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quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Literatura pernambucana a partir do século XX

 

Literatura pernambucana a partir do século XX

Prof. Moisés Monteiro de Melo Neto

 

EMENTA: Analisando obras de Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Ascenso Ferreira, Hermilo Borba Filho, Raimundo Carrero, Marcus Accioly, Luzilá Gonçalves Ferreira, Gilvan Lemos, Ascenso Ferreira, Josué de Castro, Mauro Mota, Carlos
Pena Filho, Gilberto Freyre, Joaquim Cardozo, Osman Lins, Miró, alguns poetas da Geração 65, dentre outros autores, estudaremos alguns escritores cujas vidas enlaçam-se à história e a cultura de Pernambuco.

 

Sobre a nossa avaliação: UM ENSAIO com 10 páginas sobre os autores abordados nas aulas síncronas e assíncronas (não necessariamente todos, mas apresentando uma visão geral sobre o tema do curso) a ser enviado para o e-mail moises@moisesneto.com.br ATÉ O DIA 15 DE NOVEMBRO.

 

SOBRE O ENSAIO:

Tradicionalmente, o Ensaio imprime um parecer muito particular e pessoal sobre uma dada realidade. Há também o ensaio formal, em que o texto tem caráter conclusivo, se presta a refletir e elaborar um texto mais denso e extenso, o que não é o nosso caso, o Ensaio do tipo informal, um tipo de texto que se propõe apresentar uma discussão e refletir sobre o tema LITERATURA PERNAMBUCANA A PARTIR DO SÉCULO XX (podendo os alunos escolherem um subtítulo, sem o compromisso com o rigor formal e com o método científico.

Nos estudos literários, Ensaio é o texto livre de convenções e de protocolos que se posiciona entre a linguagem poética e a instrutiva. Por meio do Ensaio, é possível discorrer a respeito segundo a perspectiva de seu autor. Fundamentalmente, o Ensaio é um texto de opinião em que se expõem ideias e impressões pessoais do autor sobre determinado tema.

Em outras palavras, isso significa dizer que o Ensaio é um gênero discursivo argumentativo e expositivo que apresenta tentativas de refletir criticamente e subjetivamente, em que o autor assume um claro ponto de vista e busca defendê-lo em uma estrutura textual lógica e bem organizada.

Dessa forma, os mais variados temas podem ser objeto de análise em um Ensaio: política, filosofia, costumes sociais, cultura, moral, ética etc. dispensando o rigor científico de apresentar provas concretas ou deduções científicas.

Por isso, nosso trabalho em um Ensaio se fundamentará substancialmente numa estruturação lógica e numa defesa lúcida do ponto de vista de seu autor, com bom domínio da retórica e da persuasão. O aluno/ autor poderá recorrer a outras opiniões já publicadas sobre o mesmo tema para fortalecer a defesa de sua perspectiva e de seus argumentos, citando as fontes.

 

 

 

VAMOS AO PRIMEIRO AUTOR A SER COMENTADO:

 

MANUEL BANDEIRA



 

 As obras de maior destaque do poeta recifense Manuel Carneiro de Sousa Bandeira (1886-1968) são:

Cinza das Horas (1917): Nele podemos perceber que o poeta, vindo da tradição simbolista e parnasiana, mantém com ela profundos laços e caminha, paradoxalmente, para uma ruptura dessa tradição. “O que tu chamas tua paixão / É tão somente curiosidade. / E os teus desejos ferventes vão / Batendo as asas na irrealidade... / Curiosidade sentimental / Do seu aroma, sua pele. / Sonhas um ventre de alvura tal, / Que escuro o linho fique ao pé dele (...) E acima disso, buscas saber / Os seus instintos, suas tendências... / Espiar-lhe na alma por conhecer / O que há de sincero nas aparências.” (trecho de “Poemeto Irônico”).

Já no segundo poema do livro percebemos elementos ligados ao sentimento

Leoni Oficial - Poema do dia: Manuel Bandeira | Facebook

 

 

Seu segundo livro é Carnaval (1919): Muito bem recebido pela nova geração da época e por parte da crítica especializada. “É um livro sem unidade. Sob pretexto de que no carnaval todas as fantasias se permitem, admiti na coletânea uns fundos de gaveta, três ou quatro sonetos que não passam de pastiches parnasianos, e isto ao lado das alfinetadas dos `Sapos´”, disse o poeta. O poema “Os Sapos” é uma sátira ao parnasianismo e foi lido por Ronald de Carvalho durante a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922. O poema seria considerado uma espécie de hino nacional dos modernistas. Outro poema deste livro: “Na velha torre quadrangular / Vivia a Virgem dos Devaneios... / Tão alvos braços... Tão lindos seios... / Tão alvos seios por afagar...” (em “Baladilha Arcaica”).

 

O Ritmo Dissoluto (1924): Neste livro, Bandeira começa a explorar mais sistematicamente a simplicidade popular e um certo prosaísmo. É um livro, como o próprio poeta via, de “transição entre dois momentos de sua poesia”. “A doce tarde morre. E tão mansa / Ela esmorece, / Tão lentamente no céu de prece, / Que assim parece, toda repouso, / Como um suspiro de extinto gozo / De uma profunda, longa esperança / Que, enfim cumprida, morre, descansa...” (em “Felicidade”).

Libertinagem (1930): Com a publicação deste livro, pode-se dizer que a poesia de Bandeira amadureceu definitivamente, no sentido de uma liberdade estética. Além disso, o poeta consolidou sua temática existencial e explorou com mais frequência as cenas e imagens brasileiras. Poemas que se transformaram em clássicos: “Não Sei Dançar”, “Pneumotórax”, “Poética”, “Evocação do Recife”,  “Poema tirado de uma Notícia de Jornal”, ”Teresa” e “Vou-me Embora para Pasárgada”.

“Uns tomam éter, outros cocaína. / Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. /Tenho todos os motivos menos um de ser triste. / Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...” (em “Não Sei Dançar”). “Recife / Não a Veneza americana / Não a Mauritstadt dos armadores das Índias Ocidentais (...) Mas o Recife sem história nem literatura / Recife sem mais nada / Recife da minha infância” (em “Evocação do Recife”).

Estrela da Manhã (1936): Bandeira tinha 50 anos quando, sem encontrar editor, publicou 50 exemplares na marra (papel doado e impressão custeada por subscritos). Alguns músicos interessaram-se por seus textos, como Jaime Ovalle e Radamés Gnatali, entre outros. Em 1945, o poeta compôs as letras para uma série de canções, a pedido do maestro Villa-Lobos, que queria composições tipicamente brasileiras para ser cantadas em ocasiões festivas. Foram reunidas com o nome de Canções de Cordialidade.

Outro poema que se destaca nesta obra é “Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá” “As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam. / Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde! / O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá! / Que outros, não eu, a pedra cortem / Para brutais vos adorarem, “Ó brancaranas azedas, / Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata / Ou celestes africanas (...) Meu Deus, serão as três Marias? / A mais nua é doirada borboleta / Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e nunca mais telefonava / Mas, se a terceira morresse... Oh, então, nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim” Modelo de uma poesia lírica a que se mistura ironia e mesmo o sarcasmo, sua poesia evolui num certo sentido humorístico, num certo sensualismo (Canção das Duas Índias “Entre estas Índias de leste / E as Índias ocidentais / Meu Deus que distância enorme / (...) Sirtes sereias Medeias / Púbis a não poder mais...”. Um erotismo que parece não se concretizar, pois as mulheres, as duas índias são comparadas às inacessíveis praias – o humor amargo à maneira dos britânicos Oscar Wilde e Lord Byron.

O eu poético começa procurando a estrela da manhã “Eu quero a estrela da manhã” – O que seria afinal essa estrela? (Abre-se aqui um campo de interpretações texto aberto – e termina encontrando apenas a estrela Vésper (o ocaso, o fim da tarde será o fim da vida?) “Vésper em cuja ardência não havia a menor parcela de sensualidade”. Quer a estrela-d’alva, a rainha do mar, quer apenas ser feliz e poder descansar. O eu poético se sente só e sua busca parece resultar em nada: “gritava o seu nome três vezes / Dois grandes botões de rosa murcharam / e o meu anjo da guarda quedou-se de mãos postas no desejo insatisfeito de Deus.”

Estrela da Manhã

Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte

Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas

comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás

Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.

 

 

A saída parece nunca existir, fato que se repete em Conto Cruel. O pai que sofria de UREMIA toma injeção de sedol, mas não consegue dormir e “Jesus-Cristinho” nem se incomoda com os apelos.

A amargura do eu poético, a sua solidão deixa-se notar no poema Marinheiro Triste. Compara sua vida com a do marinheiro. O poeta é uma pessoa amargurada, de uma amargura “nobre e funda”, uma tristeza consciente (assim como a do poeta da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”). O destino do marinheiro, seu lugar seguro é o navio (“o feroz casco sujo amarrado ao cais”) para onde volta mesmo sem saber se será feliz (deveria voltar bêbado?). Ao marinheiro restará, no mínimo, o horizonte imenso, mas ao poeta nada restará. Talvez a morte. Morte que contempla em Momento num café ao olhar um esquife que passava.

No percurso da busca, o eu poético faz reflexões sobre o beco. O beco que aprendeu a cantar num dístico (poema de dois versos):

 

Poema do beco

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
— O que vejo é o beco.

 

BANDEIRA, M. Estrela da Manhã, 1936.

 

A temática social (pouco frequente nos textos do poeta) aparece também na prosa poética Tragédia brasileira e em Rondós dos Cavalinhos. Veja que o crime ou a tragédia brasileira – o assassinato de Maria Elvira – ocorreu na Rua da Constituição (será que poderemos remeter aos crimes, assassinatos na época da ditadura?). Maria representa a gente do povo e Misael trabalha para o governo – Ministério da Fazenda. Metaforicamente ele é o Governo e ela é a prostituta (Bandeira tem admiração especial pelas prostituídas – por ser uma excluída?). Para José de Nicola, Misael, num gesto populista, comprou Maria Elvira (= povo) com algumas coisas (falso paternalismo), o mesmo que fez Getúlio Vargas antes de preparar o golpe de Estado (governo populista), comprou o povo a fim de garantir-se no poder. Vale destacar que quando o crime ocorreu, Maria Elvira morava na Rua da Constituição e Misael já era um sujeito, “privado de sentimentos e inteligência”. Na Constituição estariam algumas contradições?

Como esse poema foi escrito na década de ‘30 – a era Vargas – talvez a Tragédia Brasileira tenha uma ligação com o momento político que vivíamos.

Vale destacar que Bandeira mexeu com a estrutura da tragédia à maneira dos gregos, cujos personagens são nobres e aqui pertencem a uma classe que não é dominante, ou seja, é gente do povo.

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade,
Conheceu Maria Elvira na Lapa, - prostituída, com sífilis, dermite nos dedos,
uma aliança empenhada e o dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou
médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez
nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos,
Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua
Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato,
Inválidos...

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de
inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em
decúbito dorsal, vestida de organdi azul
.

Já em Rondó dos Cavalinhos o poeta se mostra mais irônico, sarcástico ao falar (indiretamente) do Brasil político, um Brasil distante do elemento sensível: “O Brasil politicando, / Nossa! A poesia morrendo...”

 Outro poema que destacaríamos aqui é

 Nietzschiana

Meu pai, ah que me esmaga a sensação do nada!
— Já sei, minha filha... É atavismo.
E ela reluzia com as mil cintilações do Êxito intacto.

A metrificação curta e o ritmo leve aparecem principalmente em Cantiga (pentassílabos – redondilha menor). O ritmo leve das brincadeiras infantis é exibido também com Boca de Forno (intertexto) e Trem de Ferro. Neste último, podemos perceber a língua errada do povo’, ‘língua certa do povo’, ou seja, o jeito do brasileiro falar, como falamos, como somos. O recurso da polifonia a permitir a voz do outro no texto: “Oô... / Quando me prendero / no canaviá / Cada pé de cana / Era um oficiá / Oô ... / menina bonita / Do vestido verde / me dá tua boca / Pra matá minha sede / Oô... / Vou mimbora voi mimbora / não gosto daqui / nasci no sertão / sou de Ouricuri / Oô ...”

“Trem de Ferro”

Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isto maquinista?
 
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
 
Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
 
Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
 
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no Sertão
Sou de Ouricuri
Oô...
 
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...

 

Além dos temas desenvolvidos por Bandeira (a família, a morte, a infância no Recife, o Rio Capibaribe) pode-se destacar também a preocupação do poeta com os menos favorecidos: “os mendigos, os meninos carvoeiros, as prostitutas, os carregadores de feira-livre, as ‘pálidas crianças, tristes, asiladas, os meninos sem amor de mãe que viviam de caridade, em vestes tristes como mortalha. As Irenes pretas, os Joões gostosos, as flores murchas da vida a cobrar do eu poético esperanças. Flores Murchas é um poema que funciona como um canto de solidariedade ao povo, um povo que também precisa da Estrela da Manhã.

Bandeira é ainda o poeta das lembranças: a infância, o Recife, as viagens que fez, como a Juiz de Fora (MG) e ali apreciou suas manhãs, suas “jabuticabeiras cansadas de doçura, o cineminha namoriqueiro, o parque senhorial, os bondes dando sem pressa voltas vadias, o primeiro sorriso da doce província de Minas Gerais. O poeta em Declaração de Amor lembra o poeta Mauro Mota na busca do tempo na Farmácia, um tempo “tão de dentro deste Brasil”.

 

MANUEL BANDEIRA – DECLARAÇÃO DE AMOR

Juiz de Fora! Juiz de Fora!
Guardo entre as minhas recordações
Mais amoráveis, mais repousantes
Tuas manhãs!

Um fundo de chácara na Rua Direita
Coberto de trapuerabas.
Uma velha jabuticabeira cansada de doçura.
Tuas três horas da tarde…
Tuas noites de cineminha namorisqueiro…
Teu lindo parque senhorial mais segundo-reinado do que a própria Quinta da
Boa Vista…
Teus bondes sem pressa dando voltas vadias…

Juiz de Fora! Juiz de Fora!
Tu tão de dentro deste Brasil!
Tão docemente provinciana…
Primeiro sorriso de Minas Gerais!

 

 

Lira dos Cinquent’anos (1940): Publicação de emergência, o primeiro convite que o poeta recebeu de uma casa editora. Bandeira candidatou-se à Academia Brasileira de Letras. “Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada /Ribeirão trepidante e de cada recosto / De montanha o metal rolou na cascalhada / Para o fausto d´El-Rei,para a glória do imposto / Que resta do esplendor de outrora? Quase nada: / Pedras... templos que são fantasmas do sol- posto.” (em “Ouro Preto”)

“Vi uma estrela tão alta, / Vi uma estrela tão fria! / Vi uma estrela luzindo / Na minha vida vazia / Era uma estrela tão alta! / Era uma estrela tão fria! / Era uma estrela sozinha/Luzindo no fim do dia” (em “A Estrela”)

“Lapa - Lapa do Desterro -, / Lapa que tanto pecais! / (Mas quando batem seis horas, / Na primeira voz dos sinos, / Como anunciava / A conceição de Maria, / Que graças angelicais!” (em “Última Canção do Beco”)

ÚLTIMA CANÇÃO DO BECO

Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!


Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar.
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!


Beco de sarças de fogo,
E paixões sem amanhãs,
Quanta luz mediterrânea
No esplendor da adolescência
Não recolheu nestas pedras
O orvalho das madrugadas,
A pureza das manhãs!
Beco das minhas tristeza.
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas...
E eras só de pobres quando,
Pobre, vim morar aqui.


Lapa - Lapa do Desterro -,
Lapa que tanto pecais!
(Mas quando bate seis horas,
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava
A conceição de Maria,
Que graças angelicais!)


Nossa Senhora do Carmo,
De lá de cima do altar,
Pede esmolas para os pobres,
- Para mulheres tão tristes,
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo
De noite se agasalhar.


Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais,
És como a vida, que é santa
Pesar de todas as quedas.
Por isso te amei constante,
E canto para dizer-te
Adeus para nunca mais!

 

 

Belo Belo (1948): Esse título foi tirado de um poema da Lira dos Cinquent´Anos. Numa edição posterior, de 1951, foram acrescentados alguns poemas. “Vamos viver no Nordeste, Anarina. / Deixarei aqui meus amigos, meus livros, minhas riquezas, minha vergonha / Deixarás aqui tua filha, tua avó, teu marido, teu amante. / Aqui faz muito calor. / No Nordeste faz calor também. / Mas lá tem brisa”. (em “Brisa”)

”Belo belo minha bela / Tenho tudo que não quero / Não tenho nada que quero / Não quero óculos nem tosse / Nem obrigação de voto (...) Belo belo / Mas basta de lero-lero / Vida noves fora zero” (em “Belo Belo”)

Mafuá do Malungo (1948): Publicado na Espanha por iniciativa de João Cabral de Melo Neto. Mafuá significa feira popular, malungo é um africanismo, significando companheiro. Nesse livro Bandeira usa seu poder lúdico e faz também sátiras políticas. Lê-se aí também a escritura à maneira de outros poetas.

“Olhei para ela com toda a força. / Disse que era boa. / Que ela era gostosa, / Que ela era bonita pra burro: / Não fez efeito (...) Virei pirata (...) Então banquei o sentimental (...) Escrevi cartinhas (... Perdi meu tempo: não fez efeito. / Meu Deus que mulher durinha! / Foi um buraco na minha vida. / Mas eu mato ela na cabeça: / Vou lhe mandar uma caixinha de Minorativas, / Pastilhas purgativas: / É impossível que não faça efeito!” (em “Dois Anúncios”: “ I - Rondó de efeito”)

Opus 10 (1952-1955) A expressão do título vem do universo da música. A palavra latina Opus indica genericamente obra, composição, e o número indica a posição de determinada peça num conjunto de composição do autor. Nomeando um livro seu a partir de uma expressão tomada no universo da música, Bandeira ressalta a importância da música e da musicalidade em sua obra.

“Como em turvas águas de enchente / Me sinto a meio submergido, / Entre destroços do presente / Dividido, subdividido, / Onde rola, enorme, o boi morto (...) Morto sem forma ou sentido / Ou significado. O que foi/Ninguém sabe. Agora é boi morto” (em “Boi Morto”) “Grilo toca aí um solo de flauta. / - De flauta? Você me acha com cara de flautista? / - A flauta é um belo instrumento. Não gosta? / -  Troppo dolce!” (em “O Grilo “).

Estrela da Tarde (1960) reeditado em 1963, com novos poemas. É a maturidade do poeta completo que Bandeira já é ao tempo deste livro, ao qual ele tanto retorna ao soneto tradicional (reinventado na sua poética), como se utiliza de recursos gráficos – talvez inspirados nas vanguardas contemporâneas- na montagem de poemas como “O Nome em Si”.

“Vejo mares tranquilos, que repousam, / Atrás dos olhos das meninas sérias. /Alto e longe elas olham, mas não ousam / Olhar a quem as olha, e ficam sérias” (em “Variações Sérias em Forma de Soneto”).

OUTROS POEMAS. “O SUPLICANTE - Padre Nosso, que estás no céu santificado seja o teu nome. Venha a nós o teu reino. Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. O pó nosso de cada dia nos dá hoje... / O SENHOR (interrompendo enternecidíssimo) - Toma lá, meu filho. Afinal tu és pó e em pó te converterás!” (em “Sonho de uma noite de coca”)

“Casa Grande & Senzala” / Grande livro que fala / Desta nossa leseira / Brasileira / Mas com aquele forte / Cheiro e sabor do Norte / - Dos engenhos de cana / (Massangana!) (...) Se nos brasis abunda / Jenipapo na bunda, / Se somos todos uns / Octoruns / Que importa? E lá é desgraça? / Essa história de raça, / Raças más, raças boas (...) É coisa que passou / Pois o mal do mestiço não está nisso. / Está em causas sociais, / De higiene e outras que tais: / Assim pensa, assim fala / Casa Grande &Senzala. / Livro que à ciência alia / A profunda poesia / Que o passado revoca / E nos toca / A alma de brasileiro, / Que o portuga femeeiro / Fez e o mau fado quis / Infeliz!”.

 

 

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

 

 
Nascido no Recife, João Cabral (1920-1999) descende de senhores de engenho, aí passou a infância. No Recife, jogou pelo Santa Cruz. É primo de Gilberto Freyre e de Manuel Bandeira. Foi para o Rio de Janeiro em 1942 e em 1945 ingressou na carreira diplomática. Seu primeiro livro Pedra do Sono foi publicado em Recife e é composto por poemas curtos em versos regulares e brancos. “Pedra” simboliza sua obsessão pela ordem e clareza. “Sono” é conotação para a poesia que o escritor quer transformar em objeto numa linguagem despretensiosa, coloquial, irônica. Há neste lançamento influência das vanguardas (surrealismo, cubismo), como detectamos no poema “Noturno”: “o mar soprava sinos/ os sinos secavam as flores/ as flores eram cabeças de santos/ minha memória cheia de palavras/ meus pensamentos procurando fantasmas/ meus pesadelos atrasados de muitas noites”. Em 1945, publica O Engenheiro, poemas (“máquina de comover”) com projeto geométrico de construção, rigor. Dedica-o a Drummond e faz referências a Miró, Picasso, Mondrian. Além de metapoesia, há limpidez na linguagem, preocupação com a disposição gráfica das estrofes. Em 1947, surge Psicologia da Composição (com “Fábula de Anfion” e “Antiode”). A “fábula” é poema narrativo onde o anti-herói livra-se da emoção. Anfion construiu ao som de sua lira, a muralha de Tebas. Em 1950: O Cão sem Plumas, escrito em Barcelona, denuncia a realidade nordestina também no poema “O Rio” (em 1ª pessoa, com técnica dos romanceiros ibéricos) onde o eu-lírico é o próprio rio. Engenhos, usinas, trem, afluentes, misturam-se na viagem do sertão ao mar.

Morte e Vida Severina é de 1956: o narrador em primeira pessoa nos conta (em forma de auto de natal-pernambucano) sua trajetória de desilusão e desgraça do sertão pernambucano até o Recife. Sua condição severina (severa, vulgar) cujo único consolo é o nascimento de uma criança (que presencia no final do poema). Em Paisagem com Figuras (1956), compara o norte da Espanha com a paisagem nordestina. Quaderna (1960) é antilírico e composto por quartetos rimados. Dois Parlamentos (1961) parodia a gratuidade e a recorrência da fala dos políticos institucionais, distanciados da realidade (“Congresso no Polígono das Secas” e “Festa na Casa Grande”).

 

 

 

 

Congresso no Polígono das Secas


(ritmo senador; sotaque sulista)

1

- Cemitérios gerais
onde não estão só os mortos.
- Eles são muito mais completos
do que todos os outros.
- Que não são só depósito
da vida que recebem, morta.
- Mas cemitérios que produzem
e nem mortos importam.
- Eles mesmos transformam
a matéria-prima que têm.
- Trabalham-na em todas as fases,
do campo aos armazéns.
- Cemitérios autárquicos,
e bastando em todas as fases.
- São eles mesmos que produzem
os defuntos que jazem.

5

- Cemitérios gerais
onde não é possível que se ache
o que é de todo cemitério:
os mármores em arte.
- Nem mesmo podem ser
inspiração para os artistas,
estes cemitérios sem vida,
frios, de estatística.
- Sem muito, podem ser
tema para as artes retóricas,
que os celebram porém do Sul,
longe da tumba roda.
- Isto é, para a retórica
de câmara (câmara política)
que se exercita humanizando
estes mortos de cifra.

9

- Cemitérios gerais
onde não se guardam os mortos
ao alcance da mão, ao pé,
à beira de seu dono.
- Neles não há gavetas
em que, ao alcance do corpo,
se capitalizam os resíduos
possíveis de um morto.
- A todos os defuntos
logo o Sertão desapropria,
pois não quer defuntos privados
o Sertão coletivista.
- E assim não reconhece
o direito a túmulos estanques,
mas socializa seus defuntos
numa só tumba grande.

13

- Cemitérios gerais
onde não cabe fazer cercas.
- Nenhum revezo caberia
o que dentro devera.
- Onde o morto não é,
só, o homem morto, o defunto.
- De mortos muito mais gerais,
bichos, plantas, tudo.
- De mortos tão gerais
que não se pode apartação.
- O jeito é mesmo consagrar
cemitério a região.
- Assim há cemitério
que tudo aqui morto comporte.
- Consagrar tudo um cemitério
e tudo o que se pode.

2

- Nestes cemitérios gerais
não há a morte excesso.
- Ela não dá ao morto
maior volume nem mais peso.
- A morte aqui não é bagagem
nem excesso de carga.
- Aqui, ela é o vazio
que faz com que se murche a saca.
- Que esvazia mais uma saca
aliás nunca plena.
- Ela esvazia o morto,
a morte aqui jamais o emprenha.
- A morte aqui não indigesta,
mais bem, e morte azia.
- É o que come por dentro
o invólucro que nada envolvia.

6

- Nestes cemitérios gerais
não há a morte gosto,
táctil, sensorial,
com aura, ar de banho morno.
- Certo bafo que banha os vivos
em volta da banheira,
dentro da qual o morto
banha na sua auréola espessa.
- A morte aqui é ao ar livre,
seca, sem o ressaibo
natural noutras mortes
e no sabor de Rilke ou de cravo.
- Ela não é nunca a presença
travosa de um defunto,
sim a morte escancarada,
sem mistério, sem nada fundo.

10

- Nestes cemitérios gerais 
não há morte isolada,
mas a morte por ondas
para certas classes convocadas.
- Nunca ela vem para um só morto,
mas sempre para a classe,
assim como o serviço
nas circunscrições militares.
- Há classes numerosas, como
a de Setenta-e-sete,
mas sempre cada ano
o recrutamento se repete.
- E grande ou não, a nova classe,
designada pelo ano,
segue para a milícia
de onde ninguém se viu voltando.

14

- Nestes cemitérios gerais
não há morte pessoal.
- Nenhum morto se viu
com modelo seu, especial.
- Vão todos com a morte padrão,
em série fabricada.
- Morte que não se escolhe
e aqui é fornecida de graça.
- Que acaba sempre por se impor
sobre a que já medrasse.
- Vence a que, mais pessoal,
alguém já trouxesse na carne.
Mas afinal tem suas vantagens
esta morte em série.
- Faz defuntos funcionais,
próprios a uma terra sem vermes.

3

- Nestes cemitérios gerais
os mortos não variam nada.
- É como se morrendo
nascessem de uma raça.
- Todos estes mortos parece
que são irmãos, é o mesmo porte.
- Se não da mesma mãe,
irmãos da mesma morte.
- E mais ainda: que irmãos gêmeos,
do molde igual do mesmo ovário.
- Concebidos durante
a mesma seca-parto.
- Todos filhos da morte-mãe,
ou mãe-morte, que é mais exato.
- De qualquer forma, todos
gêmeos, e mortinatos.

7

- Nestes cemitérios gerais
os mortos não têm o alinho
de vestir-se a rigor
ou mesmo de domingo.
- Os mortos daqui vão despidos
e não só de roupa correta,
mas de todas as outras,
mínimas etiquetas.
- Daquelas poucas que se exigem
para se entrar em tal serão,
mortalha, para todos,
e rede, aos sem caixão.
- Por isso é que sobram de fora,
sem entrar nos salões da terra,
entre pedras, gravetos,
no sereno da festa.

11

- Nestes cemitérios gerais
os mortos não têm esse ar
pisado, que uma dor
deixa atrás, ao passar.
- Ou o ar inteligente, irônico,
que muitos têm, de ter descoberto
o que só eles veem
e não dizem, discretos.
- Eis um defunto nada humano,
que nem lembra um homem, se foi,
e no qual nada mostra
se a morte doeu, ou dói.
- Se lembra algo, lembra é as pedras,
essas de ar não inteligente,
as pedras que não lembram
nada de bicho ou gente.

15

- Nestes cemitérios gerais
os mortos não mostram surpresa.
- A morte para eles
foi coisa rotineira.
- Nenhum tem o ar de morrido
em instantâneo ou guilhotina.
- Porém de um sono lento
que adorme, não fulmina.
- Em nenhum deles há as posturas
desses que morrem sob protesto.
- É sempre a mesma pose,
sem nenhum grito, gesto.
- Entre eles, gestos de eloquência
não se veem nunca, quando a morte.
- Todos morrem em prosa,
como foram, ou dormem.

4

- Cemitérios gerais
que não exibem restos.
- Tão sem ossos que até parece
que cachorros passaram perto.
- De mortos restam só
pouquíssimos sinais.
- Muito menos do que se espera
com a propaganda que se faz.
- Como que os cemitérios
roem seus próprios mortos.
- É como se, como um cachorro,
após roer, cobrissem os ossos.
eis por que eles são
para o turista um logro.
- Se pensa: não pensei que a morte
houvesse desfeito tão poucos.

8

- Cemitérios gerais
que os restos não largam
até que tenham trabalhado
com sua parcial matemática.
- E terem dividido
o resto pelo nada,
e então restado do que resta
a pouca coisa que restava.
- Aqui, toda aritmética
dá o resultado nada, 
pois dividir e subtrair
são as operações empregadas,
- E quando alguma coisa
é aqui multiplicada
será sempre para elevar
o resto à potência do nada.

12

- Cemitérios gerais
que dos restos não cuidam
nem fazem prorrogar a vida
ainda nos mortos, porventura.
- E cujos restos são
de defuntos defuntos,
por falta de folhas, formigas,
para prolongar seu circuito.
- Nem conhecem a fase,
prima, da podridão,
em que os defuntos se projetam,
quando nada, em exalação.
- Só restos minerais,
infecundos, calcários,
se encontram nestes cemitérios,
menos cemitérios que ossários.

16

- Cemitérios gerais
que não toleram restos.
- Nem mesmo um pouco que se possa
encomendar ao céu ou ao inferno.
- Eles, todos os restos
da mesma forma tratam.
- Talvez porque os mortos que têm
não tenham tal resíduo, a alma.
- Talvez porque esta tem
consistência mais rala.
- E seja no ar fácil sorvida
como uma gota em outra de água.
- Não há é por que usar,
aqui, a imagem da água.
- Melhor dizer: como uma gota
de nada em outra de nada.

João Cabral de Melo Neto - Dois Parlamentos (1958 - 1960); in: A educação pela pedra

 

Em Serial (“Terceira Feira”), de 1961, encontramos poemas compostos em série, ultrapassando o lirismo e a musicalidade. Como característica: busca da forma, e lucidez severa da composição. Educação pela Pedra (1966) é coletânea que expõe a “depuração” atingida pelo poeta num processo rigoroso e sistemático, comparável à resistência / consistência da pedra. Museu de Tudo (1976) é composto por poemas que diferem da simetria habitual do autor (por isso seu rigor eliminou tais poemas dos livros anteriores).

Escola das Facas (1980) “poemas pernambucanos”, Cabral retoma a preferência pela simetria. Há notas memorialistas e a 1ª pessoa (sem despersonalização, eis a diferença).

A Escola das Facas

O alísio ao chegar ao Nordeste
baixa em coqueirais, canaviais;
cursando as folhas laminadas,
se afia em peixeiras, punhais.

Por isso, sobrevoada a Mata,
suas mãos, antes fêmeas, redondas,
ganham a fome e o dente da faca
com que sobrevoa outras zonas.

O coqueiro e a cana lhe ensinam,
sem pedra-mó, mas faca a faca,
como voar o Agreste e o Sertão:
mão cortante e desembainhada.


Publicado no livro A escola das facas (1980).

 

Em 1982, publica Poesia Crítica, cujo tema é a criação poética. É o artista a refletir sobre a própria arte. Em 1984 surge O Auto do Frade, um poema para vozes. Como Morte e Vida Severina, este também é para ser lido em voz alta. O tema é Frei Caneca, mentor da Confederação do Equador (movimento republicano em Pernambuco), executado em 1825, por ordem de Pedro I. O poema retoma o último dia do líder carmelita. O povo o vê caminhando para a morte:

“-Ei-lo que vem descendo a escada, degrau a degrau. Como vem calmo.

- Crê no mundo, e quis consertá-lo.

- E ainda crê, já condenado?

- Sabe que não o consertará.

- Mas que virão para imitá-lo.”

Em 1985 e 1987, respectivamente são publicados Agrestes e Crime na Calle Relator. Ficou o senso de medida e a expressão sem excessos ou derramamentos, a despoetização do poema que, longe da retórica, concentra a emoção dando à palavra espessura, concretude. Mais qualidade do que quantidade. Cada uma com o máximo de conotação possível. Emoção passando pelo crivo da precisão, humanitariamente: a presença do humor numa “concepção objectualista”. Um verso substantivo e despojado, que nos deu uma nova perspectiva do discurso lírico. Até hoje, a nos seguir, está o cão sem plumas (=pêlos) arrastando ainda detritos das casas grandes & senzalas. Prosaico, lírico, polirrítmico, severo e pícaro. Violentando o horizonte nordestino com sua forma dura. A palo seco: sem guitarra, sem mais nada. Só a lâmina da voz, sem tempero ou ajuda. Com sua chama nua sobre o fio de cobre. Ferro contra pedra. Ferro contra ferro. O rio como um cão vivo. “O que vive não entorpece / o que vive fere (...) viver é ir entre o que vive...” Ariano disse que João Cabral é parte da formação e manutenção da identidade nacional. Haroldo de Campos o considera um dos maiores poetas do Brasil. A Espanha e os EUA já o reverenciaram. Cabral resmungava: “Me considero um marginal na poesia luso-brasileira. Como foram Sousândrade e Augusto dos Anjos.” Nosso poeta resgatou o homem, como o Barroco resgatou Deus. Numa literatura que busca o “engajamento”. Em 1968, assumiu a cadeira deixada por Assis Chateaubriand na Academia Brasileira de Letras. Em 53, acusado de comunista, passou algum tempo afastado da carreira diplomática. Cabral negou a experiência de 22. Augusto de Campos disse que ele não tinha “antecedentes” (só “consequentes”). “A poesia concreta não depende de mim”, sentenciou Cabral do alto dos seus oito livros de poemas e dois autos dramáticos. Em prosa, lançou estudo sobre Juan Miró. “Plantas franzinas em ambiente de rapina”, foi como descreveu os camponeses da zona da mata pernambucana. O nordestino é marcado pela paisagem.

 

 

 

 

ASCENSO FERREIRA

 

Pernambucano nascido em 1895, na cidade de Palmares, Ascenso Ferreira faleceu em Recife no ano de 1965.

Inicialmente preso aos moldes parnasianos, assumiu o modernismo em 1922 e em 1927 lançou seu livro de poemas “Catimbó”; depois veio “Cana Caiana”. Em 1951, uma edição luxuosa contendo as duas obras citadas e um terceiro livro “Xenhenhém”, além de um disco com melodias para os poemas.

São poemas que pedem um público ouvinte, daí dizer- se que sua poesia é mais para ser recitada e ouvida do que impressa e lida.

Quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar seus poemas, não pode fazer ideia das virtualidades verbais nelas contidas, do movimento lírico que lhes imprime o autor. Assim, em ‘Sertão´, quando ele começa: ‘Sertão! - Jatobá! / Sertão! - Cabrobó ! / - Ouricuri!´.

A palavra ‘sertão´ é pronunciada como um prolongado grito de aboio, ao passo que ‘Jatobá´ e ‘Cabrobó´ caem pesadamente do peito, sinistramente escandidas (separadas), evocando desde logo a caatinga. E o resto vem vindo quase sussurrando, um recolhimento quase religioso (...), um sortilégio evocativo tanto pelo ritmo como pela musicalidade.

De repente, eis que o poeta abandona o verso livre, o vozeirão catastrófico e assume o tom dançarino, a cadência de quem vai pastoreando reses mansas: ‘Lá vem o vaqueiro, pelos atalhos, / Tangendo as reses para os currais / Blém... blém, cantam os chocalhos / Dos tristes bodes patriarcais.´

Esta passagem sem preparação do verso livre para os metrificados constituem a característica da forma tão pessoal de Ascenso.

‘É lamp ... é lamp ... é lamp ... / É Virgulino Lampião... / E O urro do boi no alto da serra, / para os horizontes cada vez mais limpos, / tem algo de sinistro como as vozes / dos profetas anunciadores de desgraças... / - O sol é vermelho como um tição! / - Sertão! / Sertão!´.

“Ver e sobretudo ouvir Ascenso, é viver intensamente no mundo dos mangues do Recife, do massapê e das caatingas, das cavalhadas, pastoris, maracatus, vaquejadas (...) Ascenso identificou-se com o homem do povo de sua terra mesmo quando este é o cangaceiro que a fatalidade mesológica (do meio onde vive) marcou com o estigma do crime”, afirmou o recifense Manuel Bandeira. O Sertão estava no sangue de Ascenso.

O poeta perdeu o pai aos 7 anos, numa cavalhada. Sua mãe, que fora abolicionista, foi sua única professora durante anos.

Dos sonetos e baladas, madrigais, até a poesia brincalhona, foi um passo. O “primeiro Ascenso” cismou com o Modernismo de São Paulo, mas aproximou-se de Mário de Andrade e, claro, de Manuel Bandeira.

Com Gilberto Freyre, Joaquim Inojosa e Joaquim Cardozo fundamentaram o Regionalismo Modernista em Recife.

Se o modernismo paulista aderia aos modelos franceses e italianos, o recifense aproveitou somente o verso livre, o humor, a linguagem coloquial, enfim, pouca coisa das vanguardas de além-mar.

“O freguês que não bebe não é bom cristão! / Peia nele, mestre Mateu!´ / E o coro canta em profusão: / `Se a aguardente era o diabo, pra que bebeu? / Se o copo era grande, pra que encheu!´ (...) Se a mulher era o diabo, pra que bebeu / essa jurema que é o beijo seu!“.

“Cana Caiana” é um frege que lembra música popular, embolada. Uma poesia “estranha e doce” de um poeta “legítimo”, como disse Luís da Câmara Cascudo, que relembra: Ascenso dava risadas de “acordar os defuntos de Santo Amaro” (cemitério de Recife).

“- Viva o arco-íris (...) Vamos pegá-lo (...) fugiu ... / a chuva fina tem carícias de morte ... / Fugiu ... / Para o sul? Para o norte / - Quem sabe! / Desapareceu ... / Além ... /Vida-Arco-íris também ...” (in “Arco-Íris “ do livro “Catimbó”).

Os engenhos de “fogo morto”, os maracatus, a sensualidade da mulher pernambucana, a culinária, a lua, o mar, o frevo, tudo isso mistura- se na poesia deste poeta de Palmares, cujo ritmo é contagiante.

“O sino bate, / o condutor apita o apito, / solta o trem de ferro um grito, / põe-se logo a caminhar... / - Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende / com vontade de chegar / Mergulham mocambos / nos mangues molhados, / moleques mulatos, / vêm vê-lo passar. / - Adeus, - Adeus / Mangueiras, coqueiros, cajueiros em flor, / Cajueiros com frutos / já bom de chupar... / - Adeus, morena do cabelo cacheado! / (...) Mangabas maduras, / mamões amarelos (...) o Pai- das Mata! (...) a casa das Caiporas! (...) Meu deus! Já deixamos a praia tão longe ... / No entanto avistamos outro mar ... (...) Cana-caiana / Cana roxa / cana-fita/ todas boas de chupar” (in “Trem das Alagoas” de “Cana- Caiana”).

 

POEMAS TRABALHADOS NO FILME INCENSO

Sucessão de São Pedro

 

     — Seu vigário!

     Está aqui esta galinha gorda

     que eu trouxe pro mártir São Sebastião!

     — Está falando com ele!

     — Está falando com ele!

 

CATIMBÓ

 

Mestre Carlos, rei dos mestres,

aprendeu sem se ensinar...

— Ele reina no fogo!

— Ele reina na água!

— Ele reina no ar!

Por isto, em minha amada acendera a paixão que consome!

Umedecera sempre, em sua lembrança, o meu nome!

Levar-lhe-á os perfumes do incenso que lhe vivo a queimar.

 

E ela ha de me amar...

Há de me amar...

Há de me amar...

         — Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar!

 

À luz do setestrelo nos havemos de casar!

E há de ser bem perto.

Ha de ser tão certo

como que este mundo tem de se acabar...

Foi a jurema de sua beleza que embriagou os meus sentidos!

E eu vivo tão triste como os ventos perdidos

que passam gritando na noite enorme...

 

Porque quero gozar o viço que no seu lábio estua!

Quero sentir sua carícia branda como um raio da lua!

Quero acordar a volúpia que no seu seio dorme...

 

E hei de tê-la,

hei de vencê-la contra seu querer...

 

— Porque de Mestre Carlos é grande o poder!

Pelas três marias... Pelos três reis magos... Pelo setestrelo

 

Eu firmo esta intenção,

bem no fundo do coração,

e o signo de Salomão

ponho como selo...

E ela há de me amar...

Há de me amar...

Há de me amar...

 

— Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar!

Porque Mestre Carlos, rei dos mestres,

reina no fogo... Reina na água... Reina no ar...

 

— Ele aprendeu sem se ensinar...

 

 

CINEMA

Mas D. Nina,
aquilo é que é o tal de cinema?

— O homem saiu atrás da moça,
pega aqui, pega acolá,
pega aqui, pega acolá,
até que pegou-la.

Pegou-la e sustentou-la!
Danou-lhe um beijo,
danou-lhe beijo,
danou-lhe beijo!...

Depois entraram pra dentro de um quarto!
Fez-se aquela escuridão
e só se via o lençol bulindo...

........................................

Me diga uma coisa, D. Nina:
        isso presta pra moça ver?!...

 

PREDESTINAÇÃO

“— Entra pra dentro, Chiquinha!
Entra pra dentro, Chiquinha!
No caminho que você vai
você acaba prostituta!

E ela:
— Deus te ouça, minha mãe…
Deus te ouça…”