas de apelo sensorial e J.F.F. se transformava num
nobre do povo. Perfumado, de bom gosto. Como se eu estivesse passeando com ele
pelos locais onde tudo que está nesse livro aconteceu.
Repito,
minha pior escolha seria contar tudo o que via do começo para o fim, em ordem
cronológica. Eu não queria fazer o desenho para depois pintá-lo. Não. Decidi
refazer tudo que tinha feito do modo linear. Eu não queria ser aborrecido,
chato, lento. Gosto de velocidade. Eu queria que os leitores se identificassem
com J.F.F. como se ele fosse um vizinho bom, de longa data. Mas eu queria
apresentar um conflito, logo no início dessa, digamos assim, trama: a vida de
um artista em forma de imagens de um caleidoscópio e as dificuldades que ele
enfrentava para manter-se vivo em meio ao emaranhado de paixões e décadas. Como
ele sai da areia movediça
da ampulheta do tempo, como na cena de um filme, em forma de biografia de cunho
experimental.
Não
era o tempo prouststiano da recherche (À la recherche du
temps perdu) que eu buscava era o frenesi. Eu não queria
fazer literatura, eu queria justificar esse livro e o que ele não é: um
antiquário, um relicário carnudo. Eu queria que fosse como um ser vivo.
Convidar o leitor para os detalhes quase imperceptíveis da fala de cada uma das
pessoas que depõem aqui. Que esse livro fosse como um portal para uma
existência. Um livro pirata, no
sentido que Gilberto Gil usava quando era Ministro da Cultura e que eu amava.
Transportar o leitor a um passado recente e colocá-lo numa mesa redonda, como
fez o Rei Arthur. Como num brainstorm.
Fazê-lo subir no palco, estabelecer nossa interlocução sem grandes esforços ou
preocupação com um recurso especificamente cronológico reacionarista. Abrir um
portal no tempo transformar-me em detetive, como aqueles que Humphrey Bogart interpretava, Raymond Chandler e Dashiell Hammett escreviam. Como um film noir, inspirado pelo Expressionismo, daqueles movimentados,
com cenas em bares. Eu queria lançar as
pistas, através de elementos prosaicos estabelecer um campo magnético numa rede
de correlações, oferecer apenas o efeito do real, no sentido de Blanche Dubois tennesseewilliana e eu não ofereceria um
objeto de cena que não fosse utilizado posteriormente, pois se assim não fosse,
esse objeto não deveria estar lá. O leitor pode enumerar os “verbetes” /capítulos
desse livro, ao seu modo.
Não queria que o leitor imaginasse, mas que ele visse, sentisse como se faz no teatro, o
mundo do teatro, através de um dos seus maiores representantes: J.F.F.
Que, se possível, ficasse curioso. Que cada parte das divisões amplificasse as
outras.
fosse acrescentando detalhes concretos até provocar um sorriso nesse leitor
conquistá-lo para mais um parágrafo
Quis fundir personagem e enredo: um artista
recifense, como ele subiu ao palco e se manteve com a cabeça erguida, amor, com
humor, dignidade, aventuras, gozo, sangue, suor e lágrimas.
Eu tentei agir com moderação e cautela. Era um
retrato escrito de J.F.F. que eu estava pintando. Eu queria entregar ao leitor
minhas informações com prazer, e pensava no meu objeto de pesquisa com prazer,
também.
Eu estava com a tendência a condensar o tempo, em algumas partes e
em outras dilatá-lo, pois sabia que isso imprimiria ritmos diferentes ao texto não
era questão de agradar ou não ao biografado exatamente. Era a necessidade que
eu sentia de ressaltar certas declarações dos entrevistados e do material de
pesquisa que eu havia coletado. Certos verbetes do livro são enormes outros
minúsculos. O interesse era manter o leitor como quase presenciando, ouvindo o
texto na hora. Acentuei as variações de perspectivas propositalmente, era como
edições de vídeo, não acelerando muito ou tornando muito lento. Não era essa a
intenção. Nem ficar abrindo e fechando cortinas sobre a cena nos seus
interstícios, como num teatro mal feito. Também não quis
usar espaços de duas linhas para separar blocos dentro dos verbetes, e
transgredir as regras sobre eles, ou usar asterisco central (seria necessário?)
para dar respiro ao texto. Não dividir
o livro em capítulos e fiquei titubeando se o dividiria ou não por partes, mas não
encontrei motivos para dividir o texto total em, digamos assim, na linguagem
teatral atos. Não havia gancho para
isso.
Como mover a curiosidade do leitor até a página
seguinte, o verbete seguinte? Era o que eu me perguntava. Achei interessante
alongar partes como as sobre Rubem Rocha Filho e O Beijo da mulher Aranha. E também dar destaque à voz de Valdi
Coutinho, o crítico teatral recifense que, além de ser dirigido por ele, falou
muito sobre J.F.F. e foi um dos representantes da mídia brasileira (atuou
durante décadas no Diário de Pernambuco). Também enfatizei as informações sobre
o processo das montagens das peças Torturas
de um Coração e A Barca da Ajuda.
Ambas trazem no bojo propostas sobre a questão de um posicionamento firme
diante da opressão, tirania, conservadorismo, homofobia dominantes na época e
por aí vai.
Eu não queria ser um narrador. Queria que o encadeamento do
meu texto sofresse bruscos cortes. Selecionava a partir do material que eu
coletei, dando voz aos originais a
cada um deles.
SOBRE “CALEIDOSCÓPIO”, o professor e multiartista
teatral MARCONDES LIMA DISSE: “Se este livro está em suas mãos não é
obra do acaso. Você o escolheu por algum motivo. Pode ter sido a curiosidade
sobre a trajetória da personalidade “biografemada”, o apelo lançado pela
conjunção das palavras transgressão+palco+vida, na segunda capa, ou a
necessidade de conhecer os cenários e personagens envolvidos em tantos e tão
ricos episódios desse drama da paixão de um homem pelo teatro. Se assim
sucedeu, você não se arrependerá. Tudo isso verá deslizando por entre as
páginas mais à frente. Se não foi, também está valendo. Não será exagero nenhum
dizer que essa obra tem vida própria e que definiu quem seria seu autor. Do
mesmo modo ela será capaz de eleger seus leitores, sejam pesquisadores,
estudiosos do teatro, artistas ou pessoas comuns.
Em
seu corpo traz impresso o que promete na capa e contracapa: um caleidoscópio,
uma pop-biografia de J.F.F que é Puro
Teatro. Não como canta La Lupi, em tom de denúncia e desagrado, sobre um
desencanto amoroso. Diferente do tipo descrito no bolerão, a pessoa que tem sua
vida aqui oferecida em doses pequenas, como shots ou como hóstias consagradas,
é das mais verdadeiras que já conheci. De uma sinceridade por vezes
desconcertante, sem papas na língua, de extrema lucidez e confiabilidade. Dono
de um bom humor que vai do fino ao grosso, sem pruridos, sem rodeios ou
maneirismos floreados. Um criador multifacetado, capaz de encantar espectadores
adultos e crianças, compondo com a mesma competência e destreza o tecido cênico
de uma tragédia, uma comédia, um drama burguês ou histórico, uma fábula
infantil ou poemas do romantismo brasileiro ou do modernismo português. Você
verá como ele é capaz de ir do escracho à elegia.
Aqui
terá a oportunidade de se deleitar com a escrita de Moisés Monteiro de Melo
Neto, quase como uma desmontagem cênica posta em palavras. Somente um artista
também multifacetado e sem medo de purismos formais seria capaz de promover o desnudamento sensível de um
outro artista, em jogo de espelhamentos, como bem diz aquele que se define como
“um retratista de alma”. A cronologia dos fatos foi propositadamente deixada
para jornalistas, para historiadores. Se tomar a afoiteza do autor como
inspiração poderá ler como quiser este livro irreverente. Do começo para o fim
ou vice-versa, na ordem que mais lhe agradar, brincando à semelhança do que propôs
Júlio Cortázar em seu Jogo de Amarelinha.
A matéria é outra e os efeitos idem. Mas não deixe de ver nenhuma cena. Essa é
uma daquelas narrativas que, em um piscar de olhos desatento, você pode perder
de vista pérolas de inestimável valor.
Se
o jogo fosse com cartas do tarô, o artista professor ou professor artista aqui
apresentado, seria vinculado ao Le
Bateleur, o primeiro arcano: o Mago ou Mágico saltimbanco, entre o
malabarista e o cômico, entre o bufão e o cientista. Alguém cujo maior dom é
fazer alquimias e transmutações cênicas. Um dos mestres que me fizeram embarcar
nessa brincadeira séria que é o teatro. A primeira lição que tive com ele foi
sobre a importância da diversão para quem está dentro e fora da cena. Sem isso
pouca coisa importa. É assim desejo que seja a leitura desses lampejos sobre
sua vida e obra. O francês Roland Barthes lançou a noção de biografema diante da certeza de ser
impossível biografar na inteireza uma pessoa. Pois Moisés Monteiro de Melo Neto
seguiu ao seu modo essa senha conceitual produzindo não uma sopa de letrinhas
mas, sim, um delicioso milk-shake. Uma bebida servida em tragos, uma batida a
um só tempo doce e ácida, sóbria e embriagada, de sabores leves e profundos,
com uma complexidade que passa longe do aborrecido. Divirtam-se enquanto
passeiam pela história do teatro moderno e contemporâneo em Recife, sem a pompa
dos formalismos acadêmicos do qual tanto o biógrafo quanto o biografado são
avessos, mesmo sendo a academia a casa dos dois durante muito tempo.” (Marcondes
Lima)
O ROMANCE PALIMPSESTO, de Moisés Monteiro
Sob
três olhares distintos, MICHELLE nos é apresentada de forma inusitada e plural.
Inicialmente, LUCAS. Ele nos conta a sua versão da história da sua amada
Michelle e os envolvimentos deles com a cena recifense dos anos 90.
Aparentemente mais experiente que a mocinha, Lucas se apaixona pela jovem e
tenta tê-la só para si apresentando um mundo atraente que a jovem não conhecia.
Filha bastarda da empregada com o patrão, Michelle perde os pais num acidente
de carro e é enfurnada dentro de um colégio de freiras pela madrasta a fim de
se livrar da enteada que, mesmo bastarda, possui parte dos bens deixada pelo
pai.
O
enredo se desenvolve com a participação de EMERSON e MAGNO: dois homens
distintos unidos pelo amor à Michelle. São três os que amam a jovem
aparentemente tão indefesa, frágil e inexperiente formando quase um quarteto
amoroso. Lucas, o primeiro narrador da história, jornalista e jovem visionário
mergulhado na fantástica fase vivida pelo Recife na década de 90. Numa mistura
entre caranguejos e coca cola, ele vai, aos poucos cercando e conquistando a
protagonista. Magno, jovem rico e ‘dono do mundo’, meio irmão de Michelle e
apaixonado por ela. Emerson, amante da (má)drasta de Michelle, Antonieta,
menino de rua resgatado pela socialite, esperto e aproveitador das situações
diversas vividas.
O fato
é que Magno têm como arquirrival-inimigo o Emerson e bola um crime monstruoso
para destruir de uma vez por todas a memória física e moral do rapaz. Impedida
de se relacionar com qualquer um dos dois jovens atrapalhadamente transpostos, Lucas surge como o porto seguro de
Michelle. Casam-se e vivem uma vida agradável.
O
romance é dividido em três partes se assemelhando a um modelo de texto teatral.
Moisés fantasticamente consegue dar cortes bruscos no enredo, mas sem despistar
o leitor de vista. Ao contrário, o leitor se põe mais atento cada vez que uma
nova parte se inicia.
A
segunda parte da trama é narrada por um amigo de Lucas que não tem seu nome
revelado. Aquele outrora jovem e visionário rapaz é apresentado agora como um
homem já bem vivido, todavia, aparentemente cansado de viver. Entretanto, de
modo não tão pleonástico cansado que o impeça de se envolver com Saluá, uma
sexy mulher egípcia. De forma ligeira e delirante Lucas vive um romance ardente
com ela nos seus últimos dias de vida. Michelle, que antes foi apresentada como
frágil e indefesa, agora se torna uma mulher adulta, solitária e serena.
O
mocinho Lucas parece ter sido trocado por um homem real. Muito distante dos
contos de fadas e dos romances românticos. Trapaceiro em suas próprias pernas,
às vezes, Lucas é, ainda assim, uma pessoa admirável. Um pouco futurista, ainda
embebido pelo passado americanizado, sempre que possível, vislumbra e resgata
na memória sua época de glória recifense.
Já
Michelle, que pouco aparece nesta segunda parte dedicada a Lucas, foi
parcialmente engolida por Saluá, sua faceirice e destreza. O amor de Lucas e
Michelle, que parecia ser um romance quase platônico, foi trocado pela volúpia
egípcia e enigmática de Saluá e Lucas. É esta jovem que comanda o bon vivant Lucas e não o contrário -
como acontece na primeira parte do livro, onde é Lucas que comanda a relação
com Michelle.
Por fim
a terceira parte do romance é narrada pela própria protagonista Michelle. Lucas
sai de cena por completo após sua fase in memoriam e agora Michelle tem
a oportunidade de se mostrar por conta própria. Entretanto, não é o que
acontece. A insegurança da personagem parece reger sua vida. Sem Emerson, sem
Magno e, agora, sem Lucas, Michelle se vê atônita e incapaz de seguir uma vida
plena, quando seus três alicerces não estão mais presentes com ela.
Michelle
tenta se envolver com outros amores, mas sem sucesso. Não obstante, aos ares
estudantis, surge um quarto homem em
sua vida. De identidade e feições não reveladas, este homem é o oposto de tudo
que os três homens anteriores eram: rápido, decidido, cruel?! Ligeiramente vão
morar debaixo do mesmo teto e ligeiramente também o mesmo homem se vai da vida
de Michelle. Apressado por Rosana Costa, amiga de Michelle há décadas sua amiga, o encanto do amado se esvai com
uma traição carnavalesca premeditada por e com Rosana. Fica uma Michelle
triturada em infinitos pedaços tentando se refazer, se entender.
Seria
Michelle o grande problema da questão, afinal já se passaram quatro amores?! Ou
seriam pseudoamores?! Moisés não nos
revela isto. O que ele nos apresenta, com seguridade, é que estamos diante de
uma trama de uma vida real: sem maquiagens, sem sorvetes, sem brilhos. São
personagens comuns criados, eternizados e reaproveitados nas folhas do seu
livro. Uma mulher comum rodeada de homens também comuns. O que nos prende é a
inovação das ações e a habilidade em desenrolar o enredo além de conseguir
driblar três narradores distintos.
De
traços tipicamente memorialistas, o escritor, amigo e mestre Moisés Monteiro de
Melo Neto, deixa transparecer, ora de forma discreta, ora de forma arraigada,
traços da vida nesta azucrinada metrópole chamada Recife e dos que vivem nela;
dos que vivem com ele próprio, dos que marcaram sua cena, deixando a dúvida do
que é ficção e do que foi realidade na década de 90, a era do badalado
Movimento Mangue, do qual são ouvidos ecos neste romance, entre rios, pontes e overdrives.
Palimpsesto parece ter sido escrito num único
fôlego embora o título nos revele outra coisa. Como um tiro, este romance
transpassa com força a mente do leitor. Um leitor que hoje pede tanta agilidade
frente ao mundo cibernético. É um frenesi. São textos-chave em meio à
modernidade. O autor recifense
reaproveita vidas comuns e as transforma num livro diferente e cotidiano.
A
lemniscata aparece sempre na memória e se renova neste romance que parece não
ter um fim próprio. E não tem mesmo, já que seus personagens flertam com
personagens reais. Nossas vidas, ainda que aparentemente tenha um fim físico,
se esforçam e se renovam sempre transbordando em novos olhares matinais.
Imagino que este romance não tenha fim, pois, está acontecendo aí agora ao lado
do leitor. Fim para Lucas e talvez para Michelle, mas não para suas ações. Para
tanto, tomo a liberdade de colocar o símbolo do infinito em homenagem ao
próprio romance que segue nas próximas páginas a fim de que não esqueçamos de
que todo fim se renova, transborda e reluz.
SOBRE A
1ª VERSÃO DE PALIMPSESTO, quando o romance de Moisés ainda se chamava Michelle,
o escritor Raimundo Carrero disse:
AS TÁBUAS DE MOISÉS
Moisés Monteiro de Melo
Neto conhece os segredos da invenção, como poucos. Isto é, sabe inventar e
sabe, sobretudo, harmonizar esta invenção, quando ela exige perícia e
sacrifício. Os textos que tenho lido dele comprovam sua habilidade. Não se
contenta com o óbvio e com o lugar- comum, vai adiante, investe nas
especulações criativas. Reinventa.
O que se tem visto,
quase sistematicamente, são escritores, mesmo aqueles mais jovens, repetirem
fórmulas antigas, superadas, repetidas. No romance, por exemplo, quase não se
avança mais na questão das novas fórmulas. Em Moisés, todavia, o caminho é
diferente. Ele é capaz de revolucionar sem provocar dramas no leitor. Sem
torturas e mágicas mal elaboradas.
Além do mais sabe ser
sutil. As palavras nascem, vêm com leveza, montam a história, num clima quase
de sonho, mesmo quando enfocam os caminhos mais cruéis. Esta é a impressão
que me ficou de um dos seus textos mais recentes, o romance Palimpsesto, cheio de truques e
arrebatamentos. Uma fábula fabulosa.
Se no teatro, Moisés
tem o domínio do que vem (ou vinha) a se chamar de "carpintaria
cênica", personagens seguros e determinados na criação, diálogos sóbrios
e envolventes, cenas sequenciadas pela lógica da invenção, palavras
definitivas e verdadeiras, situações trabalhadas. Inventando ou adaptando
conquista pela convicção.
Tudo isso é resultado
da extrema familiaridade com o texto literário: Conhece os melhores
escritores, estuda diversas técnicas narrativas, elabora novas conquistas,
enfim, desenvolve sua capacidade de inventar. Estou seguro de que se trata de
um desses autores difíceis de esquecer. Para sempre. (Raimundo Carrero)
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DADOS
BIOGRÁFICOS DO AUTOR: Moisés Monteiro de Melo Neto possui graduação em Letras
(1992), mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco
(2011). É professor da UNEAL (Universidade Estadual de Alagoas) e da UPE
(Universidade Estadual de Pernambuco). Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Literatura, nas seguintes Áreas: Dramaturgia, Literatura Comparada,
Estudos Culturais, Produção Textual, Literaturas em Língua Portuguesa, Cordel,
Literatura Indígena, Representações dos Gêneros na Literatura, Bioficção,
Literatura e História, Literatura e Cinema. É professor desde 1992. Autor de
vários livros, dentre os quais: Abismos da Poeticidade, publicado pelo SESC,
LITERATURA DE AUTORIA INDÍGENA E A REPRESENTAÇÃO DO ÍNDIO EM OUTRAS
LITERATURAS, CIRCO MÁGICO ALAKAZAM (publicado pelo Governo de Pernambuco),
Anticânone: literatura em Pernambuco, Movimento Mangue: Chico Science e outros
artistas (2021).
Autor
de peças teatrais que receberam menções honrosas e prêmios, Foi dramaturgista
da peça Um minuto para dizer que te amo, vencedora de vários prêmios;
atuou como colaborador do Suplemento Literário do Jornal do Commercio, Recife,
nos anos 1990. Está na Academia Palmeirense de Letras. É pesquisador no grupo
de pesquisa NEAB: Identidades culturais: preservação e transitoriedade na
cultura afro-brasileira, da Universidade de Pernambuco. Faz parte do Programa
de Mestrado em Letras (ProfLetras), oferecido em rede nacional, integra o
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Alagoas e
também da Pós-Graduação em História, na mesma Universidade. Profissional: 30
anos de Magistério. Líder do Projeto TUPI Formação do Teatro Universitário em
Palmeira dos Índios - Pesquisa e atuação: Teatro como instrumento pedagógico na
prática do ensino de Literatura. Lançou no final de 2020 os livros 'Biografia,
Autobiografia e Ficção: Literatura e História em Entrelaçamentos Vivenciais', e
"Literatura africana de língua portuguesa. Tem participado de congressos,
colóquios e encontros, mesmo durante a pandemia nos anos 2020/ 2021. Publicou
vários dos seus cordéis e teve, em 2023, uma antologia deles organizada pelos
Professores Bethânia Rocha (UNEAL) e José Nogueira (Universidade Federal Vale
do São Francisco), lançado pela Editora Coqueiro, uma das melhores do país na
área. Lançou pelo Sesc seu livro CALEIDOSCÓPIO, a biografia de um dos
maiores diretores teatrais do país: José Francisco Filho. Seu romance
PALIMPSESTO, foi selecionado e publicado pela Editora Paradox. Suas peças tem
sido transmitidas pela Rádio Folha de Pernambuco. Teve publicados artigos
científicos com os seus alunos. Ministrou o minicurso Literatura africana de
língua portuguesa, pela UNEAL, integrando forças com o projeto do Lepdic, pelo
Grupo. Professor no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC). Atua no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena de
Alagoas/CLIND-AL. Vem apresentando trabalhos em encontros nacionais como o 5º
Congresso Nacional de Educação, junho de 2021. Em julho de 2021 organizou o
livro LITERATURA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA PRÁTICA DE ENSINO. Compôs
Banca Avaliadora no VII CONGRESSO INTERNACIONAL SESC DE EDUCAÇÃO (UFPE/SEBRAE) /2021
e do Prêmio Sesc de Literatura, 2022. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1186-7