por Moisés Monteiro de Melo Neto*[i]
Que fazemos nós desde que nascemos, senão teatro, autêntico, válido, incoercível teatro?
A ficção para ser purificadora tem que ser atroz. O personagem é vil para que não sejamos...
( frase lapidares de Nelson Rodrigues)
1. Características de Nelson: Em Nelson, é a partir da tragicidade e do mergulho no inconsciente (onde estariam os rejeitos do consciente) que o desespero, o êxtase, o retorno do recalcado fazem a negociação intensa entre real, simbólico e imaginário (ou o poético). A linguagem é usada para livrar os personagens do sentimento de culpa. O inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique: um material herdado da humanidade, nele todos os humanos são iguais. Nelson busca essa raiz comum, dentre outras coisas e o faz de maneira um tanto quanto cínica e exagerada na expressão. Está atento ao perigo do homem se ligar ao papel (persona) e se esquecer de si. Mas o registro aqui vai além dos clichês freudo-marxistas e os põe em xeque. O choque de ricos / granfinos com pobres é também transgressão. Há que se estilhaçar esse painel rodriguiano e reorganizá-lo acentuando o que há de comédia, não de cômico, em Nelson, afastando-se do naturalismo, mas partindo da constituição realista.
2. O TEATRO E O ROMANCE: Gosto de O casamento, um romance lançado em 1966, censurado, como tantas obras deste recifense, considero-o uma das melhores produções do autor. Temos mais uma vez, como acontece nas peças um mergulho psicanalítico, ao modo dele, nas personagens. As técnicas utilizadas continuam as mesmas e os personagens continuam sufocados em busca de exercer sua liberdade a qualquer custo. Quando Nelson escreve peças de teatro vemos muitas rubricas, é como se ele quisesse dirigi-las, também. Já nas suas narrativas a construção do narrador facilita isso. Temos o autor mexendo todos os fios do enredo. Ele é áspero e ao mesmo tempo sedutor na sua técnica narrativa. Sempre leva muito da concisão jornalística. para compor o espaço de suas produções. Um Freud popular a tratar de certos arquétipos, aí o inconsciente e subconsciente dos personagens são descritos de forma ainda mais, grosso modo, íntima e quando as convenções sociais vão sendo desconstruídas por ele, vêm à tona instintos terríveis. São parágrafos de tirar o fôlego e não precisamos de atores. Nelson é personagem, ator e diretor em tais casos, além de sonoplasta iluminador, tudo. Nelson é um narrador tão bom quanto criador de cenas para teatro.
3. A FAMÍLIA EM NELSON: em Álbum de Família, Os sete gatinhos, Toda Nudez será castigada e outras peças o que vemos é algo aterrador, ácido de uma sordidez visceral. Discuti muito isso com o diretor Antunes Filho. Para Antunes esse viés de Nelson Rodrigues é algo similar a um desafio cósmico: desdobrar a totalidade da existência, dessa instituição (família) e de tantas outras; ele observa a sociedade no seu todo desdobrado em si numa estranha relação com a “realidade”. Nelson oferece uma catalisação em textos onde cada parte, estilhaça o contexto do todo, recompondo-o em superposições alucinantes. Isto é, cada acontecimento cruza o outro, em simultaneidade (tão presente na vida), em ritmo frenético. A mãe erotizada, a tia virgem, o pai adúltero e pervertido, os jovens depravados, a entrega explosiva na reunião familiar, os preconceitos explícitos e implícitos, tudo isso a girar num frenesi extasiante.
4. O RETRATO DA CONDIÇÃO HUMANA: NELSON faz nossos sentidos ficarem ligados em várias coisas, simultaneamente. Fazer o tempo comprimir-se ao ponto de explodir. Dá sua versão da condição humana através de um barroquismo típico de parte da sua escrita de ficção. É um texto de sentido dialético levado ao extremo e a verdade dramática, as formas estéticas, tempo, espaço e ação não se dobram a disposição de análises sociológicas ou psicológicas. Nele, o castigo pela nudez é também imagem caleidoscópica sempre aberta a um novo giro, novo desenho, oferecendo múltipla percepção e estabelecendo insólitas relações.
5. NELSON NO DIÁLOGO COM O SEU TEMPO E COM O NOSSO: “Quando com dificuldade não conseguimos entender ou ver claramente um acontecimento, seja em lugar público ou num espetáculo teatral, a nossa imaginação vem sempre nos socorrer preenchendo os vazios”, me ensinou Antunes Filho. Através de cenas articuladas de tal modo, que gestos e olhares, efeitos plásticos e sonoros, o texto rodriguiano é ao mesmo tempo retrato da sua época e sinal atemporal da nossa catastrófica sociedade. Nelson nos a uma percepção aguda, que não quer se alienar e que se mantém longe do convencional, em linguagem própria e dinâmica. Nelson visto ou lido no nesta década de 20 do século XXI parece uma visita ao Hades, sem possíveis Eurídices a resgatar, Ele ainda nos olha pelo buraco da fechadura do mundo dos mortos. O anjo pornográfico ainda paira sobre nós. Não é a poderosa música de Orfeu, é literatura esfuziante. O Brasil de ontem e o de hoje passam pelo crivo do seu anátema de escritor viril.
6. O TEATRO “DESAGRADÁVEL DE NELSON”: onde o ator é um servidor do poeta, sendo ele mesmo um poeta, um criador. É bom não esquecer que Nelson é também essa expressão brasileira, não através de filtros intelectuais ou conceitos generalizantes, mas de um farto material humano que é oferecido para a criação do ator.
7. COMO NELSON DEVE SER LIDO / VISTO ATUALMENTE? E você? Nunca pisou num rendez-vous? É um habitué? Conhece o método do nosso regisseur? Leu os registros anteriores? Sabe onde está se metendo? Tem conhecimento de causa? Acredita em anjo pornográfico? Nelson Rodrigues expõe sua arte sarcástica, pura e perversa demais. Ele desenha, pinta, arquiteta meticulosamente: mostra a prostitua da peça TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA: nem santa nem dominatrix, Geni é claro enigma do bordel Brasil. à sala da família. Ela é noiva, esposa, morta rediviva, muito além de Eros e Tânatos. Da cornucópia verbal do autor ainda estão intactos o sarcasmo e o humor. Nelson escrevia escutando ópera, seu método abarca tudo, suas dezessete peças ecoam tragédias para rir, são textos escandalosamente líricos. Este autor exibe de maneira primorosa seu implacável senso crítico na sua crítica ao cretino fundamental, aos imbecis que tentavam arruiná-lo. Pressinto dentro da mente oceânica de Nelson, um Pierrô de antigos carnavais, cheio de fúria, frustração, insatisfação ao constatar sempre que todos nós somos cruéis e ferimos, que o brasileiro é um cafajeste em seu complexo de vira-lata, no seu empate pior do que a derrota. Os personagens de Toda Nudez...detonam frases como “o ser humano é louco” (o maquiavélico Patrício), “eu mesma não me entendo”, “vou me entregar a qualquer um, na primeira esquina”, “beije meus sapatos, como eu beijei os teus”, “não quero nada senão um prato de comida e um canto para dormir” (a suicida Geni), “pederasta, eu matava”, “o menino serviu de mulher [...] o guarda viu, mas não fez nada” (a tia solteirona), “o sujeito mais degradado tem a salvação dentro de si, lá dentro” (o médico). Em seu folhetinesco mundanismo vermelho-sangue dito reacionário Nelson explorou os limites da virtude e do maniqueísmo em ritmo frenético, compulsivo, desconstruindo o senso comum. O câncer no seio que matou a falecida esposa de Herculano é o mesmo da praga rogada pela mãe de Geni à filha.
Para salvar a plateia, Rodrigues encheu o palco com seus “monstros”, quis forçar ao seu público um “pavoroso fluxo de consciência”. Suas frases curtas, o jeito malcriado de escrever, seu conhecimento das condições do gênero teatral. O bom teatro sacode o público, não teme o grotesco e questiona conceitos, afinal o homem só se salva se reconhecer sua própria hediondez, não é? O teatro é também uma espécie de expurgo, acerto de contas do ser humano com sua história, com todos os homens, com a vida e Nelson o faz de modo cético, sombrio e até... romântico. Sábato Magaldi enquadrou Toda nudez... como uma tragédia carioca, mas o que temos aqui, com essa montagem do CPT, é a voz de todos os homens e mulheres de todos os tempos e lugares.
Pausa.
Grito.
Rompe-se o limite entre lua de mel e separação final dos amantes.
Como anda sua nudez? Você pensa que sabe de tudo? Você não sabe de nada!
Moisés Monteiro de Melo Neto, professor da UNEAL, ao lado do já saudoso diretor paulista Antunes Filho, que tão bem encenou o dramaturgo recifense Nelson Rodrigues.