Pesquisar este blog

quarta-feira, 23 de março de 2022

Manuel Bandeira escreve a Mário de Andrade Peça teatral de Moisés Monteiro de Melo Neto

 


 


 

Bandeira-Eu gostava de uma frase de Mário de Andrade...(pausa) Esta frase repetiu-se milhões de vezes na minha cabeça: “De que vale o resto tão desprezível?”.

(pausa)

                  Da última vez que nos encontramos... eu ria, Mário não

                  Eu chorava, Mário não

                  E Mário dizia: “Está claro que nunca falei a você sobre o que se fala de mim...

                  O que se fala de mim!  Não desminto...

Fico relendo aquela sua carta...

“Está claro que eu nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto. Mas em que podia ajuntar em grandeza ou melhoria pra nós ambos, pra você, ou pra mim, comentarmos e elucidar você sobre a minha tão falada (pelos outros) homossexualidade? Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar o muito de exagero nessas contínuas conversas sociais? Não adiantava nada pra você que não é indivíduo de intrigas sociais. Pra você me defender dos outros? Não adiantava nada pra mim porque em toda vida tem duas vidas, a social e a particular, na particular isso só interessa a mim e na social você não conseguia evitar a socialização absolutamente desprezível duma verdade inicial.”

 

 

“Quanto a mim pessoalmente, num caso tão decisivo pra minha vida particular como isso é, creio que você está seguro que um indivíduo estudioso e observador como eu há de tê-lo bem catalogado e especificado, há de ter tudo normalizado em si, si é que posso me servir de “normalizar” neste caso.”

 

 

“Mas si agora toco nesse assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua … veja como eu tenho a minha vida mais regulada que máquina de pressão…e si saio com alguém é porque esse alguém me convida, si toco no assunto é porque se poderia tirar dele um argumento pra explicar minhas amizades platônicas, só minhas.”

 

 

“Eis aí uns pensamentos jogados no papel sem conclusão nem sequencia, faça deles o que quiser.”

 

(PAUSA, BAIXA A CABEÇA, VIRA-SE QUERENDO ESCONDER O CHORO INCONTROLÁVEL)

 

                  Ó, Mário! Anunciaram-me que você morreu!

Meus olhos, meus ouvidos testemunharam: A alma profunda, não. Por isso não sinto agora sua falta...

Não sinto agora sua falta (irônico- pausa- tosse) sua falta...Ela virá pela força persuasiva do tempo. Sua falta virá de súbito um dia...inadvertida, para os demais.

Por exemplo, assim: à mesa conversarão de uma coisa e outra. Uma palavra lançada à toa baterá na franja dos lutos de sangue. Alguém perguntará em que estou pensando . Sorrirei sem dizer que em você, profundamente.

Mas agora não sinto sua falta. É sempre assim quando o ausente partiu sem se despedir: você não se despediu.

Não morreu! Ausentou-se.

Quando perguntarem por você, direi: Faz tempo que ele não escreve.

Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel. Imaginarei: está viajando.

Saberei que não, você ausentou-se... para outra vida que continua  na vida que você viveu? Por isso não sinto agora a sua falta. (Bandeira bebe-pega uma carta, olha a plateia buscando cumplicidade).

Um dia mensagem de Mário: Quando você me corrige, geralmente eu aceito e quando não aceito modifico, parafuso, repenso, trabalho. Isso prova que sei que você me aprecia com inteligência, com crítica, com independência de coração. Você comenta que nossa amizade é carteada...Isso não quer dizer nada. Manu! Isso é que é o mais puro mais elevado mais masculino feitio e manifestação de amizade”.

 

Mário, há uma diferença grande entre o você da vida e o você das cartas. Nas cartas você se abre, pede explicação, esculhamba. Quando você está com a gente é...paulista. Você esteve na minha casa e não cometeu a menor indiscrição.

 

Esses paulistas... O Monteiro Lobato por exemplo: O Lobato é um homem desonesto! Devemos combatê-lo. Descompondo-o? Maldizendo? Não! Inteligentemente. Ele ri-se infamemente dos poetas sem compreender que os verdadeiros poetas, longe de ser os ingênuos que ele imagina, é que possuem o senso  das realidades inteligentemente. (levanta-se e aponta para alguém)

Quanto ao Oswald de Andrade, tenho ouvido coisas tremendas contra o caráter de Oswald. É possível. Mas Oswald tem uma perigosa e deliciosa ingenuidade nos olhos: dá-me a impressão de uma criança pervertida...Todos nós podemos ajustar contas com o Oswald, meter-lhe o pau! Nunca porém pôr de lado, porque o movimento moderno partiu de São Paulo e ele foi o batalhador da primeira hora. Agora quanto ao Graça Aranha, aí é outra história. O Graça não é amigo de ninguém. É um organizador de grupos, e de dentro do grupo cabalista de facções. Foi sempre assim e para tal corteja interesseiramente os piores medíocres. Mente como um diplomata, mas comete gafes que nenhum diplomata cometeria.

 

(Bandeira tosse muito e bebe água num cálice)

 

Desde que lhe conheci, Mário, desde o começo senti a sua delicadeza moral e receei magoá-la. Sempre desejei que a franqueza existisse nas cartas ...nas questões intelectuais também valessem para a intimidade. Mas você nunca abriu mão das reservas.

Antes de guardar minha carta de 4 de fevereiro de 1928,você recortou uma palavra que lhe desagradava

...Somos pobres Mário

Éramos pobres e tememos, desconfiávamos dos homens endinheirados que têm o poder de lançar ou não os livros e revistas que propagam nossos escritos...nossa aventura literária.

Mário, serei sempre o Manu, que era como você me chama... me chamava.

Manu que parece mano...irmão.

Manu... Manuel...do Recife

“Beijo pouco, falo menos ainda. Mas invento palavras que traduzem a ternura mais funda e mais cotidiana...Quando eu morrer dirão que fui um “Lutador”? Que busquei no amor o bálsamo da vida? Que encontrei veneno e morte? Que caçando a fantasia enfrentei este monstro enorme e venci?

Contem!

Contem que línguas de sangue ardente envolveram-me!

Espalhem! Espalhem as imagens das aleluias  de fogo que me acometeram e tomaram o céu de lado a lado.

Falem, falem de como expus aos ventos meu coração transverberado.

 Mas basta de lero-lero: vida noves fora zero! A vida é como você me disse uma vez: gira uma flor do mal. Traz olheiras que escurecem almas.

Que calor!...

Aaaaaaaaaaaaaaaaaaah!

Os diabos andam no ar!

 Ninguém se importa!

Todos embarcam na rua dos beijos da aventura. Mas eu...aqui,no inverno de São Paulo. Este inverno que parece enterro de virgem...cheio de flores. Cinza sem odor...  (pausa;  Bandeira acaricia uma flor)

Eu gosto das suas palavras Mário.

 

 (notas de piano enchem o ar, luz muda drasticamente para Bandeira recita seu “Autorretrato”)

Provinciano que nunca soube/ escolher uma gravata/Pernambucano a quem repugna a faca do pernambucano;/Poeta ruim na arte da prosa/Envelheceu na infância da arte/E até mesmo escrevendo crônicas/Ficou cronista de província/Arquiteto falhado/músico falado(engoliu um dia o piano mas o teclado ficou de fora).Sem família, religião ou filosofia, mal tendo a inquietação do espírito que vem do sobrenatural. E em matéria de profissão/ Um tísico profissional.

Eu não sei dançar...

(Blackout-  luzes começam a piscar)

 

Uns tomam éter, outros cocaína/Eu já tomei tristeza ,hoje tomo alegria/Tenho todos os motivos menos um de ser triste./Mas o cálculo das probabilidades é uma piada/ Sim já perdi pai, mãe, irmãos./ Perdi a saúde também./É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band / Uns tomam éter outros cocaína /Eu já tomei alegria!/ Eis aí porque vim assistir a este baile de terça-feira (de carnaval) tão Brasil! Ninguém se lembra da política.../nem dos oito mil quilômetros de costas/ A sereia sibila e o ganzá batuca/ Eu tomo alegria.

 

Mário de Andrade, sou eu Manuel, Manuel Bandeira do Recife.

Mário: eu não sei dançar

Eu tenho todos os motivos menos um de ser triste...

Sou eu Mário...o Manu.

Manu, está claro que nunca falei a você o que se falava de mim e não desminto... De que vale certa gente desprezível?

(toca um jazz – Bandeira coloca o chapéu, vai sair)

Você me pediu que destruísse suas cartas, Mário,  porque queria que com sua morte tudo se acabasse...acabasse esse espaço intermediário chamado vida.

Logo você! Você que me disse “Eu sou 300...350!” E me falava das sensações que renascem de si mesmas (pausa)

Não rasguei suas cartas.

Se o Modernismo foi  apenas uma prostitutazinha intrigante que apareceu para separar amigos, eu fiquei. (pausa)

Nossos erros no Modernismo foram úteis- hoje somos festejados, estudados...

(som de violinos)

Eu sou um homem cansado que não tem onde se sentar, Mário...

Eu preciso de alegria para contrastar essas zonas de silêncio.

Eu não sei dançar...

(dá alguns passos em direção à saída)

Você dizia Mário, que falar de um livro ou de um poema, não passa de um jeito da gente manusear um caráter, beijar na boca uma alma de gente como a gente e tão diferente no entanto.

Eles se aproveitaram de você para fazer piada...

Você trabalhou, Mário, VOCÊ SE DEU UM DESTINO...

Eles? Eles ficaram sem se dar um destino.

Adeus meu amigo(tosse um pouco, ri simpático com olhos felizes)

Adeus não: Até logo!

(Levanta o chapéu num aceno- vai saindo e a luz diminui até a escuridão total)

Música final- para os agradecimentos do ator, talvez)



 

Sobre o Prof. Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto

 



Moisés Monteiro de Melo Neto possui graduação em Letras (1992), mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (2011). É professor da UNEAL (Universidade Estadual de Alagoas) e da UPE (Universidade Estadual de Pernambuco). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, atuando principalmente nas seguintes Áreas: Dramaturgia, Literatura Comparada, Estudos Culturais, Produção Textual, Literaturas em Língua Portuguesa, Cordel, Literatura Indígena, Representações dos Gêneros na Literatura, Bioficção, Literatura e História, Literatura e Cinema. Atua no Magistério desde 1992. 





Autor de vários livros (dentre os quais: Abismos da Poeticidade, publicado pelo SESC, Anticânone: literatura em Pernambuco a partir do século XX e Movimento Mangue: Chico Science e outros artistas (2021). Autor de peças teatrais que receberam menções honrosas e prêmios; atuou como colaborador do Suplemento Literário (Caderno C) do Jornal do Commercio, Recife, nos anos 1990. Está na Academia Palmeirense de Letras, Foi dramaturgista da peça Um minuto para dizer que te amo, vencedora de vários prêmios. É pesquisador no grupo de pesquisa NEAB: Identidades culturais: preservação e transitoriedade na cultura afro-brasileira, da Universidade de Pernambuco. Faz parte do Programa de Mestrado em Letras (ProfLetras), oferecido em rede nacional, com a participação de instituições de ensino superior públicas no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB), assim como integra o Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Alagoas e também da Pós-Graduação em História, na mesma Universidade. Em 2019 lançou o livro Shakespeare: um ensaio dramático. Colaborou de 2018 a 2020 com o jornal O SÉCULO, de Garanhuns. Publicou alguns cordéis como O cordel da estrela Janis Joplin, Vampiro do cordel de Pernambuco e Enterrado vivo: o homem que virou cordel. Seu livro CIRCO MÁGICO ALAKAZAM foi publicado pelo Governo de Pernambuco. É membro da Academia Palmeirense de Letras, Ciências e Artes. Faz parte dos núcleos de pesquisa e extensão: NÚCLEO DE ESTUDOS POLÍTICOS, ESTRATÉGICOS E FILOSÓFICOS: NEPEF, Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Estudos Literários, Artes e Ensino-NELIEN- UNEAL, também do Lepdic: Letramentos e Práticas Discursivas e Culturais. Centro de Pesquisa Educacional Experiência no magistério superior: 10 anos. Experiência Profissional: 30 anos de Magistério. Líder do Projeto TUPI Formação do Teatro Universitário em Palmeira dos Índios - Pesquisa e atuação: Teatro como instrumento pedagógico na prática do ensino de Literatura. Lançou no final de 2020 os livros 'Biografia, Autobiografia e Ficção: Literatura e História em Entrelaçamentos Vivenciais', e "Literatura africana de língua portuguesa. Tem participado de congressos, colóquios e encontros, mesmo durante a pandemia nos anos 2020/ 2021. Em março deste ano (2021) proferiu palestra dirigida aos alunos dos cursos EAD da UPE: "Literatura e Sociedade". Suas peças tem sido transmitidas pela Rádio Folha de Pernambuco. Tem publicados artigos científicos com os seus alunos. Ministrou o minicurso Literatura africana de língua portuguesa, pela UNEAL, integrando forças com o projeto do Lepdic, pelo Grupo TUPI, projeto de Extensão na UNEAL. Participa como professor voluntário do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), apoiando a política de Iniciação Científica nas Instituições de Ensino e Pesquisa. Vem apresentando trabalhos em encontros nacionais como o 5º Congresso Nacional de Educação, junho de 2021. Sua peça Shakespeare e os Atores ganhou versão no Youtube, com apoio da Lei Aldir Blanc, estreando dia 6 de junho de 2021. Em julho de 2021 organizou o livro Literatura africana de língua portuguesa: uma prática de ensino. Lançou em 2021 o livro A literatura indígena no Brasil e a representação do índio em outras literaturas, neste mesmo ano, pela Eduneal, editora da Universidade Estadual de Alagoas, organizou LITERATURA DE LÍNGUA PORTUGUESA: ESTUDOS CRÍTICOS (As análises contidas neste livro revelam a importância das diversas perspectivas teóricas e metodológicas de abordagem do texto literário, sempre plural e multissignificativo, reforçado pela singularidade de obras unidas pela língua portuguesa e as singularidades dos seus países de origem), que também inclui um estudo sobre O alegre canto da perdiz, romance de Paulina Chiziane. Seus orientandos vêm defendendo seus trabalhos através de plataformas digitais. A convite do IFPE ministrou palestra Literatura Africana. Compôs Banca Avaliadora no VII CONGRESSO INTERNACIONAL SESC DE EDUCAÇÃO (UFPE/SEBRAE) /2021. Prepara para 2022 o lançamento dos livros CORDEL VIVO e A questão da homoafetividade nas Literaturas de Portugal e Brasil.