Pesquisar este blog

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

NELSON RODRIGUES: ONTEM, HOJE, SEMPRE por Moisés Monteiro de Melo Neto

 


                      por Moisés Monteiro de Melo Neto*[i]

 

Que fazemos nós desde que nascemos, senão teatro, autêntico, válido, incoercível teatro?

A ficção para ser purificadora tem que ser atroz. O personagem é vil para que não sejamos...             

                                                   ( frase lapidares de Nelson Rodrigues)


1.       Características de Nelson: Em Nelson, é a partir da tragicidade e do mergulho no inconsciente (onde estariam os rejeitos do consciente) que o desespero, o êxtase, o retorno do recalcado fazem a negociação intensa entre real, simbólico e imaginário (ou o poético). A linguagem é usada para livrar os personagens do sentimento de culpa. O inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique: um material herdado da humanidade, nele todos os humanos são iguais. Nelson busca essa raiz comum, dentre outras coisas e o faz de maneira um tanto quanto cínica e exagerada na expressão. Está atento ao perigo do homem se ligar ao papel (persona) e se esquecer de si. Mas o registro aqui vai além dos clichês freudo-marxistas e os põe em xeque. O choque de ricos / granfinos com pobres é também transgressão. Há que se estilhaçar esse painel rodriguiano e reorganizá-lo acentuando o que há de comédia, não de cômico, em Nelson, afastando-se do naturalismo, mas partindo da constituição realista.

2.       O TEATRO E O ROMANCE: Gosto de O casamento, um romance lançado em 1966, censurado, como tantas obras deste recifense, considero-o uma das melhores produções do autor. Temos mais uma vez, como acontece nas peças um mergulho psicanalítico, ao modo dele, nas personagens. As técnicas utilizadas continuam as mesmas e os personagens continuam sufocados em busca de exercer sua liberdade a qualquer custo. Quando Nelson escreve peças de teatro vemos muitas rubricas, é como se ele quisesse dirigi-las, também. Já nas suas narrativas a construção do narrador facilita isso. Temos o autor mexendo todos os fios do enredo. Ele é áspero e ao mesmo tempo sedutor na sua técnica narrativa. Sempre leva muito da concisão jornalística. para compor o espaço de suas produções. Um  Freud popular a tratar de certos arquétipos, aí o inconsciente e subconsciente dos personagens são descritos de forma ainda mais, grosso modo, íntima e quando as convenções sociais vão sendo desconstruídas por ele, vêm à tona instintos terríveis. São parágrafos de tirar o fôlego e não precisamos de atores. Nelson é personagem, ator e diretor em tais casos, além de sonoplasta iluminador, tudo.  Nelson é um narrador tão bom quanto criador de cenas para teatro.

3.       A FAMÍLIA EM NELSON:  em Álbum de Família, Os sete gatinhos, Toda Nudez será castigada e outras peças o que vemos é algo aterrador, ácido de uma sordidez visceral. Discuti muito isso com o diretor Antunes Filho. Para Antunes esse viés de  Nelson Rodrigues é algo similar a um desafio cósmico: desdobrar a totalidade da existência, dessa instituição (família) e de tantas outras; ele observa a sociedade  no seu todo desdobrado em si numa estranha relação com a “realidade”. Nelson oferece uma catalisação em textos  onde cada parte, estilhaça o contexto do todo, recompondo-o em superposições alucinantes. Isto é, cada acontecimento cruza o outro, em simultaneidade (tão presente na vida), em ritmo frenético. A mãe erotizada, a tia virgem, o pai adúltero e pervertido, os jovens depravados, a entrega explosiva na reunião familiar, os preconceitos explícitos e implícitos, tudo isso a girar num frenesi extasiante.

4.       O RETRATO DA CONDIÇÃO HUMANA: NELSON faz nossos sentidos ficarem ligados em várias coisas, simultaneamente. Fazer o tempo comprimir-se ao ponto de explodir. Dá sua versão da condição humana através de um barroquismo típico de parte da sua escrita de ficção. É um texto de sentido dialético  levado ao extremo e a verdade dramática, as formas estéticas, tempo, espaço e ação não se dobram a disposição de análises sociológicas ou psicológicas. Nele, o castigo pela nudez é também imagem caleidoscópica sempre aberta a um novo giro, novo desenho, oferecendo múltipla percepção e estabelecendo insólitas relações.

5.       NELSON NO DIÁLOGO COM O SEU TEMPO E COM O NOSSO: “Quando com dificuldade não conseguimos entender ou ver claramente um acontecimento, seja em lugar público ou num espetáculo teatral, a nossa imaginação vem sempre nos socorrer preenchendo os vazios”, me ensinou  Antunes Filho. Através de cenas articuladas de tal modo, que gestos e olhares, efeitos plásticos e sonoros, o texto rodriguiano é ao mesmo tempo retrato da sua época e sinal atemporal da nossa catastrófica sociedade. Nelson nos a uma  percepção aguda, que não quer se alienar e que se mantém longe do convencional, em linguagem própria e dinâmica. Nelson visto ou lido no nesta década de 20 do século XXI parece uma visita ao Hades, sem possíveis Eurídices a resgatar, Ele ainda nos olha pelo buraco da fechadura do mundo dos mortos. O anjo pornográfico ainda paira sobre nós. Não é a poderosa música de Orfeu, é literatura esfuziante. O Brasil de ontem e o de hoje passam pelo crivo do seu anátema de escritor viril.

6.       O TEATRO “DESAGRADÁVEL DE NELSON”:  onde o ator é um servidor do poeta, sendo ele mesmo um poeta, um criador. É bom não esquecer que Nelson é também essa expressão brasileira, não através de filtros intelectuais ou conceitos generalizantes, mas de um farto material humano que é oferecido para a criação do ator.

7.       COMO NELSON DEVE SER LIDO / VISTO ATUALMENTE? E você? Nunca pisou num rendez-vous? É um habitué? Conhece o método do nosso regisseur?  Leu os registros anteriores? Sabe onde está se metendo? Tem conhecimento de causa? Acredita em anjo pornográfico? Nelson Rodrigues expõe sua arte sarcástica, pura e perversa demais. Ele desenha, pinta, arquiteta meticulosamente: mostra a prostitua da peça TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA: nem santa nem dominatrix, Geni é claro enigma do bordel Brasil. à sala da família. Ela é noiva, esposa, morta rediviva, muito além de Eros e Tânatos. Da cornucópia verbal do autor ainda estão intactos o sarcasmo e o humor. Nelson escrevia escutando ópera, seu método abarca tudo, suas dezessete peças ecoam tragédias para rir, são textos escandalosamente líricos. Este autor exibe de maneira primorosa seu implacável senso crítico na sua crítica ao cretino fundamental, aos imbecis que tentavam arruiná-lo. Pressinto dentro da mente oceânica de Nelson, um Pierrô de antigos carnavais, cheio de fúria, frustração, insatisfação ao constatar sempre que todos nós somos cruéis e ferimos, que o brasileiro é um cafajeste em seu complexo de vira-lata, no seu empate pior do que a derrota.  Os personagens de Toda Nudez...detonam frases como “o ser humano é louco” (o maquiavélico Patrício), “eu mesma não me entendo”, “vou me entregar a qualquer um, na primeira esquina”, “beije meus sapatos, como eu beijei os teus”, “não quero nada senão um prato de comida e um canto para dormir” (a suicida Geni), “pederasta, eu matava”, “o menino serviu de mulher [...] o guarda viu, mas não fez nada” (a tia solteirona), “o sujeito mais degradado tem a salvação dentro de si, lá dentro” (o médico). Em seu folhetinesco mundanismo vermelho-sangue dito reacionário Nelson explorou os limites da virtude e do maniqueísmo em ritmo frenético, compulsivo, desconstruindo o senso comum. O câncer no seio que matou a falecida esposa de Herculano é o mesmo da praga rogada pela mãe de Geni à filha.

 

Para salvar a plateia, Rodrigues encheu o palco com seus “monstros”, quis forçar ao seu público um “pavoroso fluxo de consciência”. Suas frases curtas, o jeito malcriado de escrever, seu conhecimento das condições do gênero teatral. O bom teatro sacode o público, não teme o grotesco e questiona conceitos, afinal o homem só se salva se reconhecer sua própria hediondez, não é? O teatro é também uma espécie de expurgo, acerto de contas do ser humano com sua história, com todos os homens, com a vida e Nelson o faz de modo cético, sombrio e até... romântico.  Sábato Magaldi enquadrou Toda nudez... como uma tragédia carioca, mas o que temos aqui, com essa montagem do CPT, é a voz de todos os homens e mulheres de todos os tempos e lugares.

Pausa.

Grito.

Rompe-se o limite entre lua de mel e separação final dos amantes.

Como anda sua nudez? Você pensa que sabe de tudo? Você não sabe de nada!


Moisés Monteiro de Melo Neto, professor da UNEAL, ao lado do já saudoso diretor paulista  Antunes Filho, que tão bem encenou o dramaturgo recifense Nelson Rodrigues.






 

domingo, 7 de fevereiro de 2021

 

 Literatura de Viagem e Teoria do Conto

                                                                                        Moisés Monteiro de Melo Neto




 

             Comecei 2020, em Tanger, Marrocos, noroeste da África, às margens de um estreito que une o Atlântico ao Mediterrâneo e separa o país da Espanha (a alguns minutos de barco que utilizei algumas vezes). Ela foi cenário para muitos filmes como os de James Bond, Risco Imediato e Spectre. Fica a 14 km em linha reta da península Ibérica, palco de várias civilizações e culturas desde o século V a.C., fenícios, cartagineses, romanos (vi as ruínas) desde os berberes Foi disputada por vários reinos muçulmanos e cristãos. Hoje com um milhão e meio de habitantes é uma cidade cosmopolita do reino de Maomé VI, lugar multicultural. Passei o réveillon na boate do Hilton Garden, convidado por um engenheiro marroquino que conheci em Tarifa, comunidade autônoma da Andaluzia, dias antes. Dancei até de madrugada e bebi. Voltei no frio pelo calçadão à beira-mar, Estreito de Gibraltar, até a Medina, a cidade antiga, com suas ruas apertadas, sinuosas, deslumbrantes, onde estava hospedado. Entrei no meu quarto e fiquei a imaginar mil e uma coisas. Olhei-me no espelho: eu exalava vapores de amor químico, como se aquele momento significasse outra vida para mim, que me encontrava meio sem sonhos. Queria dar um tempo de tantas viagens na minha vida, mas o amor à estrada me impediu. No Brasil não havia mais “lar” para mim?  Hit the road, Jack! E eis-me no amanhecer do primeiro dia de 2020, meu olhar estrangeiro emergindo do meu oceano mental, como se fosse um submarino bêbado. Acordei no final da manhã. Deixei-me envolver pelo vento e senti que tudo era o que era, tautológico assim, como num alvorecer na minha mente de homem descasado, mas em mim havia muito mais do que sonhos. Saí do hotel sentindo-me renovado. Fui até um restaurante, lá embaixo.

     Chegando ali, sentei pensativo: assim é o mundo, uma fila que anda. Tudo muda, afinal. senti por Tanger uma irresistível atração, a sensação de que era um personagem de um romance cujo autor ao morrer, deixou inacabado em meio aos cacos de amor. Lembrei dos meus autores beatniks que escreveram sobre Tanger, tiraram fotos aqui: Kerouac, Ginsberg, Tennessee Williams, Bowles, Genet e pintores como Delacroix e Matisse que a retrataram. Enquanto o primeiro dia do ano avançava. Pedi um copo de chá de menta, olhando para o mar. 2020! Pensar no Brasil, lembrança longe, de brilho estranho e ilógico, me fez sorrir, embora estivesse à beira das lágrimas. Entrei numa espécie de transe. Pelos vidros observei as gaivotas que disputavam restos de comidas na beira da praia. Dois dias antes eu fora visitar o abandonado desde os anos 60, Gran Teatro Cervantes, aberto em 1913, estilo art nouveau, onde se apresentaram Caruso e atores de todo o mundo antes de se converter em cinema e até palco de luta livre. Olhá-lo só ruínas, numa visita clandestina, guiada pelo zelador, me entristeceu: parecia o Titanic no fundo do mar. Pensei na arte toda que assimilei e que fazia parte de mim, ali, naquela cidade litorânea cheia de história milenares, distante da minha prática diária de professor universitário, pesquisador e escritor. Uma adorável sensação estranha tomou conta de mim. A tarde ia se derretendo e a noite se anunciava quando o jovem garçom árabe se aproximou perguntando se eu queria algo mais. Misturando inglês, francês e espanhol, pedi um filé de salmão, cuscuz e figos frescos com calda. Ele anotou, sorriu e saiu. Eu buscava examinar naquele país as camadas de arqueologia dos que estiveram ali e daquele ponto, como no conto O Aleph, do argentino Jorge Luis Borges, viram o mundo. Sentindo-me um imperfeito estrangeiro, olhei no phone os meus olhos cor de chocolate. Reli o trecho final de O céu que nos Protege, ao celular, naquela semana eu iria ao Museu da Legação Americana, que também fica na Medina, antigo consulado em estilo mouro de 1821, pesquisar o acervo de Paul Bowles, autor que estudo. Depois, escutei algumas canções favoritas enquanto a noite estrelada e fria engolfava tudo lá fora, envolvendo-me numa proustiana sensação da busca do tempo perdido, como se eu extraísse minhas memórias de um compartimento secreto. De repente senti-me meio assim: fora do eixo, melancólico, mas equilibrei-me com humor, o mesmo acontecera na caverna de Hércules, no Cabo Esparte, no da anterior. Coisa de escritor, combinar palavras, desejá-las numa bravata da linguagem; como minha escrita meio poesia cinematográfica, humor ácido, mas um olho na tradição outro na vanguarda. O ar frio soprou vindo do mar. Comi e saí a andar pela Avenida à beira-mar. A atração gravitacional dos lugares que visito é que me chama, me atrai.  Não consigo resistir.



              De volta ao hotel a pensar que há pelo menos dois dentro de mim: um anda pela vida, outro pela literatura. Ainda na Avenida, parei. O céu parecia faiscar. Voltei ao meu quarto e liguei o notebook para revisar um texto meu que me intimaram a publicar, logo. Era sobre a Bioficção e deveria discutir também a Teoria do Conto. Eu não gostava do que tinha escrito, resolvi melhorar um pouco aquilo. Eis o material a trabalhar, começava assim:

            Chorei muito durante a viagem noturna, saindo do Recife.  Nos cochilos encontrava sobre a terra, e no fundo do mar, um tempo oceânico, uma luz, insubserviente, naquele verão dezembro se anunciava como um assobio, quente e salgado, num teatro de vozes sem rosto. Eu estava ali como quem foge, se entrega, luta, em gozo e dor, entre choques, indiferente exilado, desvendando problemas e soluções, espírito nada servil, num mundo cristalizado, na passagem das horas, sem ranços... pelos campos saqueados, solo vencido, natureza despedaçada ... espírito seco ... alma úmida ... sei lá ... vendo anjos na neblina da madrugada enorme ... dentro do ônibus interestadual. Tentando uma síntese de uma paradoxal limpidez mental. No verde, cinza, branco, pescando imagens pelas enormes janelas: árvore, flor na paisagem do dia amanhecendo como lâmina ligeira domando a vegetação sobrevivente; enquanto minha visão que velava o escuro, em compreensão sensível, intelectiva, jogava-me a alcances impossíveis, libertando as distâncias, seguindo, trafegando dentro do destino de uma nova manhã antiga, ia desconstruindo a estrada Sentia-me como quem vai desenrolando um fio dentro de um labirinto para não se perder. Sentindo-me como a sombra de uma nuvem correndo na estrada, sob a lua cheia. Olhei através da janela do ônibus. Tanta coisa ao longe: gente, bicho, mato. Eu, ali, naquela estrada de Alagoas, vindo do Recife, travessia, querendo dar às coisas não-sensatas, paixão e sentido, naquele novo alvorecer incerto da minha alma, manhã de novos perfumes, no tempo cósmico quase imóvel, cuja ilusão de movimento criamos no alheamento da paisagem passageira, como eu, no fim de madrugada veloz. Orei baixinho, por mim e pelos exilados deste mundo, nesta minha incursão, chuva com sol, viagem a trabalho, na Universidade. Estrada molhada, escrever-me num conto assim, híbrido, em livros, companheiros silenciosos de vida nos jardins do vento. Às vezes o ímpeto criador apossa-se de mim quase como um mal. Passo a vida olhando-a em dimensão universal e atemporal. O jogo dos homens? Brinquedo.

        Cheguei ao hotel e tentei dormir, após o café da manhã. Despertei depois de um sono inquieto e peguei um táxi para a Universidade. Entrei na sala de aula. Estava cansado. Há quantos anos ensinando? Quase três décadas. Uau! E agora solteiro... novamente: acabado um casamento que pensava seria para sempre. A disciplina era Teoria da Literatura. Havia apenas 13 pessoas na sala, uma delas, a monitora, gravaria a aula e me enviaria depois. Eu estava com a visão turva de sono. Não conseguira dormir direito no hotel São Bernardo. A aula era sobre a estrutura do conto: vamos lá: um só conflito, uma só ação. Bobagem, nem sempre era assim, pensei. Mas tinha que sustentar algo científico. Literatura era mistério profundo transformado em objeto lógico (pudesse ser o mais inusitado) por uma linguagem técnica. O conto: a narrativa deveria ser curta. Poucas personagens, presas às unidades de ação, tempo e lugar. Vejam Aristóteles, com sua velha épica, trágica Grécia que resultou em tanta África transposta para essa América em texto que a língua que roçava em tanta mistura. Segui: por consequência das unidades que governam a estrutura do conto, as personagens tendem a ser lineares. Por que disse isso? Prossegui: o conto expõe o personagem no clímax da sua existência cristalizado no tempo, espaço, personalidade, num viés particular do seu... caráter, como numa foto em que se fixasse o ponto onde não houvesse retorno numa situação humana, desumana, trans-humana. A estrutura deve ser bem objetiva, horizontal e de preferência narrado em terceira pessoa. Evitar-se-ia certo introspectivismo em nome de uma realidade viva Aí falei do microconto em Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Marcelino Freire. (autor que,  falando comigo, aconselhou “nunca escreva ‘respirou fundo’). Aí analisei a estrutura de “Os dentes de Berenice”, de Edgar Allan Poe, algo de “Os dublinenses”, de James Joyce e provoquei a turma insistindo numa diegese que fosse buscar o presente, o concreto, onde as divagações deveriam ser evitadas. Short story. E os limites com a novela? E O alienista de Machado de Assis? Poucas palavras: suficientes e necessárias, convergindo para o mesmo alvo. O dado imaginativo superposto ao dado observado. A imaginação, necessariamente presente, é que vai conferir à obra o caráter estético. Nunca entregar-se ao vago. Buscar a realidade concreta, se for o caso de realismo: a mimese, evitando abstrações desnecessárias trazidas pelo uso do rebuscamento. Contrário a isso temos Clarice Lispector, por exemplo. Devemos evitar armadilhas nas entrelinhas, segundas intenções, mas no primeiro caso, os fatos devem triunfar: ação antes da intenção. Agora vamos ao diálogo. Este é o elemento mais importante num conto. Para algo que se queira convencional, isto estaria em primeiro lugar; conflitos e dramas residem no diálogo, não no resto, nele residiria a discórdia, sem isso, não há conflito, ação. Palavras são signos e o diálogo é a base expressiva do conto: diálogo direto, indireto e interior, enfim. Que predomine o diálogo direto que permita uma comunicação imediata entre o leitor e a narrativa, pois o diálogo indireto em excesso, induz à falha; já o diálogo interior é expediente formal, complexo, difícil. A narração deve aparecer em quantidade reduzida, proporcional ao diálogo, ela é mais fácil que o trabalho coerente com o diálogo. Cuidado com o desenho acabado das coisas. O conto não é um retrato completo das personagens, é apenas conflito. A descrição ocupa lugar modesto, pois o diálogo, às vezes, dispensa cenário. O drama está nas pessoas e não nas coisas. Lembro-me aqui de certos contos que desdizem tudo isso e rompem com todas as regras que acham arcaicas. Vejamos como trabalhar o tempo no conto: no cronológico o leitor vê os fatos se sucederem numa continuidade semelhante à vida real. O conto, ao começar, já está próximo do fim. A precipitação domina o conto desde a primeira linha. No conto, a ação caminha claramente à frente. Todavia, como na vida real, que pretende espelhar, de um momento para o outro deflagra o estopim e o drama explode imprevistamente. A grande força do conto está no jogo narrativo para prender o interesse do leitor até fim, eis o enigma. Um final enigmático deve surpreender o leitor, deixar um convite à meditação ou deixá-lo pasmo perante a nova situação conhecida, ou com o rancor do estranhamento. O enigma pode diluir-se no decorrer do conto. Neste caso ele se aproxima da crônica ou corresponde a episódio de romance. O contista deve estar preocupado com o começo, pois das primeiras linhas depende o resto; não tempo para delongas: vá ao âmago da história. O início é a grande escolha. O contista deve saber como começar. A posição do leitor diante do conto é de quem deseja, às pressas, o antídoto para o tédio, o desenfado e, quem sabe? Certo deslumbramento perante o talento que coloca em reduzidas páginas tanta humanidade em chamas. O contista deveria sacrificar tudo quanto possa perturbar a ideia de completude e unidade. Mas o que dizer, diante disso, sobre uma contista como Agatha Christie? Nesse momento eu, paralelamente ao raciocínio sobre a aula, pensava em como resolver meu caso particular. Precisava concluir aquela exposição, quase mecânica. Eu estava muito cansado, queria voltar para o hotel, logo, mas sentia muito prazer em estar ali.

          A aluna enviara o áudio daquela aula e sua transcrição, como solicitei. Meu Deus, eu tinha que rever aquilo, depois. Adormeci sem saber a hora, cortinas fechadas eu ali, no centro de tantas ideias, em Tanger. Despertei. Comi uma fruta. Saí novamente, meio sonâmbulo. Veio a necessidade de ter contato mais íntimo com alguém igual a mim nas suas óbvias diferenças. No meu pensamento a pergunta inexprimível: o que fazer com os meus textos inacabados? Pondo um fim à confusão e ignorando quaisquer dúvidas, eu seguia com soluções práticas sobre a minha existência. Afinal, chega de aflições mundanas! O vento soprou o cheiro de mar e das plantas molhadas. No meu coração transparente alguém poderia ver a ebulição de minhas veias, o meu sangue? Nos momentos de medo sinto uma adaga invisível na minha mão direita e minha guarda pessoal fica pronta para o bom combate. Passou um bando de jovens, em erupção espontânea, barulhentos, uma garota me desejou feliz ano novo, em inglês. Desejei o mesmo. Sentei-me na semiescuridão numa mesa de canto de restaurante no calçadão, querendo ficar bêbado. Tive ideias sobre o texto que estava revisando e anotei no phone. Em poucos dias eu partiria para Lisboa, para o encontro com um romancista amigo meu, seriam dias bons. Se subi as ruas da cidade velha, cheguei ao bar do Cinema RIF, onde também está a Cinemateca, um dos meus lugares favoritos em Tanger. Pedi um sanduíche marroquino e uma cerveja Casablanca, minha favorita, no local. Bati um papo com um poeta local que foi caseiro do Rolling Stone Mick Jagger, que amava aquela cidade. E eu a divagar: o tempo transita, o futuro vem e vai na história do humano, cheio de injustiças dilacerantes e amor. Olhei para aquele escritor. O que sabemos nós uns sobre os outros, “de verdade? Seria a construção humana como um filme sem clímax nem desenlace? O tempo dá um jeito de continuar passando e diante de certas coisas novas que não se querem alterar, costumo rir de tal descompasso quando tentam conter o que não pode ser contido. O brilho da vida sempre está para acontecer. Quanto aos amanhãs: vamos lá, foco!  Ensinemos fraternidade às crianças do futuro! A vida continua e o conto acaba.



A Estrangeira, romance de Claudia Durastanti


Uma das tendências do romance contemporâneo é ter algo de autobiografia, algo entre não ficção e ficção. Na era da pós-verdade que estamos vivendo, esses conceitos se misturam. A Estrangeira, de Claudia Durastanti, tudo se apresenta como charada, até se é mesmo um romance. Os capítulos desse romance também poderiam ser lidos como ensaios ou contos, e o conjunto da obra, como uma autobiografia romanceada.

"Minha mãe e meu pai se conheceram no dia em que ele tentou se jogar da ponte Sisto, em Trastevere.” Assim, a autora inicia a narrativa. O capítulo nomeado “Mitologia” busca uma espécie de origem anterior à sua própria existência e escolhe como ponto de partida esse episódio digno dos mitos clássicos. Descobrimos ainda que o cruzamento dos caminhos fez não apenas com que a mãe salvasse a vida do pai, como também promoveu o encontro de duas pessoas surdas. Pense na probabilidade de isso acontecer numa cidade do tamanho de Roma. A menina que se tornou adulta não para de traçar novos caminhos migratórios: para o estudo, para a emancipação, para o amor irremediável. A alteridade se torna parte de seu espírito. História de uma educação sentimental bastante contemporânea, A estrangeira cativa pela fluidez de seu texto e de sua própria forma ― capaz de conter a geografia e o tempo. E demonstra que a história de uma família, suas vozes e seus percursos, é, antes de tudo, a narrativa de uma casa que pode estar em todos os lugares.

Desde as primeiras linhas, ela nos conduz com sua escrita segura, que soa precisa e honesta, mas também sempre bem cuidada, autoconsciente da forma, e vai nos enovelando na história. O estilo de Durastanti tem sido comparado ao da norte-americana Joan Didion e da italiana Natalia Ginzburg , e podemos pensar em ambas como suas conterrâneas. A autora nasceu em Nova York, em 1984, filha de pais italianos e se mudou para a Itália ainda na infância. Atualmente, a autora vive em Londres.

A editora Todavia convidou a poeta e tradutora Francesca Cricelli para a versão. Ela, que nasceu no Brasil, se mudou para a Itália aos nove anos, mais ou menos a mesma idade com que Durastanti foi para lá. Viveu ainda na Malásia, na Espanha e na Índia. Agora, perto dos 40, mora na Islândia. Mais do que pelo conhecimento dos idiomas envolvidos, Cricelli parece ter sido o par perfeito da autora, talvez porque compartilhem uma intimidade profunda — a condição de estrangeira.

Um pouco como Durastanti escreveu sobre seus pais —“Apesar do fim do casamento, ela nunca se arrependeu de tê-lo afastado daquela ponte: ele era surdo, ela também, a relação deles tinha algo mais profundo e íntimo do que o amor”—, essa relação entre autora e tradutora resultou em belíssimo trabalho.