Sobre montagem de “O que teria acontecido a Bette Davis?”, texto de Moisés Monteiro de
Melo Neto
Traição, renúncia, jogos mentais e
tragicomédia são o tabuleiro onde as personagens de Moisés Monteiro de Melo Neto* movimentam-se ou, melhor dizendo,
debatem-se. As influências vão de Sartre, Shakespeare, Antonin Artaud, Beckett,
Ionesco, Nelson Rodrigues, Plinio Marcos, até o trash das telenovelas e de certas produções hollywoodianas. A
inversão, a perversão, a dialética, a falta de pudor, o pavor do
sentimentalismo e a ironia são os ingredientes que quase invariavelmente levam
os humilhados (ofendidos) a comportarem-se como verdadeiros sadomasoquistas,
enquanto os algozes (ofensores) são expostos como fracos, já que sua
característica comum é a constante negação dos próprios desejos. No fim das
contas, a inversão do jogo é praticamente inevitável. É uma corrente dramatúrgica
que não se rende ao sucesso fácil. Comédia e tragédia misturam-se e
confundem-se constantemente. O riso é tenso e o drama, ridículo. Porém, ao
contrário da noção expressionista (amplamente aplicada por Nelson Rodrigues, um
dos ídolos de Moisés) de que, ao soltar suas feras (demônios interiores), o
homem precipita-se na desgraça, a obra de Moisés afirma que a felicidade, por
mais imperfeita e custosa que seja, só é possível quando o homem para de remar
contra a maré e aceita incondicionalmente esses demônios como parte de sua
realidade, libertando-se da culpa que o persegue por todo o texto. Quando isso
não acontece, aí sim, o homem desintegra-se. Esta característica - na verdade,
quase uma regra - está presente mesmo em seus dois textos infantis, como
"Draculin e o Circo no Espaço" e "A Maior Bagunça de Todos Os
Tempos" e também em sua escolha de textos clássicos para adaptação livre,
como "Hamlet" de Shakespeare e "Fausto" de Goethe.
Dos seus textos escritos nos anos 1980
destaca-se a peça “O que teria acontecido a Bette Davis?”, calcado na
experiência com espetáculos apresentados em espaços alternativos, como foi o
caso do palco da lendária Boate Misty, no Recife. Augusta Ferraz, Henrique
Amaral e Simone Figueiredo eram figuras do grupo ILUSIONISTAS, do qual Moisés
fazia parte. O texto “Bette Davis” tem três personagens: Bette, Negrita e
Frederic. Trata-se de uma peça de vingança. Desde que nasceu, Negrita só sofreu
injustiça por parte de Bette. Negrita era uma filha bastarda e Bette rasgou
todos os documentos e adulterou os documentos par ficar sozinha com a herança
paterna, deixando a pobre Negrita, que também perdera a mãe, uma empregada, na
mais completa desgraça. Bette é atriz ascendente, também dona de Clubs, no
Recife, e está envolvida com o narcotráfico. Negrita intercepta um documento
altamente comprometedor e o jogo vira. Ela e o seu amante, Frederic começam a
chantagear Bette (cujo nome de batismo foi-lhe dado pela mãe, fã de Bette
Davis, diva hollywoodiana).
Moisés recebeu prêmios do Governo de
Pernambuco por seus textos “Cleópatra” e “Delmiro Gouveia” e declarou que suas
maiores influências no Recife eram Buarque de Aquino, José Francisco Filho e Guilherme
Coelho, líder do famoso VIVENCIAL DIVERSIONES (que dirigiu um texto de Moisés e
cuja amizade começou no Vivencial, em 1979, quando Moisés estudava Antropologia,
na UFPE).
A montagem
de “O que teria acontecido a Bette Davis?”, texto de Moisés Monteiro de Melo
Neto, propõe uma discussão sobre a dramaturgia recifense nos anos 1980, década
onde triunfou um gênero que os críticos chamaram de BESTEIROL, um gênero de humor definido por seu conteúdo absurdo,
escrachado, crítico, geralmente usado para criticar situações cotidianas, a
sociedade ou a política), cujos ícones brasileiros foram Mauro Rasi
e Miguel Falabella. O pesquisador sobre o tema e doutor em Literatura
Brasileira pela USP, Luís Francisco Wasilewski (in https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2016/02/o-teatro-besteirol-e-sua-origem-4971231.html
(capturado em 21/07/2022) comenta a origem desse gênero teatral: Foi em
setembro de 1980 que a palavra besteirol surgiu em uma crítica teatral. Macksen
Luiz a usou para rotular As Mil e uma Encarnações de Pompeu
Loredo, comédia escrita por Mauro Rasi e Vicente Pereira, na qual o
esoterismo era abordado sob o prisma de um humor desabrido que não conhecia os
limites do politicamente correto. Alusões cinematográficas, sátira aos costumes
da sociedade brasileira, paródia, travestimento masculino são algumas das
características dessa variante da Comédia de Costumes que surgiu no Rio de
Janeiro oitentista. Em 1981, Mauro Rasi escreveu A Receita do
Sucesso e, no ano seguinte, Pedro Cardoso e Felipe
Pinheiro apareceram com Bar Doce Bar. E um novo traço começou a surgir nos
espetáculos do besteirol, a saber, a estrutura dramatúrgica elaborada a partir
de esquetes, herança que o gênero assimilou do Teatro de Revista. Esse aspecto
fragmentado também serviu como argumento para os críticos. No dia 22 de junho
de 1985, Gerd Bornheim foi convidado pelo Jornal do Brasil para analisar aquele
fenômeno teatral e escreveu: "Mas, prudentemente, os espetáculos não se
alongam muito". O filósofo também apontava para um aspecto superficial nas
encenações. Miguel Falabella respondeu a Bornheim no mesmo jornal dizendo que:
"Do meio desta balbúrdia, uma verdade parece saltar aos olhos: os tempos
mudaram e se exige uma nova dramaturgia. Falabella com Mauro Rasi, Vicente
Pereira, Pedro Cardoso, Felipe Pinheiro, Maria Lúcia Dahl e Luiz Carlos Góes
formam o coletivo de autores que marcou a década de 1980 com espetáculos como A Mente Capta, Classificados
Desclassificados Pedra, A Tragédia, Nada e Sereias
da Zona Sul."
*Moisés é doutor em Letras,
professor na Universidade Estadual de Alagoas, UNEAL e na Universidade Estadual
de Pernambuco, UPE. Tem cerca de 10 livros publicados, alguns premiados e
distribuídos nas redes públicas. Atua nas áreas de Dramaturgia, Literatura Comparada, Estudos Culturais, Produção
Textual, Literaturas de Língua Portuguesa, Representações dos Gêneros,
Bioficção, História e Cinema. É autor de várias peças teatrais. Colaborou com o
Suplemento Cultural da CEPE, com a Revista do Gabinete Português de Leitura e
Jornal do Commercio, Recife, com O Século
(de Garanhuns) e Le Monde Diplomatique, dentre
outros. Faz parte do Programa de Mestrado Profissional em Letras (ProfLetras),
do Programa de Pós-Graduação da UNEAL. Membro dos núcleos de pesquisa e
extensão: NEAB (Núcleo de Estudos sobre África e Brasil) Núcleo de estudos
políticos, estratégicos e filosóficos: NEPEF, e Estudos Literários, Artes e
Ensino: NELIEN e LEPRADIS. Coordena o Grupo de Pesquisa GPLITPOP (Grupo de
Pesquisa em Literatura Popular), da Universidade Estadual de Alagoas. Moisés
escreveu dezenas de peças teatrais que foram premiadas e montadas com sucesso,
como: Delmiro Gouveia, Anjos de Fogo e Gelo (2008), Para um amor no Recife (1999),
Bruno e o Circo (2010), dentre tantas outras. Em 2017 assinou o dramaturgismo
de “Um Minuto para Dizer que te Amo”, peça com sucesso absoluto de público e
crítica. Em 2022, estreou sua peça “Caetés, com o grupo HUMANCENA, de Alagoas. É autor do
roteiro de dança Paralelo 8, uma viagem lírica que usa a dança como
forma de expressão e a literatura como base, que também dirigiu e seleção
musical. A estética buscada na encenação foi a afrociberdelia, conceito forjado
por Chico Science que mescla as influências da cultura africana, cibernética e
psicodélica, o que está na concepção geral do espetáculo e deve perpassar todas
as camadas que envolvem esta criação. O espetáculo ganhou o Prêmio Klaus Vianna,
maior prêmio de dança no Brasil, oferecido pela FUNARTE, em 2007.Ele também tem publicado vários cordéis.