Uma das tendências do romance contemporâneo é ter algo de autobiografia,
algo entre não ficção e ficção. Na era da pós-verdade que estamos vivendo,
esses conceitos se misturam. A
Estrangeira, de Claudia Durastanti, tudo se apresenta como charada, até se é
mesmo um romance. Os capítulos desse romance também poderiam ser lidos como
ensaios ou contos, e o conjunto da obra, como uma autobiografia romanceada.
"Minha mãe e meu pai se conheceram no dia em que ele tentou se jogar da
ponte Sisto, em Trastevere.” Assim, a autora inicia a narrativa. O capítulo
nomeado “Mitologia” busca uma espécie de origem anterior à sua própria
existência e escolhe como ponto de partida esse episódio digno dos mitos
clássicos. Descobrimos ainda que o cruzamento dos caminhos fez não apenas com
que a mãe salvasse a vida do pai, como também promoveu o encontro de duas
pessoas surdas. Pense na probabilidade de isso acontecer numa cidade do tamanho
de Roma. A menina que se tornou adulta não para de traçar
novos caminhos migratórios: para o estudo, para a emancipação, para o amor
irremediável. A alteridade se torna parte de seu espírito. História de uma
educação sentimental bastante contemporânea, A estrangeira cativa pela fluidez
de seu texto e de sua própria forma ― capaz de conter a geografia e o tempo. E
demonstra que a história de uma família, suas vozes e seus percursos, é, antes
de tudo, a narrativa de uma casa que pode estar em todos os lugares.
Desde as primeiras linhas, ela nos conduz com sua escrita segura, que
soa precisa e honesta, mas também sempre bem cuidada, autoconsciente da forma,
e vai nos enovelando na história. O estilo de Durastanti tem sido comparado ao
da norte-americana Joan Didion e da italiana Natalia Ginzburg , e podemos
pensar em ambas como suas conterrâneas. A autora nasceu em Nova York, em 1984, filha
de pais italianos e se mudou para a Itália ainda na infância. Atualmente, a
autora vive em Londres.
A editora Todavia convidou a poeta e tradutora Francesca Cricelli para a
versão. Ela, que nasceu no Brasil, se mudou para a Itália aos nove anos, mais
ou menos a mesma idade com que Durastanti foi para lá. Viveu ainda na Malásia,
na Espanha e na Índia. Agora, perto dos 40, mora na Islândia. Mais do que pelo
conhecimento dos idiomas envolvidos, Cricelli parece ter sido o par perfeito da
autora, talvez porque compartilhem uma intimidade profunda — a condição de
estrangeira.
Um pouco como Durastanti escreveu sobre seus pais —“Apesar do fim do
casamento, ela nunca se arrependeu de tê-lo afastado daquela ponte: ele era
surdo, ela também, a relação deles tinha algo mais profundo e íntimo do que o
amor”—, essa relação entre autora e tradutora resultou em belíssimo trabalho.
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