Bandeira-Eu gostava de uma frase de Mário de Andrade...(pausa)
Esta frase repetiu-se milhões de vezes na minha cabeça: “De que vale o resto
tão desprezível?”.
(pausa)
Da última vez que nos
encontramos... eu ria, Mário não
Eu chorava, Mário não
E Mário dizia: “Está claro que nunca falei a você sobre o
que se fala de mim...
O que se fala de
mim! Não desminto...”
Fico relendo aquela sua carta...
“Está claro que
eu nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto. Mas em que
podia ajuntar em grandeza ou melhoria pra nós ambos, pra você, ou pra mim,
comentarmos e elucidar você sobre a minha tão falada (pelos outros)
homossexualidade? Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar o muito de exagero
nessas contínuas conversas sociais? Não adiantava nada pra você que não é
indivíduo de intrigas sociais. Pra você me defender dos outros? Não adiantava
nada pra mim porque em toda vida tem duas vidas, a social e a particular, na
particular isso só interessa a mim e na social você não conseguia evitar a
socialização absolutamente desprezível duma verdade inicial.”
“Quanto a mim
pessoalmente, num caso tão decisivo pra minha vida particular como isso é,
creio que você está seguro que um indivíduo estudioso e observador como eu há
de tê-lo bem catalogado e especificado, há de ter tudo normalizado em si, si é
que posso me servir de “normalizar” neste caso.”
“Mas si agora
toco nesse assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social,
tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho
comigo na rua … veja como eu tenho a minha vida mais regulada que máquina de
pressão…e si saio com alguém é porque esse alguém me convida, si toco no
assunto é porque se poderia tirar dele um argumento pra explicar minhas
amizades platônicas, só minhas.”
“Eis aí uns
pensamentos jogados no papel sem conclusão nem sequencia, faça deles o que
quiser.”
(PAUSA, BAIXA A CABEÇA, VIRA-SE
QUERENDO ESCONDER O CHORO INCONTROLÁVEL)
Ó, Mário! Anunciaram-me que
você morreu!
Meus
olhos, meus ouvidos
testemunharam: A alma profunda,
não. Por isso não sinto
agora sua falta...
Não
sinto agora sua falta (irônico- pausa- tosse) sua falta...Ela virá pela força
persuasiva do tempo. Sua falta virá de súbito um dia...inadvertida, para os demais.
Por
exemplo, assim: à mesa conversarão
de uma coisa e outra. Uma
palavra lançada à toa baterá na franja dos lutos de sangue. Alguém perguntará em que estou pensando . Sorrirei
sem dizer que em você, profundamente.
Mas
agora não sinto sua falta. É
sempre assim quando o ausente partiu sem se despedir: você não se despediu.
Não
morreu! Ausentou-se.
Quando
perguntarem por você, direi: Faz tempo que ele não escreve.
Irei a
São Paulo: você não virá ao meu hotel. Imaginarei: está
viajando.
Saberei
que não, você ausentou-se... para outra vida que continua na vida que você viveu? Por isso não sinto
agora a sua falta. (Bandeira bebe-pega uma carta, olha a plateia buscando
cumplicidade).
Um dia
mensagem de Mário: “Quando você me corrige, geralmente eu aceito e quando não aceito
modifico, parafuso, repenso, trabalho. Isso prova que sei que você me aprecia com
inteligência, com crítica, com
independência de coração. Você comenta que nossa amizade é carteada...Isso não
quer dizer nada. Manu! Isso é que é o mais puro mais elevado
mais masculino feitio e manifestação de amizade”.
Mário, há uma diferença grande entre o você da vida e o você
das cartas. Nas cartas você se abre, pede
explicação, esculhamba. Quando
você está com a gente é...paulista. Você esteve na minha casa e não cometeu a
menor indiscrição.
Esses
paulistas... O Monteiro Lobato
por exemplo: O Lobato é um homem desonesto! Devemos combatê-lo. Descompondo-o? Maldizendo? Não! Inteligentemente. Ele ri-se infamemente dos poetas sem
compreender que os verdadeiros poetas, longe de ser os ingênuos que ele imagina, é que possuem o senso das realidades inteligentemente. (levanta-se
e aponta para alguém)
Quanto
ao Oswald de Andrade, tenho ouvido coisas tremendas contra o caráter de Oswald. É possível. Mas Oswald tem uma perigosa e
deliciosa ingenuidade nos olhos: dá-me
a impressão de uma criança pervertida...Todos nós podemos ajustar contas com o
Oswald, meter-lhe o pau! Nunca porém pôr de lado, porque o movimento moderno
partiu de São Paulo e ele foi o batalhador da primeira hora. Agora quanto ao Graça
Aranha, aí é outra história. O Graça não é amigo de ninguém. É um organizador de grupos, e de dentro do
grupo cabalista de facções. Foi sempre assim e para tal corteja
interesseiramente os piores medíocres. Mente como um diplomata, mas comete gafes que nenhum
diplomata cometeria.
(Bandeira
tosse muito e bebe água num cálice)
Desde
que lhe conheci, Mário, desde o começo senti a sua delicadeza moral e receei
magoá-la. Sempre desejei que a franqueza existisse nas cartas ...nas questões
intelectuais também valessem para a intimidade. Mas você nunca abriu mão das reservas.
Antes
de guardar minha carta de 4 de fevereiro de 1928,você recortou uma palavra que
lhe desagradava
...Somos pobres Mário
Éramos
pobres e tememos, desconfiávamos dos homens endinheirados que têm o poder de lançar ou
não os livros e revistas que propagam nossos escritos...nossa aventura literária.
Mário, serei sempre o Manu, que era como você me chama... me
chamava.
Manu
que parece mano...irmão.
Manu... Manuel...do Recife
“Beijo
pouco, falo menos ainda. Mas invento palavras que traduzem a ternura
mais funda e mais cotidiana...Quando eu morrer dirão que fui um “Lutador”? Que
busquei no amor o bálsamo da vida? Que
encontrei veneno e morte? Que
caçando a fantasia enfrentei este monstro enorme e venci?
Contem!
Contem
que línguas de sangue ardente envolveram-me!
Espalhem! Espalhem as imagens das aleluias de fogo que me acometeram e tomaram o céu de
lado a lado.
Falem,
falem de como expus aos ventos meu coração transverberado.
Mas
basta de lero-lero: vida noves fora
zero! A vida é como você me disse uma vez: gira uma flor do mal. Traz olheiras que escurecem almas.
Que calor!...
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaah!
Os
diabos andam no ar!
Ninguém
se importa!
Todos
embarcam na rua dos beijos da aventura. Mas eu...aqui,no inverno de São Paulo. Este inverno que parece enterro de
virgem...cheio de flores. Cinza
sem odor... (pausa; Bandeira
acaricia uma flor)
Eu
gosto das suas palavras Mário.
(notas de piano enchem o ar, luz muda
drasticamente para Bandeira recita seu “Autorretrato”)
Provinciano
que nunca soube/ escolher uma gravata/Pernambucano a quem repugna a faca do
pernambucano;/Poeta ruim na arte da prosa/Envelheceu na infância da arte/E até
mesmo escrevendo crônicas/Ficou cronista de província/Arquiteto falhado/músico
falado(engoliu um dia o piano mas o teclado ficou de fora).Sem família, religião ou filosofia, mal tendo a
inquietação do espírito que vem do sobrenatural. E em matéria de profissão/ Um tísico profissional.
Eu não
sei dançar...
(Blackout- luzes começam a piscar)
Uns
tomam éter, outros cocaína/Eu
já tomei tristeza ,hoje tomo alegria/Tenho todos os motivos menos um de ser
triste./Mas o cálculo das probabilidades é uma piada/ Sim já perdi pai, mãe, irmãos./ Perdi a saúde também./É por isso que sinto como
ninguém o ritmo do jazz-band / Uns tomam éter outros cocaína /Eu já tomei
alegria!/ Eis aí porque vim assistir a este baile de terça-feira (de carnaval)
tão Brasil! Ninguém se lembra da política.../nem dos oito mil quilômetros de
costas/ A sereia sibila e o ganzá batuca/ Eu tomo alegria.
Mário de
Andrade, sou eu Manuel, Manuel Bandeira do Recife.
Mário:
eu não sei dançar
Eu
tenho todos os motivos menos um de ser triste...
Sou eu
Mário...o Manu.
Manu,
está claro que nunca falei a você o que se falava de mim e não desminto... De que vale certa gente
desprezível?
(toca
um jazz – Bandeira coloca o chapéu, vai sair)
Você
me pediu que destruísse suas cartas, Mário, porque queria que com sua morte tudo se
acabasse...acabasse esse espaço intermediário chamado vida.
Logo
você! Você que me disse “Eu sou 300...350!” E me falava das sensações que
renascem de si mesmas (pausa)
Não
rasguei suas cartas.
Se o
Modernismo foi apenas uma prostitutazinha
intrigante que apareceu para separar amigos, eu fiquei. (pausa)
Nossos
erros no Modernismo foram úteis- hoje somos festejados, estudados...
(som de violinos)
Eu sou
um homem cansado que não tem onde se sentar, Mário...
Eu
preciso de alegria para contrastar essas zonas de silêncio.
Eu não
sei dançar...
(dá
alguns passos em direção à saída)
Você
dizia Mário, que falar de um livro ou de um poema, não passa de um jeito da
gente manusear um caráter, beijar na boca uma alma de gente como a gente e tão
diferente no entanto.
Eles
se aproveitaram de você para fazer piada...
Você
trabalhou, Mário, VOCÊ SE DEU UM DESTINO...
Eles?
Eles ficaram sem se dar um destino.
Adeus
meu amigo(tosse um pouco, ri simpático com olhos felizes)
Adeus
não: Até logo!
(Levanta
o chapéu num aceno- vai saindo e a luz diminui até a escuridão total)
Música
final- para os agradecimentos do ator, talvez)