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quinta-feira, 12 de novembro de 2020

BIOGRAFIA, AUTOBIOGRAFIA, AUTOFICÇÃO: literatura e história em entrelaçamentos vivenciais (livro do Prof. Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto)

 

 

 

 

Ser, viver e contar: uma escrita de si

 

O recurso à ficção no trabalho biográfico é, com efeito, inevitável na medida em que não se pode restituir a riqueza e a complexidade da vida real. Não apenas o biógrafo deve apelar para a imaginação em face do caráter lacunar de seus documentos e dos lapsos temporais que procura preencher como a própria vida é um entretecido constante de memória e olvido. 

(DOSSE, 2015, p. 73)[1]

 

            O trabalho biográfico, além de uma perspectiva historiográfica em voga na contemporaneidade é, sobretudo, um gênero literário, uma maneira de expressar sentimentos, vivências, olhares, modo de ser e viver. Corroborando como Dosse, o trabalho biográfico não se desvincula da vida real, pois as memórias do vivido são relembradas e ressignificadas nas reelaborações dos registros: escritos ou orais. As lembranças do passado são caracterizadas por lapsos de memórias, pois a incapacidade de captar o passado na sua totalidade é uma característica inerente ao conhecimento humano.

            A memória constitui um instrumento imprescindível na construção, tanto da biografia quanto da ficção, tornando um elo entre o vivido, o memorizado e o rememorizado. Para Ricoeur, “a memorização, em contrapartida, consiste em maneiras de aprender que encerram saberes, habilidades, poder-fazer, de tal modo que estes sejam fixados, que permaneçam disponíveis para uma efetuação, marcada pelo ponto de vista fenomenológico, por um sentimento de facilidade, de desembaraço, de espontaneidade.” (RICOEUR, 2007, p. 73)[2] Os estoques de memórias são elementos fundantes para a conexão da temporalidade - passado, presente e futuro; não necessariamente seguindo uma ordem linear, mas obedecendo a uma lógica de identificação e representação do vivido com o vir a viver. A recordação é a marca temporal que constitui o traço distintivo da evocação.

            A lupa utilizada para captar lembranças, recordações e registros humanos é apropriada de formas diversas, a depender da área de interesse de quem busca conhecer. Para Chartier, “entre história e ficção, a distinção parece clara e resolvida se se aceita que, em todas as suas formas (míticas, literárias, metafóricas), a ficção é um discurso que ‘informa’ do real, mas não pretende representá-lo nem abandonar-se nele [...].” (CHARTIER, 2010, P. 24)[3] Para a ficção há a permissão de conjecturar possibilidades e liberdades inerentes à imaginação do sujeito que elabora a sua criação.

Sobre a perspectiva do campo do conhecimento, Bloch defende que a história investiga o homem no tempo, pois são os homens que a história quer captar; nesse sentido, o historiador atua como farejador de carne, de carne humana. Mas “do caráter de história como conhecimento dos homens decorre sua posição específica em relação ao problema da expressão. Será uma ciência? Ou uma arte?” (BLOCH, 2001, p. 54)[4] No que pode mudar a importância da história se ela não for uma ciência?

Tornar a história uma ciência conforme o estatuto das ciências duras foi uma preocupação dos historiadores do século XIX.  Esta tendência foi perdendo espaço para o campo da história cultural, principalmente na França com a escola dos Annales ou École Annales, a partir de 1929. O debate culturalista e interdisciplinar intensificou-se na segunda metade do século XX, com a terceira geração dos Annales, permitindo o diálogo com outras ciências humanas como a Antropologia, a Sociologia a Linguística, assim como, com outras formas de apropriação do conhecimento, dando espaço para uma nova história: novos objetos, novos problemas e novas abordagens.

No campo da história cultural, novos temas ocupam lugares antes pertencentes à história econômica, militar e políticas, privilegiando estudos sobre cotidiano, gênero, etnia, biografia etc. Possibilita-se assim, um olhar mais ampliado das narrativas, das representações, das identidades, das memórias individuais e coletivas. Conforme Veyne, “[...] a história biográfica e anedótica é a menos explicativa, mas a mais rica do ponto de vista da informação, já que considera os indivíduos nas suas particularidades e detalha, para cada um deles, as nuances do caráter, a sinuosidade de seus motivos, as etapas de sua deliberação.” (VEYNE, 1998, p.12)[5] Dando voz e vida às histórias singulares pouco presentes na história oficial.

A história no sentido mais amplo é uma linguagem que estabelece diálogo com os variados campos do conhecimento. Em sua ampliação dialógica, abre caminho para prosear como o saber popular e erudito através das artes, da cultura popular e da literatura. Nessa lógica, a aproximação entre história e literatura não é um romance recente, desde longe a história flerta com a invenção literária. Se para a história a temporalidade é uma variável essencial, para a literatura a intemporalidade instiga a densidade e a fluidez para aguçar os sentidos que encorpa o resultado do labor.

A obra de Moisés Monteiro de Melo Neto intitulada: BIOGRAFIA, AUTOBIOGRAFIA, AUTOFICÇÃO: literatura e história em entrelaçamentos vivenciais propõe um memorial acerca da produção acadêmica e, consequentemente, literária, teatral e artística em atuações na Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL. O professor Moisés, lotado no Campus III, município de Palmeira dos Índios-AL, brilhantemente desenvolve ações de ensino, pesquisa e extensão. Sua atuação ultrapassa os muros da universidade, pois sua inquietude contagia os alunos e colegas professores para se integrarem às suas atividades.





Neste livro o autor faz uma cartografia dos referenciais teóricos, metodológicos e estéticos dos trabalhos realizados. Descreve a sua formação acadêmica de graduação, mestrado e doutorado em Letras; sua atuação no Magistério, há mais de trinta anos, teatro, dramaturgia/dramaturgismo, além de experiências como escritor de contos, romances, ensaios e textos acadêmicos que proporcionam um dinamismo eclético em suas habilidades, como também um trânsito livre em vários dos campos interdisciplinares do saber.

Em relação às práticas interdisciplinares, Moisés estabelece um diálogo estreito entre a literatura e a história, se apropriando do gênero biográfico, utilizado também pela historiografia. Harmoniosamente, estabelece sua narrativa com os gêneros ficção, bioficção e autoficção numa tentativa de compreender as relações sociais e culturais que envolvem a humanidade.

Este livro é um convite para o mergulho profundo sobre biografia, autobiografia, ficção e autoficção. Assim, esses gêneros literários procuram alcançar sentimentos e expressões identificados no palco da vida.

 

 

Profa. Francisca Maria Neta

UNEAL/GEPIM

Recife, 10 de novembro de 2020

 

 

 



[1]  DOSSE, François. O desafio biográfico: escrevendo uma vida. 2 ed. São Paulo: Editora da USP, 2015.

[2] RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

[3] CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

[4] BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

[5] VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Brasília-DF: Editora da UNB, 1998.

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