Ser,
viver e contar: uma escrita de si
O recurso à
ficção no trabalho biográfico é, com efeito, inevitável na medida em que não se
pode restituir a riqueza e a complexidade da vida real. Não apenas o biógrafo
deve apelar para a imaginação em face do caráter lacunar de seus documentos e
dos lapsos temporais que procura preencher como a própria vida é um entretecido
constante de memória e olvido.
(DOSSE, 2015, p. 73)[1]
O trabalho biográfico, além de uma
perspectiva historiográfica em voga na contemporaneidade é, sobretudo, um
gênero literário, uma maneira de expressar sentimentos, vivências, olhares,
modo de ser e viver. Corroborando como Dosse, o trabalho biográfico não se
desvincula da vida real, pois as memórias do vivido são relembradas e
ressignificadas nas reelaborações dos registros: escritos ou orais. As
lembranças do passado são caracterizadas por lapsos de memórias, pois a
incapacidade de captar o passado na sua totalidade é uma característica
inerente ao conhecimento humano.
A memória constitui um instrumento
imprescindível na construção, tanto da biografia quanto da ficção, tornando um
elo entre o vivido, o memorizado e o rememorizado. Para Ricoeur, “a
memorização, em contrapartida, consiste em maneiras de aprender que encerram
saberes, habilidades, poder-fazer, de tal modo que estes sejam fixados, que
permaneçam disponíveis para uma efetuação, marcada pelo ponto de vista
fenomenológico, por um sentimento de facilidade, de desembaraço, de
espontaneidade.” (RICOEUR, 2007, p. 73)[2]
Os estoques de memórias são elementos fundantes para a conexão da temporalidade
- passado, presente e futuro; não necessariamente seguindo uma ordem linear,
mas obedecendo a uma lógica de identificação e representação do vivido com o
vir a viver. A recordação é a marca temporal que constitui o traço distintivo
da evocação.
A lupa utilizada para captar
lembranças, recordações e registros humanos é apropriada de formas diversas, a
depender da área de interesse de quem busca conhecer. Para Chartier, “entre
história e ficção, a distinção parece clara e resolvida se se aceita que, em
todas as suas formas (míticas, literárias, metafóricas), a ficção é um discurso
que ‘informa’ do real, mas não pretende representá-lo nem abandonar-se nele
[...].” (CHARTIER, 2010, P. 24)[3]
Para a ficção há a permissão de conjecturar possibilidades e liberdades
inerentes à imaginação do sujeito que elabora a sua criação.
Sobre
a perspectiva do campo do conhecimento, Bloch defende que a história investiga
o homem no tempo, pois são os homens que a história quer captar; nesse sentido,
o historiador atua como farejador de carne, de carne humana. Mas “do caráter de
história como conhecimento dos homens decorre sua posição específica em relação
ao problema da expressão. Será uma ciência? Ou uma arte?” (BLOCH, 2001, p. 54)[4]
No que pode mudar a importância da história se ela não for uma ciência?
Tornar
a história uma ciência conforme o estatuto das ciências duras foi uma
preocupação dos historiadores do século XIX.
Esta tendência foi perdendo espaço para o campo da história cultural,
principalmente na França com a escola dos Annales
ou École Annales, a partir de 1929. O
debate culturalista e interdisciplinar intensificou-se na segunda metade do
século XX, com a terceira geração dos Annales,
permitindo o diálogo com outras ciências humanas como a Antropologia, a
Sociologia a Linguística, assim como, com outras formas de apropriação do
conhecimento, dando espaço para uma nova história: novos objetos, novos
problemas e novas abordagens.
No
campo da história cultural, novos temas ocupam lugares antes pertencentes à
história econômica, militar e políticas, privilegiando estudos sobre cotidiano,
gênero, etnia, biografia etc. Possibilita-se assim, um olhar mais ampliado das
narrativas, das representações, das identidades, das memórias individuais e
coletivas. Conforme Veyne, “[...] a história biográfica e anedótica é a menos
explicativa, mas a mais rica do ponto de vista da informação, já que considera
os indivíduos nas suas particularidades e detalha, para cada um deles, as nuances
do caráter, a sinuosidade de seus motivos, as etapas de sua deliberação.” (VEYNE,
1998, p.12)[5]
Dando voz e vida às histórias singulares pouco presentes na história oficial.
A
história no sentido mais amplo é uma linguagem que estabelece diálogo com os
variados campos do conhecimento. Em sua ampliação dialógica, abre caminho para
prosear como o saber popular e erudito através das artes, da cultura popular e
da literatura. Nessa lógica, a aproximação entre história e literatura não é um
romance recente, desde longe a história flerta com a invenção literária. Se
para a história a temporalidade é uma variável essencial, para a literatura a
intemporalidade instiga a densidade e a fluidez para aguçar os sentidos que
encorpa o resultado do labor.
A
obra de Moisés Monteiro de Melo Neto intitulada: BIOGRAFIA,
AUTOBIOGRAFIA, AUTOFICÇÃO: literatura e história em entrelaçamentos vivenciais propõe um memorial acerca da
produção acadêmica e, consequentemente, literária, teatral e artística em
atuações na Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL. O professor Moisés,
lotado no Campus III, município de Palmeira dos Índios-AL, brilhantemente
desenvolve ações de ensino, pesquisa e extensão. Sua atuação ultrapassa os
muros da universidade, pois sua inquietude contagia os alunos e colegas
professores para se integrarem às suas atividades.
Neste
livro o autor faz uma cartografia dos referenciais teóricos, metodológicos e
estéticos dos trabalhos realizados. Descreve a sua formação acadêmica de
graduação, mestrado e doutorado em Letras; sua atuação no Magistério, há mais
de trinta anos, teatro, dramaturgia/dramaturgismo, além de experiências como escritor
de contos, romances, ensaios e textos acadêmicos que proporcionam um dinamismo
eclético em suas habilidades, como também um trânsito livre em vários dos
campos interdisciplinares do saber.
Em
relação às práticas interdisciplinares, Moisés estabelece um diálogo estreito
entre a literatura e a história, se apropriando do gênero biográfico, utilizado
também pela historiografia. Harmoniosamente, estabelece sua narrativa com os
gêneros ficção, bioficção e autoficção numa tentativa de compreender as
relações sociais e culturais que envolvem a humanidade.
Este
livro é um convite para o mergulho profundo sobre biografia, autobiografia,
ficção e autoficção. Assim, esses gêneros literários procuram alcançar
sentimentos e expressões identificados no palco da vida.
Profa.
Francisca Maria Neta
UNEAL/GEPIM
Recife,
10 de novembro de 2020
[1]
DOSSE, François. O desafio biográfico: escrevendo uma vida. 2 ed.
São Paulo: Editora da USP, 2015.
[2] RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.
[3] CHARTIER, Roger. A história
ou a leitura do tempo. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
[4] BLOCH, Marc. Apologia da
história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
[5] VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Brasília-DF: Editora da UNB, 1998.
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