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terça-feira, 31 de outubro de 2023

Ensaio Sobre o Tempo: do Recife Onírico ao Egito. PALIMPSESTO: um romance pernambucano

 


                                                                                      por Emerson Bras de Santana Júnior

 

 

Moisés Monteiro de Melo Neto

Em Palimpsesto, Moisés Monteiro de Melo Neto, o autor,  tece, em tons elétricos, um texto

que ora flerta com a autoficção, ora com causos insólitos; estes comuns às

mentes mais inventivas da criação, que, óbvio, é o caso de Neto. Num misto de

ritmo, nuances e montagem, o romance se ergue diante dos olhos do leitor.

Dessa forma, ao passo que as memórias (?) se acumulam, o cenário do Recife

toma forma através do primeiro narrador, Lucas, e diante de todos um quarteto

amoroso se entrelaça – e é entrelaçado – por entre uma capital enérgica,

permeada por um personagem que se apresenta como pano de fundo, mas é

mais: o movimento mangue.

Destino, inveja, ciúmes e outros tantos temperos fomentam os

acontecimentos que permeiam as três partes que encapsulam o enredo

compacto e paradoxalmente plural. A bem da verdade, como que em uma

dança entre luz e sombra, tudo que se sente e o que é possível, nasce de uma

mulher, esse fruto proibido que disputa espaço no Éden com todas as outras

maravilhas que permeiam a existência; em Palimpsesto, a perdição tem nome:

Michelle.

Quando acompanhado das ferramentas certas, o ciúme pode ser mortal.

No romance de Neto é justamente isso que acontece; o mais puro fatalismo

que desemboca no fio condutor da vida: a morte. Um crime, um assassinato, a

justiça profana. Homens que tecem seus próprios destinos. Na obra, a

alternância de narradores sinaliza para uma sutil analogia entres as fases e

faces do amor. Ora o ponto de vista se dá a partir do próprio Lucas, narrador

primário, ora por terceiros: um amigo, o foco terceirizado, e Michelle, o outro

lado dessa moeda. Michelle, inclusive, apresenta-se enquanto a personificação

de um abismo – tudo e todos que se aproximam dela perdem-se de alguma

forma, lançam-se ao destino. Todavia, diferente do que se espera de uma

clássica femme fatale, há resquícios de passividade em Michelle. Aqui, todos

se apresentam enquanto marionetes, apenas.

As reescritas do papiro se dão do Recife onírico ao Egito; cenários

possíveis que comportam os causos absurdos que só a mais límpida realidade

pode conceder. Em Pernambuco, Emerson, um picareta de marca maior, encontra seu

fim a partir das mãos de uma das tantas faces do amor: o ciúme. No Egito,

anos depois, a morte ronda o poeta, Lucas, o ponto de intersecção entre todas

as partes do quarteto amoroso que adorna o romance em questão. Por fim, a

morte metafórica do amor encontra Michelle e esta se depara com o troco do

destino, em balas: o recomeço.

O jogo proposto por Moisés traz ao leitor marcas profundas da

constituição dos indivíduos: resultados do meio? – em um aceno a Ratzel; ou

responsáveis pelas dores e delícias que somos e proporcionamos à existência?

Sartre te dit bonjuor. Assim como na canção de Caetano Veloso, é

justamente isso que autor sugere: somos produtos ou produtores da

existência? Moisés, como de costume, lança mão do seu Dom de Iludir*.

Ao passo que a narrativa se desdobra, o possível se apresenta e ganha

forma, em tons e dúvidas, de modo que o ápice narrativo, o nó, pode estar em

qualquer lugar: em Moisés Monteiro de Melo Neto tudo é possível e nada escapa à ambiguidade

narrativa. Entre assassinatos, traições e recomeços, tudo pode ser o ponto alto

da narrativa. Do alto ao auto, Palimpsesto é ambíguo e sugestivo de propósito;

a realidade inicial se perde por entre a reescrita dela própria, do novo possível.

Ao transcorrer das páginas, Magno, irmão de Michelle, Emerson, o agregado, e

Lucas, o poeta, encaram o abismo e este, personificado em Michelle, os encara

e sugere o pulo. No fim, todos saltam, inclusive o próprio abismo.

“Emerson foi um menino marcado pela vida” (p.35), Lucas, um poeta,

Magno um angustiado, e Michelle um abismo, cada um marcado à sua

maneira. E as marcas que carregavam jamais foram vistas, tampouco

consideradas. Além desses, Saluá, nascida do outro lado do oceano e

destinada a ser a porta do paraíso, carregava suas próprias dores, marcas, e

se apresenta na narrativa de Neto como o ponto alto da concepção da

realidade possível; diante dela, anos adiante do Recife onírico, Lucas considera

o próximo verso, a rima perfeita, mas o tempo, esse deus amargo, não

permitiu; a morte é a recompensa dos que vivem.

No Egito, viver é obrigação! Todavia, Lucas, de joelhos, preferiu

equilibrar-se na linha tênue entre o agora e o ontem. Alheia à realidade,

Michelle esculpiu seu próprio destino e seguiu; e a narrativa deixou-se levar

pela pressa dos dias comuns, o passado glorioso outra vez se desfez diante

dos personagens e do leitor. A vida é agora! E disso Neto sabe muito bem; o

autor equilibra as três instâncias do tempo ao passo que as reescreve:

passado, presente e futuro, o meio-do-meio de tudo.

Em Palimisesto, Melo Neto tece e é tecido. Na obra, realidade

e ficção apresentam-se enquanto termos sinonímicos, partes que coexistem

em um mesmo pergaminho, ao passo que se reescrevem de modo

emancipatório. A obra abre-se com a seguinte declaração “[...] estou morrendo

e resolvi contar a tumultuada história do meu amor por Michelle.” (p.13), esta

advém do fim já anunciado do protagonista primário, Lucas, e acena para o

símbolo Ouroboros, que tem sua origem no túmulo de Tutankhamon, no

Antigo Egito. A serpente que se alimenta de sua própria cauda encontra sentido

na última página da obra; dessa vez, Michelle é quem declara: “Agora eu vou

simplesmente correr para os braços da pessoa que eu amo” (p. 136). Os

braços citados por Michelle, evidentemente, não pertencem a Lucas; dessa

forma, início e fim veem-se dispostos um diante do outro; e além, entrelaçados,

de modo a ser impossível a identificação incisiva de onde o início tem fim e o

fim se inicia.

Vida e obra, início e fim; em Palimpsesto, a realidade é reinventada a

cada página e tudo é possível. Com prosa certeira e personagens tão palpáveis

quanto a própria concretude dos dias comuns, o autor demonstra habilidoso

trato com as palavras e um profundo respeito às concepções de tempo e

espaço – de sugestão e apresentação. Seja na dramaturgia, nos versos, na

prosa ou qualquer face da arte já concebida pelo homem, Moisés Monteiro de

Melo Neto converge a um só termo: transgressor.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

CALEIDOSCÓPIO e PALIMPSESTO, dois novos livros (uma biografia e um romance) de Moisés Monteiro de Melo Neto

 

Não sei o que é o foco prioritário ao escrever sobre alguém, sempre quero saber mais e nunca penso em parar de escrever sobre o que gosto. François Dosse, em O Desafio biográfico, foi um dos que me serviram de inspiração para escrever esse livro, mas meu estilo é outro, bem diverso ao dele. Os planos de fundo que escolho são bem peculiares, nas escolhas dos meus ângulos fujo dos lugares comuns dos biógrafos.

Meu livro nada tem de oficialesco, limpo, chapa branca. Desde dois mil e quinze o STF liberou biografias não autorizadas, pois bem, comecei aí a escrever biografias. As biografias que escrevi são amálgamas.

 


CALEIDOSCÓPIO

A TRAJETÓRIA DE JOSÉ FRANCISCO FILHO

TRANGRESSÃO NO PALCO E NA VIDA

Uma pop-biografia de um artista recifense: como J.F.F. subiu ao palco, foi professor universitário e se manteve com a cabeça erguida, com amor, humor, dignidade, aventuras, gozo, sangue, suor e lágrimas

                                                                                                                               


(biografia escrita por Moisés Monteiro de Melo Neto)

 

 

 

 

Duvido de autores que dizem não praticar uma escrita rica de amálgamas. Busquei construir uma narrativa viva, mas não criando cenários, episódios, tensões, revelando vínculos, contextos de épocas diferentes, diferentes ensinamentos. No calor da escrita, quis saciar minha curiosidade. Ressaltar coisas vividas. É literatura, história e um pouco de jornalismo, mas é também arqueologia do saber, do fato criativo, fértil. Sugiro mais do que eu digo. É um texto de cunho biográfico, mas eu não evitei as licenças poéticas ao organizar as informações colhidas sobre J.F.F.

De tudo que coletei, busquei o mais fluido e colorido possível. Sou mais autor do que biógrafo, claro. Não fiz louvação ingênua, nem desconstrução do folclore teatral do provinciano Recife.

Meus amálgamas são misturas, movências. Houve mesmo prazer em trabalhar na investigação sobre. J.F.F. e fiz surgirem, ressurgirem vozes incontroladas, adormecidas. Heródoto (autor da história da invasão persa da Grécia, ocorrida no final do século V a.C., conhecida simplesmente como As histórias de Heródoto), ele foi colocado como o pai da história.

Muitos biógrafos buscam as particularidades das personalidades dos indivíduos, sem ressaltar nem qualidade, nem defeitos. É mais ou menos isso: criei apenas um amplo mosaico. Não sou um retratista de alma. Olhei pra J.F.F. como se fosse para um espelho, na verdade como uma sala de espelhos. Não era uma cronologia de fatos, o que eu buscava. Deixo isso aos jornalistas.

Ah, as biografias...só no final do século dezessete o termo biografia (isso é uma biografia?) surgiu no dicionário da Europa. Sabemos que na Escola dos Annales, na França (1929), Luciene Febre e Marc Bloch desprestigiaram o gênero biográfico. Queriam mais interpretação do que numeração de fatos. Escrevo pelo gozo da transgressão.

 Jacques Le Goff escreveu a biografia de São Luís e colocou em xeque as relações que existem entre a história vivida, a história "natural", senão "objetiva", das sociedades humanas, e o esforço científico para descrever, pensar e explicar esta evolução, a ciência histórica.

 Fala-se de micro-história. Será que é isso que estou fazendo ao contar episódios da vida de JFF? O historiador usa binóculo, o biógrafo lupa. Desertificaram a vida dos nossos astros do teatro recifense. Estou aqui para repovoar a de um deles. Sou um pesquisador e um sonhador, meio pedra e meio sonho. Quando eu entrevistava as pessoas que conviveram com o J.F.F., eu estava biografando parte da vida dessas pessoas também, jamais querendo fazer pedagogia moral. Não queria uma biografia seca, mas apaixonada. Escrevo sobre quem ou o que me fascina. Da massa caótica que reuni, ressurgiu um novo J.F.F.

 Não tenho pretensões de historiador: sou apenas contador de histórias e gosto de romper com a ordem cronológica, sempre. Gosto de apagar rastros, maquiar esforços, exaltar a nobreza atemporal. Escrevo sobre um diretor, mas percebo os seres e as coisas ao seu redor: ele não existiu no vazio histórico, no vácuo Trata-se de uma articulação com todos e tudo. Também não quero usá-lo como recheio de um sanduíche. Tentei não deixar mais de cinco parágrafos sem mencioná-lo. Sentei-o no centro.

Por que uma pop biografia? Pop também significa sem preconceitos, fugindo das armadilhas das biografias tradicionais, da “nobreza acadêmica”, mas elaborada, também, mesmo que paradoxalmente, a partir determinada tradição e de olho na indústria cultural. Trabalhamos a partir de fontes usuais e dos conteúdos do gênero biografia, mas com um olhar mais contemporâneo, defendendo a experimentação dialógica com a construção literária no sentido político e cultural.

Buscamos, nessa biografia de J.F.F., estampar formas da cultura que marcaram sua vida cotidiana, artística, afetiva, profissional, tendo em vista algumas formas de pensar e viver das pessoas que constroem seu tempo, devolvendo mais poder ao leitores e leitoras, para que sejam mais livres, talvez, integrá-lo às suas vidas.

Pierre Bourdieu alcunhou como ilusão biográfica uma espécie de ficção de si, apoiada em instituições de totalização e de unificação de si que direcionam a atribuição de sentidos e a busca de coerência aos acontecimentos considerados, pelo narrador, como mais significativos na história de sua vida, fiz isso.

Não quis explicar as coisas retrospectivamente. Encontram-se aqui os elementos que compõem a peça central e os personagens, mas a vida em si ninguém pode expressar. Também não gozo aqui da mesma liberdade que tenho quando escrevo ficção. Num misto de vida e literatura J.F.F. se ergue, se reconstrói. Sou como um artista mais ou menos sob juramento. Numa espécie de ilusão controlada. Busquei sinais, indícios, resquícios. Garimpei buscando a essência das minhas descobertas. Procurei aquilo que não se conhecia, ou não se lembrava, sobre o biografado, mas que poderia defini-lo para outras gerações, também.

A primeira parte do meu trabalho foi uma espécie de fichamento. Essa minha mania acadêmica, mas só para meu controle. Resolvi não expor explicitamente tais referências aqui. Substituí a ordem linear por um encadeamento diferente.  Algumas vezes eu voltava a um ponto da vida do biografado que parecia já estar resolvido em outra parte. Lembrar que todo discurso, parte de um lugar e serve a uma causa. Objetividade e imparcialidade são mitos? Era o que eu me perguntava.

Tratei de ouvir o outro lado. A busca documental era vertiginosa. A heteroglossia (a diversidade social de tipos de linguagens, produzida por forças sociais tais como profissão, gêneros discursivos, tendências particulares e personalidades individuais) bakhtiniana. Múltiplas falas de um mesmo sistema linguístico. Isso me assombrava nas variadas visões de mundo possíveis dentro das várias épocas vividas pelo meu objeto de pesquisa.

Todos temos várias faces, misturamos tantas informações. Será que eu conseguiria a face compósita desejada para expressar a trajetória do biografado, captar sua personalidade integral?

Busquei nas entrevistas com J.F.F. o que seria nele a escrita de si. E quis transcrever isso aqui nesse livro. Lembrando que o hoje tem maneira própria de selecionar os fatos e visões do ontem. Às vezes se dão as distorções inconscientes, as falsificações deliberadas (que não deixam de ser parte da verdade). Fantasias também são realidades que podem ser interpretadas, os silêncios são testemunhas que não falam.
Escalei as muralhas da intimidade zefrancisquiana sem feri-las sem me intrometer procurei não interiorizar as hesitações, não interromper as hesitações e silêncios dos meus entrevistados (como Ivonete Melo e Romildo Moreira, por exemplo). Eu não queria
bancar o invasor. Sempre entendi as variantes para cada história.

Percebo que a memória individual é bem seletiva possui falibilidades, criatividade, flexibilidade, as lembranças sofrem mudanças e redescobertas interpretamos as lembranças à luz do que veio depois, das necessidades posteriores. Surgem as reconstruções variadas, as sacadas posteriores, os códigos podem ser alterados e existem, também, as lembranças fabricadas, o que não era o caso.

 Às vezes ao me debruçar sobre o material colhido sobre J.F.F., eu espantava-me com o óbvio. Mas o que me excitava a imaginação não era a obviedade
era para o que isso apontava: a possibilidade de novas pistas Sentia-me um poeta do detalhe. Eu não pretendia analisar criticamente certas evidências, pois sabia que no fundo de tudo aquilo estava a teatralidade do meu biografado.

Era mais como se eu estivesse organizando um painel, orientado um jogral, juntando provas para um processo. Eu enfronhava-me no espírito da trajetória de J.F.F.  É isso: como se eu “calçasse os sapatos” dele, no sentido que os norte-americanos usam
essa expressão.

Eu queria oferecer ao leitor cenas de apelo sensorial e J.F.F. se transformava num nobre do povo. Perfumado, de bom gosto. Como se eu estivesse passeando com ele pelos locais onde tudo que está nesse livro aconteceu.

Repito, minha pior escolha seria contar tudo o que via do começo para o fim, em ordem cronológica. Eu não queria fazer o desenho para depois pintá-lo. Não. Decidi refazer tudo que tinha feito do modo linear. Eu não queria ser aborrecido, chato, lento. Gosto de velocidade. Eu queria que os leitores se identificassem com J.F.F. como se ele fosse um vizinho bom, de longa data. Mas eu queria apresentar um conflito, logo no início dessa, digamos assim, trama: a vida de um artista em forma de imagens de um caleidoscópio e as dificuldades que ele enfrentava para manter-se vivo em meio ao emaranhado de paixões e décadas. Como ele sai da areia movediça
da ampulheta do tempo, como na cena de um filme, em forma de biografia de cunho experimental.

Não era o tempo prouststiano da recherche (À la recherche du temps perdu) que eu buscava era o frenesi. Eu não queria fazer literatura, eu queria justificar esse livro e o que ele não é: um antiquário, um relicário carnudo. Eu queria que fosse como um ser vivo. Convidar o leitor para os detalhes quase imperceptíveis da fala de cada uma das pessoas que depõem aqui. Que esse livro fosse como um portal para uma existência. Um livro pirata, no sentido que Gilberto Gil usava quando era Ministro da Cultura e que eu amava. Transportar o leitor a um passado recente e colocá-lo numa mesa redonda, como fez o Rei Arthur. Como num brainstorm. Fazê-lo subir no palco, estabelecer nossa interlocução sem grandes esforços ou preocupação com um recurso especificamente cronológico reacionarista. Abrir um portal no tempo transformar-me em detetive, como aqueles que Humphrey Bogart interpretava, Raymond Chandler e Dashiell Hammett escreviam. Como um film noir, inspirado pelo Expressionismo, daqueles movimentados, com cenas em bares. Eu queria lançar as pistas, através de elementos prosaicos estabelecer um campo magnético numa rede de correlações, oferecer apenas o efeito do real, no sentido de Blanche Dubois tennesseewilliana e eu não ofereceria um objeto de cena que não fosse utilizado posteriormente, pois se assim não fosse, esse objeto não deveria estar lá. O leitor pode enumerar os “verbetes” /capítulos desse livro, ao seu modo.

Não queria que o leitor imaginasse, mas que ele visse, sentisse como se faz no teatro, o mundo do teatro, através de um dos seus maiores representantes: J.F.F.
Que, se possível, ficasse curioso. Que cada parte das divisões amplificasse as outras.
fosse acrescentando detalhes concretos até provocar um sorriso nesse leitor conquistá-lo para mais um parágrafo

Quis fundir personagem e enredo: um artista recifense, como ele subiu ao palco e se manteve com a cabeça erguida, amor, com humor, dignidade, aventuras, gozo, sangue, suor e lágrimas.

Eu tentei agir com moderação e cautela. Era um retrato escrito de J.F.F. que eu estava pintando. Eu queria entregar ao leitor minhas informações com prazer, e pensava no meu objeto de pesquisa com prazer, também.

Eu estava com a tendência a condensar o tempo, em algumas partes e em outras dilatá-lo, pois sabia que isso imprimiria ritmos diferentes ao texto não era questão de agradar ou não ao biografado exatamente. Era a necessidade que eu sentia de ressaltar certas declarações dos entrevistados e do material de pesquisa que eu havia coletado. Certos verbetes do livro são enormes outros minúsculos. O interesse era manter o leitor como quase presenciando, ouvindo o texto na hora. Acentuei as variações de perspectivas propositalmente, era como edições de vídeo, não acelerando muito ou tornando muito lento. Não era essa a intenção. Nem ficar abrindo e fechando cortinas sobre a cena nos seus interstícios, como num teatro mal feito. Também não quis
usar espaços de duas linhas para separar blocos dentro dos verbetes, e transgredir as regras sobre eles, ou usar asterisco central (seria necessário?) para dar respiro ao texto. Não dividir o livro em capítulos e fiquei titubeando se o dividiria ou não por partes, mas não encontrei motivos para dividir o texto total em, digamos assim, na linguagem teatral atos. Não havia gancho para isso.

Como mover a curiosidade do leitor até a página seguinte, o verbete seguinte? Era o que eu me perguntava. Achei interessante alongar partes como as sobre Rubem Rocha Filho e O Beijo da mulher Aranha. E também dar destaque à voz de Valdi Coutinho, o crítico teatral recifense que, além de ser dirigido por ele, falou muito sobre J.F.F. e foi um dos representantes da mídia brasileira (atuou durante décadas no Diário de Pernambuco). Também enfatizei as informações sobre o processo das montagens das peças Torturas de um Coração e A Barca da Ajuda. Ambas trazem no bojo propostas sobre a questão de um posicionamento firme diante da opressão, tirania, conservadorismo, homofobia dominantes na época e por aí vai.

Eu não queria ser um narrador. Queria que o encadeamento do meu texto sofresse bruscos cortes. Selecionava a partir do material que eu coletei, dando voz aos originais a cada um deles.

SOBRE “CALEIDOSCÓPIO”, o professor e multiartista teatral MARCONDES LIMA DISSE: “Se este livro está em suas mãos não é obra do acaso. Você o escolheu por algum motivo. Pode ter sido a curiosidade sobre a trajetória da personalidade “biografemada”, o apelo lançado pela conjunção das palavras transgressão+palco+vida, na segunda capa, ou a necessidade de conhecer os cenários e personagens envolvidos em tantos e tão ricos episódios desse drama da paixão de um homem pelo teatro. Se assim sucedeu, você não se arrependerá. Tudo isso verá deslizando por entre as páginas mais à frente. Se não foi, também está valendo. Não será exagero nenhum dizer que essa obra tem vida própria e que definiu quem seria seu autor. Do mesmo modo ela será capaz de eleger seus leitores, sejam pesquisadores, estudiosos do teatro, artistas ou pessoas comuns.  

Em seu corpo traz impresso o que promete na capa e contracapa: um caleidoscópio, uma pop-biografia de J.F.F que é Puro Teatro. Não como canta La Lupi, em tom de denúncia e desagrado, sobre um desencanto amoroso. Diferente do tipo descrito no bolerão, a pessoa que tem sua vida aqui oferecida em doses pequenas, como shots ou como hóstias consagradas, é das mais verdadeiras que já conheci. De uma sinceridade por vezes desconcertante, sem papas na língua, de extrema lucidez e confiabilidade. Dono de um bom humor que vai do fino ao grosso, sem pruridos, sem rodeios ou maneirismos floreados. Um criador multifacetado, capaz de encantar espectadores adultos e crianças, compondo com a mesma competência e destreza o tecido cênico de uma tragédia, uma comédia, um drama burguês ou histórico, uma fábula infantil ou poemas do romantismo brasileiro ou do modernismo português. Você verá como ele é capaz de ir do escracho à elegia. 

Aqui terá a oportunidade de se deleitar com a escrita de Moisés Monteiro de Melo Neto, quase como uma desmontagem cênica posta em palavras. Somente um artista também multifacetado e sem medo de purismos formais seria capaz  de promover o desnudamento sensível de um outro artista, em jogo de espelhamentos, como bem diz aquele que se define como “um retratista de alma”. A cronologia dos fatos foi propositadamente deixada para jornalistas, para historiadores. Se tomar a afoiteza do autor como inspiração poderá ler como quiser este livro irreverente. Do começo para o fim ou vice-versa, na ordem que mais lhe agradar, brincando à semelhança do que propôs Júlio Cortázar em seu Jogo de Amarelinha. A matéria é outra e os efeitos idem. Mas não deixe de ver nenhuma cena. Essa é uma daquelas narrativas que, em um piscar de olhos desatento, você pode perder de vista pérolas de inestimável valor.

Se o jogo fosse com cartas do tarô, o artista professor ou professor artista aqui apresentado, seria vinculado ao Le Bateleur, o primeiro arcano: o Mago ou Mágico saltimbanco, entre o malabarista e o cômico, entre o bufão e o cientista. Alguém cujo maior dom é fazer alquimias e transmutações cênicas. Um dos mestres que me fizeram embarcar nessa brincadeira séria que é o teatro. A primeira lição que tive com ele foi sobre a importância da diversão para quem está dentro e fora da cena. Sem isso pouca coisa importa. É assim desejo que seja a leitura desses lampejos sobre sua vida e obra. O francês Roland Barthes lançou a noção de biografema diante da certeza de ser impossível biografar na inteireza uma pessoa. Pois Moisés Monteiro de Melo Neto seguiu ao seu modo essa senha conceitual produzindo não uma sopa de letrinhas mas, sim, um delicioso milk-shake. Uma bebida servida em tragos, uma batida a um só tempo doce e ácida, sóbria e embriagada, de sabores leves e profundos, com uma complexidade que passa longe do aborrecido. Divirtam-se enquanto passeiam pela história do teatro moderno e contemporâneo em Recife, sem a pompa dos formalismos acadêmicos do qual tanto o biógrafo quanto o biografado são avessos, mesmo sendo a academia a casa dos dois durante muito tempo.” (Marcondes Lima)

 

 

 

 

O ROMANCE PALIMPSESTO, de Moisés Monteiro

Sob três olhares distintos, MICHELLE nos é apresentada de forma inusitada e plural. Inicialmente, LUCAS. Ele nos conta a sua versão da história da sua amada Michelle e os envolvimentos deles com a cena recifense dos anos 90. Aparentemente mais experiente que a mocinha, Lucas se apaixona pela jovem e tenta tê-la só para si apresentando um mundo atraente que a jovem não conhecia. Filha bastarda da empregada com o patrão, Michelle perde os pais num acidente de carro e é enfurnada dentro de um colégio de freiras pela madrasta a fim de se livrar da enteada que, mesmo bastarda, possui parte dos bens deixada pelo pai.

O enredo se desenvolve com a participação de EMERSON e MAGNO: dois homens distintos unidos pelo amor à Michelle. São três os que amam a jovem aparentemente tão indefesa, frágil e inexperiente formando quase um quarteto amoroso. Lucas, o primeiro narrador da história, jornalista e jovem visionário mergulhado na fantástica fase vivida pelo Recife na década de 90. Numa mistura entre caranguejos e coca cola, ele vai, aos poucos cercando e conquistando a protagonista. Magno, jovem rico e ‘dono do mundo’, meio irmão de Michelle e apaixonado por ela. Emerson, amante da (má)drasta de Michelle, Antonieta, menino de rua resgatado pela socialite, esperto e aproveitador das situações diversas vividas.

O fato é que Magno têm como arquirrival-inimigo o Emerson e bola um crime monstruoso para destruir de uma vez por todas a memória física e moral do rapaz. Impedida de se relacionar com qualquer um dos dois jovens atrapalhadamente transpostos, Lucas surge como o porto seguro de Michelle. Casam-se e vivem uma vida agradável.

O romance é dividido em três partes se assemelhando a um modelo de texto teatral. Moisés fantasticamente consegue dar cortes bruscos no enredo, mas sem despistar o leitor de vista. Ao contrário, o leitor se põe mais atento cada vez que uma nova parte se inicia.

A segunda parte da trama é narrada por um amigo de Lucas que não tem seu nome revelado. Aquele outrora jovem e visionário rapaz é apresentado agora como um homem já bem vivido, todavia, aparentemente cansado de viver. Entretanto, de modo não tão pleonástico cansado que o impeça de se envolver com Saluá, uma sexy mulher egípcia. De forma ligeira e delirante Lucas vive um romance ardente com ela nos seus últimos dias de vida. Michelle, que antes foi apresentada como frágil e indefesa, agora se torna uma mulher adulta, solitária e serena.

O mocinho Lucas parece ter sido trocado por um homem real. Muito distante dos contos de fadas e dos romances românticos. Trapaceiro em suas próprias pernas, às vezes, Lucas é, ainda assim, uma pessoa admirável. Um pouco futurista, ainda embebido pelo passado americanizado, sempre que possível, vislumbra e resgata na memória sua época de glória recifense.

Já Michelle, que pouco aparece nesta segunda parte dedicada a Lucas, foi parcialmente engolida por Saluá, sua faceirice e destreza. O amor de Lucas e Michelle, que parecia ser um romance quase platônico, foi trocado pela volúpia egípcia e enigmática de Saluá e Lucas. É esta jovem que comanda o bon vivant Lucas e não o contrário - como acontece na primeira parte do livro, onde é Lucas que comanda a relação com Michelle.

Por fim a terceira parte do romance é narrada pela própria protagonista Michelle. Lucas sai de cena por completo após sua fase in memoriam e agora Michelle tem a oportunidade de se mostrar por conta própria. Entretanto, não é o que acontece. A insegurança da personagem parece reger sua vida. Sem Emerson, sem Magno e, agora, sem Lucas, Michelle se vê atônita e incapaz de seguir uma vida plena, quando seus três alicerces não estão mais presentes com ela.

Michelle tenta se envolver com outros amores, mas sem sucesso. Não obstante, aos ares estudantis, surge um quarto homem em sua vida. De identidade e feições não reveladas, este homem é o oposto de tudo que os três homens anteriores eram: rápido, decidido, cruel?! Ligeiramente vão morar debaixo do mesmo teto e ligeiramente também o mesmo homem se vai da vida de Michelle. Apressado por Rosana Costa, amiga de Michelle há décadas sua amiga, o encanto do amado se esvai com uma traição carnavalesca premeditada por e com Rosana. Fica uma Michelle triturada em infinitos pedaços tentando se refazer, se entender.

Seria Michelle o grande problema da questão, afinal já se passaram quatro amores?! Ou seriam pseudoamores?! Moisés não nos revela isto. O que ele nos apresenta, com seguridade, é que estamos diante de uma trama de uma vida real: sem maquiagens, sem sorvetes, sem brilhos. São personagens comuns criados, eternizados e reaproveitados nas folhas do seu livro. Uma mulher comum rodeada de homens também comuns. O que nos prende é a inovação das ações e a habilidade em desenrolar o enredo além de conseguir driblar três narradores distintos.

De traços tipicamente memorialistas, o escritor, amigo e mestre Moisés Monteiro de Melo Neto, deixa transparecer, ora de forma discreta, ora de forma arraigada, traços da vida nesta azucrinada metrópole chamada Recife e dos que vivem nela; dos que vivem com ele próprio, dos que marcaram sua cena, deixando a dúvida do que é ficção e do que foi realidade na década de 90, a era do badalado Movimento Mangue, do qual são ouvidos ecos neste romance, entre rios, pontes e overdrives.

Palimpsesto parece ter sido escrito num único fôlego embora o título nos revele outra coisa. Como um tiro, este romance transpassa com força a mente do leitor. Um leitor que hoje pede tanta agilidade frente ao mundo cibernético. É um frenesi. São textos-chave em meio à modernidade.  O autor recifense reaproveita vidas comuns e as transforma num livro diferente e cotidiano.

A lemniscata aparece sempre na memória e se renova neste romance que parece não ter um fim próprio. E não tem mesmo, já que seus personagens flertam com personagens reais. Nossas vidas, ainda que aparentemente tenha um fim físico, se esforçam e se renovam sempre transbordando em novos olhares matinais. Imagino que este romance não tenha fim, pois, está acontecendo aí agora ao lado do leitor. Fim para Lucas e talvez para Michelle, mas não para suas ações. Para tanto, tomo a liberdade de colocar o símbolo do infinito em homenagem ao próprio romance que segue nas próximas páginas a fim de que não esqueçamos de que todo fim se renova, transborda e reluz.

SOBRE A 1ª VERSÃO DE PALIMPSESTO, quando o romance de Moisés ainda se chamava Michelle, o escritor Raimundo Carrero disse:


AS TÁBUAS DE MOISÉS

 

Moisés Monteiro de Melo Neto conhece os segredos da invenção, como poucos. Isto é, sabe inventar e sabe, sobretudo, harmonizar esta invenção, quando ela exige perícia e sacrifício. Os textos que tenho lido dele comprovam sua habilidade. Não se contenta com o óbvio e com o lugar- comum, vai adiante, investe nas especulações criativas. Reinventa.

 

O que se tem visto, quase sistematicamente, são escritores, mesmo aqueles mais jovens, repetirem fórmulas antigas, superadas, repetidas. No romance, por exemplo, quase não se avança mais na questão das novas fórmulas. Em Moisés, todavia, o caminho é diferente. Ele é capaz de revolucionar sem provocar dramas no leitor. Sem torturas e mágicas mal elaboradas.

 

Além do mais sabe ser sutil. As palavras nascem, vêm com leveza, montam a história, num clima quase de sonho, mesmo quando enfocam os caminhos mais cruéis. Esta é a impressão que me ficou de um dos seus textos mais recentes, o romance Palimpsesto, cheio de truques e arrebatamentos. Uma fábula fabulosa.

 

Se no teatro, Moisés tem o domínio do que vem (ou vinha) a se chamar de "carpintaria cênica", personagens seguros e determinados na criação, diálogos sóbrios e envolventes, cenas sequenciadas pela lógica da invenção, palavras definitivas e verdadeiras, situações trabalhadas. Inventando ou adaptando conquista pela convicção.

 

Tudo isso é resultado da extrema familiaridade com o texto literário: Conhece os melhores escritores, estuda diversas técnicas narrativas, elabora novas conquistas, enfim, desenvolve sua capacidade de inventar. Estou seguro de que se trata de um desses autores difíceis de esquecer. Para sempre. (Raimundo Carrero)

 

 

 

DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR: Moisés Monteiro de Melo Neto possui graduação em Letras (1992), mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (2011). É professor da UNEAL (Universidade Estadual de Alagoas) e da UPE (Universidade Estadual de Pernambuco). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, nas seguintes Áreas: Dramaturgia, Literatura Comparada, Estudos Culturais, Produção Textual, Literaturas em Língua Portuguesa, Cordel, Literatura Indígena, Representações dos Gêneros na Literatura, Bioficção, Literatura e História, Literatura e Cinema. É professor desde 1992. Autor de vários livros, dentre os quais: Abismos da Poeticidade, publicado pelo SESC, LITERATURA DE AUTORIA INDÍGENA E A REPRESENTAÇÃO DO ÍNDIO EM OUTRAS LITERATURAS, CIRCO MÁGICO ALAKAZAM (publicado pelo Governo de Pernambuco), Anticânone: literatura em Pernambuco, Movimento Mangue: Chico Science e outros artistas (2021).

Autor de peças teatrais que receberam menções honrosas e prêmios, Foi dramaturgista da peça Um minuto para dizer que te amo, vencedora de vários prêmios; atuou como colaborador do Suplemento Literário do Jornal do Commercio, Recife, nos anos 1990. Está na Academia Palmeirense de Letras. É pesquisador no grupo de pesquisa NEAB: Identidades culturais: preservação e transitoriedade na cultura afro-brasileira, da Universidade de Pernambuco. Faz parte do Programa de Mestrado em Letras (ProfLetras), oferecido em rede nacional, integra o Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Alagoas e também da Pós-Graduação em História, na mesma Universidade. Profissional: 30 anos de Magistério. Líder do Projeto TUPI Formação do Teatro Universitário em Palmeira dos Índios - Pesquisa e atuação: Teatro como instrumento pedagógico na prática do ensino de Literatura. Lançou no final de 2020 os livros 'Biografia, Autobiografia e Ficção: Literatura e História em Entrelaçamentos Vivenciais', e "Literatura africana de língua portuguesa. Tem participado de congressos, colóquios e encontros, mesmo durante a pandemia nos anos 2020/ 2021. Publicou vários dos seus cordéis e teve, em 2023, uma antologia deles organizada pelos Professores Bethânia Rocha (UNEAL) e José Nogueira (Universidade Federal Vale do São Francisco), lançado pela Editora Coqueiro, uma das melhores do país na área. Lançou pelo Sesc seu livro CALEIDOSCÓPIO, a biografia de um dos maiores diretores teatrais do país: José Francisco Filho. Seu romance PALIMPSESTO, foi selecionado e publicado pela Editora Paradox. Suas peças tem sido transmitidas pela Rádio Folha de Pernambuco. Teve publicados artigos científicos com os seus alunos. Ministrou o minicurso Literatura africana de língua portuguesa, pela UNEAL, integrando forças com o projeto do Lepdic, pelo Grupo. Professor no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). Atua no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena de Alagoas/CLIND-AL. Vem apresentando trabalhos em encontros nacionais como o 5º Congresso Nacional de Educação, junho de 2021. Em julho de 2021 organizou o livro LITERATURA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA PRÁTICA DE ENSINO. Compôs Banca Avaliadora no VII CONGRESSO INTERNACIONAL SESC DE EDUCAÇÃO (UFPE/SEBRAE) /2021 e do Prêmio Sesc de Literatura, 2022. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1186-7