“— [...] Está claro que eu nunca falei a
você sobre o que se fala de mim e não desminto. Mas em que podia ajuntar em
grandeza ou melhoria pra nós ambos, pra você, ou pra mim, comentarmos e elucidar
você sobre a minha tão falada (pelos outros) homossexualidade? Em nada. Valia
de alguma coisa eu mostrar o muito de exagero nessas contínuas conversas
sociais? Não adiantava nada pra você que não é indivíduo de intrigas sociais.
Pra você me defender dos outros? Não adiantava nada pra mim porque em toda vida
tem duas vidas, a social e a particular, na particular isso só interessa a mim
e na social você não conseguia evitar a socialização absolutamente desprezível
duma verdade inicial. [...] Quanto a mim pessoalmente, num caso tão
decisivo pra minha vida particular como isso é, creio que você está seguro que
um indivíduo estudioso e observador como eu há de tê-lo bem catalogado e
especificado, há de ter tudo normalizado em si, si é que posso me servir de
“normalizar” neste caso.[...] Mas si agora toco nesse assunto em que
me porto com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz
de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua (veja como eu
tenho a minha vida mais regulada que máquina de pressão) e si saio com alguém é
porque esse alguém me convida, si toco no assunto é porque se poderia tirar
dele um argumento pra explicar minhas amizades platônicas, só minhas.[...] Eis aí uns pensamentos jogados no papel
sem conclusão nem sequencia, faça deles o que quiser.”
Destrinchando certos aspectos no conto Ala´uddin e a Lâmpada Mágica,
traduzido do árabe por Mamede Mustafa Jarouche, buscaremos trabalhar que
elementos se refletem, coincidentemente ou não, na construção do
cordel Romance ou História do
Pavão Misterioso e que estratégias estão aí embutidas. Como são
representadas nestas obras, por exemplo, as mulheres. Como se dá o trânsito dos
personagens nestes mirabolantes enredos e que linhas ético-morais empolgam
estas histórias. Nosso cotejo busca a compreensão de como aí se dá o uso do
coloquial, dos localismos, da dimensão universal e como estão representados os
seres humanos em movimento. Como ambas as obras exemplificam que textos
literários nunca estão completos nem são estáveis? Como são tratadas aí as
questões de deslocamento e entrelugar, ou não-lugar, trânsito e das
manifestações sócio-culturais?
Palavras-chave: Cordel, Literatura árabe,
Orientalismo, Literatura de viagem
1.INTRODUÇÃO
Não
é de hoje que são percebidas intersecções entre a cultura árabe e algumas
manifestações da cultura do Nordeste do Brasil. Especificamente aqui destrincharemos
certos aspectos presentes no conto Ala´uddin e a Lâmpada Mágica
(utilizamos para nossa análise a tradução feita diretamente do árabe por Mamede
Mustafá Jarouche, no Livro das Mil e Uma Noites, volume 4. São Paulo: Globo,
2012); buscaremos neste espaço também trabalhar que elementos se refletem,
coincidentemente ou não, na construção do cordel Romance ou História do
Pavão Misterioso (do paraibano José Camelo de Melo Rezende; em 2013, este
símbolo maior da literatura de cordel completou noventa anos de publicação) e
que estratégias estão aí embutidas, também de que modo os cordelistas
imaginavam o Oriente, geralmente com estereótipos sugeridos desde obras como As
mil e uma noites, amplamente difundidas pelo mundo através de várias
mídias.
PROF. DR. MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO
2.ENCRUZILHADAS ENTRE O PAVÃO MISTERIOSO E ALA´UDDIN: FICÇÕES EM TRÂNSITO
Como
são representadas em alguns cordéis e na literatura árabe, por exemplo, outras
etnias e como se resolvem as questões de gênero? Vamos ao nosso recorte: No
Romance do Pavão Misterioso e no conto Ala´uddin e a Lâmpada Mágica, tanto Creusa,
do Pavão, filha de um conde, quanto a filha do sultão, a jovem dama Badrulbudur,
de Ala´uddin, são idealizadas como nobres donzelas, cujos encantos atraem a
cobiça de dois jovens subitamente por elas enamorados, conhecendo-lhes apenas a
beleza física, e do mesmo modo: vistas de longe, numa foto, inicialmente pelo
viajante do Pavão, ou num cortejo, por Ala´uddin, que por este amor também
ficará em trânsito por universos outros. Colocando estas obras em cotejo e
analisando como se dá este trânsito dos personagens nos mirabolantes enredos
narrados tanto para o assim chamado “vulgo”, pessoas não ligadas aos meios
eruditos, quanto para os intelectuais, percebemos que no caso de Ala´uddin ainda
se torna mais complexa uma pergunta: que relações aí se estabelecem entre o divino
e o maligno? Ora, a tradução de Jarouche, enfatiza o poder da fé muçulmana apesar
da trama original contrapor a feitiçaria à magia, ambas distantes dos ditames
do Alcorão. Já no Pavão Misterioso, paradoxalmente, e escrito mais de mil anos
depois dos contos árabes, tem-se uma solução científica (máquina voadora etc.) para
a magia lírica se desenvolver com tanta propriedade, lembremo-nos que o pavão
simboliza fogo, beleza, transmutação, a paz, prosperidade, fertilidade,
imortalidade. Tanto uma obra quanto a outra narram histórias de viagens. Os
personagens estão em trânsito, entre África, Grécia, China, Japão e outros
lugares tidos por alguns como exóticos e aí é também interessante notar como
teria se dado o trabalho dos copistas através do tempo ao descrever tais
espaços. No caso de Zé Camelo e João Melquíades Ferreira da Silva (outro grande
poeta, mas tido por alguns como “plagiador” do Pavão) criou-se uma celeuma
terrível, levando o primeiro à depressão, mas o Pavão ainda inspirou muitas releituras,
do mesmo modo que o conto/novela Ala´uddin vem inspirando escritores.
As viagens propostas por Sahrazad através dos
seus véus narrativos no
conto árabe trabalham com o deslocamento, na ruptura com a realidade
utilizando-se de recursos que tanto agradam a um espírito aventureiro quanto a
um moralismo familiar, caseiro. Os personagens
vão até onde as linhas ético-morais que empolgam estas histórias permitirem.
São jovens audaciosos que desnudam o recato de duas virgens ricas e bem
protegidas. O prazer sensual lateja à primeira vista neste nosso cotejo. Se
observarmos a estrutura vertical destas duas obras, numa amostragem
paradigmática, notamos que o motor, e moto contínuo delas é a realização de um
desejo juvenil de encontrar uma parceira, visto que em ambas fala mais alto o jovem
macho arrebatador, que chega para obter seu objeto de desejo: donzelas que
serão “ameaçadas” por um fogo muito especial, o fogo da atração carnal, mesmo
que “perfumada” de poesia e encantamento. Evangelista penetrando o quarto da
amada e Ala´uddin teletransportando para o seu quartinho pobre a garota rica
que ele deseja, numa quebra de hierarquia social e no caso do Pavão, o
intercurso se faz entre o capital e a nobreza.
Ao desconstruir os elementos embutidos e explícitos
tanto no cordel quanto no conto árabe, percebemos que o uso do da linguagem coloquial,
a oralidade latente nos textos e os localismos, não excluem uma dimensão
universal (naquele ponto em que lida com arquétipos humanos) e não é muito
difícil também perceber os toques que provocamohumor, através da ironia,
grotesco, patético e até do macabro, como na conclusão do conto Ala´uddin,
quando o gênio revela uma face mais demoníaca (ao ameaçar seu “amo”) e seu
poder de destruição torna-se perceptível. A representação destes dois heróis em
movimento, através da mágica de um gênio, ou do gênio de um cientista, faz tanto
de Evangelista quanto de Ala´uddin viajantes que adentram outras culturas e
comunidades de fala sem que isto sirva de empecilho às suas ambições. Pelo seu
poder de inspirar recriações, ambas as obras exemplificam que textos literários
nunca estão completos nem são estáveis, quando geram inquietações, revisões,
cópias com pequenas ou radicais mudanças. Neles as questões de deslocamento e entrelugar, ou não-lugar, trânsito e retrato das manifestações culturais variam de
acordo com as adaptações. Em Ala´uddin, nesta versão
que abordamos aqui, por exemplo, os judeus são representados enfaticamente como
desonestos e traidores da pior espécie, principalmente quando se trata de um
incauto muçulmano. Os judeus seriam “mais maliciosos que os demônios”,
trapaceiros. Já as mulheres teriam pouco juízo, seriam falsas, assassinas,
mentirosas. Nas duas obras são submissas
ao poder masculino.
Apesar
de vencer através da magia numa sociedade islâmica (“temente a Deus”, p. 98), Ala´uddin
é poupado de maiores questionamentos sobre seu modus operandi e o jogo entre o divino e o maligno (“louvado seja
Deus contra os demônios”) se dá de modo que
o que apontaríamos como legalidade
cotidiana, é preservada, embora as situações sejam absurdas, inclusive quando
se trata de locomoção. Em certo momento, o pavão metálico de Evangelista
esconde-se numa palmeira; já em Ala´uddin, cujas viagens se dão num passe de
mágica, um palácio com milhões de requintes surge do dia para noite sem que
haja um estranhamento maior, a não ser por parte do “vilão”, o vizir que quer
seu filho casado com a nobre que Ala´uddin corteja.
Entre o
mágico e o estranho seria desnecessário aqui questionarmos se a ambiguidade ou
o trânsito entre o real e o fictício estaria mais em tais narrativas ou no
leitor, mas podemos notar que as rasuras nas fronteiras entre as delicadas
relações do “real” com o puramente “imaginário” apontam para uma influência do Orientalismo na construção do Pavão, cuja
máquina equivale a um tapete voador. Os pontos em comum nos textos estão
presentes também nas linhas ético-morais que empolgam estas histórias. O real possível é amalgamado com o onírico, o
absurdo, o simbólico, e desorganiza-se a ordem através da ruptura com o
habitual/convencional contrapondo-a ao mundo do maravilhoso e fascinante, do
grotesco, do terrível, também, e do inconsciente, de modo surreal se
opondo a um falso “realismo” (que supõe que literatura pode ser completamente realista).Este jogo literário, mais do que afrontar o
senso da realidade, faz-nos ampliar nossa imaginação até o limite. São narrativas dubiamente não-racionalistas,
não-realistas, onde as situações
inusitadas misturam-se com o real cotidiano. O Pavão Misterioso é um artefato de invenção
fantástica, geradora de espanto, metamórfico bicho-máquina. Já a história das mil
e uma noites tem encantado leitores/ ouvintes aqui no Brasil e exemplifica
algumas técnicas e temas, como estas viagens “mágicas” do conto árabe.
3.OURO DE TOLO
Há
parcialmente uma eliminação de certos vernizes moralistas principalmente no
trato de imagens simbólicas e identidades fragmentárias, e o que percebemos
tanto no cordel quanto no referido conto árabe são encenações de fantasias em
intensidade muito maior do que qualquer tom de denúncia social, no caso da
posição da mulher na sociedade árabe, por exemplo, ou da doxa, o discurso da divisão de classes; favorece-se nos dois
textos, isto sim, o “inter” como o entrelugar onde o hibridismo se articula num
processo de tradução e negociação. O simbolismo do ouro, é de certo modo a
grande força motriz das duas narrativas, quer seja gerando possibilidade de locomoção
ou mesmo como símbolo de poder e triunfo, mesmo que aparentemente esteja mais
destacada a força do amor (atração física?) e do empreendedorismo. O aparelho
estatal do funcionalismo público representado pelo sultão e pelo vizir do conto
Ala’uddin e a lâmpada mágica faz-nos refletir que nesta obra cada um vale pelo
ouro que possui. É o caso, sutilmente oculto no Pavão Misterioso, de
Evangelista e seu irmão mais velho João Batista, filhos de próspero capitalista
turco. Mas parece que tal moeda de troca não passa de mias um dos recursos que Sahrazad,
a narradora deAla´uddin, lança mão com
sua astúcia, criando um mundo fantástico que engrandece a si mesma aos olhos
dos seus interlocutores (e dos seus leitores) sedentos de curiosidade que ela
só excita com suas histórias entrecruzadas. Assim podemos abrir um leque de
possibilidades para interpretar tais textos, observando neste discurso sempre
uma camada de significação suplementar, o entrecruzamento de várias vozes, umapluralidade, de outros discursos superpostos, que provoca o descentramento, usando dentre outros
recurso imagens oníricas. Lembremos que
no sonho o espírito afasta-se da sociedade, mas na realidade, a percepção vem
impregnada de lembranças e que o grande instrumento socializador da
memória é a linguagem. Amalgamando o
que ela extraiu da experiência dela ou (re)contando o que obteve por outros,
tal narradora torna tal experiência como sendo também, a partir dali, daqueles
que ouvem a sua história.
Já
a viagem fantástica proporcionada no eixo narrativo que impulsiona o amante do Romance
do pavão misterioso, dá-se em versos provocantes, permeados de um otimismo do mesmo
modo que a narrativa árabe, só que composto por sextilhas em redondilha maior.
Vamos aos pontos em comum na sua trama com a história de Ala’uddin. Por
exemplo: a maneira como o jovem se introduz no quarto da amada, o susto dela,
comparam-se ao artifício usado n’ As mil e uma noites. Já a maneira como se
tece história dos irmãos João Batista e Evangelista, filhos de um capitalista
turco (Batista viaja para o Japão e Grécia), assemelha-se ao artifício do
enredo de Ala’uddin (que se teletransporta para o Norte da África). Ao ver uma
moça proibida, que saía raramente e ninguém poderia sequer falar com ela, filha de um poderoso tirano. Batista consegue uma
foto de Creusa e entrega ao irmão, Evangelista (na Turquia) e este se apaixona
pela figura da dama, vai até a Grécia para tentar conquistá-la a qualquer
custo. Lá, ele entrega sua fortuna a um engenheiro e obtém sua máquina
fantástica um Pavão de Alumínio capaz de voar ao quarto da amada, no alto do palácio
do Conde, pai dela. O fantástico se desenvolve a partir daí numa história que
poderia integrar As mil e uma noites. O aeroplano misterioso tem, através do
zoomorfismo, participação fundamental na trama rocambolesca (que não dispensa
rendas, sedas, olhares fascinantes e um lenço com poderoso narcótico). Se o
suspense sherazadiano mantém o leitor preso pela oralidade do texto como num
torpor, isso aqui também acontece com a história de Evangelista e seu pavão, o
“monstro de alumínio”. Depois de muita peleja a moça confessa (“descobriu-se”
subitamente assim) que é reprimida pelo pai e se entrega ao amor de Evangelista
que, raptando-a, leva-a a Turquia e com a morte do pai dela, a sogra dele
posteriormente, abençoa a união.
É
claro que quanto à narrativa e seu estofo fantástico, temos, no caso do Pavão,
vários artifícios tipicamente ligados à literatura do Nordeste do Brasil em
forma de Cordel (como o intrincado problema a ser
resolvido pela astúcia do herói fiel ao seu amor em meio a confusões, mas com
relações sociais bem hierarquizadas, num universo que lembra o da nobrezaeuropeia dos condes, duques, castelos
etc.), mas há também a reafirmação da mulher como objeto de beleza e
quase como mercadoria a ser adquirida, levada para casa, do pai para a do seu
novo senhor: o marido. O mesmo tipo
de garota, os mesmos problemas, quase o mesmo tipo de pai, o patriarcado se
entrelaçando ao sutil jogo social machista. Com o real subjugado pelo onírico
em cenário de Oriente árabe, dá-se o rapto da nobre donzela. Estes textos, ao
sugerir a impossibilidade de uma verdade única, instalam-se como um meio de
acesso a uma nova visão cultural, mesmo que de forma fantástica. Rompem com as
relações solitárias de sujeito com a verdade
imposta, poetizando a experiência do
viajante, enlaçando contradições e “coincidências”, abalando “certezas”
universais e/ ou transcendentais, autorizando as diferenças, negociando entre
os polos, em contraposição às conveniências e aparências que regem o jogo
social. Catalisando misteriosos detalhes secretos sabendo que tais detalhes da
vida só adquirem existência quando encontram palavras e gestos com que
expressar (numa determinação literária poética) os anseios, desejos, sofrimentos
e gozos. Dirigem-se ao sujeito/ leitor a partir de um outro lugar, diferente do lugar-comum dos discursos de
autoridade e oferecem-se como experiência cultural em trânsito, em fusão,
compartilhada de forte interpenetração
imaginária, ao mesmo tempo em que interpela diretamente o indivíduo leitor em
seu isolamento, instaurando-se como ruptura, apóstrofe, apelo aos sujeitos
sugerindo universos paralelos.
O
coletivo e a invenção individual vão sendo re-elaborados continuamente num
sistema de oposições e correlações que quer ser espelho de uma situação em que
muitas representações e processos, encontrem seu lugar. E nestas vivências de
diversidade e de ruptura e outras tendências, tanto o citado cordel quanto o
conto árabe articulam o seu caminho por entre as frágeis malhas da rede de
informações que lhe chegam através de outros textos e desta rede de interlocuções provém uma escrita que
interroga a falência dos enunciados de verdade, que faz do Outro um reflexo, ou
uma construção incapaz de oferecer qualquer garantia. Descentraliza a verdade
reconstruindo sua significação, questionando, usando a linguagem contra a
tirania do Um, sem ocupar um lugar de autoridade e buscando a interlocução,
transformando poesia em tática, busca legitimação simbólica sem a pretensão a
fundar uma exceção perversa.
Há
em Alau´ddin ideias que compõem o orientalismo, a cada página reforçado. O politicamente incorreto passa por
sedução de menor, cárcere privado, corrupção generalizada, mesclados ao
sobrenatural e ao fantástico. O texto árabe utiliza a narradora apenas como
exercício para o salto, atira-se num vaivém estonteante entre piedade e
perversidade ao tratar da história de Alau´ddin, (que em árabe significa: “elevação
da fé”,“enfeitiçado”), filho de um
alfaiate pobre na China, rota árabe, garoto sustentado pela mãe, pícaro
apaixonado por rica donzela, anti-herói que assumirá caráter principesco
através do sobrenatural, introduzido ao fantástico pelo personagem do
feiticeiro Magrebe (do Norte da África) que se passou pelo seu tio e seduziu-o
para conseguir a lâmpada mágica. Temos da quingentésima décima quarta noite
(514ª) à sexentésima vigésima quarta (624ª) noite árabe um jogo de vale tudo,
com direito a teletransporte, palácios, árvores, frutos etc. feitos em ouro e
pedras preciosas, exércitos e haréns tirados do nada só para o deleite do jovem
Ala´uddin e dos seus, a isso se mistura o alcorão (JAROUCHE, 2012, p.23) tudo
em tom coloquial. A jovem dama Badrulbudur, filha do sultão e que poderia ser
matriz da personagem Creusa, do Romance do Pavão misterioso; surge num clima
fantástico reforçado por comparações hiperbólicas: “erguem o véu, seu rosto
cintilou como se fosse sol brilhante ou pérola resplandecente”, “mágica no
olhar”, “flores nas bochechas” etc. (JAROUCHE, 2012, p.48). O clima fantástico
inclui o teletransporte. Não há um tapete voador nem pavão metálico, mas um colchão
é usado com tal função (JAROUCHE, 2012, p.63) e é sobre ele que a virgem será
entregue a Ala´uddin, intacta, mesmo já casada com o filho do (“invejoso”)
Vizir.
4.CONCLUSÃO
Todas
as incoerências das duas tramas são abafadas por um clima da mais completa
naturalidade. Dezenas de pessoas bem vestidas saindo subitamente do casebre de Ala´uddin
e sua mãe, onde mal cabiam duas pessoas, “corcéis que não existem no mundo”,
eunucos, “criados e criadas cuja beleza deixaria pasmado qualquer vivente” (JAROUCHE,
2012, p.79) não espantam a população, muito menos o leitor/ouvinte, já preso
aristotelicamente por uma coerência interna habilmente traçada. Ambas as obras
apresentam noites que nem Alexandre, o grande, viveu iguais em “melhores
tempos” tudo na força da magia e da técnica. No final, a corte e o povo adoram Alau´ddin, que é conhecido pela
imensa generosidade e nobreza (antes era malandro):
“Deus no céu e Ala’uddin na terra” (JAROUCHE, 2012, p. 90). Ele é um autêntico muçulmano que, dentre outras
características, para no rio para “abluir-se”, fazer “prece matinal” etc. (JAROUCHE,
2012, p. 99), mesmo tendo feito um pacto com seu gênio e estar pronto a cometer
crimes. O final do texto envolve o leitor ainda mais no clima fantástico: um
pássaro chamado roque, capaz de
carregar “camelos e elefantes entre as unhas, e voa com eles graças ao seu
tamanho” (JAROUCHE, 2012, p.111) seria invocado por capricho do casal real (Ala´uddin
e a sua esposa), por malícia do irmão do feiticeiro que Ala´uddin assassinou e
que busca mais poder e vingança, só que tal ave era algoz dos gênios, mas tudo
se resolve a contento e a narradora diz “isso não é nada comparado ao que irei
contar na próxima noite, se eu viver” (JAROUCHE, 2012, p.115).Ao interseccionar várias realidades, ela vai
lembrando e contando, fugindo do esvaziamento e da desvalorização nesse
processo. Esta narradora tem seu lócus instalado numa espécie de vórtice do
tempo, em meio a lutas pela sobrevivência e o desejo de inebriar os que prestam
atenção à sua narrativa num tom coloquial / sensual dá sabor ao texto e o faz fluir.Já na trama do Pavão Misterioso, Evangelista depois de
mirabolantes reviravoltas traz sua amada ao seu país, a Turquia, raptando-a, o
pai dela morre, do mesmo modo que o pai da noiva árabe termina aceitando com
naturalidade a riqueza do genro. São os casamentos entre ricos de berço, novos
ricos e nobres. Resta aos leitores além do deleite com as obras, a riqueza da
reflexão transtemporal, do gênio que
sai obediente da lâmpada à viagem no pavão misterioso: ficções em trânsito, não
importando tanto se o leitor é conduzido num colchão voador árabe ou nas asas
de um pavãocriado na Paraíba.O enigma da linguagem é um dos
mais excitantes da humanidade. O local da diferença é também lócus para
desenvolver projeções de amor e ódio fazendo o apreciador de uma obra artística
deslizar constantemente de uma posição a outra, provocando o colapso da
certeza. Ala´uddin e o Pavão Misterioso são textos que tentam (re)construir
narrativas do imaginário social de dois povos, o árabe e o do nordeste do
Brasil. Nada que seja estático é do povo, pois este é instável, inclusive na
sua significação cultural; se a história é pedagogia a cultura do povo é antes
de tudo performática, moldada no momento em que se expressa. Tal urgência exige
muita (re)negociação de tempo, termos e tradições.
Referências Bibliográficas
CAMELO
DE MELO, José. História do Pavão
Misterioso, 3ª edição. Campina Grande: Memorial do Cordel, 2003.
JAROUCHE,
Mamede Mustafá.Livro das Mil e Uma Noites, volume 4. São Paulo: Globo, 2012.
Falar
em língua latina é falar da imprecisão do termo e da sua divisão em períodos,
os quais se ligam, de certo modo, à história político-cultural de Roma. Durante
sete séculos de Império Romano, do século III a.C. ao século II d.C., ou até mesmo
ao século V d.C., a língua latina conservou uma aparente fixidez, mas que escondia uma mudança radical que existia na estrutura interna da língua,
resultado da evolução do latim que
continuava prosseguindo. Assim que se deu a ruína do Império Romano Ocidental e
de sua civilização, os resultados dessa mudança se manifestaram rapidamente. Na
fase das origens, período que se costuma situar entre os séculos VI e IV,
crê-se que o latim era relativamente uniforme, sendo foco irradiador dessa
unidade o cerne de Roma, com o latim
arcaico, uma língua de camponeses, com forte influência do
indo-europeu.
Prof. Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto
Um
dos principais fatores de divulgação
(extensão ou implantação) do latim no vasto Império Romano foi o exército. O soldado romano ensinava a
sua língua e a sua pronúncia, mas ao mesmo tempo aprendia a prosódia e a língua
de seus companheiros. Formava-se assim um latim
um pouco mestiçado, pois se casava
com os dialetos afins e por isto
mesmo apresentava arcaísmos condenados em Roma. Quando os romanos
começaram a se projetar, o latim era um mosaico
de raças.
O
latim é na verdade a língua dos dominadores da região. Por volta do ano 500 a.C., Roma conseguiu expulsar os
etruscos, originários do norte de Roma, que tinham estendido seus domínios
a Roma. Sucederam-se várias guerras na expansão de Roma, desde 500 a.C. a 117
d.C. Forma 301 províncias. Destacam-se por ordem cronológica algumas datas
importantes: Em 494 a.C. uma tropa armada de plebeus – que falava o sermo
plebeius reivindicando igualdade de direitos, principalmente a de
ocuparem cargos públicos: trata-se da 1ª greve de que se tem notícia. Somente
em 287 os plebeus conseguem ocupar todas as magistraturas. Em 272ª. C., todo o
território da Itália faz parte da confederação romana e praticamente todos os
povos se submetem ao direito romano, pagando impostos e obrigando-se ao serviço
militar. As guerras contra Cartago, potência
naval no séc. III a.C., ocorreram depois de subjugados os povos da Itália (conflitos envolvendo Roma e Cartago pelo
domínio do Mar Mediterrâneo. ... Cartago, localizada no Norte da África, era
uma antiga colônia fenícia. Ao longo dos séculos III e II a.C., Roma e Cartago
travaram três guerras, que demonstraram a força militar das duas
cidades.). Como consequência da 1ª guerra púnica (269-241 a.C.),
anexaram-se a Sicília, em 241, a Sardenha e a Córsega, em 238. Depois da 2ª
guerra púnica (218-201), vencida por Cipião, o africano (antes também por
Aníbal), os romanos passaram a chamar o Mediterrâneo de Mare Nostrum. Com a 3ª guerra púnica (149-146), os romanos
destruíram Cartago e apoderaram-se do norte da África, que se tornou
província romana. Expandindo-se em várias frentes, Roma incorpora a Hispânia em
197, o Illyricum em 167, a Grécia (Achaia), em 146, a Ásia Menor em 129, a
Gália Transalpina foi a grande conquista de César em 51-50. Outras conquistas:
Egito (30 a.C.); Britânia (43 d.C.), com o Imperador Trajano houve as últimas
conquistas, entre 114 e 117 d.C., incorporando a Arábia do Norte, a Assíria, a
Armênia e a Mesopotâmia. A latinização
não teve a mesma profundidade em todas as províncias. No Oriente foi bastante
superficial; a Hispânia e a Sardenha exigiram dois séculos para uma romanização
efetiva; outros territórios como a Britânia nunca foram romanizados, mas há marcas do latim por toda a parte.
Fala-se, portanto, em fases da língua latina, que vão desde as suas primeiras
manifestações, ou seja, desde a fundação de Roma (753 a.C.), representada por
algumas inscrições, até a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.).
Sobre
o Latim arcaico: a mais antiga
inscrição latina, data de aproximadamente 600
a.C., é um latim dialetal: “MANIOS MED FHEFHAKED NVMASIOI” = “Manius me
fecit Numerio” “Manios me fez para Numério”. Trata-se de uma inscrição em uma fivela de ouro, encontrada em Preneste
(hoje em dia Palestina), por isso o nome “fíbula prenestina”. As características dialetais e arcaicas
que estão presentes nessa frase são: a conservação do ditongo oi, observada em numasioi, um dativo (depois, o i final
cai, e a desinência de dativo passa
a o), a conservação do s intervocálico, que
no latim muitas vezes sofre rotacismo
(como no caso de flos, floris; honos, honoris), e a reduplicação do
pretérito perfeito fhefhaked, além da desinência secundária em d.
No
latim arcaico era feced, forma atestada em uma inscrição, chamada de “vaso de
Duenos”. Depois esta forma evoluiu para fecit
. Fhefhaked, como se disse, é uma forma dialetal do pretérito perfeito
com redobramento. É interessante notar ainda, nesta inscrição, a posição
medial do verbo, que contrasta com a posição mais normal de ser encontrada
no latim clássico, que é no fim da frase.
Uma
parte notável das tendências do latim vulgar, além de já estarem
presentes no latim arcaico, resultam da estrutura do indo-europeu e se
verificam em quase todas línguas europeias. São exemplos comprovados pela
epigrafia latina que o ē e ō eram pronunciados como e fechado e o fechado,
respectivamente, pois o ō longo aparece frequentemente representado por u e o ē longo por i. Como documentação do latim arcaico, há pouquíssimos
textos
O
“Latim clássico” é a norma literária, altamente estilizada, que compreende o
período que vai de 81 a. C. a 14 d.C. Seus principais representantes são Cícero
e César, na prosa e, no verso, Virgílio,
Horácio, Ovídio e Catulo. É uma estilização do sermo urbanus ou usualis,
língua coloquial das classes cultas, com o qual convivia.
Os
escritores do período clássico haviam percebido que existiam variantes da
língua latina e caracterizaram-nas adjetivando a palavra sermo que significa
"linguagem", "conversação". Com efeito, há três fatores
envolvidos nas variantes que uma língua pode apresentar: a variação
social, correspondente à estratificação social, a geográfica,
correspondente às diferenças geográficas, e as diferenças relativas ao grau de
formalidade da situação de fala.
A
língua literária continuou no sermo ecclesiasticus (a partir do
séc. 5 d.C.) e também no sermo profanus, com os tratados
de medicina, filosofia, ciência etc, durante toda a Idade Média e até
mesmo já na Idade Moderna. Pode-se dizer que até hoje vive. É a língua
do Vaticano e de toda a documentação
da Igreja Católica, além de ser empregada na botânica e permanente nas línguas românicas ou até de línguas não-românicas, como o inglês.
Como vemos, o sermo classicus fixou-se como uma língua escrita (o latim
clássico que estudamos), porém, o latim culto falado, (sermo urbanus) a
partir do qual obteve sua origem, extinguiu-se, com a ruína da classe social
que o sustentava.
Latim
culto falado, o sermo urbanus era a língua falada pelas classes altas de
Roma, certamente correto do ponto de vista gramatical, mas sem os
refinamentos estilísticos da norma literária, como os longos períodos de
subordinação e de termos disjuntos.
Como
língua falada desapareceu entre os séculos V e VI, devido ao
aniquilamento das cidades e da vida cultural que elas apresentavam, juntamente,
é claro, com a classe social que a mantinha. Este período coincide com a queda
do Império Romano do Ocidente (476 d.C., séc.V) e a onda de invasões bárbaras
(destacando-se os longobardos na Itália, em 568 d.C), na Europa, no séc. VI.
Do
ponto de vista gramatical, o sermo
urbanus é uma língua correta e não apresenta os “erros” do latim vulgar;
mas tampouco apresenta o exagero de refinamentos estilísticos da prosa e poesia
artísticas. Cícero (interessante que se
pesquise na tese de Adriano Scatolin, USP, 2009), ele mesmo, nos fala da
diferença de formalidade no emprego do latim em uma carta que escreveu ao
seu amigo Paetus: Quid tibi ego in
epistulis uideor? Nonne plebeio sermone agere tecum ... Epistolas uero
cotidianis verbis texere solemus. “Que pareço eu
a ti nas cartas? Não pareço tratar contigo na língua do povo ... de fato,
costumamos tecer as cartas com as palavras do dia a dia”.
Desde
as primeiras manifestações da língua latina, tem-se notícia da coexistência de
uma variedade culta faladae
de outra variedade também falada, mas pelas classes populares (plebeias).
Mais
tarde, enquanto a língua literária depurava os elementos alheios ao dialeto de
Roma, a língua corrente exprimia o contato de outros dialetos itálicos.
A fala rústica e vulgar era um
instrumento através do qual se entendiam romanos, oscos e umbros.
A
língua da sociedade elegante (o sermo
quotidianus ou sermo urbanus ou usualis ou consuetudinarius, o uso comum da
classe culta) e a das classes baixas (sermo plebeius) não
constituíam compartimentos estanques. A literatura sobre o assunto é unânime em
afirmar que muitas características da língua popular apareciam no uso
corrente das classes mais altas. Não é apenas Cícero que se refere à diferença
no grau de formalidadeentre
os seus discursos e tratados filosóficos, e suas cartas, Quintiliano, um
século depois de Cícero, reflete sobre a diferença que há entre a norma do
latim (grammatice loqui) e o uso real deste na comunicação (latine loqui).
Seguindo os passos de Cícero, Quintiliano diz que o bom latim é o da cidade de
Roma (urbanitas) e não a língua do campo (rusticitas).
“Latim
vulgar” era o latim essencialmente falado
pela grande massapopular menos
favorecida e quase que inteiramente analfabeta do Império Romano. Foi
propositalmente ignorada pelos gramáticos e escritores romanos pois era
considerada indigna de consideração. Distinguia-se do latim culto falado (e
por extensão do latim clássico ou literário) em todos aspectos gramaticais. Era
mais simples em todos os níveis, mais expressivo, mais concreto e mais
permeável a elementos estrangeiros. Continuou se transformando ao longo dos
séculos até que em mais ou menos 600 d.C. já constituía os primeiros “romances”
(ou seja, as primeiras manifestações das línguas românicas, muito próximas
ainda do latim vulgar) e depois, a partir do séc. IX, as línguas românicas.
Sabe-se que as características gerais básicas do latim vulgar já se
apresentavam desde o fim da época republicana ou desde o começo do período
imperial, isto é, desde o século I a.C.ou no máximo desde o século I d.C.
É
muito comum datarem-se dos séculos III
ou IV da era cristã numerosas inovações atestadas pelo conjunto das línguas
românicas. O latim vulgar é, na verdade, um latim popular que existiu em
todas as épocas da língua latina. Este latim pertencia a uma população que
era muito pouco ou nada escolarizada e que, portanto, não poderia ter sido
influenciada pelos modelos literários e pela escola.
O
latim vulgar não sucede ao clássico; teve origem nos meios plebeus de Roma e
cercanias, sendo essencialmente falado pela plebe romana, embora muito de suas
características se infiltrassem no seio da classe média e até das classes mais
altas, sobretudo na época imperial. Uma vez que se trata de uma variedade de
formas, que se ligam ao latim falado (mas não exclusivamente), não se pode
considerar que existam realmente textos em latim vulgar. Quase nenhum texto,
que contenha vulgarismos, é intencionalmente vulgar, à exceção da Cena Trimalchionis, de Petrônio, autor do sensacional SATYRICON,
que muito tempo depois foi adaptado para o cinema pelo genial italiano Federico
Fellini,
e dos comediógrafos, principalmente Plauto,
que colocam personagens do povo falando.
O dramaturgo/ comediógrafo
romano Plauto (254-184 a.C.),Tito Mácio Plauto foi um
escritor romano que viveu durante o período
republicano. Suas comédias estão entre as obras em latim mais antigas
preservadas até os dias de hoje, são quase todas adaptações de modelos gregos
para o público romano, tal como ocorria na mitologia e na arquitetura. Plauto
escreveu cerca de 130 peças, das quais 20
sobreviveram intactas, tornando-o o mais prolífico dramaturgo antigo em
termos de obras sobreviventes. Aconselhamos a leitura deliciosa proporcionada
pela peça ANFITRIÃO (O Anfitrião de Plauto é uma comédia de mil
faces: farsa mitológica sobre o nascimento de Hércules, paródia trágica, jogo
de espelhos, provável influência do cogito cartesiano. Mas, acima de tudo, é
uma das mais divertidas e atemporais comédias que a antiguidade nos deixou.
Inspirado em modelos gregos que desconhecemos, Plauto (séc. III a.C.) nos legou
uma pérola que foi alvo de imitação, reescrita, adaptação e recriação de
autores como Camões, Molière, Kleist, Giraudoux, Guilherme Figueiredo, Ignacio
Padilla, entre tantos outros. Nesta comédia, você verá um Júpiter morrendo de
amores pela esposa de um general tebano, Alcmena, com quem ele conseguirá
passar a noite mais longa de todas a fim de gerar o grande herói Hércules,
usando um dos artifícios mais antigos dos mitos de nascimento de grandes
heróis: transfigurar-se no marido ausente, Anfitrião. Mercúrio, faz-tudo
divino, torna-se Sósia, o servo da casa, e arquiteta todo o engano. Aí está, em
tradução poética magnífica de Leandro Dorval Cardoso, com sua força de riso e
poesia intensos, seus padrões rítmicos recriados para os nossos ouvidos, seu
vigor renovado no Brasil, um dos mais antigos e maravilhosos tratamentos do
sempre atual tema do duplo.).
O
mero fato de ser escrito envolve o uso de certas convenções, e mesmo no caso de
escritores simples, sem muita pretensão literária, há pelo menos a convenção
ortográfica que eles tentam seguir.
O
latim vulgar é um conjunto de tendências que se manifestavam diferentemente
conforme o maior ou menor grau de educação dos que o falavam, e segundo o tempo
e os lugares onde era falado. Porém, é surpreendente que apesar da
variabilidade cronológica, social e geográfica, o latim vulgar possuía uma
homogeneidade suficientemente extensa para que fosse entendido em seu vasto
território. Havia uma unidade no latim vulgar; a norma latina era relativamente
simples, porque em latim não havia dialetos, o que não acontecia com o grego.
Dado
que os períodos da história de Roma são importantes
para os romanistas, lembramos que eles correspondem às três formas de governo: Realeza (das origens a 509 a.C.), República
(de 509 a.C. a 27 a.C.) e Império (de 27 a.C. a 476 d.C.).Apesar
disso, uma vez que o latim vulgar é um conjunto de tendências, é imprudente
falar em “gramática do latim vulgar”. É sobretudo pela gramática comparada
das línguas românicas que se pode reconhecer as particularidades do latim
vulgar, principalmente pelo que nos revelam o sardo e o romeno de um lado, e as
outras línguas românicas de outro.
O
latim vulgar tinha, desde a época de Plauto, e ainda mais, a partir de Cícero, peculiaridades gerais suficientes para dar-lhe um aspecto
mais ou menos definido em oposição aosermo urbanus e ao sermo
litterarius, essas diferenças vinham de três fatores principais. O primeiro fator era por que o latim vulgar representava
a língua do povo comum, da plebe romana, enquanto o latim clássico era um
produto da sociedade aristocrática. A enorme oposição social entre essas
duas classes se refletia na língua e que era capaz de explicar as diferenças no
vocabulário e na sintaxe. O segundo é que o
latim clássico, apesar de ter-se originado em um latim vivo e falado, é, em
geral, mais conservador e arcaizante do que o latim vulgar. O terceiro fator deve-se ao fato de o latim vulgar ser
fruto de uma população heterogênea, que empregava mal a língua latina, corrompendo-a.
Sem esquecer que a criação da literatura é obra de estrangeiros, basta citar
Plauto, Terêncio. O próprio Cícero afirma que o falar da cidade, em seu
tempo, era diferente do século anterior, no qual ainda se ouvia o bom latim,
embora já assinale a existência de uma linguagem corrompida em muitas famílias
do século II a.C. Ele atribui a deturpação do latim à invasão de
estrangeiros que falavam mal a língua. Para tornar a comparação entre o latim vulgar e o latim culto - sermo urbanus - ou
até mesmo o literário - mais próxima à nossa realidade, podemos pensar no
português falado pelas populações de um âmbito social limitado do ponto de
vista de escolarização, que apresenta, ao lado de uma simplificação na
gramática, restos de uma linguagem arcaica, já abandonados na língua culta.
A mesma impressão que temos ao ouvir um português cheio de “erros” em
comparação com a norma culta, teria um romano escolarizado ouvindo o latim
vulgar, acostumado a uma língua ricamente flexionada e elegante. Diferenças
entre o sermo plebeius e o sermo urbanus estão presentes na pronúncia,
no vocabulário, na sintaxe, e na morfologia.
A
distância que separava o latim vulgar do latim culto era a princípio pequena,
mas já podia ser vista a partir do séc. IV a.C. O vocabulário era, em boa
parte o mesmo, sobretudo o que servia para o uso da vida cotidiana: coisas,
animais, plantas etc.
O
latim vulgar nunca se isoloucompletamente
da língua literária, pois sempre houve um convívio constante entre todas as
classes, através do teatro, às vezes pela escola e, mais tarde, pela Igreja.
Portanto, existiu sempre uma contribuição limitada, porém contínua, da
língua clássica para a popular. Vestígios fonéticos, morfológicos,
sintáticos e ainda de um vocabulário semelhante à língua clássica também
ocorrem nas línguas românicas. Trata-se de sobrevivências de uma época em que o
latim vulgar ainda conhecia essas formas, perdidas depois na maior parte do
território. Por exemplo, o sardo conserva melhor as vogais do latim clássico.
O
problema do latim vulgar, onde a questão da diferença entre as duas formas de
língua latina falada está tão bem colocada: É perfeitamente razoável dizer que
a língua falada latina apresenta matizes diversos e uma gradação contínua desde
a linguagem inculta dos plebeus proletários dos bairros pobres de Roma até o
falar elegante das pessoas mais cultas da alta sociedade.
Enquanto,
porém, nessa forma elegante a língua falada divergia relativamente pouco da
língua dos textos literários – pelo menos na época de Cícero -, nas camadas inferiores da sociedade romana e, mais tarde,
na população latinizada do Império, esse latim apresentava outro aspecto:
admitia inovações revolucionárias.
A partir desta exposição, torna-se evidente
que entre os séculos I a.C. e I d.C. conviviam três variedades do latim: o
sermo classicus ou literarius, o sermo urbanus e o sermo plebeius.
Para
concluir, vale a pena citarmos as principais características das variedades
“clássica” e “vulgar” do latim. Do ponto de vista gramatical, o latim clássico
é: I - uma língua sintética, isto é, possui terminações próprias (desinências),
que, no fim da palavra, indicam a função sintática. Essas palavras que possuem
flexão são os nomes (substantivos, adjetivos e pronomes) e os verbos. Em latim,
a frase Intelligenti
paucatraduz-se em português por ‘Ao que sabe
compreender, pouca coisa basta’. Este é um bom exemplo do que
significa ser uma língua sintética, por oposição a uma língua analítica como o
português. Outra característica que se soma ao caráter sintético da língua
latina é a concisão.
Diz-se que a língua latina é concisa porque exprime somente as palavras
essenciais. Inclui-se no caráter conciso da língua latina o fato de não haver artigos (definido e
indefinido) e de poder omitir palavras em contextos sintáticos que línguas
como o português e o francês não permitem, eis um exemplo da “concisão da
língua latina”, onde entram fenômenos sintáticos e estilísticos, incluindo as
tradicionais “figuras de linguagem. [1]
Do
ponto de vista gramatical, resumidamente, pode-se dizer que o latim vulgar: é analítico na
construção da sentença, pois, devido à progressiva perda dos casos, começa a
exprimir as funções gramaticais por meio de preposições (complementos indiretos
e circunstâncias) e pela ordem das palavras (sujeito e objeto). A frase
popular faz um uso mais extensivo dos pronomes pessoais (1ª e 2ª pessoas),
possessivos, demonstrativos, e inova com os artigos definido e indefinido, e
com o pronome pessoal de 3ª pessoa. A disposição das palavras se “simplifica” e
se fixa, em oposição ao latim literário no qual a ordem obedece em larga escala
às preocupações de estilo.
A
grande liberdade de colocação no uso
clássico devia constituir a parte da língua em que a preocupação estilística e o exemplo dos modelos gregos mais
profundamente modificaram a sua evolução espontânea.
A
língua “vulgar”, como um todo, apresenta as seguintes características
inovadoras que se distanciam dos textos literários clássicos:
(i)a
substituição do accusatiuum cum infinitiuo por construções formadas por
conjunções e pronomes relativos;
(ii)a
inflação no uso dos pronomes pessoais de 1ª e 2ª pessoas;
(iii)a
inflação no uso dos diminutivos;
(iv)o
emprego dos demonstrativos ille e ipse, às vezes com o sentido próximo
ao de artigo definido das línguas românicas;
(v)a confusão no emprego dos casos;
(vi)o
aumento de frequência das preposições;
(vii)a
confusão nas declinações;
(viii)as
mudanças de gênero;
(ix)o
emprego da ordem da frase (Suj./Verbo/Compl.).
(x)o
uso de expressões tipicamente coloquiais.
A
respeito da variedade que se chama sermo
urbanus, sempre dissociada do latim literário, já que o que se vê,
mais comumente, é o ensino do latim clássico como uma língua artificial, oposta
à falada na variedade plebeia, porém, sem nenhum vínculo com a língua culta
falada. O latim clássico não foi uma criação de gramáticos e letrados, e nem
uma imitação do grego, como tantas vezes se vê afirmado, mas uma língua
literária que teve como modelo uma língua culta falada.
2.
A LITERATURA
LATINA
2.1.
HORÁCIO E SEU “CARPE DIEM”. Ode I.11
Não
interrogues, não é lícito saber a mim ou a ti
que fim os deuses darão, Leucônoe. Nem tentes
os cálculos babilônicos. Antes aceitar o que for,
quer
muitos invernos nos conceda Júpiter, quer este último
apenas, que ora despedaça o mar Tirreno contra as pedras
vulcânicas. Sábia, decanta os vinhos, e para um breve espaço de tempo
poda a esperança longa. Enquanto conversamos terá fugido despeitada
a hora: colhe o dia, minimamente crédula no porvir.
Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi,
quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, vina liques, et spatio brevi
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida
aetas: carpe diem quam minimum cr[2]edula
postero.(1)
Quintus
Horatius Flaccus, Horácio (65 a.C.-8 a.C.) foi um poeta
lírico, satírico e moralista político, o primeiro
literato profissional romano. Exerceu enorme influência sobre toda a
literatura ocidental, ele nasceu na Itália, no dia 8 de dezembro de 65 a.C.
Filho de um escravo emancipado e funcionário público financiou seus estudos em
Roma e depois em Atenas. Após o assassinato de Júlio César, em 44 a.C., uniu-se
ao grupo republicano e comandou uma legião do exército de Brutus na batalha de
Filipos, na Grécia. Apesar da derrota, voltou para Roma graças a uma
anistia.Passou graves dificuldades financeiras até conseguir um cargo
administrativo. Começou a escrever seus versos e entrou para os círculos
literários, sob a proteção do influente Caio Mecenas. Tornou-se amigo de
Virgílio. Horácio foi o primeiro literato profissional romano. Ele aceitava
ajuda, como a pequena propriedade nos montes Sabinos que lhe recebeu de
Mecenas, mas evitava imposições que pudessem vir a afetar sua integridade.
A
obra de Horácio compreende quatro livros de odes,
dois de sátiras, dois de epístolas e um hino. Ele se dedicava a observar e
comentar a vida romana. Seu primeiro livro de “Sátiras” (35 a.C.),
contém dez poemas em que discute questões éticas. O segundo livro de
sátiras foi publicado em 30 a.C. Sua obra-prima são os três livros de poemas
líricos, as “Odes”, de 23 a.C., complementados por um quarto volume de 13 a.C.
Algumas das odes são dedicadas ao nacionalismo estimulado por Augusto. Para o
imperador, compôs o “Canto Secular”, hino de caráter litúrgico dedicado a Apolo
e Diana. Poetizando a realidade romana, criou versos que exaltavam a política
imperial. Pessoalmente valorizou o indivíduo e a elite.
Os
dois livros de epístolas, cheias de sabedoria, são expressões da filosofia
estoica (uma ética em que a imperturbabilidade, a extirpação das paixões e a
aceitação resignada do destino são as marcas fundamentais do homem sábio, o
único apto a experimentar a verdadeira felicidade [O estoicismo exerceu
profunda influência na ética cristã.].). O primeiro, de 20 a.C., contém vinte
cartas familiares escritas em tom filosófico, em que o poeta recomenda certas
regras de conduta e uma vida estoica.
No
segundo livro há duas longas cartas de crítica literária, em que Horácio
estabelece os princípios da poesia augusta, descreve a função
do poeta e enumera as regras da tragédia em Roma.
Na carta dedicada à
família dos Pisões, mais conhecida como “Arte Poética”, a pretexto
de dar conselho aos jovens que desejam ser poetas, resume as normas do
Classicismo. Recomenda que evitem os excessos, dizendo: “há uma medida em todas
as coisas”. Morreu em Roma, no dia 27 de novembro do ano 8 a.C.
Horácio
exerceu influência enorme sobre toda a literatura
ocidental. A estética de Horácio se define pela precisão dos metros,
pela sobriedade de expressão e pela serenidade diante da vida. Um dos últimos
representantes dessa tendência foi Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando
Pessoa.
Frases
de Horácio
Quem começou, tem metade da obra
executada.
Quando a casa do vizinho está pegando
fogo, a minha casa está em perigo.
Quem tem confiança em si próprio comanda
os outros.
O pinheiro mais alto é aquele que o
vento agita mais vezes.
A duração breve da nossa vida proíbe-nos
de alimentar uma esperança longa.
Ele
viveu no momento histórico e literário do Século de Augusto, tratando dos
círculos de escritores de Roma, sobretudo o de Mecenas, que estavam ligados à
política cultural do Principado. Enumeração de suas obras: Sátiras, Odes, Canto
secular, Epístolas e Arte poética. Foi amigo de Virgílio e de Mecenas, o que lhe proporcionou uma vida estável.
Poeta do círculo de Mecenas, soube manter certa independência, recolhido à sua
vila de Tíbur, hoje Tivoli, nas redondezas de Roma.
As
Odes de Horácio refletem influências de poetas gregos como Alceu, Safo e
Píndaro, mas o autor latino, além da sua originalidade, foi muito hábil na
versificação. Horácio foi, sem dúvida, um dos maiores poetas latinos. A ode em
questão, I, 11, I, 10 conforme outras edições, demonstra a permanência da obra
do poeta de Venúsia, sua terra natal, no Sul da Itália. O tema do carpe diem é
frequente na obra de Horácio: rapiamus, amici, occasionem de die “amigos,
agarremos a ocasião prontamente” (Epodo, 13, 3-4).
2.2. OVÍDIO
OVÍDIO
Públio Ovídio Naso, Ovídio nasceu na cidade de Sulmona (Itália) em 20 de
março de 43 a.C.. Faleceu, aos 59 anos, em 17 d.C., na
cidade Constança (Romênia), foi um poeta romano da Antiguidade. É considerado,
por muitos estudiosos, um dos maiores poetas do final do século I a.C. e início
do século I d.C. Suas principais obras são Metamorfoses
(onde analisa cerca da origem de 250 mitos)e A Arte de Amar. Muitas de suas
obras são excelentes fontes para o estudo e entendimento da mitologia romana.
Principais
características de seu estilo literário:
- Presença de consciência literária.
- Escreveu elegias, poesias épicas e dramas.
- O tema do amor é muito presente em suas poesias.
- Abordagem de temas ligados à mitologia greco-romana.
- Presença de fluxo musical nos versos das poesias.
- Presença de objetividade e elegância nas poesias.
- No final da vida, ocorreu uma mudança significativa em seu estilo
literário, que passou a ser introspectivo e triste.
Principais
obras (poesias):
- Amores (entre 25 e 16 a.C.)
- A
arte de amar(por volta de 1 a.C.)
- Metamorfoses (por volta de 8 d.C.)
- Tristezas (entre 8 e 12 d.C.)
Frases:
- "Enquanto fores feliz, contarás muitos amigos, mas se os tempos
estiverem nublados, estarás só".
- "A boa consciência ri-se das mentiras da fama".
- "Odiarei, se puder, caso contrário amarei, contra a minha vontade".
- "Até onde a arte não será capaz de ir? Há pessoas que aprendem até mesmo
a chorar com arte".
“A
arte de amar” é um título que seduz
por sua simplicidade e inquieta por sua ingenuidade. Pode-se perguntar se é
necessário, útil ou conveniente ensinar esta arte, que parece evidente, fazendo
parte dessas coisas tão compartilhadas e tão comuns a todos sem que seja
preciso ensiná-las. Mas Ovídio não ensina o sentimento, mas a habilidade; não o
amor, mas a sedução. Reconcilia os dois sexos e dá à mulher sua participação e
sua iniciativa neste jogo sério e leviano do qual séculos de “civilização” a
excluíram.“Remédios
de amor” é um poema de 814 versos escritos em latim pelo poeta romano Ovídio.
Nesse poema, de caráter estoico, Ovídio oferece conselhos e estratégias para
evitar os danos que o amor nos possa produzir. O objetivo do poema é ensinar,
em particular a jovens homens, como evitar a idealização das mulheres amadas.
Serve, também, como ajuda no caso de o amor trazer desesperança e desgraça.
Ovídio assegura que os suicídios são produto de amores desafortunados, que
podem ser evitados por meio do cumprimento de seus conselhos.
AS METAMORFOSES
As Metamorfoses
de Ovídio (I,
vv.452-566), por José Vicentini:
O poema máximo de Ovídio dispensa apresentações. Como uma enorme
coleção de fábulas pagãs permanece sem par até hoje na literatura ocidental, e
as revoluções que promoveu à sua época nos foram (e ainda nos são) fundamentais
para a compreensão do gênero épico. Como Homero, Ovídio é inesgotável: todos os
grandes que o leram lhe tiraram algo de proveitoso à sua própria arte (de Dante
a Ezra Pound) e não somente na literatura, como convém lembrar.
Assim como todas as obras que dispensam apresentações, há muito
o que falar sobre Ovídio e sua poesia. Senão nessa inesgotabilidade está o
fator monumentum aere
perennius (ou novidade
que permanece novidade) dessas obras, que nunca envelhecem nem
perdem a potência sob qualquer luz que lhes lancemos – e nos é sempre possível
lhes lançar uma nova luz.
É preciso dizer, contudo, que somente agora se vem formando em
língua portuguesa uma tradição de traduzir Ovídio. Contávamos antes com as
traduções de Bocage e Haroldo de Campos (incompletas, ainda que até hoje
insuperáveis). Trouxe assim à luz esta pequena tradução, correspondente ao
verso 452 até o 566, que conta a história de Dafne e Apolo, uma das mais belas
e icônicas, na minha opinião. Norteado pelas traduções de Bocage e Arthur
Golding, me utilizei do verso decassílabo camoniano para verter o hexâmetro
latino, dando importância não tanto a corresponder verso a verso quanto a
tentar conferir ao português o ritmo, a sonoridade e a fluidez do original –
características apontadas no texto de Ovídio de forma unânime por quem quer que
lhe tenha contato. (José
Vicentini)
* * *
[Argumento: Cupido, iroso por ter sido desdenhado pelo deus
Apolo, tira de sua aljava duas flechas de efeitos diferentes e com uma, de
ouro, fere o deus pela medula, que prontamente se apaixona por Dafne, ninfa
filha de Peneu; a outra, de chumbo, fixa no peito da ninfa, que prontamente
repele o amor e todos os pretendentes que a cortejam. Assim, enlouquecido pela
paixão, Apolo espera tê-la, e ao passo que a ninfa foge de todos os homens e
odeia a ideia do matrimônio, o deus a persegue por entre as ramagens e as feras
dafloresta.]
Dafne foi o primeiro amor de Apolo,
A ninfa filha de Peneu, a quem
O dirigiu não a Fortuna incerta,
Mas sim a cruel ira de Cupido.
Febo, soberbo da recém vencida
Píton, viu o menino com seu arco,
Fletindo as pontas pelo fio teso,
E lhe falou: “A que te irão servir,
Menino lépido, tais graves armas?
Essas convêm somente aos nossos ombros,
Nós que podemos dar à fera hostil
Certeiro ferimento, que pudemos
Estatelar por espaçosos acres
O ventre pestilento da atroz Píton,
Vencida ao voo de incontáveis flechas.
Contém-te ao facho teu que faz arder
Esses amores e contém-te desse
Desejo de carpir as nossas glórias.”
Cupido então: “A tudo ferem, Febo,
Tuas flechas, e a ti ferem as minhas,
E quanto o deus excede os animais,
Tanto menor é tua à nossa glória.”
Disse e, fendendo o ar co’ agudas penas,
Pousou alígero ao frondoso alcácer
De Parnaso, tirou de sua aljava
Duas flechas de efeitos diferentes:
Aquela faz, esta repele amor:
Áurea a que faz luzindo à ponta fina
E rude a que repele tendo chumbo
Ao junco seu, esta Cupido então
Fixou ao seio da peneia ninfa
E com aquela aurífera fendeu
Pela medula os ossos do deus Febo:
Este súbito a ama, aquela foge:
Leda, através da escuridão das selvas,
Por entre as presas das cativas feras,
Tal qual Diana, virgem caçadora,
Co’ a fita atada à desprendida coma.
Muitos a pedem; ela, hostil a todos,
No desdém seu pelo que quer que seja
De amores, de noivado, de Himeneu,
Busca por ermos bosques livres de homens.
Frequentemente lhe dizia o pai:
“Tu deves, filha, netos a teu pai”,
Deves, filha,”, dizia, “um genro a mim”.
Ela, odiosa aos fachos de conúbio,
Como se fossem qualquer coisa horrível,
Verte candor à linda fronte rubra,
E, ao envolver com delicados braços
A nuca de seu pai, assim lhe diz:
“Ó pai querido, rogo que permitas
A mim fruir perpétua virgindade!
Qual Jove outrora permitiu à Délia.”
Assim assente o pai, mas o que queres,
Dafne, tua beleza veda a ti,
E tua forma nega o que suplicas:
Apolo a ama e à vista dela anseia
Pela união conubial, e espera
Por aquilo que tanto anseia, assim
O iludem suas próprias predições.
Como haste fina a arder na espiga finda,
Como sebe a queimar-se com os fachos,
A qual ou tenha alguém aproximado
Demais ou tenha então deixado ao sol,
Assim se faz inteiro o deus em flamas,
Assim ao peito todo abrasa e, crendo,
Nutre a esperança d’um amor estéril.
Vê seus cabelos soltos ao pescoço,
Diz: e se os penteasse? Vê seus olhos
Vibrarem flamejantes como os astros,
Observa os lábios, cuja vista apenas
Não lhe é bastante; louva os dedos, mãos,
Os braços que se estendem nus aos ombros,
“Talvez melhores se cobertos?”, pensa…
E ela foge, mais célere que o ar,
Nem se detém às súplicas de Apolo:
“Ó ninfa, para! rogo-te, não sigo
Como inimigo! ninfa, para! Assim
A ovelha foge ao lobo, assim o cervo
Foge ao leão, assim as pombas à águia,
Assim qualquer um foge ao inimigo:
Amor é a causa que me faz seguir!
Ai de mim se caíres inclinada,
Indigna de feridas, se teus pés
Encontrarem espinhos ao caminho
E eu te causar imerecidas dores!
Tão áspero o local a que te apressas…
Diminui a corrida e cessa a fuga,
Que também eu diminuirei o encalço.
Pergunta a quem aprazes: não habito
O monte agreste nem protejo gados
Ou rebanhos. Não sabes, insensata,
Não sabes de quem foges, logo foges:
Tênedos, Claros, a Patara régia
E a terra délfica me são devotos.
Nato de Júpiter, por mim se mostra
Aquilo que é, que foi e que há de ser,
Por mim concerta-se o cantar à lira.
Certeira é nossa flecha; uma, contudo,
Mais certeira que a nossa me acertou,
Fedendo ao peito indene uma ferida.
A medicina é meu invento, chamam-me
Opífero pelo orbe, co poder
Das ervas curativas ao meu jugo;
E agora, que nenhuma cura podem
As ervas dar a um tal amor, as artes,
Que a tudo servem, frustram seu senhor.”
Querendo dizer mais o deus Apolo,
Lhe foge a ninfa em passo trepidante,
Deixando ao curso esclusa a sua fala.
O corpo dela se desnuda ao vento,
Vibram-lhe as vestes e a suave brisa
Impele para trás os seus cabelos:
Tão bela Dafne lhe parece em fuga…
Porém o deus não se contém ao zelo,
E enquanto lhe aconselha amor loquaz,
Apressa o passo impetuoso a ela.
Símile ao galgo que depara a lebre
Numa planície aberta e então, co’ as patas,
Um caça a presa; a outra, o seu abrigo:
Um, tão à espreita, em breve espera tê-la,
Abrindo as presas rente aos passos dela;
A outra trepida e teme ser comida,
Escapando às mordidas e ao focinho:
Assim vão Febo e Dafne: àquele move
Sua esperança e a esta o seu temor.
Porém o que a persegue, guarnecido
Pelas asas do amor, é mais veloz,
Não para e, estando na iminência dela,
Chega a soprar-lhe a coma solta atrás.
Findada a força, a ninfa empalidece.
Vencida pelo esforço de escapar,
Dirige o olhar às ondas do riacho:
“Ó pai, se tens mesmo o poder dos rios,
Concede ajuda àquela cuja forma
Por ser tão bela não pode ser vista,
E faz perder-se enfim a transformando!”
Assim mal Dafne finda sua prece
E súbito um torpor lhe invade os membros:
Fina casca lhe cinge o seio ameno,
Se faz em folhas seu cabelo e em ramos
Os seus braços; seus pés, antes velozes,
Se fixam lentamente ao solo em rígidas
Raízes e ao seu rosto todo envolto
Nada resta senão um brilho escuso.
Ainda Apolo a ama e põe a mão
Direita sobre o tronco: lhe é possível
Sentir pulsar o coração de Dafne.
E envolvendo as ramagens com seus braços,
Beija a madeira, que recusa os beijos.
Lhe diz o deus então: “Já que não podes
Ser minha esposa, tu serás minha árvore.
Te portarei, ó louro, para sempre
Na lira, nos cabelos e na aljava.
Estarás entre os líderes do Lácio,
Com leda voz a modular vitórias
E a ver do Capitólio imensos faustos.
Disposta à entrada do palácio augusto,
Serás fiel vigia dos portões
E, ao centro, irás velar pelo carvalho.
Sobre meus cachos tenros não cortados,
Tu portarás da fronde eterna glória.”
Calou-se enfim; e, com aqueles ramos,
Pareceu-lhe o laurel ter assentido,
Meneando no topo as suas folhas.
Primus amor Phoebi Daphne Peneia, quem non fors ignara dedit, sed saeva
Cupidinis ira, Delius hunc nuper, victa
serpente superbus, viderat adducto flectentem
cornua nervo ‘quid’ que ‘tibi, lascive
puer, cum fortibus armis?’ dixerat: ‘ista decent umeros
gestamina nostros, qui dare certa ferae, dare
vulnera possumus hosti, qui modo pestifero tot
iugera ventre prementem stravimus innumeris tumidum
Pythona sagittis. tu face nescio quos esto
contentus amores inritare tua, nec laudes
adsere nostras!’ filius huic Veneris ‘figat
tuus omnia, Phoebe, te meus arcus’ ait;
‘quantoque animalia cedunt cuncta deo, tanto minor est
tua gloria nostra.’ dixit et eliso percussis
aere pennis inpiger umbrosa Parnasi
constitit arce eque sagittifera prompsit
duo tela pharetra diversorum operum: fugat
hoc, facit illud amorem; quod facit, auratum est et
cuspide fulget acuta, quod fugat, obtusum est et
habet sub harundine plumbum. hoc deus in nympha Peneide
fixit, at illo laesit Apollineas traiecta
per ossa medullas; protinus alter amat, fugit
altera nomen amantis silvarum latebris captivarumque
ferarum exuviis gaudens innuptaeque
aemula Phoebes: vitta coercebat positos sine
lege capillos. multi illam petiere, illa
aversata petentes inpatiens expersque viri
nemora avia lustrat nec, quid Hymen, quid Amor,
quid sint conubia curat. saepe pater dixit: ‘generum
mihi, filia, debes,’ saepe pater dixit: ‘debes
mihi, nata, nepotes’; illa velut crimen taedas
exosa iugales pulchra verecundo suffuderat
ora rubore inque patris blandis haerens
cervice lacertis ‘da mihi perpetua, genitor
carissime,’ dixit ‘virginitate frui! dedit hoc
pater ante Dianae.’ ille quidem obsequitur, sed
te decor iste quod optas esse vetat, votoque tuo tua
forma repugnat: Phoebus amat visaeque cupit
conubia Daphnes, quodque cupit, sperat,
suaque illum oracula fallunt, utque leves stipulae demptis
adolentur aristis, ut facibus saepes ardent,
quas forte viator vel nimis admovit vel iam
sub luce reliquit, sic deus in flammas abiit,
sic pectore toto uritur et sterilem sperando
nutrit amorem. spectat inornatos collo
pendere capillos et ‘quid, si comantur?’ ait.
videt igne micantes sideribus similes oculos,
videt oscula, quae non est vidisse satis; laudat
digitosque manusque bracchiaque et nudos media
plus parte lacertos; si qua latent, meliora
putat. fugit ocior aura illa levi neque ad haec
revocantis verba resistit: ‘nympha, precor, Penei,
mane! non insequor hostis; nympha, mane! sic agna
lupum, sic cerva leonem, sic aquilam penna fugiunt
trepidante columbae, hostes quaeque suos: amor
est mihi causa sequendi! me miserum! ne prona cadas
indignave laedi crura notent sentes et sim
tibi causa doloris! aspera, qua properas, loca
sunt: moderatius, oro, curre fugamque inhibe,
moderatius insequar ipse. cui placeas, inquire tamen:
non incola montis, non ego sum pastor, non hic
armenta gregesque horridus observo. nescis,
temeraria, nescis, quem fugias, ideoque fugis:
mihi Delphica tellus et Claros et Tenedos
Patareaque regia servit; Iuppiter est genitor; per
me, quod eritque fuitque estque, patet; per me
concordant carmina nervis. certa quidem nostra est,
nostra tamen una sagitta certior, in vacuo quae
vulnera pectore fecit! inventum medicina meum est,
opiferque per orbem dicor, et herbarum subiecta
potentia nobis. ei mihi, quod nullis amor
est sanabilis herbis nec prosunt domino, quae
prosunt omnibus, artes!’
Plura locuturum timido Peneia cursu fugit cumque ipso verba
inperfecta reliquit, tum quoque visa decens;
nudabant corpora venti, obviaque adversas vibrabant
flamina vestes, et levis inpulsos retro
dabat aura capillos, auctaque forma fuga est. sed
enim non sustinet ultra perdere blanditias iuvenis
deus, utque monebat ipse Amor, admisso sequitur
vestigia passu. ut canis in vacuo leporem
cum Gallicus arvo vidit, et hic praedam
pedibus petit, ille salutem; alter inhaesuro similis iam
iamque tenere sperat et extento stringit
vestigia rostro, alter in ambiguo est, an sit
conprensus, et ipsis morsibus eripitur
tangentiaque ora relinquit: sic deus et virgo est hic
spe celer, illa timore. qui tamen insequitur pennis
adiutus Amoris, ocior est requiemque negat
tergoque fugacis inminet et crinem sparsum
cervicibus adflat. viribus absumptis expalluit
illa citaeque victa labore fugae spectans
Peneidas undas ‘fer, pater,’ inquit ‘opem!
si flumina numen habetis, qua nimium placui, mutando
perde figuram!’ [quae facit ut laedar
mutando perde figuram.] vix prece finita torpor
gravis occupat artus, mollia cinguntur tenui
praecordia libro, in frondem crines, in ramos
bracchia crescunt, pes modo tam velox pigris
radicibus haeret, ora cacumen habet: remanet
nitor unus in illa. Hanc quoque Phoebus amat
positaque in stipite dextra sentit adhuc trepidare novo
sub cortice pectus conplexusque suis ramos ut
membra lacertis oscula dat ligno; refugit
tamen oscula lignum. cui deus ‘at, quoniam
coniunx mea non potes esse, arbor eris certe’ dixit
‘mea! semper habebunt te coma, te citharae, te
nostrae, laure, pharetrae; tu ducibus Latiis aderis,
cum laeta Triumphum vox canet et visent longas
Capitolia pompas; postibus Augustis eadem
fidissima custos ante fores stabis mediamque
tuebere quercum, utque meum intonsis caput
est iuvenale capillis, tu quoque perpetuos semper
gere frondis honores!’
finierat Paean: factis modo laurea ramis adnuit utque caput visa est
agitasse cacumen.
No tempo de Virgílio, Roma já havia
completado seu domínio sobre a bacia do Mediterrâneo. No século transcorrido
após a conquista da Grécia (146 a. C.) consolida essa hegemonia. Iniciara
também a incorporação do continente europeu. Na década de cinquenta, entre 58 e
51, estabelece-se no território denominado Gália, que deveria corresponder á França
e á Alemanha que conhecemos. Internamente, é o período de grandes agitações e
guerras civis, que culminam com a abolição da República e a chegada ao poder do
Primeiro Imperador (Otávio Augusto, que governou de 29 a 14 a. C.). Virgílio
viveu grande parte desta última época, acreditando-se que se haja disposto a
escrever Eneida por solicitação do Imperador. Faleceu no ano
19 a. C., aos 51 anos de idade.
Ainda que inspirado em Homero, que
igualmente mereceria perene acolhimento no Ocidente, a Eneida de
Virgílio é que inauguraria nova modalidade de obra literária, servindo de
modelo a diversos autores em variados contextos históricos. Trata-se do poema
épico que se propõe cantar determinado evento que a seus olhos – ou da
geração correspondente – constitui autêntica epopeia. No caso, tudo conspirava
para alcançar tal efeito: o autor canta as glórias da Itália, na língua erudita
adotada pelos que a recebem em primeira mão, num verso perfeito.
Supõe-se que a composição dos doze
cantos que integram a Eneida haja absorvido os últimos anos da
vida do autor. Pretenderia acrescentar-lhe mais três, depois de conhecer a
Grécia, mas faleceu antes de realizar tal projeto. Os seis primeiros cantos
acompanham de perto o roteiro seguido por Homero para descrever as peripécias
de Ulisses no regresso a Ítaca, inclusive a sua passagem pelo inferno, para
avistar-se com o pai (cena do Sexto Canto, em Virgílio). Os demais estariam
inspirados na Ilíada.
Eneida é uma
extraordinária epopeia devotada ao destino glorioso da Itália, traçado pelos
deuses e que, num dado momento, esteve em mãos de Enéas. Em lugar do grego
vitorioso da Odisseia, Virgílio coloca a um troiano derrotado
(Enéas). Abandonando a cidade em chamas (Tróia), dirige-se á Itália, destinada
a tornar-se prolongamento dos troianos. Do mesmo modo que ocorreu a Ulisses,
também Enéas em sua viagem por mar é perseguido, enfrenta a fúria das
tempestades. Chega a Cartago, colônia fenícia no Norte da África, sob domínio
romano na altura em que viveu Virgílio. Ainda seguindo a Homero, o herói de
Virgílio é retido na cidade e instado a relatar a monumental história da guerra
de Tróia (Cantos Segundo e Terceiro). O relato é brilhante mas será no Quarto
Canto onde irá transparecer plenamente a genialidade de Virgílio.
Dido, rainha de Cartago, delira de
amores por Enéas e planeja seduzi-lo. O texto de Virgílio contagia com a emoção
das artimanhas da conquista, tornando de todo aceitável que Enéas se deixasse
seduzir, esquecendo-se dos seus deveres e colocando-se ao serviço de um novo
amo. A mudança de estado de espírito que lhe provoca a reprimenda dos deuses é
deveras brilhante e não preserva nenhum indício de insanidade. Descobrindo os
planos do amante de evadir-se, a transformação que se opera em Dido marca um
extraordinário momento de criação literária, do mesmo modo que o diálogo em que
Enéas tenta justificar-se e o próprio desfecho, representado pelo suicídio de
Dido e a consumação da fuga de Enéas. A simples leitura deste Quarto Canto
explica o impacto que a sua descoberta iria provocar na Itália do apogeu da
Idade Média. Poesia primorosa, além do mais escrita na língua que era a dos
homens cultos da época. Compreende-se o deslumbramento provocado, entre outros,
em Dante Alighieri.
No Canto Sexto, tendo chegado à
Sicília, Enéas deixa ali uma parte da frota e segue com os restantes em demanda
do continente. É aqui que, do mesmo modo que Ulisses, visita aos mortos no
Inferno e ouve da alma do pai (Anquises) o relato das glórias futuras da Itália
a partir da fundação de Roma. Esse relato abre a outra parte do poema, nestes
termos: “Depois que Anquises conduziu seu filho a todos os lugares e lhe
acendeu o ânimo com o amor da fama que há de vir, fala-lhe das guerras que terá
de sustentar.”
Os cantos restantes, segundo todos os
estudiosos, se seguem a Homero, como os precedentes, desta vez a Odisseia é
substituída pela Ilíada, onde o tema central é a guerra de Tróia.
Ao contrário do que seria plausível, já que os deuses haviam destinado Enéas a
valer-se da Itália para reconstituir Tróia, encontrará não só apoio mas uma
forte resistência desde que parte dos habitantes locais tratam-no como intruso.
Na terrível guerra que se segue, desfilam heróis e deuses homéricos. Embora
Virgílio não haja concluído o poema, a parte que chegou até nós acha-se
entremeada de circunstâncias que permitem ao poeta referir o glorioso destino
reservado á Itália e reverenciar seu protetor, o Grande Augusto. Com a ajuda
dos deuses, Enéas ganha a guerra e, recusando de modo frontal as súplicas do
rei Turno, comandante das tropas que lhe opuseram resistência “arrebatado de
cólera, enterra a espada no meio do peito (de Turno) ... e sua vida (alma),
indignada, foge com um gemido para as sombras.”
O mais antigo exemplar do romance latino a
sobreviver até os nossos dias, ainda que de forma fragmentária, Satíricon foi
escrito por volta de 60 d.C., no período do imperador romano Nero.
Narrando as aventuras de Encólpio, seu amante
Ascilto e o servo Gitão, que formam um tumultuado triângulo amoroso e se metem
em uma série de confusões para pagar uma dívida ao deus Priapo, o livro é uma
grande sátira à caótica civilização romana, ao mesmo tempo em que registra de
forma ferina as relações entre os diferentes estratos sociais da época.
Tudo é impreciso quando se trata de Petrônio
Árbitro, a quem a tradição atribui a autoria do Satíricon:
personagem da política romana sob Nero, chegou a cônsul e chefe de cerimonial —
elegantiae arbiter — no palácio do imperador, antes de ser obrigado a cometer
suicídio em 66 d.C. por envolvimento numa conspiração. Seja como for, uma coisa
é certa: a prosa do Satíricon não tem nada de vago ou de
impreciso, pródiga que é de traços fortes, detalhes argutos e alusões ferinas.
Em Satíricon Petrônio lança os
leitores no meio do caos plebeu e mundaníssimo da Roma imperial, que se
descortina ao sabor das cambalhotas do enredo. Seus personagens são de toda
origem e de vária plumagem, de retores a gladiadores, de prostitutos a
novos-ricos, cada um deles dotado de voz própria, crassa, lépida.
Andam todos às voltas com o desejo e a ambição,
motores centrais desse universo — e, vez por outra, também com a nostalgia e a
melancolia. Têm todos, sobretudo, que se haver com a escrita cômica e paródica
de seu autor, que não poupa nada nem ninguém — e que faz do Satíricon uma
das obras centrais da literatura latina e — por que não? — do romance
ocidental.
Pouco se sabe sobre Petrônio Árbitro, que a
tradição considera ser o autor do Satíricon. De sua suposta lavra
seriam apenas, além do próprio texto remanescente do romance, alguns fragmentos
e poemas esparsos.
A julgar pelas informações indiretas fornecidas
pelo historiador romano Públio Cornélio Tácito (55-117 d.C.) em sua obra Anais (XVI.18-19),
o autor de Satíricon seria o político romano Tito Petrônio
Árbitro, que exerceu importante papel junto a Nero como chefe do cerimonial do
palácio imperial, função que, em latim, se dizia elegantiae arbiter (que
significava algo como “perito, especialista, promotor de elegância,
refinamento”).
Essa atuação como um verdadeiro promoter teria
valido a Petrônio a alcunha de Arbiter (Árbitro), que ele portava junto a seu
nome. Além de ter sido um dos conselheiros do imperador, teria ocupado cargos
importantes no Império Romano como procônsul da província da Bitínia, antiga
região do noroeste da Ásia Menor por onde hoje se estende a Turquia, no litoral
do Mar Negro, e como cônsul eleito em Roma. Tendo sido envolvido na conspiração
de Pisão contra Nero em 65 d.C., foi forçado a suicidar-se, o que teria
ocorrido no ano de 66 d.C.
2.4. DANTE E A COMÉDIA
Muito boa e
gratuita esta edição de A DIVINA COMÉDIA:
Livro
A Divina Comédia, de Dante Alighieri, pela Dra. Rebeca Fuks
O poema épico escrito pelo
autor Dante Alighieri (1265-1321) é um clássico da literatura
mundial escrito durante o Renascimento. A extensa obra,
toda composta em versos, é dividida em três partes:
Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada uma delas possui exatamente 33 cantos. A Divina Comédia foi
escrita em
florentino,
no início do século XIV, e pretendeu fazer
uma síntese enciclopédica do conhecimento científico e
filosófico da Idade Média.Nela o protagonista do livro A Divina Comédia é
o próprio poeta Dante Alighieri que percorre uma viagem entre três instâncias
completamente distintas: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Ao longo do
caminho, Dante vai cruzando com amigos e conhecidos, figuras públicas ou do
universo pessoal do autor, e debatem sobre os mais variados temas. É extremamente
descritiva e contempla imensos detalhes visuais. Enquanto se encontra no
inferno, Dante recebe a ajuda do poeta romano Virgílio, que serve como uma
espécie de guia. Virgílio (70 a 19 a.C.), autor dos tempos de Júlio César, foi dos
maiores poetas da Antiguidade, tendo escrito o clássico Eneida.
Dante era um admirador profundo da poética de Virgílio, por isso é a ele que
pede ajuda para percorrer o doloroso caminho. Quando está no céu, por sua vez,
quem realiza o trabalho de acompanhamento é Beatriz, uma musa inspiradora que
foi a paixão platônica de Dante durante a adolescência. Beatriz é símbolo do
amor divino e é responsável por guiar o poeta para fora da selva.
O poema possui três personagens principais:
·Dante, o protagonista que personifica o homem;
·Beatriz, que representa a fé;
·Virgílio, que pode ser considerado o símbolo da razão.
A Divina Comédia é basicamente a história da conversão de um pecador ao
caminho de Deus. Os versos sublinham a necessidade de se seguir o caminho do
bem e da ética.
O protagonista é o
símbolo do ser humano vulgar e representa o cidadão comum, que tem dúvidas,
hesita, é tentado pelo mal. Ao mesmo tempo, Dante não se vê exatamente como uma
criatura humilde e, no Canto IV (do Inferno), se coloca lado a lado com grandes
escritores:
Olha o que vem à frente qual decano
dos outros três, segurando uma espada;
ele é Homero, poeta soberano;
o satírico Horácio junto vem,
terceiro é Ovídio e último Lucano.
Desde que cada um deles detém
os mesmos dotes co’os quais fui saudado,
recebo sua honraria como convém.
Assim o belo grupo vi formado
da escola do senhor do excelso canto
cujo vôo, como d’águia, é incontestado.
Longo foi seu colóquio, e entretanto
acenavam a mim, e eu vi o prazer
no sorriso do Mestre meu, porquanto
o privilégio iriam me conceder
da acolhida na sua comunidade.
E assim fui sexto entre tanto saber
Assistimos ao longo do poema como o protagonista é alvo de tentações e como
contorna os obstáculos que, aos poucos, vão se apresentando pelo percurso.
Nesse sentido considera-se A Divina Comédia como
uma obra moralizante, isto é, uma obra que reafirma os valores cristãos (embora
apresente alguns elementos pagãos).
O próprio papa Bento
XV, em declaração oficial, sublinhou a importância da composição de Dante:
"Embora não seja escasso o
número dos grandes poetas católicos que unem o útil ao agradável, em Dante é
singular o fato de que, fascinando o leitor com a variedade das imagens, com a
vivacidade das cores, com a grandiosidade das expressões e dos pensamentos, ele
o arrasta ao amor da sabedoria cristã. (...) A sua Comédia, que merecidamente
recebeu o título de divina, mesmo nas várias ficções simbólicas e nas
recordações da vida dos mortais sobre a terra, não visa a outro fim senão a
glorificar a justiça e a providência de Deus"
Apesar de ser uma
criação de forte elogio à Igreja, A Divina Comédia também
pode ser lida como uma crítica à instituição em determinados momentos
específicos.
Embora alguns
críticos apontem a publicação como sendo uma epopeia, não se pode considera-la
efetivamente como uma porque não se trata de uma história ficcional de um herói
que batalha pelo seu povo ou pela sua região.
O correto seria
classificá-la como um texto didático alegórico (didático porque tem como fim o
ensinamento e alegórico porque é construída a partir de símbolos).
História da
publicação
O livro, redigido em
italiano, foi publicado em três partes. A primeira delas foi divulgada em 1317,
a segunda em 1319 e a terceira após a morte do autor. Estima-se que Dante tenha
dedicado catorze anos da sua vida a composição do livro (iniciou em 1307 e
concluiu o trabalho pouco antes de sua morte, em 1321).
Trata-se de um poema épico narrativo
rigorosamente simétrico, cada parte possuindo 33 cantos, com aproximadamente 40
a 50 tercetos. O número três é essencial para a construção do poema. Os
versos são escritos a partir de uma técnica original conhecida como terza rima, onde as estrofes de dez sílabas, com três linhas cada rimam de uma
determinada maneira específica.
Originalmente o livro chamava-se apenas Comédia,
tendo ganhado o título composto apenas posteriormente, em 1555, na edição
veneziana composta por Ludovico Dolce.
Quem primeiro observou que o nome deveria ser A Divina Comédia,
pelos assuntos que o livro abordava e pela qualidade com que o trabalho foi
feito, foi o poeta Giovanni Boccaccio (1313-1375).
Em Trattatello
in laude di Dante, composto em 1357, Boccaccio explicita que a obra
de Dante, que considerava brilhante, merecia título mais adequado. Somente em
1555, na impressão preparada por Ludovico Dolce, o título A
Divina Comédia ficou eternizado para sempre.
Sobre o autor Dante
Alighieri
Escritor fundamental
da literatura medieval, Dante Alighieri nasceu em Florença, na Itália, no ano
de 1265 (estima-se que tenha sido no dia 25 de maio), filho de dona Bella e de
Aldighiero Alighieri.
Dante ficou órfão
muito jovem. A mãe faleceu quando o menino era ainda criança e o pai quando o
jovem tinha apenas dezoito anos.
Apesar de ter sido
casado e tido filhos (pelo menos três), Dante nutria um amor platônico por
Beatrice de Folco Portinari, uma amiga de quando tinha 9 anos que veio a
reencontrar em 1283. Beatrice casou-se em 1287 com o banqueiro Simone dei Bardi
e Dante casou-se com Gemma Donati dois anos antes, em 1285. Beatrice morreu
subitamente em 1290, para desespero do escritor italiano.
Dante foi bastante
consagrado em vida, tendo sido celebrado como o maior poeta da região da
Toscana. De acordo com R. W. B. Lewis, autor de Dante:
"Já em 1321, as duas
primeiras partes da Comédia encontravam-se transcritas e à disposição de
leitores havia alguns anos, e Dante era aclamado em quase toda a Toscana como o
maior poeta da região."
Sua obra-prima, A
Divina Comédia, foi profundamente celebrada. Harold Bloom, um dos
mais duros e importantes críticos literários, escreveu em O
cânone ocidental que:
“o poema de Dante possui uma
qualidade inominável, talvez tão grande quanto os melhores versos de Hamlet ou
Rei Lear."
Além de escritor,
Dante Alighieri atuou como político, tendo pertencido ao partido moderado. Ele
estudou na universidade de Bologna nos anos em torno de 1285. Foi exilado de
Florença por suspeita de corrupção, improbidade administrativa e oposição ao
papa quando ocupou cargos públicos. Durante o exílio viveu em Forlì, Verona,
Arezzo, Veneza, Lucca, Pádua, Paris, Bologna, Verona e Ravenna.
O autor morreu aos
56 anos, no dia 14 de setembro de 1321, em Ravenna, na Itália.
Principais obras de Dante Alighieri
A Divina Comédia foi a obra-prima de Dante e o trabalho que mais lhe ocupou
tempo e dedicação, no entanto o escritor italiano também redigiu alguns outros
livros, confira abaixo:
La Vita Nuova
Coletânea de poesias
publicado em 1292 em homenagem ao seu amor platônico, Beatrice.
Convivio
Incompleta, a obra
reúne quatro tratados que pretendiam reunir todo o conhecimento da época.
De Vulgari Eloquentia
Obra mais sucinta
onde Dante defende veementemente a língua italiana.
De Monarchia
Escrito em 1310, é
um tratado sobre política onde Dante defende a total separação entre a Igreja e
o Estado.
BASSETTO,
Bruno Fregni. Elementos de filologia
românica. São Paulo, Edusp, 2001.
FARIA,
Ernesto. Fonética histórica do latim.
Rio de Janeiro, Livraria Acadêmica, 1975.
MARTINS,
Maria Cristina. A língua latina: sua
origem, variedades e desdobramentos. Porto Alegre: UFRS, 2004.
MAURER
Jr., Theodoro Henrique (1951) A unidade da România ocidental. USP/FFLCH. Gramática do latim vulgar. Rio de
Janeiro, Acadêmica, 1959.
[1]A
maior parte das gramáticas latinas dedica-se
à morfologia, apresentando as declinações dos nomes e a conjugação dos verbos
(o sistema de concordância nominal e verbal), como sendo a própria gramática
latina. Quanto à sintaxe, pouco se encontra nessas gramáticas, mas
destacam-se as seguintes peculiaridades (sintáticas) da língua latina: o acusativo com infinitivo, as diversas
funções do ablativo, inclusive a oração subordinada em ablativo, o chamado "ablativo absoluto" e o emprego das
formas nominais do verbo.
[2]Falemos
sobre esta Ode
I, 11 de Horácio, o Carpe diem. Tal poema é um dos mais importantes
da obra do poeta latino. Ode, entre
os antigos gregos, era o poema lírico destinado ao canto. Aqui um texto
original, de métrica elaborada. Falamos de língua latina; literatura latina;
poesia; Horácio.No que diz respeito à morfologia nominal e verbal, deve-se dar
destaque a formas como nefas (neutro indeclinável da 3ª declinação), di (ao
lado de dei e dii), Leuconoe (palavra grega da 1ª declinação), quicquid (ou
quidquid, neutro de quisquis, pronome relativo indefinido, substantivo ou
adjetivo), pluris (ou plures) e pumex, -micis, valendo lembrar que é sempre bom
enunciar os verbos nas duas primeiras pessoas do singular do presente do
indicativo, no infinitivo presente, na primeira pessoa do singular do perfeito
do indicativo e no supino (em anexo). Quanto à sintaxe dos tempos e dos modos,
merecem digressão os empregos do futuro perfeito do indicativo (fugerit), do
perfeito do subjuntivo (dederint) e a ordem negativa (ne + presente, 1ª e 3ª
pessoas, ou perfeito, 2ª pessoa, do subjuntivo). Deve-se chamar a atenção para
ne... nec, bem como para seu... seu. No mais, procurar explicar as elipses,
particularmente a última, postero diei. A tradução é escolar, sem pretensão
poética, o mais literal possível. O emprego do verbo de ligação deve ser
explicado em “saber é ilícito” e “como é melhor”. A tradução livre requer
esclarecimento em “há de vir”. A expressão spatio breui é geralmente entendida
como temporal, mas também se vê na passagem uma conotação causal. A lição “por
causa da nossa breve existência” encontra guarida em Péricles Eugênio da Silva
Ramos, explicativa: “que é breve o nosso prazo de existência”. A forma dederint
é traduzida pelo perfeito do indicativo em português. O latim emprega o
subjuntivo pois a oração quem mihi, quem tibi finem di dederint é objeto do
verbo quaero, tratando-se de uma interrogativa indireta, o que alguns
tradutores não observaram. Ao desenvolver as notas, foi mantido o texto da
Hachette, pois o confronto com edições críticas mais recentes não o desabonou
para a empreitada. O dicionário de António Gomes Ferreira (1983) deve ser usado
com cautela, pois carece de uma revisão de conteúdo, o que pode comprometer o
trabalho do aluno, sendo necessária a presença de um professor experiente. São
exemplos de suas incorreções: sapio (4ª por 3ª conjugação), flos, lapis,
Messala (femininos por masculinos), anas (sílaba final longa por breve), quoque
(sílaba inicial longa por breve). O candidato a concurso que não tem fluência
em língua estrangeira deve se servir do velho Saraiva (1993), sobretudo na
prova de tradução e comentário. Ainda para o candidato, é de boa política fazer
uso da pronúncia restaurada ou reconstituída, uma vez que é a mais usada nos
cursos superiores de Letras do Brasil. Também se recomenda a adoção da
ortografia empregada na Collection des Universités de France (Les Belles
Lettres), como se fez com o texto da ode em estudo, apesar das incoerências de
tal ortografia: os antigos romanos não usavam a nossa letra U nem conheciam as
nossas minúsculas. Carpe diem O papel da morte, em Horácio, é ensinar a viver,
colhendo o dia de hoje, como se fosse um fruto, sem alimentar longos projetos.
Ninguém sabe quando será o fim, inútil consultar os
Horóscopos. O suicídio fica completamente excluído. O fim só depende dos
deuses. O modo de gozar o dia de hoje deriva do espírito eucarístico do vinho,
nada tem a ver com um epicurismo vulgar, como pensam os que nunca entenderam o
poeta. Não se pode quebrar as leis da natureza, impostas pelos deuses.
Etimologicamente, Leucônoe quer dizer mente branca, limpa, vazia no sentido
zenbudista