Ema Bovary, a Madame de Flaubert
Prof.
Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto (Uneal/ Upe)[1]
Ana
Maria Bastos Macena (Uneal)[2]
Falar da obra
do escritor francês Gustave Flaubert é não ter como fugir de Madame Bovary. Quem se aventurar nesta seara terá herdeiro de
uma fortuna crítica impressionante. No mundo inteiro esta persinagem é conhecida. Ela nunca foi
gente, mas por tantos pontos a conhecemos, que ela lembra alguém com quem
realmente nos frelacionamos, por amizade ou afinidade. Muitos pensadores como Jean-Paul Sartre, nos
fizefam íntimos de Flaubert. Lembrando que o livro de Sartre, chamado O idiota da família, Gustave Flaubert,
tem cerca de duas mil páginas, e é importante para quem depois dele se debruça
sobre a obra. Achamos que algumas ideias de Freud, sobre quem Sartre também
escreveu importante e volumosa obra, seria adequado.
A crítica vem
tratando também a questão do Mal na literatura, o que nos levou aos textos de
Georges Bataille. Antonio Candido nos vem pelo respeito que temos por um
crítico e professor notável. Que horizontes de expectativas tinha a época no
qual o romance foi lançado? O que levou o autor a dizer que Ele era Madame Bovary? Há muito tempo isso
nos provoca a pensar no comportamento. Madame
Bovary, lançado em 1856, tem uma trama ambientada entre os anos 30 do século XIX. Quando encontramos Ema pela
primeira vez, ela saiu da escola/ internato das freiras Ursulinas, já vivia com
seu pai Monsieur Rouault, entediada. Há um quadro na parede da sala, ela pintou
para o “querido papai”, uma representação de Minerva.
Assim, constituindo o lineamento do livro, a personagem Ema expõe a substância da vida, o que nela pareceria inverossímil, na literatura, no máximo seria incoerente. A personagem é basicamente, uma composição verbal, uma síntese de palavras sugerindo certo tipo de realidade [...] sua fisionomia, sem modo de ser é fruto [...] da concatenação da sua existência no contexto (CANDIDO, 2011, p. 78). Ema existe com maior integridade do que um ser vivo.
Estamos numa
época onde a burguesia numa França imperialista tradicional. As regras eram
rígidas, Ema as transgride de tal modo que até nós, seus leitores, poderíamos
inocentá-la, como a maior parte o faz. Porque o narrador parece ao lado dela. É
um narrador onisciente cheios de pensamentos próprios. As suas digressões fazem
dele, também, um conhecido nosso. No inío do livros somos apresentados a ele,
que está em primeira pessoa, um aluno d classe de Charles, considerado um
novato idiota e sofrendo bullying da turmna na frente do professor, que o
repreende e o coloca na bnca próximna ao seu birÔ. O pai do jovem fora de faixa
na sala, o educara de modo péssimo, dando-lhe rum desde cedo e o ensinando a
zombar das procissões, dentre outras coisas. Tal genirtor casqra-se por
interesse. E observemos que a mulher
da época era a dona de casa perfeita, criada
única e exclusivamente para o casamento e cuidados com a sua casa e com
o marido. Ema vai romper, vai exibir sua filhinha Berta nuazinha na frente dos
conviddos, mas quando flagramos Charles, o futuro Sr. Bovary, ele é apenas o
idiota da família e da sociedade.
Sem querer
comparar a vida do autor com sua obra, Flaubert era tão idiota quando tinha dez
anos, que a mãe tinha certa vergonha dele. Os empregdos zombavam dele e diziam
parfa ver se eles esgavam na esquina, ele ia, se levafrmos em consideração o
que disse Sartre sobre ele. Mas Charles é de outro corte. O homem da época, deveria ser o personagem central de tudo isso tendo
direitos que eram negados às mulheres que não soubessem lidar bem com este quadro
social.
Os romancistas da época,
como Walter Scott, que é citado, quando Ema vai à opera,
o narrador é também um cronista de uma apresentação de Lúcia de Lammermoor, adaptação do romance de Scott (sobre uma
mulher que mata o marido) para ópera, por Donizetti. A montagem que ela vai
assistir é com Edgar Lagardy. O marido da protagonista e Leon estão no mesmo
teatro. O amnte e o marido, satisfeitos, até certo ponto. Aí
Flaubert foi, como todos os leitores de hoje devem saber, o de incitar as donas de casa, as retirando de seu papel
dentro do contexto da época.
Vemos aí o poderoso papel da literaura quen do ela atinge
o público mais amplo. Intelectuais e simples leitores ficaram curiosos com o
escãndalo e o livro virou sensaação. Quiseram desclassificar a obra, torná-la obsoleta, no início até evitr o
acesso a este tipo de romance, que expunha a
sociedade burguesa numa escrita tão refinada e simples.
O discurso amoroso, e aí pensamos nas ideias de Roland
Barthes, nesgte romance se dá de modo audacioso, subliminar, subrfepticiamente,
até. Ao romper com o modelo de mulher do século
XIX submissa, Ema é tão natural que esconde a obviedade da sua traição. Num momento que se uma mulher fosse
descoberta em adultério seria discriminada
e julgada severamente pela sociedade. Foi somente em 1857 que a lei do divórcio foi aprovada, mesmo que os direitos
entre os sexos fossem diferentes, pois,
como antes citado
a mulher não exercia tantos
papéis influentes na época.
Certas coisas do
sexo feminino, que hoje conhecemos como marcas ideológicas, eram os tais
aprendizados apenas de atividades voltadas para o lar,
impossibilitando que a mulher tivesse algum tipo de formação para o mercado de trabalho, já que não era bem visto
uma mulher fora de casa, trabalhando e ganhando dinheiro pra casa, era um papel unicamente masculino.
Quanto a
Charles, desde muito cedo sua mãe já tinha traçado seu destino profissional, seria
médico. O rapaz que tivera educação escolar conturbada, um padre distraído, e
para entrr na escola de medicina, após ser reprovado, embora fosse discenge
sempre presente, emora não conseguisse entender o que os profesores diziam,foi
reprovado, mas a mãe conseguiu-lhe nova oportunidade, ele decorou as respotas e
passou. Teve sorte no primeiro caso, mas depois vai passar vexame na carreira.
Ema considera o marido um idiota e logo
o casamento vira um jogo entediante para ela que vai buscar excitação com
outros. Ela busca reescrever o seu presente e dar voz ao futuro
utilizando a experiência para tentar modificar sua própria vida, mesmo rompendo
com pressupostos éticos e morais. A própria vida desta personagem é como
reflexo da sociedade em que vivia e que, para ela, era insuportável. Os estudos
de gênero, hoje, têm tornado ainda mais vigoroso nosso olhar sobre as obras
mais antigas, como Madame Bovary, por
exemplo. Isso porque o atual estudo da literatura, hoje, vem se fortalecendo na
Academia por este viés tão importante. Sim, somo um gênero seguindo ou não os
nossos desejos, sufocando ou não as nossas paixões, muitos são iguais ao
personagem Ema, não só as mulheres casadas, não só as nascidas fêmeas. Se poderia ser politicamente incorreto
analisar, em termos técnicos, uma literatura que tem apenas função politicamente
correta, é outra questão. Existem outros aspectos literários (o aspecto social,
o histórico e o cultural) que dão vazão à experiência humana.
Analisar
os reflexos biográficos numa obra literária é iluminar o entrelaçamento da
Literatura com a História, sabendo que elas só podem ser salvas por elas mesmas
e que a fusão das duas pode ser, de certo modo, facilitadora do girar dos
prazeres intelectuais (sem fetichizar
a base teórica e a terminologia específica, nem a esquecer) de uma boa leitura,
dando sentido à vida, o que parece uma tarefa cada vez mais necessária em meio
a tanta coisa supérflua.
Ao atendendo o paciente, o sr.
Rouault, Charles soube que a jovem Ema era órfã de mãe e única filha daquele
senhor, que era um lavrador de posses. Havia o acidente com a perna deu-se na
véspera, na festa de Reis, na casa de um vizinho. Era viúvo há dois anos. Vivia
a nossa personagem central, que o ajudava no governo da casa. O médico frequentando,
mais do que o necessário, aquele paciente, atraído por aquela jovem educada,
bonita e solteira. Mas Héloise,
então esposa de Charles, não gostava das frequentes visitas do marido pois
sabia que na casa havia a tal jovem atraente. Desconfiada, Héloise reparou que
Charles voltou àquela propriedade algumas vezes, mais do que era necessário.
Ela pediu para que ele não voltasse a visitar o doente e o marido, obediente, aceitou,
mas quando o pai de Héloise faleceu, e o advogado num golpe levou os bens da
família dela e o casal começou a entrar em crise até que Héloise faleceu e após
cinco meses sem visitar a jovem Ema, Charles conseguiu se aproximar da família
dela. Os dois decidiram se casar e Charles pediu isto ao sogro, que aceitou.
A esposa mais jovem, não mudou muito o modo como ele se comportava com as mulheres.
Ao casar ele e arranjar tralho numa cidadezinha pequena, ele se acomodou. Frustrando Ema que achava que
com seu casamento seria um ser humano
mais livre e feliz. Perdeu o gosto nisso, é notório. O texto artístico, aqui é muito bem trabalhado. A tessitura
flaubertiana nos envolve numa malha cheia de deseseperos e atrativos. A arte é o absoluto mais possível e ela não tem que ser
engajada. Mesmo em meio a esta época de certo desprezo à e esquecimento da alta
cultura e da literatura, cabe suprir o que não é dito pelos outros textos. Ela
não precisa mostrar o mundo e nem acrescentar algo a ele. O que a
literatura pode é fazer saber que não há apenas uma verdade. As verdades são
contradizentes e incertas.
Ao perder muito cedo a sua mãe,
faltando-lhe aquela figura materna
e feminina que algumas jovens possuem e na qual poderia até se inspirar, ter como modelo. Sobrou-lhe a figura paterna. O pai se
dedicou aos cuidados a fazenda
e ela, desde muito nova aprendeu
a dominar e tomar decisões de forma independente.
Aos treze anos o seu pai a levou a cidade para o internato
numa boa escola.O piano, a pintur, as letras e muito mais.
Os livros que lia, falavam de amores,
de amantes, damas perseguidas que desapareciam em pavilhões solitários, correios que morrem em todas
as estações de troca, cavalos em disparadas em todas as páginas, florestas sombrias, problemas
sentimentais, juramentos, soluços, lágrimas e beijos, barquinhos ao luar, rouxinóis
nos bosques, cavalheiros valentes como leões, mansos como cordeiros, virtuosos
como ninguém e, sempre de fortuna e ainda por cima chorões.”
(FLAUBERT, 1999, pag. 41).
Ema era sonhadora ao ponto de imaginar que seu enamorado viria buscá- la de forma absolutamente romântica e
galante, que ele sairia do fundo da floresta, exuberante em seu cavalo e a
levaria para viver aventuras inesquecíveis, viveriam
um romance cheio
de prazeres, marcante,
emocionante. Mas como sua
realidade não foi a que ela idealizou.
Ela até pensou que seria bom casar com Charles,
logo se viu enganada enganada. Não teria ali a embriaguez do amor. No lar, na
sociedade, no quarto, nada. O que faz uma esposa assim, hoje? Então nasceu sua
filha. Perdeu as esperanças. O marido nem
quando morou em Rouen, ia aos teatros ver
os atores, cantores de Paris. Não sabia nadar, nem lutar, nem atirar de
pistola; não sabia nada de arte, de literatura. Ela organiza tudo, toma as
decisões, recebendo o dinheiro que lhes era pago pra Charles por suas consultas
assumindo as rédeas do “lar”. Na relação conjugal dos Bovary, os papéis mulher-homem
logo se invertem.
Assim sendo, ao investigarmos, interpretarmos
criticamente a percepção de acontecimentos através das ações desta Madame,
estamos, também, resgatando a memória da humanidade, ampliamos a compreensão da
nossa condição humana, agora. E essa seleção relativa de dados
do objeto gritante que é esta personagem, encadeamos percepções em aparente
desordem. Poderíamos, se quiséssemos, também imaginar que estamos falando como
as coisas podem vir a ser, de hoje em diante, a partir de um olhar sobre o
passado. Numa espécie de história à prova de tempo, onde os fatos passam a não ter tanta importância
quanto a vivência interior na tentativa de resgate do sentido e busca de um
novo sentido. Atravessar a trajetória da existência de um personagem literário
icônico, como se fosse um espírito pluralizante. Lembremos que uma das tarefas
do historiador seria fazer o passado deixar de parecer uma coisa que se
desdobra no presente, o presente desta personagem seria a indeterminação da
sensibilidade. O empoderamento lhe
vem sem grandes esforções e sua queda vai se dar mais pelo viés financeiro e
com a proximidade do abismo entediante que sempre estava no seu horizonte de
expectativa.
Ema passa a ser a personalidade dominante e Charles, a
dominada. Ela impunha o tom, ele obedecia-lhe as vontades, de início apenas em
questões domésticas e logo em outros domínios: Ema, por exemplo, encarrega-se
de cobrar as faturas dos pacientes, obtém um poder notarial para tomar as
decisões e transforma-se no senhor e chefe da família. Consegue essa hierarquia
quase sempre por bem, pois basta-lhe um pouco de astúcia, uns mimos, para
transformar Charles num instrumento da vontade dela; mas se necessário não
vacila em recorrer à força, como no momento em que põe o marido entre a cruz e
a caldeirinha, fazendo com que escolha entre ela ou a sogra. (FLAUBERT, 1999, pág.
119).
Qual
o propósito desta personagem, além de abraçar o que está ao seu alcance? Que
espécie de vida ela estava enxergando/ projetando para o seu futuro? Freud, em O Mal-estar na Civilização comenta sobre
o propósito da vida humana, questão levantada várias vezes sem resposta
satisfatória:
[...] se fosse
demonstrado que a vida “não” tem
propósito, esta perderia o valor [...]
temos o direito de descartar a questão [...] só a religião é capaz de
resolve a questão de propôs da vida [...]
os homens querem ter felicidade e
assim permanecer [...] eis o princípio
do prazer. Esse princípio domina o funcionamento
do aparelho psíquico desde o início (FREUD, 1996b, p. 83-84).
No meio desse
romance tão insatisfatório com Charles, Emma acaba por engravidar de seu marido
e mesmo com toda frustração que rodeava sua vida queria que, por fim, um de
seus desejos fossem finalmente atendidos o seu bebê teria que ser um menino, já
que em sua cabeça um homem seria livre e c capaz de aproveitar o mundo de
maneira mais proveitosa, sem as travadas que lhes foram impostas por ser
mulher. Mas, infelizmente para ela quando chega a hora de dar a luz, e logo
depois, quando seu marido toma a criança em seus braços anuncia a esposa que
era uma menina, e ela teve uma reação aterrorizante:
Deu à luz num
domingo, cerca das seis da manhã
- É uma menina!
Exclamou Charles. Emma virou o rosto para o lado e desmaiou. (BOVARY, 1857.
pág.).
A decepção
tomou conta de Emma, sua insatisfação ao saber que sua filha era uma menina, e
pior, que poderia ser tão insatisfeita amargurada e frustrada como a mãe a
deixou arrasada, chegando a desprezar sua filha, e logo mais foi mais cruel a
deu para uma ama de leite, cujomirônico nome é Felicidade, que vai acopahá-la
dali oor diane até a sua morte trágica. A empregada vivia em uma completa
miséria.
Como alguns escritores transformaram história e vida comum
em ficção literária? Esta experiência entre fundo e forma não implica na
banalização da literatura nem em prejuízo à história, ao fato. Pensemos com
Sartre, que passou anos estudando a vida de Gustave Flaubert e seu contexto
social; Proust, na ânsia de revelar a sociedade à clef na sua Busca do Tempo
perdido; Tolstói, com seu monumental Guerra
e Paz (sobre as guerras napoleônicas na Rússia); ou Stendhal, com O Vermelho e o Negro (o
autor colhia no mundo real, na veracidade, somando traços de sua personalidade
e fatos que aconteceram na sua vida particular para constituição da
personalidade de Julien Sorel) e lembremos
que quando se trata da arte literária: falar
é agir, toda coisa nomeada já não é exatamente a mesma. Agindo assim,
poderíamos perguntar se o real se revelava à contemplação e transcrição em
forma literária. O Flaubert usa seria mais como uma representação do seu país
naquela época, uma pintura íntima de um tipo de mulher naturalmente ousada.
Ema aos pouco foi perdendo todos os escrúpulos,
não parece exatamente maldade, é algo como testar os limites da hipocrisia,
encontrando a oportunidade num baile ao qual ela e o marido foram convidados.
Surgem
oportunidades para amores arriscados cheios de paixão e sabor de coisa proibida,
o que parece ao leitor que estuda a obra, que a chegada de Rodolfo e Léon à sua
vida, oferece um caramanchão de afetos.
O gozo com a literatura, o amante recitava poemas, conversas interessantes e excitação
juvenil, ela já esava ficando madura. Apareceram-lhe três fios de cabelo
branco. Madame Bovary logo ficou encantada
pelo moço: “ Leon punha-se ao lado dela e juntos olhavam as gravuras e liam as
legendas aos pés das páginas. Frequentemente Ema lhe pedia que dissesse versos,
e Léon declamava com voz arrastada, que fazia morrer nas passagens de amor.” (FLAUBERT,
1857. Pág. 66-67).
Em certo
momento a personagem até tenta sua redenção, mudar seu comportamento em casa,
trata sua filha bem, busca ser virtuosa, mas sua natureza aventureira e
desprendida não é facilemnte esquecida. O jovem Léon não sai da sua cabeça, ela
sonha e devaneia aquele amor que não pode ter, enquanto se vê presa em uma vida
que, por mais que ela chegue a tentar não consegue se acostumar. Nem um dos
dois amntes vai ao seu enterro. O que é o Mal?
O
mal é o sonho do bem? A morte é a
punição procurada? Sentimos, através da
narrativa um misto de percepções em relação a personagem – título. Toda a
estrutura da narrativa parece-nos asséptica. Os refinados comentários do
narrador fazem das suas digressões algo atraente e charmoso, ainda hoje, nos
nossos tumultuados dias. Ema tem o caráter esfíngico dos que ousam, mesmo sem
garantias. Há algo como uma estranha beatitude no seu perpétuo tormento, que
atrai o leitor a um claro enigma: como romper a interdição?
A
lei não é denunciada
em si mesma, mas o que ela interdita não é um domínio em que o homem não tem
nada a fazer. O domínio interdito é o
domínio trágico [..] sagrado [...] a humanidade? Exclui, mas para engrandecê-lo. Ele subordina
este acesso a expiação – a morte –, mas o interdito nem por isso deixa de ser
um convite, ao mesmo tempo que um obstáculo’ (BATAILLE, 1989, p. 18-19).
As
aventuras de Ema não poderiam suportar o mundo racional dos cálculos. Ela rompe com o interesse comum, com seus
movimentos impulsivos, preferência pelo instante presente a afastar da
maturidade.
O narrador nos
mostra um lado um tanto ingênuo na posição de Ema para sua relação com o amor,
ela possui uma arrogância e petulância diante dos homens que passam por sua
vida, esperando de forma infantil que eles possam vir a suprir seu vazio, de
modo que nem ela mesma sabe o que quer de verdade, pois não consegue sossegar
com homem algum, e sempre quer algo que nem ela mesma sabe o que e,
infantilidade sem tamanho. Temos acesso ao pensamento de Rodolfo quando Ema cai
nos seus braços. Ele pensa em como, depois de se satisfazer, vai se livrar
dela. Dái surgiu o termo bovarismo para explicar este tipo de gente que se
sente muito importante, quando está sendo apenas tola.
Sem dúvida ela deve estar cansada dele. O homem tem unhas sujas e uma barba
de três dias. Enquanto ele vai ver os doentes, ela fica a remendar meias. Deve
ser aborrecido! Ela gostaria de morar na cidade, dançar polca todas as noites!
Coitadinha! Ela sonha com o amor, como o peixe sonha com a água numa mesa de
cozinha. Com três meses de galantaria, adoraria qualquer um, tenho certeza!
Seria ótimo... encantador! Sim, mas como livrar-se dela, depois? (FLAUBERT,
1999, 92).
Ele olhava para
Ema e via destacado em seus olhos o quanto ela era infeliz e sonhava com uma
vida que seu marido não poderia oferecer, em meio aquela cidadezinha, pois nem
ao menos sabia que a esposa era infeliz. O narrador vai como que saboreando os
comentários e introspecções das personagens. Charles é mostrado quase como um
completo ignorante para com os sentimentos de Ema. Ainda por cima agtendeu mal
um cliente e este teve que amputar a perna, o que fez crescer a fama de
incompeente, principalmente diante da esposa.
Ao aguçar a apreensão
da realidade, a literatura conduz o leitor à reflexão. A linguagem flaubertiana
faz com que a língua crescida e projetada faz com que Madame Bovary nos expresse o grito mudo que só o sufocamento pode
produzir. Percebemos nela um desmoronamento das últimas barreiras do ser “si
mesmo”, quando toda memória, a lembrança dos bons momentos, dela torna-se
insatisfatória e as palavras parecem apenas cascas das coisas que passaram,
matéria e linguagem, células de inutilidade ou de utilidade incompreensível na
fração circular de cada segundo. Resta-nos o trabalho de linguagem de outro
tipo, dizer o que ainda não foi dito, dizer menos sobre nosso luto e nossa revolta,
neste monte de inutilidades que temos que limpar, no papel ou no aparelho
digital, saber que até isso é uma dízima, neste mundo atafulhado, isto é, cheio
até transbordar.
Já na
representação de Rodolfo, o narrador mostra sua capacidade de planejar; mas os seus
pensamentos em relação a Ema são mais carnais, o que poderia deixar o leitor contra ele. Mas o autor criou
um narrador com uma peculiar polifonia: deixa ao leitor uma atitude diante do
seu modo de ver as coisas na sociedade. A personagem Ema é manipulada, ele a
fascina, como satisfazer a esposa de Charles, que tem seus momentos de triunfo,
também. Mas o tom que impera na relação dos dois é assim, como este monólogo
interior dele
[...] passarei por lá algumas vezes, mandarei presentes, animais caçados;
tomarei sangrias, se for preciso; tornar-nos-emos amigos, convidá-los-ei para
virem à minha propriedade... Ah, e daqui a pouco será época da feira, ela irá e
eu a verei. Começarei a agir com astucia; é mais seguro. (FLAUBERT, 1999, p.
95).
Nem tão
impiedoso e de uma crueldade sem grandes pretensões, ele evita pensar nos
sentimentos dela. Quis tê-la em seus braços, da forma que pudesse e bem
entendesse. O marido não desconfiaria de nada. Ema, com o seu desejo parcialmente
saciado, em breve percebe que continua vazia, querendo mais.
Charles
só descobriu a vida secreta da esposa querida muito depois que ela se
suicidara. Ficando viúvo, ele herdou a série de dívidas que a esposa fizera com
suas aventuras extraconjugais, as quais ele desconhecia. Assim, aquele
incompetente médico de província precisou abrir mão do seu patrimônio. Charles
cheio desgosto, tornou-se alcoólatra, decadente, terminou por falecer de modo
prematuro, deixando a filha do casal, Berta, ainda muito jovem, a cargo da mãe
dele. Mas com o passar do tempo a avó também morreu e a menina ficou sob
responsabilidade de uma tia muito pobre, que a enviou para trabalhar numa
fábrica de algodão. Mais uma ironia do autor, espécie de estocada final numa
sociedade que observou com curiosidade aquele livro.
Sabemos que, se por um lado a literatura é paz e êxtase,
por outro é dor extrema, perdição e redenção num caminho longo para quem pensa
estar só na vida e busca neste tipo de escrita uma potencial euforia para
suprir um desejo não correspondido. O gosto do tema me toca
pelo lado estético e até pelos desdobramentos éticos. Para literatura, o que é
fato ou ficção quando trata de memórias de décadas atrás? Verdade reinventada
mesmo que seja ao nível até mais básico da linguagem, para soar de maneira dramática,
trágica ou até mesmo... cômica, jogando com a noção de realidade de modo
subjetivo. Duas pessoas não dariam exatamente a mesma versão de um
acontecimento, haveria o “punctun” barthesiano agindo sobre o olhar de
cada uma delas.
A
insatisfação de Ema, que teve este desfecho trágico, independe de gênero,
classe. Parece-nos universal e
atemporal. O romance de Flaubert é um enigma que persiste. É literatura
imortal, técnica, mundividência e cristalização abordando nossas mais profundas
angústias que, expressam assim em alta cultura, mostram à nossa humanidade. O adultério e suicídio de Ema foram
meticulosamente trabalhados pelo autor que levou cerca de cinco anos para finalizar
sua obra-prima, carregada com uma toxicidade cujas consequências, ao exibir
o desregramento frenético de uma personagem ninfomaníaca e que se entregou à
fuga da realidade, foram alvo de muitos comentários, para dizer o mínimo.
A
ilusão de liberdade do “eu”, a alta ansiedade, faz-nos ver nesta personagem
certo tipo de anti-heroína. Ela é paradoxalmente. Flaubert fez-nos observar o
mundo com os olhos dela, autodecepcionada com a falsificação da vida. Assim,
com um tom irônico, o narrador conclui o seu retrato.
Referências
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991,
p. 70
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Porto Alegre:
L&PM, 1989.
CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: perspectiva, 2011.
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary.11. ed. Rio de Janeiro:
Ediouro 1999
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão e outros trabalhos,
1927-1931. Rio de Janeiro: Imago, 1996a.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização e outros
trabalhos, 1927-1931. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu e outros trabalhos
(1913-1914). Rio de Janeiro: Imago,
1996c.
LLOSA, Mário Vargas. A orgia perpetua: Flaubert
e Madame Bovary. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva,
2015.
SARTRE, Jean-Paul. O
idiota da família. Gustavo Flaubert de 1821 a 1857. Vol. 1. Porto Alegre, RS. L&PM, 2015.
[1] Moisés
Monteiro de Melo Neto é Doutor em Letras pela UFPE e atua na Graduação e na
Pós-Graduação da Universidade de Pernambuco e na Universidade Estadual de
Alagoas. Tem vários livros e artigos publicados. Muitas das suas peças teatrais
foram encenadas com sucesso.
[2] Ana Maria Bastos Macena é graduanda em Letras na
Universidade Estadual de Alagoas (Uneal)