Ah,
poder multiplicar os fantasmas de mim mesmo, até o ponto de reconhecer-me como
ninguém!
Nunca
me imaginei no ofício de coveiro, mas é
o que fazemos depois de velhos:
enterrar amigos e parentes.
Estar
em Lisboa fazia-me observar, ao modo de
Fernando Pessoa “talvez eu tenha
voltado a Portugal para saber
quem sou” (cena no romance de Saramago) diz Ricardo Reis; Salazar
Riv). É como se um heterônimo meu me dissesse: “tudo é insignificante. Que
papel vem a ser o dos homens? Sei:
devemos nos negar a acompanhar
nossos fantasmas em direção à morte, não
é?”
Se
o romance convencional em 200
páginas expressava a visão de mundo do autor e número restrito de
personagens, Roberto Bolaño, há uns 20
anos lançou o seu “os detetives
selvagens”, com cerca de 600, e os best-seller / comum fazem assim (vide “Game of thrones”). (sobre o fim
de Utopia revolucionária na América Latina).
Prof. Dr. MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO:
"Não podemos perder o bonde da história, nem esquecer que literatura é ficção e vida"
O
romance de Tiago Salazar tem pouco mais de 300 páginas e foge com o tempo num painel geracional, já os norte-americanos
arriscam o romance enciclopédico com
dezenas de personagens e mistura de temas numa
estrutura intrincada, torrencial
e caótica, misturando linguagem
acadêmica com gírias e até incorreções
gramaticais. Perguntei a Tiago
Salazar se ele tinha lido “Graça infinita” (do Ianque
David Fostes Wallace (1962-2008),
ele afirmou que tinha conhecimento.
eu disse que gostava das digressões filosóficas daquele autor suicida sobre a
tristeza da sociedade de consumo.
Wallace dizia rejeitar o “status quo” de cultura feita para divertimento que os
E.U. impõem com o modelo
para o mundo, infundindo o
individualismo, a hiperconectividade,
particularismos sexuais e étnicos (como faz Jonathan Franzen, no romance
“Liberdade” (2011). Eu disse que achei
legal “cidade em chamas (de Garth
Risk Hallberg), crítica a N. Y.C., que volta no tempo para
criticar o final dos anos 70, época de minha adolescência e que desempenha
no final dos anos 90. Parece que
Halberg queria ensinar alguma coisa com
seu romance meio oitocentista.
Tiago desconversou. Nossa
conversa voltou-se para o Recife e ele disse que conheceu Roger de Renor, amigo e incentivador de Chico Science, que retratou tipos e cenas recifenses nos
anos 90, com influência do pop, indivíduos
diluídos na massificação da vida,
o homem de multidão, coveiro das
ilusões românticas, tipo “voltei, Recife, a saudade me trouxe pelo braço”.
Rimos muito e fomos a uma livraria, ele me apresentou o agente
literário dele, naquele 7 de janeiro de
2020. Isso já dentro da Livraria
Leya, oficina e livro (15,50
euros ). Tiago fora para o Festival do
1º Romance de Chambéry.
Prof. Dr. MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO e o romancista portuguêsTiago Salazar
Pus-me
a pensar no itinerário sinuoso que a
Providência me traçou e que eu segui de uma etapa à outra acreditando ser o meu
próprio guia. Devia continuar a fazer de conta que era eu
próprio que tomava as decisões? O livro de Tiago era de 2016.
Fiquei
imaginando o ânimo realista português ao
tratar do amor, como no romance Os Maias,
ou Machado, em Brás Cubas e Quincas Borba. Citei O
grande Gatsby, que fez do amor romântico
apenas um entre vários temas do
seu conteúdo, como no romance de Tiago; a psicanálise diz que o amor romântico é uma ilusão do imaginário. Proust
o trata ironicamente. Ciúme e desespero pavoroso, hoje,
são sintomas da psicopatologia cotidiana. É franqueza identificar amor com sexo? (eu e minhas sinceridades ultrajante, Tiago
ria) com as minhas tiradas e que nem sempre são bem-aceitas, esse meu discurso
sobre sexualidade. Acho que o discurso amoroso é hoje
de uma extrema solidão. A ciência
não aprofunda a discussão sobre o amor, parece tema inatual.
Despedi-me
de Tiago convidando-o a voltar ao Recife.
Eu comecei a preparar uma matéria para uma
revista. o tema, é óbvio: “Literatura contemporânea”. pensei
em fazer algo sobre “reparação”, romance de inglês Ian McEWan,
considerado o 1º grande romance do terceiro milênio. O enredo exibe família rica e se inicia em 1935, na Inglaterra, seguindo por 6 (seis) décadas. Os amantes Robbie (filho da empregada) e
Cecilia que são separados por garotinha chamada Briony (que vai retornar
escritora). Ele mora na 2ª Guerra.
Briony sente-se culpada., a narrativa é
coisa de mestre. Faz-nos lembrar a
questão de como nos utilizamos da memória sem nos deixar imobilizar por
ela. Ao contrário da recherche
proustiana, às vezes queremos esquecê-lo. Narrar é apenas estruturar lembranças? As aventuras existências, quando rememoradas.
Lembrei-me de o museu da inocência, romance de Orhan Pamuk.
Cuja
narrativa mescla exotismo com aspectos sociológicos e tem ambientação em Istambul, em estilo lento puxando para o
clássico.
No
meu artigo eu comentava as nuances de um romance de clima e daqueles outros
cuja importância está centrada em reflexões filosóficas, as digressões na
narrativa, no romance em questão percebe-se diferenças entre amor e processos e
estados existenciais.
Eu
estava com meu notebook e na varanda do Lisboa City, na suíte do 7º andar, onde visualizava, um
ângulo de 180º um parte interessante de
Lisboa, junto à casa de misericórdia. Há
muitos bares e restaurantes. Saía à noite e jovem instrumentistas cantavam o vira de maneira melancólico em
meio ao fins noturno numa pracinha.
Que
diferença, fazem ao mundo os amores obsessivos?
A garotinha do romance que eu estava analisando envelhece e vai se aperfeiçoando como escritora. Analisa seu amor infantilizado numa atitude
de quem aceita pensar e enfrentar as
incertezas da nossa época. o
entrelaçamento de trajetória que o amor
provoca aqui uma reescritura, numa
espécie de metaliterariedade dando à
intriga o tempero da possível “reparação”,
mas será que isto é vida ou só mesmo ficção? A ficção dá forma e
significação à vida real, tão cheia de
ambiguidade, também. Briony acha que destruiu o amor daquele casal, mas será
que eles teriam sido felizes
se ela não tivesse denunciado Robbie? Afinal as forças das convenções sociais podem ser avassaladoras na elite da
Inglaterra e em qualquer lugar. Só a ficção oferece final feliz.
Com
referências mais plásticas e cinematográficas do que literárias, certas obras
exigem a noção de intertexto mais puxada para a intersemiose (vários sistemas
sígnicos) mesmo sem grandes armações lúdicas na
narrativa. Pode também haver
referências interculturas e até intratextualidade (com outras obras do próprio
autor), afinal escrita e leitura
não cessam de lembar ruma da outra, cabendo ao leitor ter conhecimento literário
sólido e boa memória: um romance traz
ideias, possibilidades, através de casos imaginários que, às vezes, guardamos
com maior nitidez do que s acontecimentos reais e os levamos mais a sério. Se é
o autor falando pela boca doe
personagem, não o sabemos Montaigne, em 1580,
dizia “sou eu mesmo a matéria do
meu livro”.
As
condições ideológicas e históricas do
nosso tempo, o desenrolar da trama e as
reflexões das personagens nos fazem pensar que inocência já não cabe neste século XXI, tão desconjuntado, será que os sujeitos contemporâneos à década de 20
deste século estão presos a um
corpo que pretende deter a passagem
do tempo e simularmos amor numa atividade sexual compulsiva num mundo que os empurros para uma
história sem saída entre a memória e a
invenção de uma nova maneira de amar e viver?
Evitar os lugares-comuns e ao mesmo tempo prender a atenção do leitor
não é tarefa fácil, quando o que se deve fazer é administrar as surpresas e
suspenses.
Somos
prisioneiros da nossa história cultural
cheia de perdas de referências e nostalgia de tempos menos agitados do que o nosso?
O que dirão os historiadores de cultura material sobre nossos dias, no futuro?
Que usos e gostos são estes nossos, agora? No que diferem tanto do final do século passado? O que suscitará maiores
reflexões sobre o comportamento humano em nossa época, além de
comunicação digital e a fragilidade ética, a banalização da violência, a desimportância dos sentimentos, as novas concepções, sobre Deus e a justiça nesta época estranha?
Encontrar um paratexto que nos sirva como epígrafe não é tarefa fácil, os jovens de hoje jamais se apaixonaria se não nos ouvissem
falar do amor, mas que força terá no
futuro esse modelo de amor que estamos forjando, hoje? Parecerá arcaico diante do ceticismo
generalizado e rompe os limites do eu?
Vemos que a autoficção, a autoexposição nas redes sociais, o individualismo forçam
uma tendência quase umbilical
entre a vida do autor e a obra numa mitomania literária.
O narcisismo e o voyeurismo avançam, como nos
já antigos reality shows e prevemos
novos gêneros literários que representem o cuidado de si e da “POLIS”, mostrar o eu,
que parecerá inominável, então ressurgido numa narrativa
que lembrará a vida do autor, como
Marguerite Duras o fez em “O Amante” (1984), mesmo que
não se acredite mais na possibilidade de dizer a verdade sobre si
mesmo, sobre a existência, em autoficção, esse gênero
literário que reúne memórias e romance, romanesca biografia, ou ainda registro imediato da experiência,
não necessariamente memorialística, numa invenção de um eu fantasioso em oposição
ao caráter absolutamente verdadeiro dos
fatos, em verbalização imediata.
A
verdade reinventada através do autor-personagem-narrador (!) reconfigurando sua
vida em inversão cronológica, mistura de épocas, remexendo suas verdades interiores (experiência mais
linguística do que literária?). aqui o
sistema de signos não representariam a “realidade”, mas fariam
apenas a referem, demonstração,
em ordem pluridimensional (o real).
Assim a ordem unidimensional (a linguagem) numa espécie de recusa que rompe
paralelos entre o real e a
linguagem se chama aí literatura, ainda,
mesmo quando o enunciado, na ficção, não tem referencial fixo (eu/outro), dependendo
do contexto de fala para que seu referente seja
identificado: eis a autoficção
(considerando a teoria literária e os
perturbados linguísticos).
Prof. Dr. MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO, em Londres, exemplifica a bioficção: "Arthur Conan Doyle criou Sherlock Holmes e deu a ele um endereço verdadeiro, em Londres."
A
verdade vire ficção (potencialmente) e esta injunção, é um discurso imaginário
onde, às vezes, o “real” não pode ser alcançado diretamente, só se
manifestando no duplo, pois quando narramos nossas vidas ela se revestem de autoficções, dando sentido ao que passou, mesmo que seja
sentido provisório, imaginário e quando
se trata de literatura a proporção é maior. O pior se dá quando expomos os outros que conhecemos, mas a literariedade pode salvar a obra, a livre expressão, o que espraia na boa
literatura: a polifonia (versus o discurso monológico), de um eu não complacente consigo, não vaidoso
que se questiona objetivamente.
O narrador da bioficção não deve ser autocentrado, de preferência seria de bom tom fazer
digressões sobre literatura, artes que
conhece e apreciou por exemplo: descrever objetos que o leitor contemporâneo conhece (de uso globalizado), marcas,
ingredientes culinários, pormenores aparentemente, significantes, mas que fazem
a diferença, são os efeitos de real, em linguagem
menos metafórica do que
referencial, o que se destaca num mundo
afogado na modernidade líquida das imagens virtuais. Se também usa o estranhamento poético, faz bem. Fazer o leitor sentir-se como se
folheasse um livro de arte tirado da
estante acima do sofá, como escreveu
Cecília Meireles: “a vida só é possível reinventada”.
Representar
a alma ferida/danificada do nosso tempo. é
ao mesmo tempo comprazimento com o
cotidiano, com o doméstico, a festa na prisão do consumo barato, da ostentação fake de apego aos objetos
num mundo produzido em série”.
Outro
fato a se discutir aqui é a ideologia.
Ideologia não é simplesmente conjunto de ideias relativas ao papel do
homem no mundo, é também as más intenções embutidas na divulgação destas ideias
e a literatura também é veículo
delas. Marxismo e liberalismo democrático vão tomando novos rumos e as
letras o refletem com seriedade ou em espelho chaplinesco. Há variadas forças (comunismo capitalista chinês,
islâmico e por aí vai). Vivemos uma pós-utopia? Podemos encontrar na literatura
contemporânea um realismo cínico, uma realidade
disfórica? Ou em estado de disforia; que apresenta uma sensação de mal-estar, de
desconforto, de ansiedade e/ou de depressão constante; que se opõe à euforia;
contrário ao que se relaciona com otimismo, ânimo, sentimento de exaltação e de
alegria. quando o desastre já ultrapassou perigo.
Vemos
em alguns casos as denúncias da sociedade
do espetáculo, do mercado globalizado e do absurdo que nos rodeia numa
mídia que usa frases anódinas, medíocres, às vezes.
Eu
sempre achei que o que o escritor tem a dizer é uma importante do que sua forma
escrita. A temática e o estilo que os
leitores atuais preferem seria ainda uma incógnita? O que é uma análise lúcida numa obra
literária, hoje? Provocaria um arrepio de liberdade neste universo
pós-tudo onde existimos? Ofereceria a literatura um lugar imaginário onde, a vida vale a pena ser vivida, isto é, menos
inconfortável mais fraternal num futuro
pós-exótico, erótico, familiar, sacro,
espécie de realismo socialista mágico (no sentido alegórico político) e
que não seja literatura de entretenimento algo que nos permite o reencontro com
o humano?
O
angolano Gonçalo Manuel de Albuquerque Tavares e seus “livros pretos”, uma
teatralogia (“O Reino”), o 1º é “Um
homem: Klaus Keump” (sobre uma
cidade invadida por tropas inimigas). Há algo
nele que nos lembra a tese de Hannah
Arendt: a banalização do mal, que
expõe o modo metódico como
friamente a mídia manipula o horror, mas seria
imprescindível a memória do mal para evitar sua repetição? Contra isso restam a razão e a força (ou a
favor disto) dos discursos morais e políticos?
Estaríamos vivendo o prelúdio de
uma grande tragédia que se anuncia pós-utópico, distópico? Quando tomaremos uma
atitude séria em relação às linguagens estereotipadas na mídia e que as pessoas
repetem. Faz-se ainda necessário que as classifiquemos, pois só assim, deslocando-as, classificando-as, poderemos pensar numa possível revolução. As figuras
são lidas por um lado do cérebro e as palavras por outra?).
É
bom relembrar: a linguagem literária (verbal) não pode representar exatamente o
real, só referir-se a ele (há literatura o verismo é sempre um efeito do real).
Vivemos
sob a égide da homofobia classicista e racista que acha que os índios estão
extintos, a arte é crime ler um romance é perda de tempo, eis nossa era cravada
por hiperinformações
negativas que a maior parte da população introjeta, suando ou se agasalhando
num círculo vicioso meio sem saída, calada, pois só lhe restaria fazer o pior
possível (esculhambar com tudo isso?)
Nesta
estereotipia caótica de discursos na
qual estamos fatalmente mergulhados pululam informações superficiais como vírus
que nos atacam? Literatura não é
resposta: é pergunta.
Sob
a vigilância do desastre:
O
que a literatura pode fazer é estimular
a percepção do real. isto pode se dar
com escrita elíptica, memórias, fragmentos
de reflexão, história individual
destroçada pela “história” (numa ficção documental) ou de modo
tradicional, não importam tanto os deslocamentos estruturais ou temáticas, a literatura conduz o leitor à reflexão. Vamos lembrar aqui o livro do desassossego, escrito como peças de um móbil, por Fernando Pessoa. A desconfiança de hoje do sujeito como eu
Destaco
também o caráter transgenérico de escritores que são também artistas
plásticos, por exemplo. O que é a
linguagem, agora: língua crescida e projetada que só o sufocamento pode produzir?
Desmoronam as últimas barreiras do ser “si mesmo”? toda memória parece insatisfatória quando as
palavras parecem apenas cascas das coisas que passaram, matéria e linguagem, células
de inutilidade ou de utilidade incompreensível na fração circular de cada
segundo. Caberia ao autor, agora, enumerar restos em meio às ruínas culturais
das literaturas engajadas, com
mensagens, em meio ao atual excesso de
informações, consumo, imagens,
tecnologia fantasmagórica ininterrupta deste nexo eterno instante – já atento para deter qualquer epifania? Resta-nos o trabalho de linguagem de outro tipo, dizer o que ainda não foi
dito, dizer menos sobre nossos luto e revolta,
neste monte de inutilidades que temos que limpar, no papel ou no aparelho digital, saber que até isso é uma
dízima, neste hipernomeado e hipersaturado mundo, ao mesmo tempo trágico, grave e engraçado.
Fazer literatura é acreditar no futuro, haverá um
leitor (que pode ser da elite ou do
povo). Os leitores de hoje tornam atuais velhos clássicos (obra literária
concretiza-se na leitura), por isso são
“atuais”). O livro hipermoderno (muito além do “pós-moderno”) enfrentará mau
tempo? Uma era violenta onde a tecnologia auxiliará o totalitarismo e o desamor
geando medo e incerteza? Será o acaso de
futuro (que se transforma em
passado cada vez mais rapidamente)? O hibridismo vai abolir a separação dos gêneros literários? Haverá mais livros calcados em obras
anteriores (intertextualidade) em releitura, reescrita deste mundo cada vez mais fragmentado e disperso na
tentativa de se ver na sua totalidade. Será que estamos na possibilidade de um novo
tipo de fantasioso “realismo”,dessa vez com cara de jornalismo informativo (com marcas de “neutralidade”),
voltando a contar histórias num estilo
comunicativo sem experimentalismos que
dificultem a leitura, a legibilidade?
Uma literatura com a função da
linguagem referencial em destaque
(também a metalinguística e a emotiva) é
o que pressentimos pelo que é lançado no
mercado, agora, sem utopias teleológicas. São textos do Kairós, do hoje, o que acontece na sociedade agora, como faz Patti
Smith, a poeta roqueira que representa na Suécia, cerimônias do Nobel,
Bob Dylan, prêmio Nobel de
literatura (pela 1ª vez dado a um música).
Patricia Lee Smith mais conhecida pelo nome artístico Patti Smith, é uma poetisa, cantora, fotógrafa, escritora, compositora e musicista norte-americana. Ela tornou-se proeminente durante o movimento punk com seu álbum de estréia, Horses em 1975.
Em
meio a mutações temáticas, a literatura segue, longe dos artigos manifestos
lançando novas tendências, temas aí a reinvenção.
É
engajada? Não são as causas defendidas
um texto que o fazem literário e sim sua potência de ser exato ao falar de algo
que estava no mundo e o leitor não percebia e o presente através daquela
linguagem que fala do que não
conseguimos definir facilmente sem esta
linguagem artística, que impulsiona nossa
autoconhecimento, nos fez refletir, seja uma ficção de mil páginas ou um
poema com poucos versos.
Gostaria de terminar citando na
íntegra o discurso que Bob Dylan enviou ou à Academia Sueca seu discurso de agradecimento
pelo Nobel de Literatura, mas pediu à cantora Patti Smith, que fez uma
apresentação emocionada da canção A Hard
Rain's A-Gonna Fall, lançada em 1963, que o representasse:
"Boa noite a todo mundo.
Eu estendo minhas mais calorosas saudações aos membros da Academia Sueca e a
todos os outros convidados e convidadas de distinção presentes na noite de
hoje. Sinto muito não poder
estar pessoalmente com vocês, mas, por favor, saibam que absolutamente estou
com vocês em espírito, e que fico honrado de receber um prêmio de tamanho
prestígio. Receber o Prêmio Nobel de Literatura é algo que eu nunca teria
podido imaginar, nem prever. Desde muito jovem me é familiar a experiência de
ler e absorver as obras daqueles que foram considerados à altura desta
distinção: Kipling, Shaw, Thomas Mann, Pearl Buck, Albert Camus, Hemingway.
Sempre me causaram profunda impressão esses gigantes da literatura cuja obra é
tema de aulas, fica abrigada em bibliotecas de todo o mundo e é mencionada com
palavras de reverência. O fato de eu agora me juntar aos nomes dessa lista me
deixa definitivamente sem palavras. Não sei se esses homens
e mulheres um dia pensaram na honra do Nobel como algo que pudesse lhes caber,
mas imagino que qualquer um que escreva um livro, ou um poema, ou uma peça de
teatro em qualquer lugar do mundo pode acalantar esse sonho secreto, bem no
fundo. Provavelmente enterrado tão fundo que eles nem sabem que está ali.
Se um dia alguém me
dissesse que eu tinha a mais remota chance de ganhar o Prêmio Nobel, eu seria
obrigado a pensar que teria mais ou menos a mesma chance de pisar na lua. A bem
da verdade, durante o ano em que eu nasci e por alguns anos ainda não houve
ninguém no mundo que fosse considerado digno de receber este Prêmio Nobel.
Então, reconheço que estou de fato na mais rara das companhias, para dizer o
mínimo.
Eu estava em turnê quando recebi essa notícia surpreendente, e
levei mais do que uns poucos minutos para assimilar adequadamente a ideia.
Comecei a pensar em William Shakespeare, a grande figura literária. Imagino que
ele se considerasse um dramaturgo. A ideia de que estivesse escrevendo
literatura não podia ter lhe passado pela cabeça. Suas palavras eram escritas
para o palco. Destinadas a ser pronunciadas, e não lidas. Quando estava
escrevendo Hamlet,
tenho certeza que ele estava pensando em muitas coisas diferentes: “Quem são os
atores certos para esses papéis?” “Como isso aqui deveria ser encenado?” “Será
que é a melhor ideia ambientar a peça na Dinamarca?” Sua visão criativa e suas
ambições sem sombra de dúvida estavam no primeiro plano em sua mente, mas havia
também questões mais prosaicas que ele devia considerar e resolver. “O
financiamento está encaminhado?” “Vai haver poltronas boas para todos os
mecenas?” “Onde é que eu vou arranjar uma caveira humana?” Eu seria capaz de
apostar que a questão mais afastada da mente de Shakespeare era “Isso é
literatura?”.
Quando comecei a
escrever canções, na minha adolescência, e mesmo quando comecei a ter algum
renome por causa da minha capacidade, minhas aspirações para essas canções só
iam até aí. Eu achava que elas podiam ser ouvidas em cafés ou em bares, talvez
em lugares como o Carnegie Hall, o London Palladium. Se estivesse sonhando bem
alto, talvez pudesse imaginar que ia conseguir gravar um disco e aí ouvir
minhas músicas no rádio. Era esse o grande prêmio que eu tinha mente. Gravar
discos e ouvir suas próprias músicas no rádio queria dizer que você estava
chegando a um grande público e que não precisava parar de fazer o que tinha
decidido fazer.
Bom, eu venho fazendo o
que decidi fazer já há bastante tempo. Gravei dezenas de discos e fiz milhares
de shows no mundo todo. Mas as minhas canções é que são o centro vital de quase
tudo que eu faço. Parece que elas encontraram um lugar na vida de muita gente
de muitas culturas diferentes e sou grato por isso.
Mas tem uma coisa que eu preciso dizer. Como artista eu já
toquei para 50.000 pessoas e já toquei para 50 pessoas e posso dizer a vocês
que é mais difícil tocar para 50. Cinquenta mil pessoas têm uma só persona, o que não
acontece com 50. Cada pessoa tem uma identidade separada, individual, um mundo
todo seu. Elas podem perceber tudo com mais clareza. Sua honestidade e como ela
se relaciona com a extensão do seu talento entram em julgamento. O fato de que
o comitê do Nobel é tão pequeno não é algo que tenha passado despercebido para
mim.
Mas, como Shakespeare,
eu normalmente estou ocupado demais lidando com meus projetos criativos e
tratando de todos os aspectos das questões prosaicas da vida. “Quem são os
melhores músicos para essas canções?” “Será que estou gravando no estúdio certo?”
“Será que essa música está no tom certo?” Certas coisas não mudam nunca, nem em
400 anos.
Nem uma única vez eu
tive tempo de me perguntar, “Será que as minhas canções são literatura?”.
Então, agradeço
realmente à Academia Sueca, tanto por ter parado para considerar precisamente
essa questão quanto por oferecer, afinal, uma resposta tão maravilhosa.
Tudo de bom a cada um de
vocês" (Bob Dylan)